Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/22.3T8TCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
VALOR DA SUCUMBÊNCIA
VALOR PROCESSUAL DA CAUSA
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 44.º 1 E 3, DA LOSJ
ARTIGOS 296.º, 2; 305.º; 306.º, 2; 308.º; 493.º; 607.º, 4 E 5; 609.º, 1; 615.º, 1, E); 629.º; 640.º, 1 E 2 E 662.º, 1, DO CPC
ARTIGOS 1251.º; 1255.º; 1256.º; 1258.º A 1262.º; 1287.º; 1293.º A 1296.º; 1305.º; 1311.º E 1316.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
1. Se não for possível determinar o valor da sucumbência da parte, esse valor é irrelevante para aferir a admissibilidade do recurso e esta fica apenas dependente do valor processual da causa.

2. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

3. Se as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, os autores pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre determinada faixa de terreno, porque a adquiriram por usucapião e por compra, a ação é de reivindicação (art.º 1311º do CC).      

Decisão Texto Integral:

Apelação 222/22.3T8TCS.C1
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Moreira do Carmo
                 Rui Moura


                                                                    *  
(…)


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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                   

           

            I. Em 26.9.2022, AA e BB intentaram a presente ação declarativa comum contra CC, pedindo que o Réu seja condenado: a reconhecer que os AA. são proprietários do prédio rústico descrito no art.º 1º da petição inicial (p. i.) e que a faixa de terreno sita junto à curva que faz a estrada municipal ...86, no local denominado “Curva da ...”, melhor identificada no art.º 18º da p. i., integra aquele prédio [a) e b)[1]]; e abster de utilizar a referida parte do terreno dos AA., ou qualquer outra, com pessoas e coisas, designadamente viaturas [c)]; indemnizar os AA. em € 2 000, a título de danos não patrimoniais [d)].

            Alegaram, em síntese: são proprietários do bem imóvel identificado no art.º 1º da p. i., adquirido através de escritura de compra e venda, sendo que por si e antepossuidores estão na posse, uso e fruição do referido prédio há mais de 30 anos; o Réu, em 2021/2022, para além de ter plantado arbustos e despejado estrume no terreno em causa propriedade dos AA., acabou por se apropriar de uma faixa de terreno, com cerca de 3 metros de largura e 120 de comprimento, que tem vindo a utilizar com vista a aceder a um prédio do qual é proprietário e que confina com o prédio dos AA. a Norte e a Este; o Réu tem impedido que os trabalhadores por si contratados estacionem veículos nesse terreno; a descrita conduta do Réu deixa-os preocupados e angustiados.

            O Réu contestou, impugnando a generalidade dos factos sobre a configuração do prédio do qual os AA. se arrogam titulares, bem como o exercício de atos de posse sobre toda aquela extensão, contrapondo que, no ano de 2018, construiu um acesso ao interior do seu prédio e que confina com o prédio os AA., mas em terreno que é do próprio Réu; os atos por si praticados tiveram lugar em terreno que integra aquele seu prédio. Concluiu pela improcedência da ação.

            Foi proferido despacho saneador que firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

            Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 30.6.2023, julgou a ação parcialmente procedente: declarou  os AA. proprietários do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...01, situado em ..., inscrito na matriz rústica sob o art.º ...94, designado por “terra de centeio, pinhal e pastagem com figueiras e uma cerejeira”, do qual faz parte integrante a faixa de terreno identificada no facto provado 12 com 14 metros de comprimento, e 3 de largura, tendo este direito sido constituído por usucapião; absolveu o Réu do demais pedido.

            Inconformado, o Réu apelou formulando as seguintes conclusões:[2]

            1ª - A ação proposta pelos autores não configura uma ação de reivindicação - ação complexa composta pelo pedido de reconhecimento do direito e pedido de restituição -, porque os autores não pedem a entrega da faixa de terreno que entendem pertencer ao seu prédio.

            2ª -  Além do mais, não conseguiram identificar de forma inteligível, essa faixa de terreno que afirmam ter o réu se apropriado ilegitimamente.

            3ª - Nos termos conjugados dos art.ºs 195º, n.º 1, e 662º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil (CPC), deveria o tribunal ter convidado a parte a corrigir o mencionado vício, sob pena de redundar na anulação da sentença.

            4ª - Ainda que assim não se entenda, a por manter a petição corrigida os vícios de que padecia inicialmente, nomeadamente a falta de inteligibilidade do pedido, e a causa de pedir, por não ser idónea a produzir o efeito útil que visaria o processo, sendo, portanto, inepta, sempre a solução será a do art.º 193º, CPC, a nulidade de todo o processado e consequente absolvição do réu da instância.

            5ª - Os recorridos peticionam que se reconheça que uma determinada faixa de terreno com 3 metros de largura por 120 metros de comprimento, sita a curva que faz a E. M. 586, no local denominado “Curva da ...” pertence ao prédio propriedade dos autores.

            6ª - O tribunal decidiu reconhecer que a faixa de terreno identificada no facto provado 12 com 14 metros de comprimento, e 3 de largura faz parte integrante do terreno dos, tendo este direito sido constituído por usucapião.

            7ª - O tribunal a quo, ao decidir como decidiu procedeu, por iniciativa própria, a uma verdadeira demarcação dos limites dos terrenos dos autores e réu, o que não era, de todo, o propósito da ação, já que, à semelhança da ação de reivindicação, não se encontram preenchidos os seus requisitos.

            8ª - Acresce que nem as partes nem as testemunhas, em momento algum, fizeram referência às medidas apuradas pelo tribunal que age, assim, em clara violação dos art.ºs 615º, n.º 1, e) e 609º, do CPC, pelo que a decisão enferma de nulidade.

            9ª - O tribunal fez errada valoração e apreciação do complexo probatório, bem como não cuidou de sustentar com precisão e a necessária suficiência as conclusões que retirou dos depoimentos das testemunhas e que motivaram a decisão em crise.

            10ª - Não ignoramos que têm nesta sede aplicação os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, e que, naturalmente o tribunal de 1ª instância se encontra numa posição privilegiada face ao tribunal ad quem para valorar e apreciar a prova testemunhal.

            11ª - Cremos, no entanto, que os elementos disponíveis nos autos são idóneos e bastantes para justificar o uso dos poderes consagrados no art.º 662º, CPC, e consequente modificação da decisão, especificamente no que concerne ao ponto 12 dos factos provados - “Os primeiros 14 metros do caminho identificado em 11 fazem parte integrante do prédio identificado em 1, tendo sido igualmente sobre estes praticados os factos identificados em 5 a 9.”

            12ª - In casu, o tribunal de recurso encontra-se numa posição mais favorável que a tradicional para apreciação da prova, uma vez que a maioria dos depoimentos foi recolhido, não só áudio, mas também o vídeo.

            13ª - O tribunal a quo considerou que a maioria das testemunhas dos autores depuseram de forma credível e descomprometida; já as do réu estariam praticamente todas comprometidas, ensaiadas, e, portanto, falaciosas.

            14ª - Todavia a conclusão a que o tribunal chegou é parcamente sustentada ou os argumentos não colhem.

            15ª - Com efeito, testemunhas de ambas as partes exibem os mesmos comportamentos, os mesmos “vícios”, contudo os respetivos depoimentos não são considerados segundo o mesmo critério.

            16ª - E os depoimentos em que o tribunal alicerçou a sua convicção não são isentos de contradições e hesitações, sendo manifestamente insuficientes para sustentar aquela tese, até porque não é por as testemunhas estarem convictas de estar a falar verdade que o que alegam corresponde, de facto, à verdade.

            17ª - Ademais, a sentença desconsidera factos descritos nos articulados e relatados pelas testemunhas, de enorme relevância para a discussão da causa.

            18ª - Não é irrelevante que o sobrinho da proprietária do prédio que pertence agora ao réu tenha exercido atos de posse sobre uma parcela de terreno que os autores dizem ser seu e que extravasam largamente os limites da tolerância, sem que os que se arrogavam proprietários terem alguma vez reagido, nomeadamente a colocação de alcatrão no acesso e colocação de manilhas.

