Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1655/14.4T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL.
PLANO DE INSOLVÊNCIA
PER
AÇÃO DE NULIDADE DO ACORDO
POR SIMULAÇÃO.
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL.J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: CIRE E ARTºS 117º, Nº 1 E 128º DA LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ/LEI N.º 62/2013, DE 26/8).
Sumário: I – A competência material, como pressuposto processual, afere-se nos termos em que a acção é proposta (pedido e causa de pedir), ou seja pela relação jurídica tal como o autor a configura.

II - O plano de insolvência e o plano de recuperação no PER têm a natureza de negócio processual, ou seja, de uma transacção.

III - É da competência da instância central/secção cível, e não da secção de comércio, a ação de nulidade do acordo, por simulação, constante do plano de recuperação.

Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1.- A Autora – C..., CRL – instaurou na Comarca de Leiria (Instância Central –Secção Cível) acção declarativa, com forma a de processo comum, contra os Réus:

A... e mulher M..., R... e S...

            Alegou em resumo:

Em 20/12/2012 tinha um crédito sobre os 1ºs réus no valor de € 240.056,51.

Em 21/11/2012 foi publicado o despacho de nomeação de administrador judicial provisório no processo n.º ..., em virtude de os 1ºs réus terem requerido a sua revitalização por meio da aprovação de um plano de recuperação.

Em 12/12/2012, a autora foi convidada a participar nas negociações, nos termos do artigo 17.º- D, n.º 1 do CIRE.

No processo especial de revitalização, por ausência de impugnação no prazo legalmente previsto, foram reconhecidos os seguintes créditos:

- crédito da autora, no valor de € 122.063,00, por garantias prestadas e mútuos bancários;

- crédito do 2.º réu, R..., no valor de € 491.967,00, por pretenso aceite de letra cambiária e juros; e,

- crédito do 3.º réu, S..., no valor de € 5.056,00, por pretenso empréstimo particular e juros .

Os réus, em conjunto, ficcionaram a existência dos créditos reconhecidos aos 2.º e 3.º réus com vista a ser aprovado, por maioria, o plano de revitalização;

-           O plano previu, além do mais, o seguinte:

“4.1. – C...

PLANO DE REGULARIZAÇÃO

No prazo de seis meses, contados desde o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação, o administrador judicial provisório irá proceder à venda do imóvel, loja de rés do chão direito, bloco A, com aparcamento na cave, designado pelo nº 1, sito na Rua ...

Com a aprovação do plano de recuperação, deverá o devedor proceder às diligências necessárias para a venda do referido imóvel, sendo aplicável o disposto no artigo 17º E do CIRE;

Tendo em conta a dificuldade de venda de imóveis, o administrador judicial provisório escolhe a modalidade de alienação do bem, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente;

É desde já dispensada a obrigação de pronúncia da comissão de credores e dos credores, assim como do devedor;

O produto da venda, será dedicado em 90% na redução dos créditos ao credor C..., sendo os restantes 10% destinados às despesas decorrentes da venda;

O referido imóvel deverá ser alienado no prazo máximo de seis meses a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação. A não alienação aplica-se o exposto no último parágrafo;

A partir do mês seguinte à alienação do imóvel, o devedor deverá entregar por meio de depósito bancário, durante 180 meses os rendimentos auferidos mensalmente, superiores a dois ordenados mínimos nacionais;

Para efeitos do número anterior, são considerados:

Rendimentos de trabalho dependente o montante líquido do recibo de vencimento;

Rendimentos profissionais, comerciais e industriais, o valor acumulado da prestação de serviços mensal (somatório das facturas emitidas), deduzidos do valor a título de retenção na fonte, das contribuições e cotizações obrigatórias para a Segurança Social e outras despesas para a prossecução da actividade no valor mensal de 275,00 euros;

Caso em circunstâncias excepcionais o imóvel não seja alienado, conforme parágrafos anteriores, o devedor obriga-se a entregar anualmente, a totalidade do valor da renda auferida, numa só prestação e no mês de Dezembro de cada ano civil, durante 15 anos contados do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação, deduzida das despesas inerentes ao imóvel, nomeadamente, impostos, condomínio e outras despesas.

4.2 – R...

Conforme já exposto, os devedores têm necessidade de reduzir as responsabilidades para com os seus credores e tornar o rendimento disponível adequado às suas responsabilidades.

Tendo em conta o exposto no ponto 4.1, o rendimento disponível dos devedores está a ser afectado ao pagamento do credor C...

Ao credor foi-lhe reconhecido o montante de 491.967,00 euros, incluindo capital e juros de mora.