            19ª - Não é indiferente a existência de elementos delimitadores dos terrenos no prédio que autores e réu reclamam, designadamente uma cruz.

            20ª - Aos autores exigia-se que fizessem prova, sem margem para dúvida do direito que se arrogam, no caso, qual a configuração do seu prédio e de que a faixa construída pelo réu a este pertencia.

            21ª - Sendo complexo probatório produzido manifestamente insuficiente para sustentar o alegado pelos recorridos, não podia ter sido dado como provado o facto 12 da sentença, devendo relegar-se o referido ponto para o elenco dos factos não provados, com as inerentes consequências legais.

            22ª - Justifica-se, assim, o uso dos poderes consagrados no artigo 662º, CPC, com a consequente modificação da decisão.

            Remata dizendo que deverá ser declarada a nulidade da sentença ou ser a mesma revogada e substituída por outra que relegue para o elenco dos factos não provados o citado ponto 12, elaborando-se nova decisão em conformidade.

            Por seu lado, os AA. interpuseram recurso subordinado, concluindo:

            A) O art.º 629º, n.º 1, do CPC, impõe dois critérios cumulativos de admissibilidade do recurso da sentença relativamente a matéria cível: o recurso é admissível “desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido” – o denominado critério da alçada ou do valor, “e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” – o denominado critério da sucumbência.

            B) Ao Réu encontra-se vedada a possibilidade de recurso da decisão proferida, nos termos que a mesma se encontra, na exata medida em que apenas se encontra desfavorecido em 7 % do valor da ação, devendo ser rejeitado o recurso interposto.

            C) Note-se que os novos factos alegados pelo Réu para fundamentar que se encontra muito superiormente vencido, justificando assim a admissibilidade do recurso, apenas foram alegados em sede de recurso, não resultam alegados nem provados nos autos, nem foram objeto de prova.

            D) O legislador consagrou na supra mencionada norma legal uma limitação à faculdade de recurso, impondo para a sua admissibilidade a verificação cumulativa de dois requisitos, ambos necessários, mas cada um deles insuficiente por si mesmo.

            E) Mesmo que se entendesse ser admissível o recurso interposto pelo Réu, sempre o mesmo estaria votado ao insucesso, não dando o recorrente cumprimento ao estipulado no art.º 640º do CPC.

            F) Não merece a decisão recorrida, a censura que lhe é apontada pelo recorrente, na exata medida em que efetuou uma justa e adequada análise e valoração da prova produzida nos autos.

            G) A decisão proferida efetuou uma adequada análise e conjugação da totalidade da prova produzida nos autos, designadamente a prova testemunhal, a prova documental e a inspeção ao local.

            H) Assume especial relevância, principalmente, esta última, na exata medida em que o M. Juiz a quo entendeu que, considerando a configuração do terreno e as especificidades do mesmo, a inquirição das testemunhas deveria ter lugar no local em questão nos autos, no que obteve a imediata concordância das partes, tendo decorrido da referida forma.

            I) Efetuou também um correto enquadramento legal e aplicação das normas jurídicas aos factos em questão nos presentes autos, pelo que deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto.

            J) Recorrendo subordinadamente, e caso seja admitido o recurso interposto pelo Réu, sempre a decisão recorrida deverá ser alterada, devendo ser dados como provados os factos e), f), g) e h) que foram dados como não provados.

            K) A prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento impunha decisão diversa, isto é, que o tribunal a quo tivesse dado como provados os referidos factos.

            L) Na verdade, as testemunhas arroladas pelos AA., inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento, e cujos depoimentos a decisão valorou e considerou essencialmente credíveis, depuseram também quanto aos factos que foram considerados como não provados.

            M) Impõem decisão diversa quanto aos referidos factos f), g) e h) dados como não provados: - o depoimento das testemunhas prestados na sessão do dia 26/4/2023, DD, gravado em ficheiro MTS n.º 00018, com início pelas 09h47m, de minutos 2.48 a minutos 05.10 do seu depoimento, e EE, gravado em ficheiro MTS n.º 00016, com início pelas 09h35m, de minutos 08.50 a minutos 11.30 do seu depoimento.

            N) Devem ser julgados provados os factos que erroneamente foram dados como não provados, devendo, em consequência, julgar-se procedente, também nessa parte, a pretensão deduzida pelos AA..

            Os AA. concluíram pela improcedência do recurso independente; o Réu não respondeu.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do(s) recurso(s), importa decidir/reapreciar, principalmente: a) admissibilidade do recurso; b) ineptidão da p. i.; c) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); d) decisão de mérito, cuja modificação depende da eventual alteração da decisão de facto (aqui se aludirá, ainda, à pretensa “nulidade da sentença”).


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            II. 1.  A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de ..., sob o n.º ...01, o prédio rústico, situado em ..., inscrito na matriz rústica sob o art.º ...94, designado por “terra de centeio, pinhal e pastagem com figueiras e uma cerejeira”, encontrando-se registado a favor de AA, casada com BB, constando como causa da aquisição “compra” e como sujeito passivo FF e GG.

            2) Encontra-se descrito na CRP ..., sob o n.º ...24, o prédio rústico, sito no ...[3], freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica sob o art.º ...76, designado por “terra de batata e pastagem, pinhal, videiras e árvores de fruto”, encontrando-se registado a favor de CC, constando como causa da aquisição “usucapião”.

            3) Na escritura pública de compra e venda, de 16.9.2020, perante o Cartório Notarial ..., GG, na qualidade de primeiro outorgante, FF, na qualidade segundo outorgante, HH, na qualidade de terceiro outorgante e como procurador de AA, declaram, além do mais, o primeiro e segundo outorgante vender à representada do terceiro outorgante o prédio descrito na CRP ..., sob o n.º ...01 - prédio rústico, situado em ..., freguesia ..., ..., inscrito na matriz rústica sob o art.º ...94, designado por “terra de centeio, pinhal e pastagem com figueiras e uma cerejeira” -, o qual se encontrava à data registado a favor de II e JJ, tendo o terceiro outorgante declarado aceitar o contrato para a sua representada nos termos exarados.

            4) Consta igualmente da aludida escritura que II e JJ, titulares inscritos no registo aquando da celebração da escritura, faleceram a 06.5.2016 e 25.02.2020, respetivamente, sendo ambos casados em regime de comunhão de adquiridos, deixando como únicos herdeiros os seus dois filhos o primeiro e a segunda outorgante, sendo nessa qualidade de únicos herdeiros daqueles que estes celebraram a escritura de compra e venda.

            5) Desde 1984 que os Autores, por si e no seguimento dos anteproprietários do prédio identificado em 1), que dele têm entrado e saído[4], de dia e de noite, à vista de toda a gente.

            6) Ao longo de todos esses anos cortaram o mato e giestas, lavrando e semeando na sua parte baixa.

            7) Foram os Autores que, após a celebração da escritura referida em 3), colocaram vedação em rede e vigas de cimento em parte do terreno.

            8) Utilizando a totalidade do prédio, em toda a sua extensão, e dele retirando todas as utilidades, agindo como se de coisa própria se tratasse.

            9) Todos aqueles atos foram praticados à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, de boa fé, como coisa própria sua, fosse.

            10) Os Autores são emigrantes na Suíça e permanecem em Portugal por alguns períodos de tempo, principalmente nos períodos de férias.

            11) Em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2018, o Réu CC abriu um caminho, no local designado por “Curva da ...”, com 120 metros de comprimento e 3 de largura, com início na EM ...86, tal como melhor se encontra descrito no levantamento topográfico junto com a p. i., o qual termina no prédio sito ao ..., inscrito na matriz da freguesia ... sob o artigo ...76 e descrito na CRP ... com o n.º ...31.

            12) Os primeiros 14 metros do caminho identificado em 11) fazem parte integrante do prédio identificado em 1), tendo sido igualmente sobre estes praticados os factos identificados em 5) a 9).

            13) Desde a abertura daquele caminho que o Réu o tem utilizado, a pé e de carro, acedendo ao prédio identificado em 2).