Propõe-se:

Dação em pagamento do prédio urbano composto por casa de habitação de cave e rés do chão e logradouro, sito na Rua ...;

A dação acima referida será efectuada pelo valor patrimonial do imóvel;

Com a referida dação, fica desde já estabelecido que a mesma liquida a totalidade do crédito reconhecido ao credor, ficando os devedores desonerados do restante crédito.

A escritura será efectuada no prazo máximo de 90 dias a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação do presente plano de recuperação.

A não aceitação por parte do credor do atrás exposto, obriga os devedores ao pagamento de uma renda mensal líquida de 300,00 euros, durante 180 meses, contados desde o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação.

4.3 – S...

Pagamento de 35% do crédito reconhecido, sendo os restantes 65% sujeitos a perdão, em 180 prestações mensais iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação.

4.4 – Nos termos do artigo 209º, nº 3 do CIRE, com as devidas adaptações, o plano de recuperação acautela os créditos eventualmente controvertidos em processo de impugnação de forma que venham a ter o mesmo tratamento, conforme propõe o presente plano de recuperação.

E por antecedente ao disposto neste mencionado preceito acautela todos os créditos que venham a ser reconhecidos em sede do artigo 17º-D, dos números 3 e/ou 4 do CIRE.

4.5 – O incumprimento do Plano de recuperação exonera o devedor da totalidade das dívidas remanescentes.

4.5 – Todos e quaisquer ónus e encargos que recaem sobre todo e qualquer bem ou direito dos devedores caducam, pelo que, os bens e direitos a seguir indicados ficam livres de ónus e encargos, com aprovação do plano de recuperação:

- Loja no rés do chão direito, bloco A, sito na Rua ...;

- Prédio urbano composto de casa de habitação, sito na Rua x(...) , Urbanização (...) , 20, freguesia e concelho de Pombal, descrito na C.R.P. de Pombal com o número ...;

- Veículo automóvel de marca BMW, com a matrícula ...;

- Saldo bancário correspondente à apólice nº ..., referente ao produto protecção e poupança investimento, afecto ao Crédito A..., S.A.;

- Depósito a prazo nº ... na C...”.

O plano foi homologado por sentença proferida em 09/05/2013, transitada em julgado em 19/11/2013.

Todos os negócios entre os réus foram simulados, inexistindo quaisquer mútuos.

No PER os réus agiram conluiados trazendo ao processo uma versão fáctica que não corresponde à realidade para, através dessa, obterem um fim proibido por lei, designadamente servirem-se do tribunal para fazer crer a existência de créditos que não existiam, causando prejuízo à autora.

A autora é a única e exclusiva credora dos 1.º réus e não fora a simulação de créditos nunca a mesma teria de suportar o concurso de credores, e ver aprovado um PER, com amputação do seu crédito, e com obtenção do seu pagamento através da venda de um imóvel, com o valor patrimonial de € 124.870,00, ou seja, de valor inferior ao seu crédito, no valor de € 240.056,51.

Visaram os réus, com a homologação do PER, fazer um uso anormal do processo, tendo agido em conluio para, dessa forma, lograr a diminuição do crédito da autora e a sua satisfação através do património dos 1.º réus.

A sentença homologatória do PER, perderá a sua eficácia, se for declarada a nulidade da transacção firmada, por encerrar simulação, e independentemente da interposição de recurso de revisão da sentença homologatória.

Também a declaração de dação expressa na escritura respeitante à moradia familiar não correspondeu à vontade real dos declarantes que apenas visaram coloca-la fora do património dos 1.º réus e fora do alcance da autora, tanto mais que, volvidos mais de 6 meses, aqueles ainda aí residam.

            Pediu cumulativamente:

a)- os 1ºs Réus condenados a pagar à Autora a quantia de 240.056,51 €, acrescida de juros moratórios que, às taxas constantes dos artigos 2º a 62º da pi e por reporte aos capitais ali indicados, se vencerem desde 20/12/2012, até efetivo e integral pagamento;

b) os 2º e 3º Réus condenados a reconhecer que a Autora é titular de um crédito sobre os 1ºs Réus no valor de 240.056,51€, acrescido de juros moratórios que, às taxas constantes dos artigos 2º a 62º da pi, se vencerem desde 20/12/2012, até efetivo e integral pagamento;

c) reconhecida a existência de simulação processual na invocação e reconhecimento dos créditos do 2º e 3º Réus no PER nº ..., mais se declarando que o 2º e 3º Réus nenhum crédito tinham ou têm sobre os 1ºs Réus;

d)- ser reconhecido que tal simulação inquinou as negociações e plano levado a sentença homologatória nos autos de PER nº ...;

e)- ser declarada a nulidade do plano de revitalização apresentado a homologação judicial nos autos de PER nº ...;

f)- ser declarado que a sentença que homologou um tal PER perdeu a sua eficácia enquanto título executivo e ato determinante de direitos e obrigações das partes, considerando-se a mesma eliminada ou inutilizada pela decisão a proferir nestes autos que, bem assim, deverá declarar tal decisão anterior nula, mantendo-se na esfera jurídica dos 1ºs Réus, tangível a cobrança coerciva da Autora pelo seu crédito de 240.056, 51€ e juros, sem quaisquer restrições, todo o acervo patrimonial dos 1ºs Réus, designadamente :

- loja de rés-do-chão direito e aparcamento na cave designado por nº 1, com a área bruta privativa de 156,00 m2+área dependente de 13,50 m2, bloco A, sito na Rua ...;

- prédio urbano com 210,00 m2 de área coberta+330,00 m2 de área descoberta, composto de casa de habitação, de cave, R/C e logradouro, sito em ...;

- veículo automóvel de marca BMW, com matrícula ...;

- saldo bancário correspondente à apólice ..., referente a produto proteção e poupança investimento, afeto ao Crédito A..., S.A.;

- depósito a prazo nº ... na C..., afeto à conta DO nº ...

g) ser declarada, também por simulação, a nulidade da dação em cumprimento do imóvel a que corresponde a descrição nº ... a favor do 2º Réu, inscrita pela Ap. nº ...;

h) no que deflui da declaração de nulidade, ser ordenada a restituição do imóvel a que corresponde a descrição predial nº ... à esfera jurídico-patrimonial dos 1ºs Réus, ali tangível a cobrança coerciva da Autora pelo seu crédito de 240.056,51€ acrescidos de juros moratórios que se vencerem desde 20/12/2012;

i) ser ordenado o cancelamento da inscrição/Ap. nº ... à descrição nº ...;

j) ser ordenada a repristinação a favor da Autora das seguintes inscrições registais :

...

            Contestaram os Réus A... e mulher M... defendendo-se por excepção ao arguirem o caso julgado, anulação do processado por recurso a meio processual inadequado e por impugnação e requereram a condenação da Autora como litigante de má fé.

            1.2.- No saneador decidiu-se julgar o tribunal materialmente incompetente para a tramitação e decisão deste processo, por ser competente a instância central, secção de comércio de Leiria, e, em consequência, absolver os réus da instância.

            1.3.- Inconformada, a Autora recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

1) A sentença que homologa um plano de revitalização em nada difere de uma sentença homologatória de transacção - as negociações que culminam na aprovação de um plano constituem um negócio jurídico ou contrato, ainda que plurilateral, que não deixa de estar sujeito às normas substantivas que disciplinam o mesmo;

2) O “ plano de insolvência, assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia, por isso o Plano de Recuperação da empresa que for aprovado, não é oponível ao credor ou credores que não anuíram à redução ou à modificação lato sensu dos seus créditos”.

3) A sentença que homologa uma transacção ou um PER não conhece da substância da causa, limitando-se a fiscalizar a regularidade e validade do negócio celebrado entre as partes nos termos do disposto no art. 290º, nº 3 do CPC.

4) As negociações que num PER culminam na aprovação de um plano em nada diferem das negociações que numa acção culminam numa transacção, nem a sentença que homologa um plano diverge de uma sentença homologatória de transacção.

5) A transacção pode ser declarada nula ou anulada como os outros actos da mesma natureza – artº. 291º , nº 1 do C.P.C.; o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a transacção não obsta a que se intente acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação – artº. 291º, nº2 do C.P.C.;

6) O art. 301º, nº 2, continuou a permitir a propositura de acção destinada à declaração de nulidade ou anulação daqueles actos (embora se determine que, nessa situação e caso o réu não conteste, o autor suporte as custas da acção – art. 449º, nºs 1 e 2, alínea d)), o que significa que o legislador terá admitido a existência de interesse processual na anulação daqueles actos, independentemente da revisão da sentença que os homologou”;

7) Provado que seja que as negociações subjacentes ao PER assentaram em simulação de créditos, o devedor que se apresentou ao mesmo não poderá continuar a gozar da prerrogativa prevista no artº. 17º-E do CIRE – outra solução não constituiria uso daquele normativo, antes ilegítimo abuso a paralisar por aplicação do disposto no artº. 334º do Código Civil;

8) Por outro lado o PER já não está pendente, findou com trânsito em julgado da sentença que o homologou, deixou, portanto, de haver qualquer impedimento à instauração de acções de cobrança de dívida contra o devedor (acções que até poderiam ser propostas para cumprimento do próprio PER, não estivesse o mesmo inquinado de simulação);