            2. E deu como não provado:

            a) Que o Réu, após a celebração da escritura de compra e venda referida em 3, tenha despejado na faixa de terreno identificada em 11) estrume de ovelha.

            b) Que a plantação dos ciprestes na faixa de terreno identificada em 11) tenha ocorrido entre os anos de 2021 e 2022.

            c) Que o Réu tenha impedido os trabalhadores contratados pelos Autores de estacionar veículos em parte do terreno dos Autores.

            d) Que o acesso ao prédio identificado em 2) sempre se tenha feito pela sua parte Sul, com entrada pelo caminho da capela.

            e) Na sequência dos atos praticados pelo Réu com a abertura do caminho identificado em 11), os Autores passaram a ficar muito preocupados e angustiados.

            f) Que existisse uma pedra delimitadora dos prédios identificados em 1) e 2) a cerca de 34,80 metros após o início do caminho identificado em 11), a qual tinha uma cruz marcada na sua superfície.

            g) Que a partir da referida cruz a delimitação do terreno fosse feita pela margem direita do caminho aberto pelo Réu, com pedras colocadas no seu seguimento, estendendo-se por uma distância de 85,20 metros, tal como consta do levantamento topográfico junto pelos autores com a p. i..

            h) Que após os primeiros 14 metros do caminho identificado no facto provado 11), o terreno em causa pertença ao prédio identificado no facto provado 1) e que tenham sido praticados os atos identificados em 5) a 9)[5] sobre essa parte do terreno.

            3. Cumpre apreciar e decidir.

             Preceitua o art.º 629º, do CPC: O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa (n.º 1).

            Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30 000 e a dos tribunais de 1ª instância é de € 5 000 (art.º 44º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26.8/Lei da Organização do Sistema Judiciário/LOSJ). A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (n.º 3).

            A nossa lei consagra um regime misto quanto à admissibilidade de recurso, pois que esta depende, cumulativa e simultaneamente, do valor da causa (alçada) e do valor da sucumbência (differendum), relevando, no entanto, apenas aquele, em caso de fundada dúvida sobre este.

            Entendeu-se, por razões de política legislativa, que um prejuízo de valor igual ou inferior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão[6] era insignificante e não justificava o investimento de meios humanos e materiais nos Tribunais Superiores que a interposição, tramitação e julgamento de um recurso implicava e, por isso, condicionou-se a admissibilidade do recurso à verificação desse valor mínimo.

            Assim, sempre que a medida da sucumbência não exceda esse limite, a parte vencida está impedida de interpor recurso principal ou independente para apreciar e sindicar a respetiva decisão.[7]

            Daí, só admitem recurso ordinário as decisões proferidas sobre as causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre - em princípio, a parte vencida apenas poderá recorrer da decisão se o valor do respetivo processo exceder a alçada do tribunal que a proferiu (tribunal a quo)[8] - e se, além disso, se verificar o seu decaimento em, pelo menos, metade dessa alçada.

            4. Quanto a esta problemática, o caso em análise não é isento de dificuldades.

            Não se discute a propriedade dos dois prédios confinantes (dos AA. e Réu), não havendo controvérsia alguma a tal respeito - o litígio versa unicamente sobre a propriedade duma determinada zona intermédia (os AA. não aludem a uma incerteza de estremas face ao prédio do Réu, não pretendem a sua demarcação), pelo que o valor dessa faixa de terreno, em princípio, deveria ser tomado em conta para se fixar o valor da ação ou do pedido correspondente.[9]

            A causa tem o valor acordado pelas partes e aceite pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo (cf. art.ºs 305º, 306º, n.º 2 e 308º, a contrario, do CPC e despacho de 01.3.2023), com o propósito de ab initio assegurar a recorribilidade até à Relação (cf. art.ºs 296º, n.º 2, do CPC e 44º, n.º 1, da LOSJ).

            5. Afirmou-se, pois, a superioridade do valor da causa relativamente ao valor da alçada do tribunal de que se recorre, condição indispensável, mas não suficiente para que o recurso (independente) seja admissível, porquanto é ainda necessário que o valor da sucumbência do recorrente seja superior a metade da alçada do tribunal recorrido - tratando-se de tribunal da 1ª instância, o valor da sucumbência do recorrente deve, portanto, exceder € 2 500.

            6. Nem sempre, porém, é possível determinar o valor da sucumbência da parte; se assim for, o valor da sucumbência é irrelevante para aferir a admissibilidade do recurso e esta fica apenas dependente do valor da causa (art.º 629º, n.º 1, in fine, do CPC).

            Assim sucede no caso em apreço.

            Não obstante o critério que terá presidido à repartição das custas efetuada na sentença sob censura [“linear” e meramente aritmético; aparentemente, aplicando, apenas, a “regra de três simples”] - não questionado pelas partes -, o valor da sucumbência da parte, enquanto parâmetro aferidor do recurso (valor do interesse não atendido na decisão de que se recorre[10]), não se poderá identificar com o que resultou daquela “operação tributária”, enquadrando-se, sim, na hipótese (indeterminação da sucumbência) prevista na parte final do n.º 1 do art.º 629º do CPC.

            Tal diversidade de valores resulta evidente, por exemplo, do que vemos alegado nos art.ºs 20º e 28º da contestação de 03.11.2022, sendo que o objeto da condenação respeitará ao (segmento) que terá envolvido maior dispêndio...[11]

            Sendo a alçada o limite de valor até ao qual, em princípio, o tribunal julga definitivamente, não sendo admitido recurso das decisões proferidas em causas cujo valor se contenha dentro desse limite[12], verifica-se que o valor da presente ação é superior à alçada da 1ª instância; ante a indeterminação da sucumbência do apelante [que não poderá ser razoavelmente decidida em face dos elementos disponíveis, e,  como vimos, não poderá/deverá ser o mero resultado da dita “regra de três simples” aplicada em matéria de custas...], releva, apenas, o valor processual da causa (€ 7 500).

            Por este último valor - definitivamente fixado - o recurso é admissível.[13]

             7. Relativamente à pretensa nulidade do processo (incluindo a sentença) por ineptidão da petição inicial, ora invocada, nada se acrescenta ao que, com acerto, se refere no despacho da 1ª instância de 26.01.2024: «(...) independentemente dos concretos fundamentos aduzidos pelo Recorrente, decorre do disposto nos artigos 198º, n.º 1 e 186º, n.º 1 do CPC que a ineptidão da petição inicial só pode ser arguida até à contestação ou neste articulado. / Assim sendo, por manifesta extemporaneidade, entende-se ser de indeferir a invocada nulidade

            8. a) Nos recursos, AA. e Réu insurgem-se, principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, sendo que da sua eventual modificação poderá resultar diferente desfecho dos autos.

            Importa averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade aludida em II. 1. 12) e II. 2. alíneas e), f), g) e h), supra, pugnando o Réu que aquele primeiro facto seja dado como não provado e, os AA., que a matéria dos restantes seja tida como provada [cf. “conclusões 11ª e 21ª” e “conclusão J)”, respetivamente, ponto I., supra].

            Invoca-se, sobretudo, a prova pessoal produzida em audiência de julgamento, complementada pelo resultado da inspeção judicial ao local (onde decorreu parte significativa da audiência).

            b) Esta Relação procedeu à audição da prova pessoal produzida em audiência de julgamento (em parte, reproduzida em vídeo), conjugando-a com a prova documental e o que foi mandado registar pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo, no decurso da audiência de julgamento (art.º 493º do CPC).

            c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efetivação do princípio da imediação[14], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obsta a que se verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[15], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

            d) Da motivação de facto apresentada pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo importa destacar os seguintes excertos [atento o objeto do recurso]:

            «(...) Mostrou-se igualmente de extrema importância[16] a inspeção judicial realizada, assim como o facto de o julgamento ter decorrido parcialmente no local dos factos, o que permitiu a este tribunal ter uma melhor perceção do terreno aqui em causa, bem como para a valoração do depoimento das testemunhas inquiridas no local, as quais puderam indicar com maior precisão tudo o que contendia com o seu conhecimento quanto à delimitação entre o terreno dos Autores e do Réu.

               (...) o objeto da presente ação não abrange a totalidade do prédio do qual os autores se arrogam proprietários, estando apenas em discussão se a parcela de terreno identificada na petição inicial no art.º 18º da petição inicial é parte integrante desse prédio.

               Por outro lado, há que realçar que o Réu em momento nenhum põe em causa que ao Autores sejam proprietários do prédio identificado no art.ºs 1º e 2º da petição inicial, mas apenas que o mesmo tenha a dimensão e as confrontações referidas pelos Autores (o que, como acabamos de referir, nada interessa para esta ação, tendo em conta a forma como os autores estruturaram a sua causa de pedir e pedidos), em particular no que diz respeito à aludida faixa de terreno, a qual considera ser parte integrante do prédio do próprio Réu e que confina com o dos Autores.

               (...) estando em causa essencialmente os atos de posse que Autores e, em particular, os antepossuidores do prédio em causa, praticaram sobre o mesmo ao longo dos anos (factos 5 a 10 e 12).

               Como não podia deixar de ser, essa prova teve de ser feita essencialmente com recurso a prova testemunhal, a qual se relevou de difícil apreciação, quer pelo seu volume, quer pela própria configuração do terreno aqui em causa e, em particular, da faixa de terreno em disputa, sendo que, quanto a esta, a mesma apenas passou a existir há relativamente pouco tempo. Essa faixa foi aberta em local onde poucos pontos de referência existem, no meio de um monte completamente isolado e onde, a terem existido delimitações visíveis na margem direita ao longo de toda aquela faixa de terreno, as mesmas terão sido eliminadas pelo Réu aquando da abertura daquele caminho.

               Por outro lado, de toda a prova testemunhal produzida, em especial da indicada pelos Autores, resultou que os mesmos adquiriram aquele terreno com base em informações transmitidas pelos vendedores (ou seus familiares), os quais, na realidade, desconheciam as concretas confrontações do terreno, tendo apenas uma ideia de onde as mesmas poderiam ser (o que também se pode ter ficado a dever, em parte, ao facto de ter sido aberto aquele acesso pelo Réu num local onde nada existia até então, o que causará, naturalmente, imprecisões quanto ao concreto local por onde passaria a alegada linha delimitadora entre o terreno dos Autores e do Réu).

               Concomitantemente, da prova ouvida em julgamento outra coisa ficou clara: nem toda a faixa de terreno em disputa faz parte do terreno do qual os Autores se arrogam proprietários, o que foi confirmado por duas das testemunhas a quem este tribunal atribuiu maior credibilidade, (...) DD e EE, tendo as mesmas esclarecido e afirmado, sem margem para dúvidas, por onde é que estava delimitado o terreno que pertence aos Autores e o terreno pertencente ao Réu (...) na parte junta à estrada municipal.

               Na sequência da informação transmitida por essas testemunhas, procedeu então o Tribunal à medição entre a estrada municipal e o ponto em que aquelas testemunhas referiram que deixaria então de ser terreno dos Autores e passaria a ser terreno do Réu, dando um resultado de 14 metros (vide ata), mantendo-se então terreno do Réu durante os seguintes 34 metros e oitenta centímetros (vide ata).

               (...) Quanto à testemunha II, o seu relato foi isento de reparos (...). Assim, afirmou conhecer muito bem o terreno em causa e que, até aos 19 anos, antes de ir para Moçambique, semeou aquele terreno e andou lá com ovelhas. Referiu igualmente não ter dúvidas de que o terreno tem início na estrada municipal junto à abertura efetuada pelo Réu e que constitui a parcela aqui em disputa. Referiu que na parte de cima do terreno (onde o tribunal efetuou a inspeção judicial) sabe que foram vendidos pinheiros em determinado momento e que o Sr. DD, aqui testemunha, andou lá com o seu rebanho durante cerca de 25 anos por autorização do Sr. KK (seu pai), então proprietário do terreno.

               Contudo, no que concerne especificamente à parcela do terreno em disputa, o seu discurso foi mais impreciso, referindo que, fazendo a mesma parte do terreno dos autores, a sua delimitação era feita na sua margem direita por uma espécie de muro, referindo em seguida a existência de uma pedra delimitadora (não conseguindo concretizar de forma cabal se se tratava de um marco ou de uma cruz), mas sem que conseguisse especificar o concreto local onde se encontrava.

               Ora, a conclusão da mesma de que toda a faixa de terreno em disputa pertence ao prédio dos autores não se mostrou corroborada pelo conhecimento direto que tinha dos factos, e isso ficou latente no confronto com os depoimentos das testemunhas DD e EE, bem como nas circunstâncias que antecederam a compra do terreno por parte dos Autores.

               Com efeito, tendo sido os seus sobrinhos a vender o terreno, entre os quais a testemunha GG, dificilmente se pode aceitar que tivessem um conhecimento efetivo quanto ao (...) local onde, no seu entender, se encontrava delimitado o terreno em causa em relação ao terreno do Réu, uma vez que os próprios vendedores sentiram a necessidade de chamar esta testemunha e a testemunha DD para indicarem, na medida do seu conhecimento, as concretas delimitações do terreno, inclusive na parte aqui em disputa.

               Por outro lado, a afirmação de que toda a parcela pertence ao prédio dos autores foi desmentida, além do mais, pelo próprio DD.

               Daqui resulta que os Autores, após terem ido ao local com estes intervenientes para perceber as delimitações do terreno, julgaram adquirir o mesmo com a delimitação que lhes foi transmitida por aqueles, sendo que, só após a celebração da escritura de compra e venda é que foi por eles efetuado o levantamento topográfico que juntaram aos autos.

               Já a testemunha LL, a qual foi bastante credível, tendo o seu depoimento sido efetuado com o mínimo de concretização em termos espácio-temporal, respondendo à semelhança das anteriores de forma objetiva naquilo que era o seu conhecimento direto dos factos, referiu que, apesar de os factos relatados se reportarem há mais de 40 anos (tendo sido a última vez que foi ao terreno), referiu que na parte de cima onde se realizou a inspeção ao local cortou uns pinheiros para o Sr. KK, não demonstrando qualquer hesitação ao afirmar que o terreno que atualmente é do Réu não chegava junto à atual estrada municipal. À semelhança da testemunha anterior (e também, como se verá em seguida, relativamente às testemunhas DD e EE) referiu que existia uma pedra (60/80 cm de altura) que delimitava o terreno de cima e o terreno de baixo (no seu entender de Autores e Réu, respetivamente), mas, ao contrário da testemunha anterior, localizando-a a cerca de 30/40 metros da entrada do caminho aberto pelo Réu e junto à estrada municipal, bem como que junto à estrada não existia pedra delimitadora alguma. Veio ainda esta testemunha a referir que existiam umas pedras alinhadas desde a aludida pedra delimitadora na direção da estrada, sendo supostamente por aí que se fazia a delimitação dos terrenos.

               Por fim, (...) o outro bloco de testemunhas, (...) que permitiram dar sustentação aos atos de posse praticados sobre aquele terreno por parte dos anteproprietários e, em particular, quanto à sua configuração na faixa de térreo aqui em disputa (...).

               (...) No que concerne à testemunha EE, a sua idade e a forma com que, apesar disso, relatou de forma exímia aquilo que era do seu conhecimento direto, não permitiu manter qualquer dúvida/incerteza que poderia decorrer dos relatos efetuados pelas testemunhas anteriores. Relatou (...) a sua razão de ciência para saber onde começava e acabavam (em parte) os terrenos atualmente pertencentes a Autores e Réu. Esclareceu devidamente que, embora não tendo trabalhado no terreno do então Sr. KK, trabalhou sim nos terrenos que eram da Sr.ª MM, tendo aí guardado cabras, razão pela qual conhecia as confrontações dos terrenos. De forma impressiva, referiu então que o terreno da Sr.ª MM, o qual ficava a baixo e do lado direito do leito do caminho aberto pelo Réu, estava devidamente delimitado com pedras, sendo que a parte de cima pertencia ao Sr. KK, afirmando que não tinha dúvidas quanto a tal afirmação, uma vez que, tendo em conta a personalidade da Sr.ª MM, era impensável que ele passasse com as cabras para terreno que fosse de terceiros (neste caso do Sr. KK).

               No que à concreta faixa de terreno aqui em disputa diz respeito, e ao contrário do que é pugnado pelos Autores na petição inicial (...), referiu que o que delimitava o terreno de baixo (pertencente à Sr.ª MM) e o terreno de cima (pertencente ao Sr.º KK) era, na parte mais próxima da estrada onde foi aberto o caminho pelo Réu, a parte das pedras que se encontravam a cerca de 14 metros do estrada municipal, sendo que, atravessando o caminho aberto pelo Réu transversalmente, da esquerda para a direita, a linha divisória ia bater numas pedras (muro) que se encontravam logo em baixo (tendo sido visionado por parte do tribunal e pelas partes aquando da inspeção ao local a existência de um muro que aparentava terminar a alguns metros do início da estrada (...).

               Já a delimitação no sentido da direção do interior do caminho aberto pelo Réu, essa era feita, como se disse, com início nas pedras de grandes dimensões que se encontra a cerca de 14 metros desde o fim do alcatrão da estrada municipal (que já vimos ter ficado registado em ata aquando da inspeção/julgamento no local), a qual é seguida por um conjunto de pedras colocadas de forma contínua no mesmo sentido do caminho aberto pelo Réu. Chegados ao fim dessas pedras que aparentam ser quase que uma espécie de muro, existia uma pedra a que chamou de “cruz”, apontando em termos aproximados a sua dimensão, mas que já não se encontrava no local. Quanto à sua localização em concreto, tentou indicar mais ou menos onde é que a mesma se encontraria, mas, quanto a este ponto, transpareceu-nos existir muita incerteza (o que facilmente se compreende, uma vez que, apesar de conhecer bem o terreno e as confrontações, tratam-se de factos ocorridos há vários anos, a que acresce a dificuldade pelo facto de o terreno ter sido movimentado pelo Réu com a abertura daquele caminho e já não se encontrar no estado em que outrora o conheceu). Por fim, referiu que dessa dita cruz para a frente o terreno era delimitado também por umas pedras colocadas de forma contínua, que acompanhava mais ou menos a configuração atual do caminho aberto pelo Réu.

               Finalmente, passando para o relato efetuado pela testemunha DD, o mesmo, com um discurso de idênticas características ao da testemunha EE (...), corroborou essencialmente tudo o que disse aquela testemunha quanto à delimitação entre o terreno que era da Sr.ª MM e o terreno do Sr. KK. Coincidindo na totalidade ambos os relatos, o desta testemunha teve a virtualidade de ainda ser mais preciso (...) quanto ao concreto ponto e configuração dos terrenos na parte junto à estrada municipal, não hesitando minimamente em afirmar que aqueles primeiros metros até junto às pedras de maiores dimensões que se encontravam logo à frente faziam parte do terreno do Sr. KK (explicando cabalmente (...) onde é que a linha divisória ia bater). Já quando à aludida cruz que se encontrava no final do supramencionado alinhamento de pedras ao longo da margem esquerda do caminho que foi aberto pelo Réu, à semelhança da testemunha EE, foi com alguma dificuldade que tentou indicar onde é que a mesma se encontrava, ainda que o tenha feito em termos próximos ao daquela testemunha.

               Quanto à razão de ciência desta testemunha, ao contrário do Sr. EE que trabalhou no terreno de baixo que afirmou pertencer à Sr.ª MM, esta testemunha andou por toda a parte de cima do terreno (os cabeços e junto à faixa de terreno aqui em disputa), que referiu como sendo do Sr. KK pois foi este que lho entregou, nomeadamente com o seu rebanho de ovelhas (...), o que aconteceu desde o momento em que regressou definitivamente à ..., há cerca de 42 anos (não tendo dúvidas que andou no local pelo menos durante 25 anos), até perto do Sr. KK falecer. Referiu que lá andou por autorização do Sr. KK, o qual cuidava do terreno, o qual reportou como sendo o proprietário do terreno à data, tendo este lhe indicado a delimitação entre o seu terreno e o da Sr.ª MM, sendo por essas razões que fez as afirmações supra, não tendo em qualquer momento evidenciado qualquer hesitação ou discurso incoerente na tentativa de beneficiar quem quer que fosse (...).

               Dito isto, e no que concerne especialmente a atos de posse exercidos pelos ante proprietários dos Autores, os mesmos foram então possíveis de afirmar pela positiva como que através de uma análise conjugada e entrecruzada de todos os relatos das testemunhas por si indicadas, não tendo o tribunal ficado com qualquer dúvida de que os mesmos foram efectivamente praticados sobre aquele terreno e, em particular, até àquela parte inicial que se inicia junto à estrada municipal e percorre 14 metros de comprimento e 3 metros de largura para dentro do caminho aberto pelo Réu

               Tal como referiram aquelas testemunhas, foi por ordem e autorização do anterior proprietário, o Sr. KK, que andaram no terreno, quer a pastar as ovelhas/cabras, quer cortando pinheiros, quer procedendo à recolha da resina, o que, invariavelmente, nos faz concluir que o terreno estaria cuidado, minimamente tratado e limpo, o que permitiu que essas pessoas lá andassem no exercício daquelas atividades, contribuindo elas mesmas para a limpeza do terreno.

               Sendo quase impossível afirmar que determinados atos de posse foram exercidos sobre uma parte de um terreno com 14 metros de comprimento e 3 metros de largura quando se tem em consideração um terreno como um todo, tal não nos poderia impedir de dar como provado que os atos de posse em causa também incidiram sobre a mesma, porquanto, tal como já evidenciamos, as testemunhas em causa foram capazes de explicar qual a concreta delimitação do terreno naquela parte, (...) o mesmo pertenceu em tempos ao Sr. KK, em seguida aos seus herdeiros e, após a compra e venda celebrada com os Autores, atualmente a eles (...).


*

               Fazendo agora uma apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Réus, (...) as mesmas não se apresentaram com discursos minimamente convincentes a ponto de colocar sequer em causa aquilo que foi relatado pela generalidade das testemunhas indicadas pelos Autores e, em particular, uma vez que foi com base nestas que se suportou em grande parte a convicção do tribunal, das testemunhas DD e EE.

               (...) Em termos gerais, todas estas testemunhas se apresentaram com discursos manifestamente comprometidos com a versão do Réu, notando-se uma certa “ânsia” em dizer tudo e mais alguma que o pudesse beneficiar. (...) mesmo antes de se lhes efetuarem algumas perguntas, já se adiantavam de forma diligente e referir determinados factos em beneficio do Réu (o que aconteceu, por exemplo, com a suposta cruz que delimitava os terrenos, sendo que, o local onde alegadamente a mesma se encontra, em nada releva para o presente caso, na medida em que apenas importava aqui decidir se o caminho aberto pelo Réu pertencia, ou não, ao prédio dos Autores, assim como com a existência de um local apelidado de “toca da MM” ou a existência de colmeias ali nas imediações do caminho que pertencia a um senhor chamado NN, sobrinho da MM, bem como à utilização por si de uma entrada localizado logo a cima do caminho aberto pelo Réu para que o tal NN acedesse às suas colmeias).

            (...) Ainda no capítulo das abelhas, veio a testemunha OO (irmão do Réu) afirmar que foi ao local muitas vezes com o NN às abelhas que se encontravam no local. Esclarecedor do comprometimento desta testemunha com a versão do Réu e que colocou em causa a sua credibilidade (...), teve o desplante de referir que ia ao local muitas vezes ajudar o NN com as abelhas, nomeadamente para lhes dar alimento. Questionado sobre a altura do ano em que tal acontecia, começando logo a hesitar, acabou por afirmar que seria “por volta desta altura”, ou seja, no mês maio (primavera). (...) carece de qualquer sentido alimentar as abelhas no período onde existe no meio natural a maior quantidade de alimentos disponível para as mesmas, ou seja, com a floração da primavera.

               Quanto à testemunha PP, sempre com afirmações conclusivas, quando questionado sobre a razão de ciência de muitas das suas afirmações, limitava-se a dizer que “era o que os antigos diziam” (...). De relevante, limitou-se a dizer que vinha buscar lenha àquele terreno e que o mesmo era da MM, mas que não ia com a sua autorização sequer.

               A testemunha QQ, pouco conseguir concretizar. Evidenciando um discurso igualmente ensaiado, disse que andou 2 anos no terreno do qual os autores se arrogam titulares e que em tempos terá sido do Sr. KK, referindo que pertencia à Sr.ª MM e que andou lá quando tinha 22 anos (ou seja, por volta de 1956 (...)). No mais, limitou-se a dizer que o terreno em causa vinha até mesmo junto à estrada, mas sem que conseguisse de forma cabal esclarecer quais as concretas delimitações do terreno, sendo bastante vago e inconcretizado neste seu discurso.

               (...) RR teve igualmente um discurso que evidenciou claramente nada saber sobre a quem (...) pertencia o terreno do qual os autores se arrogam proprietários, estando em causa a pessoa que, contratada pelo Réu, procedeu à abertura do caminho que constitui a parcela de terreno aqui em disputa, denotando um evidente comprometimento com a posição do mesmo, tentando pôr em causa a credibilidade das testemunhas da Autora, afirmando, por exemplo, nunca ter visto gado a pastar no local (facto esse que chegou até a ser confirmado pela testemunha dos Réus SS).

               (...) SS, afirmou ter andado a trabalhar no terreno do Sr. KK e que o mesmo tinha a configuração que o Réu dá (...), o que faria com que o início do caminho aberto pelo Réu lhe pertencesse. Contudo, pese embora tenha sido esta a testemunha do Réu que depôs com maior precisão e concretização dos factos que vinha afirmando, a verdade é que, o seu relato não se apresentou (...) tão desprendido e objetivo como foram, por exemplo, os relatos das testemunhas EE e DD, sobretudo no que contende com a delimitação dos terrenos junto à estrada. Por outro lado, boa parte dos factos por si relatados, mormente no que concerne ao facto de andar com vacas naquele terreno durante cerca de 6 anos e desde sensivelmente o ano de 1980, não contende com a data em que comprovadamente foram exercidos atos de posse por parte do Sr. KK, tendo igualmente esta testemunha afirmado ter visto efectivamente a testemunha DD com ovelhas a pastar naquele local há cerca de 15 anos. (...).


*

               (...) No que diz respeito aos factos f), g) e h), os quais contendiam com a integração de grande parte da faixa de terreno que os Autores alegaram ser parte integrante do seu prédio, as considerações anteriormente feitas quanto aos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores já deixou antever o porquê de não terem sido dados como provados.

               Assim, tendo todas elas, no seu conjunto, permitido afirmar positivamente parte da versão dos Autores, no que concerne à integração daquela faixa de terreno no prédio dos autores ficou este tribunal com dúvidas insanáveis, a qual não poderia deixar de ser resolvida contra os autores (art.º 414º do Código de Processo Civil).

               Com efeito, se quanto à parte que veio a ser dada como provada as testemunhas DD e EE (...) conseguiram esclarecer fielmente que parte pertencia a um terreno e que parte pertencia ao outro, na parte que diz respeito ao concreto local onde existia a suposta cruz e qual a linha que a delimitação do terreno seguia a partir daí, os relatos não foram suficientemente esclarecedores para que pudéssemos levar os mesmos aos factos provados.

               Ainda que dos seus relatos tenha decorrido que, a partir daí, a faixa de terreno pertenceria ao terreno dos Autores, pelos menos em parte, o certo é que o concreto local onde se encontrava a dita cruz não foi possível de precisar (...). E se assim é, não sendo possível apurar o concreto local sobre qual se estabeleceria o ponto inicial da delimitação naquela parte, existe uma margem de erro muito elevada na definição dessa delimitação (...).

               Pelo que, pendendo sobre os Autores o ónus da prova quanto aos factos integradores da causa de pedir, não tendo este tribunal ficado suficientemente convencido quanto à concreta delimitação dos terrenos naquela parte, naturalmente que tais factos não poderiam deixar de ser dados como não provados.»

            e) A descrita análise crítica da prova afigura-se correta.

            Ouvida a prova pessoal, com especial destaque para a invocada na alegação de recurso, vejamos, pois, o que de relevante foi dito:

            - TT (fls. 54 verso; 69 anos):

            “(...) o Sr. DD andou lá com as ovelhas 25 anos (...), enquanto foi do meu pai (falecido em 2014); (...) a passagem foi aberta (há menos de 6 anos); (...) essas cruzes (“havia ali umas pedras mais altas que faziam ali uma cruz..., que estava desenhada na pedra...”) estavam debaixo onde foi esse caminho aberto, ali ninguém passava!; (...) havia uns marcos mais altos e, então, esses marcos desapareceram (com a abertura da “rodeira”/ caminho/acesso); (...) por ali (onde foi rasgado o caminho cujo leito integra o terreno objeto do litígio) nunca entrou ninguém (...).”

            - LL (fls. 55; 75 anos):

            (...) havia uma cruz que fazia a divisão de um e doutro (terrenos em causa; local onde cortou pinheiros no exercício da sua atividade profissional); (...) nunca ali houve rodeira (...), metade da rodeira ou parte dela está naquilo do KK (anterior proprietário do terreno dos AA.); (...) o que parte da estrada para lá, um x de metros, era do KK, não era dele (Réu); (...) a cruz estava lá feita em cima duma pedra; (...)”. Existia um muro de pedras amontoadas (“umas em cima das outras”) até à estrada, e, também, “para cima de onde estava a cruz” (...).

            - DD (fls. 55 e 57):

            “(...) conheço o terreno como as minhas mãos; (...) o dono entregou-me aquilo e andei lá (...) com o rebanho de ovelhas, nos cabeços...(durante cerca de 25 anos); (...) a entrada (da “rodeira”, junto à estrada municipal) está naquilo do Sr. KK; (...) eu já vi a rodeira toda de uma ponta à outra; (...) à frente estava uma cruz (“em cima de um penedo grande”;só as máquinas é que podiam levar aquilo, pessoalmente ninguém levava”; “esse penedo desapareceu” na sequência das obras executadas pelo Réu), essa cruz (“escavada na pedra”) desapareceu, já não há!; (...) isto está muito modificado com a rodeira; (...) Aqui havia uma cruz, mais metro menos metro…; (...) havia cá uma cruz; (...) o muro fazia parte do KK para além; (...) dividia, eu para cá não passava (...).”

            - EE (fls. 55 verso e 57; 90 anos):

            “(...) com a idade de 7 anos já conhecia o terreno; (...) havia umas cruzes numas pedras, por ali abaixo”. A D.ª MM tinha “uma passagem privada, (...) no fundo do terreno”; o terreno da D.ª MMnunca chegou (“não chegava”) à estrada, mas apenas “ao caminho que havia antigamente” e que “ainda lá está”; “não havia, não existia lá” qualquer “rodeira” (mas, “para aí, não passo”); “havia umas cruzes numas pedras por ali abaixo...; (...) havia um muro que caiu...; (...) o terreno da Sr.ª MM é murado a toda a volta”; “(...) (a estrema) tinha pedras e era terra; (...) era tudo completo, pedra e terra”; (...) como era para baixo desta cruz, para baixo (no caminho percorrido pelos presentes) era da D.ª MM; (...) não sei se é (se determinadas pedras existentes no local integravam um muro), só sei que daqui para cima é do KK…”

            -  QQ (fls. 58; 87 anos; cultivou o terreno hoje do Réu, “a meias”, depois de casar, com a idade de 22 anos):

            “(...) A estrema está aqui, olhe. Passa daqui, vai ali em cima, está ali em cima uma cruz às costas da casita que lá está caída. Isto aqui era da MM, para aqui era do KK. É o que eu sei…(...); quando eu entrei para aqui já lá estava a cruz (...); (...) nunca conheci nada disso... (i. é, outras cruzes colocadas nas estremas dos terrenos em causa).”

            - UU (fls. 58; 68 anos):

            “(...) andei neste terreno (hoje pertença do Réu) desde os 8 anos até aos 29; (...) cultivei (...), resinei este terreno todo; (...) vai daqui para cima até aquela corte, mesmo à quina dali; (...) vai numa linha direita, vai ali ao barroco grande, vai mesmo à quina; (a “rodeira”, em causa, encontra-se no terreno) “da MM”; (...) era o muro (que “divida” os terrenos); (...) ele (KK) nunca cá teve pinheiro nenhum...”

            -  SS (fls. 62; 63 anos):

            Há mais de 40 anos, a família do depoente tratava” do terreno hoje dos AA.; a estrema “vinha lá de cima da quina a dar mais ou menos a um muro que aqui havia. Está lá em cima a quina da casa, havia de haver ali uma cruzinha em cima que está lá numa pedra e vinha em direção aqui; havia aqui muro.” A estrada passou pelo “terreno do Sr. KK” e “há de ter aqui um bocadinho” que era terreno da D.ª MM. “(...) o terreno da D.ª MM chegava à estrada.” “(...) o Sr. KK é que dizia que aqui não havia nada...”; trabalhou por conta do resineiro que colhia a resina e afirmou que apenas existiam pinheiros no terreno da D.ª MM.

            - PP (fls. 62 verso; 57 anos):

            “(...) Conheço isto aqui porque o meu pai - se fosse vivo, hoje tinha 94 anos -(...) era madeireiro; cortávamos pela serra acima. Passávamos aqui e o meu pai sempre me disse, daqui para cima era da Sr.ª MM. Daqui para lá que era da Sr.ª MM, deste muro que vem daqui, aqui por baixo e ia lá cima à corte. (...) estava ali uma cova que chamavam cova da MM. (...) aqui nunca vi cruz nenhuma, neste sítio; agora se está uma cruz aí em cima… (...) dizem que há ali uma cruz em cima, eu nunca a vi que nunca lá fui. As pessoas que estão aí agora a dizer que há lá cruz. (...) como lhe disse, nunca tratei isto, não sei se a cruz lá está, se lá não está.

            - OO (fls. 62 verso; 75 anos):  

            “(...) esta rodeira é só da Sr.ª MM; (a estrema) (...) daqui segue em frente, está ali em cima uma cruz, (...) há uma parede atrás da corte e depois vem assim…; (...).”

            - RR (fls. 62 verso; 62 anos):

            “(...) O terreno (hoje pertença dos AA.) era daqui para lá; o terreno da MM, do NN daqui para cá, conforme a estrema lá em cima àquela cruz. Está lá, disso todos falam na cruz, mas uma cruz alguma coisa identifica num terreno… A cruz está lá, e dali vai à corte. Digo porque o NN disse-me, eu andava aqui com ele a toda a hora (...); eu fui o autor desta rodeira aqui estar..., (...) andou aqui a máquina duas semanas (...).

            f) No local, na presença das partes e/ou seus Exmos. Mandatários, foi consignado em ata: a) que logo a seguir à inquirição das testemunhas arroladas pelos AA., “o Mm.º Juiz ordenou que se procedesse à medição entre o início da parcela em disputa junto à estrada e as pedras que se encontravam logo a seguir, do seu lado esquerdo do caminho aberto pelos Réus, pedras essas que foram indicadas pelas testemunhas como sendo a parte limitadora entre o terreno  que outrora pertenceu ao Sr. VV e da Sr.ª MM, o que deu o resultado de 14 (catorze) metros” (ata de 26.4.2023 / fls. 58); b) “Finda a prova testemunhal, procedeu-se à medição de parte da parcela em disputa nestes autos, constatando-se que do início ao fim das pedras que ladeiam parte do leito esquerdo da parcela em questão distam 34 metros e 80 centímetros.” (ata de 11.5.2023 / fls. 63); c) “Pelo ilustre mandatário do réu, (...) declarou que as medições da rodeira aberta pelo réu, são aquelas que se encontram espelhadas no levantamento topográfico junto pelos autores (120 metros de comprimento e 3 de largura).” (ibidem).

            g) Algumas testemunhas foram confrontadas com determinados documentos juntos aos autos, sobretudo, o de fls. 31 (“doc. n.º 8” junto com a contestação); tais documentos, bem como as fotografias reproduzidas a fls. 42 a 48, acabaram por ter reduzido interesse, na medida em que o Tribunal inspecionou os prédios rústicos em causa e a parcela objeto do litígio e foi nesse local que decorreu grande parte da audiência de julgamento (cf. atas de fls. 54, 57 e 62).

            9. Como se adiantou [cf. II. 8. e), ab initio, supra], a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, elaborada pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo, afigura-se correta.

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal (e aos elementos úteis para o exame e decisão da causa registados no decurso do julgamento, no local), podemos dizer que a decisão de facto respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[17], o Mm.º Juiz não terá desconsiderado as regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[18]

            O Mm.º Juiz analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Conjugados os descritos meios de prova produzidos nos autos e em audiência de julgamento, nenhuma razão se vê para introduzir quaisquer das pretendidas modificações, além de que os recorrentes, AA. e Réu, em bom rigor, acabam por não explicitar a relevância e a valoração a dar a tais meios de prova, de modo a tornar patente a violação, pelo decisor de facto, da regra de ciência, da lógica ou da experiência aplicável ao caso.[19]

            Na verdade, não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador for­mou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas, para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especifica­ção impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 640º, devendo ainda proceder a uma análise crítica (rigorosa) da prova, de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto, que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.[20]

            O Réu pretendeu colocar em causa, sobretudo, a credibilidade das testemunhas indicadas pelos AA., referindo, principalmente, e de modo esparso, uma ou outra hesitação ou aparente contradição, mas ignorando (quase) tudo o mais!; os AA., por seu lado, também não foram além do que se vê incluído nas suas “conclusões G) e M)” (ponto I., supra), e nada concretizam, analisam e/ou explicitam, actuação que acaba por evidenciar, pelo menos, contradições (em “G”) e desconsideração do que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo teve como determinante para a resposta dada à matéria aludida em II. 1. 12) e II. 2. alíneas e) a h), supra.

            Improcede, assim, a pretensão das partes de verem modificada a decisão de facto.

            10. O Mm.º Juiz do Tribunal a quo, com base na factualidade provada [sobretudo, em II. 1. 1), 5) a 9), 11) e 12), supra] conjugada com o regime jurídico dos art.ºs 1251º, 1255º, 1256º, 1258º a 1262º, 1287º, 1293º a 1296º e 1316º, do Código Civil, concluiu pelo preenchimento de “todos os requisitos de que depende a aquisição da propriedade por parte dos Autores sobre o prédio identificado no art.º 1º da p. i., no qual se inclui a área discriminada no facto provado 12”, e, daí, que a abertura do mencionado caminho “nos primeiros 14 metros contados desde o término da estrada se encontra em clara violação do direito absoluto de propriedade dos Autores, uma vez que o adquiriram pela via da usucapião”, com a consequente parcial procedência da ação [máxime, o “reconhecimento do direito de propriedade apenas sobre uma parte da parcela que os autores pretendiam ver reconhecida como parte integrante do seu prédio (de uma faixa com 120 metros de comprimento e 3 de largura apenas viram reconhecidos 14 metros de comprimento)” / 14 m x 3 m[21]].

            Nenhuma das partes enjeita o descrito enquadramento normativo, pugnando, apenas, os AA., pela integral procedência da ação, se incluída parte da matéria tida como não provada, e, o Réu, pela sua total improcedência, se acolhida a respetiva impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o que, como vimos, não foi atendido.

            11. Não obstante o expendido em II. 7. e 10., supra, face ao teor das “conclusões 1ª a 3ª” e “7ª e 8ª”, ponto I., supra, sobre a natureza da ação proposta pelos AA. e a pretensa nulidade da sentença por condenação em objeto diverso do pedido (ultra petitum), importa dizer, em primeiro lugar, que a ação proposta pelos AA. configura uma ação de reivindicação, ainda que não tenha sido formulado, expressamente, a (consequente) restituição da parcela de terreno objeto de litígio que se reconheceu ser propriedade dos AA. (parte integrante do prédio rústico aludido em II. 1. 1), supra), mencionando-se, contudo, na p. i., que a condenação devia compreender o dever de abstenção quanto à utilização da “referida parte do terreno dos AA., ou qualquer outra, com pessoas e coisas, designadamente viaturas”.

            Ora, conhecido o conteúdo (“licere”) do direito de propriedade [“O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.” (art.º 1305º do CC)] e o objeto da ação de reivindicação [estabelece o art.º 1311º do CC, sob a epígrafe «Ação de reivindicação», que “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence” (n.º 1), e que, “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei” (n.º 2)], nada nos diz que a presente ação tenha diferente enquadramento legal/jurídico, ajustando-se, sim, ao descrito quadro normativo.[22]

            12. Na ação de reivindicação, relativamente à conformação do pedido a dirigir ao tribunal, pode dizer-se que há um ponto principal e outro secundário. O principal é o do reconhecimento da titularidade do direito; o secundário, o de restituição da coisa reivindicada. Na verdade, a condenação do réu na restituição da coisa constitui, na própria letra da lei, uma consequência da procedência daquele pedido. Assim se explica o regime do n.º 2 do art.º 1311º, segundo o qual, sendo reconhecido o direito, «a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei».

            A recusa de restituição da coisa, uma vez demonstrada a titularidade do direito reivindicado, só pode justificar-se se o possuidor ou detentor for titular de algum direito que legitime a posse ou a detenção, nomeadamente, algum direito real ou pessoal sobre a coisa, oponível ao reivindicante.[23]

            13. Quanto à invocada nulidade da sentença por condenação em objeto diverso do pedido, temos por evidente que o objeto da condenação está contido no pedido formulado na p. i.[24], pelo que não foi violado o disposto no art.º 609º, n.º 1, do CPC [que assim reza: “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.”] e não se verifica a nulidade da sentença prevista no art.º 615º, n.º 1, alínea e), do CPC.

            Perspetiva contrária, como a delineada pelo Réu/recorrente - se acolhida -, levaria a uma solução contrária à verdade e que denegaria a justiça corporizada na decisão sob censura.

          14. Soçobram, desta forma, as demais “conclusões” das alegações de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.          

    *

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.      

            Custas do recurso independente pelo Réu e as do recurso subordinado pelos AA..


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09.4.2024


           

           




[1] Segmento do pedido [“b)”] e correspondente matéria corrigidos e/ou melhor concretizados - mormente, quanto à forma de aquisição (originária) - no articulado apresentado em 12.01.2023, na sequência do despacho (de 24.11.2022) que convidou os AA. ao aperfeiçoamento da p. i..
[2] Considerou-se desnecessário reproduzir o atinente à recorribilidade da sentença (que integrava as primeiras quatro “conclusões”).
[3] Retificou-se (cf. documentos de fls. 24 e 25 e facto 11).
[4] Retificou-se.
[5] Retificou-se.
[6] Vendo-se a sucumbência/decaimento como prejuízo ou desvantagem que a decisão implica para a parte e que, por isso, se designa parte vencida, ou seja, a parte cujos interesses sofram dano ou prejuízo por serem afetados desfavoravelmente pela decisão, sendo que, naturalmente, a sucumbência de uma das partes corresponde ao vencimento da outra.

[7] Cf., por exemplo, acórdão do STJ (Uniformização de Jurisprudência) n.º 10/2015, de 14.5.2015, publicado no DR n.º 123/2015, 1ª Série, de 26.6.2015.
[8] A alçada constitui o “limite de valor até ao qual o tribunal julga sem recurso ordinário” - vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra, 1984, pág. 220 -, limitação que deriva, “em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais” - vide C. Lopes de Rego, O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil / “Estudos de Homenagem a Cunha Rodrigues”, pág. 764, citado por A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 35.

[9] Cf., por exemplo, acórdão da RC de 14.11.2017-processo 5449/16.4T8CBR-A.C1, publicado no “site” da dgsi.

[10] Vide o citado AUJ n.º 10/2015 e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 27.02.1996-processo 086893, 28.3.2006-processo 4086/05 e 22.11.2006-processo 06S2332, publicados no “site” da dgsi, expendendo-se naquele acórdão uniformizador (com interesse igualmente para o recurso para a 2ª instância) que “um critério formal de sucumbência - que se esgotasse na diferença entre o valor do pedido e o da decisão - dificilmente seria compatível com a confessada intenção de restringir o acesso autónomo ao STJ de litígios destituídos de relevância jurídica, propiciando a dedução de pretensões propositadamente inflacionadas para, por via disso, obter sempre diferenciais superiores ao valor mínimo de metade da alçada da instância decisória.”.

[11] Daí, a seguinte afirmação do Réu/apelante, contida na fundamentação da alegação de recurso (fls. 82 verso): «Para o recorrente a perda da faixa de terreno identificada no facto provado 12 com 14 metros de comprimento, e 3 de largura, junto à estrada municipal ...86, significa o decaimento quase que total na ação, significa “perder praticamente tudo”.»
[12] Vide, neste sentido, J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Volume 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 9.

[13] Salientando a diferença entre o critério que preside à tributação do processo e as normas dos recursos, cf., por exemplo, o acórdão da RC de 17.6.2014-apelação 363/11.2TBSPS.C1, publicado no “site” da dgsi.

[14] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[15] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjetiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[16] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[17] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[18] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e A. Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[19] Cf., nomeadamente, acórdão da RC de 24.02.2015-processo 1265/05.7TBPBL.C1 [constando do sumário: “O recorrente que se limita a indicar o meio de prova em que funda a impugnação da decisão da questão de facto, sem proceder à determinação da sua relevância e à sua valoração, de modo a tornar patente a violação, pelo decisor de facto, da regra da ciência, da lógica ou da experiência aplicável ao caso, não satisfaz o ónus de impugnação daquela matéria a que lei de processo o vincula.”], publicado no “site” da dgsi.
[20] Cf., ainda, de entre vários, acórdãos da RC de 17.6.2014-processo 405/09.1TMCBR.C1, 03.3.2015-processo 1381/12.9TBGRD.C1 [tendo-se concluído: “Fundamentando-se o recurso de facto na desconformidade entre a prova documental e a factualidade que veio a ser demonstrada, não basta remeter para o teor do documento, recaindo sobre o recorrente o ónus de indicar eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito, especificando os fundamentos da sua discordância, os motivos que justificam que o documento conduza a um juízo diferente do efetuado pelo juiz.”] e 22.9.2015 processo 198/10.0TBVLF.C1 [constando do respetivo sumário: (…) não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador for­mou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas, para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especifica­ção impostos pelos n.ºs 1 e 2, do art.º 640º do Novo C. P. Civil, devendo ainda proceder a uma análise crítica da prova, de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto, que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.”], publicados no “site” da dgsi.

[21] Assim, também, no despacho do Tribunal a quo de 26.01.2024: “(...) determinando que do mesmo faz parte integrante a faixa de terreno identificada no facto provado 12, com 14 metros de comprimento e 3 de largura, tendo este direito sido constituído por usucapião”.
[22] Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, págs. 93, 113, 116 e 199 [explicitando-se, nomeadamente, que se as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa ou sobre uma parte dela, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a ação é de reivindicação / pág. 199] e  Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966/1967, Coimbra, 1967, págs. 177 e seguintes.

   Na jurisprudência, sobre a distinção da ação de reivindicação da ação de demarcação, cf., por exemplo, os acórdãos do STJ de 27.10.2009-processo 1407/04.0TBAGD.C1.S1, da RC de 25.5.2010-processo 115/09.0TBCDN.C1 e 12.4.2023-processo 204/21.2T8MMV.C1 e da RP de 08.3.2022, Proc.1008/20.5T8PVZ.P1, publicados no “site” da dgsi.
[23] Vide L. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 6ª edição (reimpressão), 2010, pág. 276.

[24] Como identicamente se diz no despacho sobre o requerimento de interposição do recurso (de 26.01.2024), verificou-se “o não reconhecimento, ´in totum`, da pretensão dos Autores, que identificavam a aludida faixa de terreno como tendo 120 metros de comprimento, apenas tendo resultado provada a integração no seu prédio de 14 metros”; “uma condenação em medida inferior ao peticionado, ´i. é`, no reconhecimento da propriedade de uma faixa de terreno de dimensões mais reduzidas face à identificada pelos Autores”.