9) O único segmento do pedido que poderia merecer alguma reserva por parte do Tribunal a quo é aquela parte do pedido formulado pela Recorrente sob a alínea f) em que, excessivamente, foi pedido seja declarada nula a decisão que homologou o PER; aqui sim, o Tribunal a quo poderia inibir-se de conhecer esta parte da pretensão da Autora, entendendo ser esta apenas alcançada através de Recurso de Revisão;

10) A anulação de actos ou negócios posteriores à sentença homologatória do PER, mormente envolvendo terceiros, só pode ser lograda pela propositura de Acção autónoma, nunca por um Recurso de Revisão, cujo alcance não vai além da própria instância em que for julgado;

11) Acção aqui em causa não se integra, nos termos do disposto no artº. 128º da Lei nº62/2013 de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) na competência, taxativamente definida, das Secções de Comércio;

12) Não sendo materialmente competente a Secção de Comércio a competência recairá, atento o valor da Acção, na Secção Cível da Instância Central da Comarca de Leiria – artº. 117º, nº1, aln. a) da LOSJ;

13) O que se visou pela acção foi a transacção enquanto negócio jurídico, não a sentença que a homologou enquanto acto processual (que só quanto a esta o ataque tem de ser levado a cabo através do Recurso de Revisão); o processo não tem, pois, que correr por apenso a nenhum outro;

14) Ainda que assim não fosse, estando já findos os articulados e podendo estes ser aproveitados sem prejuízo para as garantias processuais das partes, não estando em causa a violação de pacto privativo de jurisdição ou preterição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artº. 99º, nº2 do CPC a Recorrente requereu a remessa do processo ao Tribunal no qual se viesse a entender que a Acção deveria ter sido proposta;

15) Ainda que houvesse incompetência material, razões não havia para absolvição e extinção da instância, antes para mera remessa dos autos.

            Contra-alegaram os Réus A... e mulher M... no sentido da improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. A competência, enquanto medida de jurisdição de cada tribunal que o legitima para conhecer de determinado litígio, como pressuposto processual, afere-se nos termos em que a acção é proposta ( pedido e causa de pedir ), ou seja pela relação jurídica tal como o autor a configura.

A competência dos tribunais judiciais é analisada por critérios de atribuição positiva e de competência residual (arts.66 e 67 CPC)e  as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.

Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, que permite reservar para certas categorias de tribunais o conhecimento de certas causas, atendendo à especificidade das matérias.

2.2. O processo especial de revitalização (PER), criado pela Lei nº 16/2012 de 20/4, tem sido qualificado como um “processo híbrido” (negocial e judicial) que assenta primordialmente na recuperação obtida por acordo extrajudicial e formalizada num plano.

O plano de insolvência assenta nos chamados “convénios falimentares “e está sujeito ao princípio da liberdade de conteúdo, podendo derrogar as normas do próprio Código, significando um claro afloramento do princípio da autonomia privada, atenta a finalidade precípua do processo de insolvência enquanto processo de execução universal que visa a satisfação dos interesses dos credores (art.1º CIRE). E esta satisfação passa agora (após a alteração da Lei nº 16/2012, de 20/4) primordialmente pela “forma prevista num plano, baseado , nomeadamente, na recuperação da empresa (…)”.

Neste contexto, dada a natureza jurídica do plano, tanto na insolvência como no PER, quer se adopte a acepção negocial, ou a tese dual (negócio processual) a verdade é que assume um papel crucial no paradigma falimentar, em face da primazia da vontade dos credores, porque titulares do principal interesse que o direito concursal visa proteger, significando tratar-se de uma verdadeira.

O plano de insolvência, e por maioria de razão, o plano de recuperação no PER tem sido qualificado como um verdadeiro negócio processual, ou seja, uma transacção (cf. Gisela Fonseca, “A Natureza Jurídica do Plano de Insolvência”, Direito da Insolvência, Estudos, pág.100 e segs., Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, pág. 99, Ac STJ de 25/3/2014 ( proc. nº 6148/12), Ac RC de 6/11/2012 ( proc. nº 444/06), Ac RC de 1/4/2014 ( proc. nº 3330/13), disponíveis em www dgsi.pt).

2.3. Com a presente acção a Autora pretende, no essencial, a nulidade do plano (negócio processual) com base na simulação, bem como a nulidade da dação em cumprimento e o reconhecimento do seu crédito.

A transacção, como qualquer outro negócio processual, postula os requisitos gerais dos negócios jurídicos, quanto aos sujeitos e ao objecto. A declaração negocial é um elemento essencial do negócio jurídico, apresentando-se constituída pela declaração propriamente dita (elemento externo), que consiste no comportamento declarativo, e a vontade (elemento interno). A simulação traduz-se numa divergência intencional entre a vontade real e a declaração, ou seja, entre o “querido” e o “declarado”.

A acção de nulidade ou de anulação pode ser proposta após o trânsito em julgado da sentença homologatória do negócio jurídico processual (art.291 CPC, correspondente ao anterior art.301 nº1).

Até 2003 previa-se uma duplicidade de meios (acção e recurso) baseada “na distinção entre os efeitos (negociais) do acto da confissão do pedido, desistência ou transacção e os efeitos( processuais) da sentença que o homologa “ ( Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol.1º, pág.535).

Uma vez obtida a declaração e nulidade ou de anulação, a parte podia impugnar a sentença homologatória em recurso de revisão ( art.771 d) CPC), funcionando a acção de simulação como fundamento do juízo rescindente (cf. Ac STJ de 18/2/2013 ( proc. nº 02B4685), em www dgsi.pt).

Com a alteração do DL nº 32/2003, de 8/3, na alínea d) do art.771 CPC eliminou-se a necessidade da prévia acção autónoma ao recurso de revisão, pois a nulidade ou a anulação pode ser efectivada mesmo em sede de recurso (como na actual redacção do art. 696 d) do nCPC), mas isso não obsta a que a parte instaure acção autónoma, em face a alternativa prevista no art.301 nº2 nCPC (“o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transacção não obsta a que se intente acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação”), pelo que, neste caso, “sendo considerado sem existência e eficácia jurídica o acto processual da confissão, desistência ou transacção, parece que ipso facto, a sentença homologatória de deve ter como ineficaz. Cessando o pressuposto ou fundamento do acto processual, caduca a decisão que o homologou” ( Luís Mendonça/ Henrique Antunes, Dos Recursos, pág. 344).

Neste sentido, sublinhado o argumento da alternatividade, prevista no art.291 nº2 CPC, escreveu-se no Ac RG de 24/1/2008 ( proc. nº 2244/07), em www dgsi.pt): “Na verdade, se atentarmos na nova redacção ao n.º 2 do artigo 301, verifica-se que houve um aditamento em alternativa. A primeira parte do normativo mantém a redacção anterior. A novidade está na segunda parte, onde foi aditado “ ... ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento..”. O que quer dizer que o interessado na anulação tem duas alternativas, para obter o mesmo objectivo. Basta-lhe optar. E se o fizer pela revisão, não poderá utilizar mais tarde a anulação porque a questão já foi conhecida e decidida no processo de revisão, como o refere a al. d) do artigo 771 do CPC, com a nova redacção. Segundo este normativo é fundamento da revisão a “nulidade ou anulabilidade da confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundasse”. Foi excluída a necessidade de uma decisão transitada em julgado que declarasse a nulidade ou anulabilidade da transação, desistência ou confissão homologada, como se impunha com a anterior redacção da respectiva alínea d) “ quando tenha sido declarada nula ou anulada por sentença já transitada, a confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundasse”.

2.4. A Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ/Lei n.º 62/2013, de 26/8), que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, estatui o seguinte:

No art.117 nº1:

Compete à secção cível da instância central:

a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000;

b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência;

 d) Exercer as demais competências conferidas por lei (art.º 117, n.º 1).

Nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a essas secções (n.º 2 )

No art.128 nº1

Compete às secções de comércio preparar e julgar:

a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;

b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;

c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de liquidação judicial de sociedades;

f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;

g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;

h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;

i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

Considerando a pretensão deduzida pela Autora, em face da causa de pedir, e que se resume no essencial à anulação do acordo, por alegada simulação, e ao reconhecimento do seu crédito, a competência está legalmente deferida à instância central/secção cível, e não a secção de comércio, pois não se integra na tipicidade do art. 128º da Lei nº62/2013 de 26/8.

            Procede a apelação, revogando-se a sentença recorrida.

            2.5.- Síntese conclusiva

i)A competência material, como pressuposto processual, afere-se nos termos em que a acção é proposta (pedido e causa de pedir), ou seja pela relação jurídica tal como o autor a configura.

ii)O plano de insolvência e o plano de recuperação no PER têm a natureza de negócio processual, ou seja, de uma transacção.

iii)É da competência da instância central/secção cível, e não da secção de comércio, a acção de nulidade do acordo, por simulação, constante do plano de recuperação.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida.

2)

            Condenar os Apelados nas custas.

            Coimbra, 7 de Abril de 2016.


( Jorge Arcanjo)

( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )