Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
279/14.0TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DANOS
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
INTERPRETAÇÃO
IN DUBIO CONTRA PROFERENTEM
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – INSTÂNCIA CENTRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 11.º/2 DO DL 556/85, DE 25.10
Sumário: A cláusula contratual do contrato de seguro de avaria de máquina que, segundo a seguradora, significa que só se encontram cobertos pela apólice os danos sofridos pela própria máquina que sofreu a avaria, é ambígua, motivo porque, na sua interpretação, prevalece o sentido mais favorável ao aderente, sentido esse que é o de se encontrarem/considerarem cobertos todos os danos causados em equipamentos incluídos na descrição do equipamento seguro, ou seja, além dos danos na bateria de condensadores, também estão cobertos pela mencionada apólice os danos nos demais componentes, decorrentes de incêndio causado pelo curto circuito na bateria de condensadores.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., S.A., com sede no Edifício (...) , (....) , Cantanhede, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra B... , S.A., com sede na Avenida (...) , em Lisboa, pedindo que esta seja condenada a:

a) reconhecer como materiais danificados em consequência de sinistro identificado em 11º, os melhor elencados em 13º e 24º da p.i.;

b) reconhecer que os danos nos materiais identificados estão cobertos e garantidos pelo enquadramento de tal sinistro nos termos das Condições Particulares das Apólices n.º (....)6 e n.º (....)0, e liquidar o valor global de € 147.809,48, relativos a todos os danos verificados, acrescidos de juros vencidos desde data da citação da presente acção até efectivo e integral pagamento;

Alegou, em resumo:

No exercício da sua actividade (de fabricação de produtos metálicos diversos, como, entre outros, arame de aço para pré-esforço, cordão de aço e malha eletrossoldada), contratou com a R., em 22/03/2011[1], um seguro de Avaria de Máquinas, e, também em 22/03/2011, um seguro Multiriscos B... Total Empresarial, ambos mediados pela sociedade C... , Ldª. (seguros estabelecidos pelo período de um ano, automaticamente renováveis e regulados pelas condições das Apólices nº. (....)6 e n.º (....)0); destinando-se o primeiro a cobrir, até ao montante de 1.415.000€, as perdas ou danos materiais com origem em avaria interna nos 3 Postos de Transformação – PT 1, PT 2 e PT 3 – existentes nas instalações fabris da A. (e que os impeça de funcionar normalmente, sendo necessária a sua reparação, substituição ou reposição); e tendo o segundo como objecto o edifício fabril, o respectivo recheio, o edifício de escritórios e o respectivo recheio (com os capitais garantidos de € 7.000.000,00, € 825.000,00, € 1.000.000,00 e 600.000,00, respectivamente), destinando-se a cobrir as coberturas base e “facultativas” (designadamente, a respeitante a “riscos eléctricos”) constantes da apólice.

Entretanto, no dia 12/03/2012, pelas 17 horas e 10 minutos, deflagrou um incêndio no referido PT 2 (mais concretamente, na bateria de condensadores do Quadro Geral 2.8), incêndio que alastrou, afectando os Quadros Gerais 2.8, 2.9 e a Bateria de Condensadores do QG 2.8; tendo sido ainda danificados, por se encontrarem instalados na proximidade, diversos outros materiais (como cabos alimentadores instalados em caleira adjacente e o respectivo quadro de distribuição), assim como diversos elementos do interior dos PT, bem como instalações de utilização, detecção de incêndio e ventilação.

“Sinistro” este que a A. de imediato participou à R., que, logo em 13/03/2012, realizou vistoria (pela “ K... ”), tendo confirmado que o incêndio deflagrou “com origem num quadro de bateria de condensadores 400 KVA, resultando danos substanciais em quadros eléctricos, cabos, iluminação, ventilação infraestruturas internas do PT e estrutura da cobertura e paredes, decorrentes da chama, fuligens e fumos”, porém, ao contrário do expectado pela A., não assumiu a R. a totalidade dos prejuízos ocorridos, declinando toda e qualquer responsabilidade que fosse para além da bateria de condensadores, integrante do próprio quadro geral, e da reparação parcial do edifício.

Ora, segundo a A., todos os prejuízos ocorridos estão cobertos pelas “apólices contratadas”, prejuízos que A., necessitando de manter a sua laboração em funcionamento, mandou reparar e custear, no que despendeu a peticionada quantia de €147.809,48 (€ 152.446,48 menos € 4.637,00 do salvado).

A R. contestou, alegando:

Quanto à apólice n.º (....)6 (seguro de avaria de máquinas), a exclusão do âmbito de cobertura de tal apólice, nos termos da cl. 2ª/3 d) e 4ª/1 das respectivas condições gerais, de todos os danos que sejam consequência do incêncio, isto é, “das disposições contratuais resulta que, no caso de um curto-circuito originar incêndio, apenas se encontrarão cobertos os danos na própria máquina que deu causa ao sinistro, estando excluídos os danos que decorrem, directa ou indirectamente, de incêndio[2] (acrescentando, ainda, que, “no caso sub judice, o incêndio foi originado por um curto circuito na bateria de condensadores do transformador n.º 8, pelo que, nos termos da citada cláusula 2.ª/3 d) apenas se encontram cobertos pela apólice os danos sofridos pela referida bateria (que foi a máquina que deu causa ao sinistro[3]); a existência de subseguro (uma vez que o capital seguro é de € 1.415.000,00 e o valor dos objectos seguros é de € 1.900.000,00), motivo pelo qual, considerando que a R. responde pelo custo de substituição da bateria de condensadores (de € 15.433,15), tal responsabilidade é de apenas € 11.493,64; a que há, ainda, que descontar a franquia, no valor de 10% da indemnização, motivo pelo qual aceita “que o valor da indemnização devida ao A., ao abrigo da apólice de seguro de avaria de máquinas é de € 10.344,28[4].

Quanto à apólice n.º (....)0 (seguro multirriscos), que os postos de transformação (mais exactamente, os equipamentos neles existentes) não se encontram compreendidos no objecto de tal apólice[5], “apenas se encontrando cobertos pela apólice multirriscos os danos no edifício resultantes do incêndio[6], em relação aos quais também existe subseguro (uma vez que o capital seguro para o edifício fabril é de € 7.000,00 e o seu valor ascende a € 10.400.000), motivo pelo qual, consideraando que o custo de reparação do edifício é de € 16.480,79, responde por apenas € 11.092,84.

Referindo ainda que impugna os valores de mão-de-obra e da bateria de condensadores (aceitando todos os demais valores), no mapa de despesas apresentado pela A., o que conduz a que o valor total dos prejuízos da A. seja de € 144.992,73 (€ 149.629,73 - € 4.637,00 do “salvado”); e que, após a conclusão da peritagem efectuada pela “ W... ”, aceitou pagar à A., ao abrigo da apólice nº (....)6 (seguro de avaria de máquinas), o referido montante de € 10.344,28, correspondente ao custo de substituição da bateria de condensadores (após aplicar a regra da proporcionalidade e deduzir a franquia contratual), e, ao abrigo da apólice nº (....)0 (seguro multirriscos), o valor de € 11.092,84, correspondente ao custo de reparação dos danos no edifício causados pelo incêndio (após aplicar aquela mesma regra), num total de € 21.437,12, montante em que não indemnizou a A. por esta não lhe ter transmitido o seu NIB (o que fez a A. incorrer em mora – cfr. art. 813º do C.C.).

Concluiu pois pela parcial procedência da pretensão da A., devendo esta improceder na parte em que o pedido excede tal valor de € 21.437,12.

A A. replicou, articulado que foi mandado desentranhar (por despacho transitado em julgado).

Foi proferido despacho saneador – em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém – identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que, concluiu do seguinte modo:

“ (...) julgo parcialmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência:

I- reconheço como materiais danificados em consequência de sinistro identificado em 11º, os melhor elencados em 13º e 24º;

II- reconheço que os danos nos materiais identificados estão cobertos e garantidos pelo enquadramento de tal sinistro nos termos das Condições Particulares das Apólices nº. (....)6 e n.º (....)0, nos valores de € 89 244,82 e de € 11 092,84;

III- condeno a ré seguradora B... , S.A. no pagamento à autora A... , S.A.,da quantia global de € 100.337,66, e bem assim o valor de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de juros civis, sobre o capital, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

 (...)”

Inconformada com tal decisão, interpôs a R. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que revogue parcialmente “a sentença recorrida, reduzindo a condenação da R., de € 100.337,66 para € 21.437,12”.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(...) Alínea L) dos factos provados

1. O montante de prejuízos referido na alínea L) dos factos provados (€ 147.809,48) corresponde à diferença entre o valor de € 152.446,48, correspondente à soma das 16 parcelas indicadas no mapa de despesas de fls. 23 v. (doc. 7 da p.i.), para o qual se remete naquela alínea L), e o de € 4.637,00, correspondente ao valor do salvado, indicado naquele mesmo mapa (e aceite pela R. no art. 7º da contestação).

2. Do que resulta que o montante de prejuízos constante da alínea L) dos factos provados pressupõe que o tribunal a quo tenha considerado provadas as 16 parcelas descritas naquele mapa de despesas.

3. Sucede que, quanto à 16ª e última parcela (que tem o valor de € 17.816,40 e é relativa ao preço de substituição da bateria objecto de curto-circuito), tal prova não foi efectuada, pois ficou demonstrado que, para adquirir um novo equipamento, a A. precisaria de despender, apenas, € 14.933,15, e não os € 17.816,40 reclamados, que correspondem ao preço de um equipamento de 655 kva, isto é, de potência superior à do equipamento danificado, que era de 400 kva. Ainda que sem relação com a 16ª parcela, ficou, também, demonstrado que a avaliação da mão-de-obra interna necessária à instalação da nova bateria foi de € 500,00.

Elementos probatórios:

a) Pág. 5 do aditamento (ao relatório pericial) emitido pela “ W... ” em 5.11.2012, junto à contestação sob doc. 6;

b) Depoimento da testemunha D... , prestado na sessão de julgamento de 4.11.2015, das 14:31:05 às 15:32:50 (passagens da gravação: 06:45 – 11:00).

4. Assim, no que concerne à referida parcela, o tribunal a quo deveria ter considerado provado o valor de € 14.933,13, em lugar do de € 17.816,40, e feito reflectir a respectiva diferença (€ 2.883,25) no montante de prejuízos indicado na alínea L) dos factos provados, o que determinaria a sua redução de € 147.809,48 para € 144.926,23 (€ 147.809,48 - € 2.883,25).

5. Note-se que o valor atribuído à mão-de-obra interna necessária à substituição da bateria (€ 500,00), referido na conclusão 3, encontra-se já incluído nas parcelas 13 (mão-de-obra 1ª fase) ou 14 (mão-de-obra 2ª fase) do mapa de despesas de fls. 23 v., pelo que não interfere com o valor da 16ª parcela.

6. Importa, também, ter presente que os valores das parcelas 1 a 15 do referido mapa foram aceites pela “ W... ” e, por conseguinte, não são questionados pela R. (sem prejuízo de esta entender, como resulta do presente recurso, que as parcelas 4 a 9 e 11 a 15 não se encontram cobertas pela apólice de avaria de máquinas, salvo, claro está, quanto ao valor de € 500,00, relativo à mão-de-obra necessária à substituição da bateria danificada, incluído nas parcelas 13 ou 14, aceitando que as parcelas 1, 2, 3 e 10 se encontram cobertas pela apólice multirriscos).

7. A matéria referida nas conclusões 5 e 6 resulta do depoimento prestado pela testemunha D... (das 14:31:05 às 15:32:50; passagens da gravação: 14:00 – 27:05).

8. Assim, é inquestionável que, em consequência do sinistro, a A. sofreu prejuízos no valor de € 144.926,23, e não € 147.809,48, impondo-se a rectificação em conformidade da alínea L) dos factos provados, sugerindo-se que esta adopte a seguinte redacção: “Os prejuízos decorrentes do sinistro referido em F) ascenderam ao valor de € 144.926,23.”.

9. A não se revogar a sentença recorrida, na parte em que se considerou cobertos pela apólice de avaria de máquinas os danos aos equipamentos existentes no PT 2 (que não a bateria), o que apenas se admite por mero dever de cautela e patrocínio, impor-se-á que, para efeitos de cálculo do quantum indemnizatório devido ao abrigo dessa apólice (cuja fórmula surge na pág. 29 da sentença posta em crise), se reduza a parcela dos prejuízos relacionados com os danos aos equipamentos do PT 2 de € 117.715,79 (valor considerado pelo tribunal a quo naquela fórmula) para € 113.012,29 (diferença ente € 117.715,79 e a soma de € 4.637,00 com € 66,50), já que a soma dos prejuízos parcelares (€ 15.433,15: bateria + € 16.480,79: edifício + € 113.012,29: equipamentos do PT 2) deverá equivaler ao valor dos prejuízos que ficar a constar da alínea L) dos factos provados, o qual, a proceder a impugnação dessa alínea, será de € 144.926,23.

Alínea R) dos factos provados e alíneas b) e c) dos factos não provados

10. A alínea R) dos factos provados, na parte em que dela resulta que os danos cobertos pela apólice de avaria de máquinas não se restringem à substituição da bateria de condensadores, abrangendo, também, os danos descritos na alínea O) dos factos provados (isto é, os danos aos demais equipamentos existentes no PT 2, avaliados em € 117.715,79), bem como as alíneas b) e c) dos factos não provados, não encontram suporte nas provas, testemunhal e documental, produzidas, em particular nos depoimentos prestados pelas testemunhas D... e E... , os quais convergem com o teor da documentação contratual, formada pela proposta de seguro (doc. 2 da contestação) e pelas condições particulares e gerais da apólice de seguro de avaria de máquinas (doc. 1 da contestação e doc. 1 da p.i., respectivamente).

11. No seu depoimento, prestado em 4.11.2015, das 14:31:05 às 15:32:50, o perito D... , que, no relatório junto à contestação sob doc. 3, se pronunciara no sentido de a apólice de avaria de máquinas cobrir, apenas, os danos à bateria (cfr. pág. 3 – “1.3. enquadramento da apólice” – e pág. 11), esclareceu os motivos da recusa de enquadramento dos danos aos equipamentos existentes no PT 2 (que não a bateria) na cobertura de avaria de máquinas, declarando que os PT são espaços físicos ou locais técnicos (passagem da gravação: 41:58 – 42:00), que albergam equipamentos vários, e que, de acordo com a cláusula 2ª/3 d) das condições gerais da referida apólice, apenas estão cobertos os danos à bateria, pois foi esta que sofreu a avaria (curto-circuito) e originou o incêndio, sendo que os danos aos demais equipamentos existentes no PT 2 foram causados pelo fogo, e não pela avaria, razão pela qual se encontram excluídos do âmbito de cobertura da apólice (passagens da gravação: 27:10 a 33:01). A referida testemunha acrescentou, na fase final do seu depoimento, objecto de gravação autónoma entre as 15:47:39 e as 15:54:41, que os PT, por serem meros espaços físicos ou locais técnicos, não têm, nem podem ter, qualquer marca, diferentemente dos equipamentos nele existentes (passagens da gravação: 05:45 – 06:42).

12. No mesmo sentido depôs a testemunha E... , declarando que, nos termos da cláusula 2ª/3 d) das condições gerais, se considera avaria os danos causados directamente por curto-circuito, mesmo que este origine incêndio, caso em só se encontram cobertos os danos sofridos pela máquina avariada (sobre a qual incidiram os efeitos directos da corrente eléctrica) que deu causa ao sinistro, sendo que, no caso concreto, essa máquina foi a bateria. Acresce que os danos derivados de incêndio e sua extensão se encontram expressamente excluídos pela cláusula 4ª/1 das mesmas condições. Concluiu que, por via de ambas as cláusulas, a apólice de avaria de máquinas em circunstância alguma cobre os danos por incêndio, independentemente de este ser ou não causado pela avaria (sessão de julgamento de 4.11.2015, entre as 15:57:17 e as 16:32:42, passagens da gravação: 09:50 – 16:01 e 26:00 – 34:50).

13. Para efeitos de julgamento do recurso, não importa estabelecer o conceito técnico de máquina, nem determinar o que é que se enquadra nesse conceito (se os postos de transformação, se os equipamentos neles existentes), mas sim perceber quais as máquinas seguras pela apólice nº (....)6, que titula o contrato de seguro de avaria de máquinas.

14. A resposta a essa questão pode ser encontrada na documentação contratual (proposta de seguro e condições particulares e gerais da referida apólice), a qual assume peso decisivo, pois foi por ela e nos seus termos que A. e R. se vincularam, sendo que essa documentação suporta, inteiramente, os depoimentos prestados pelas testemunhas D... e E... , e não consente a decisão vertida pela 1ª instância na alínea R) dos factos provados e nas alíneas b) e c) dos factos não provados.

15. Da proposta de seguro, que serviu de base à emissão das condições particulares, e à luz da qual estas devem ser interpretadas (nomeadamente, no que concerne ao objecto seguro), resulta, sem margem para dúvidas, que as máquinas que a A. fez segurar pela apólice nº (....)6 são os equipamentos existentes nos postos de transformação, discriminados pela própria A. na listagem anexa àquela proposta, facto que, aliás, ficou assente na audiência prévia e consta das alíneas A) e B) dos factos provados (sendo que a proposta de seguro deve ser interpretada à luz do art. 236º do C.C.).

16. A alínea F) dos factos provados revela que a bateria que sofreu o curto-circuito e originou o incêndio (que, por sua vez, provocou danos aos demais equipamentos existentes no PT 2) foi uma das 10 baterias existentes naquele posto de transformação e seguras pela apólice de avaria de máquinas.

17. Das cláusulas 2ª/3 d) e 4ª/1 das condições gerais da apólice de avaria de máquinas, cujo teor se encontra reproduzido nas alínea C) e D) dos factos provados, respectivamente, resulta que os danos por incêndio nunca se encontram cobertos pela referida apólice, mesmo que o incêndio seja causado por curto-circuito (isto é, por avaria), caso em que a cobertura se restringirá aos efeitos directos da corrente eléctrica, ou seja, aos prejuízos na máquina que sofreu o curto-circuito e determinou o sinistro.

18. Assim, é seguro concluir que apenas os prejuízos relacionados com a bateria avariada por curtocircuito, referidos na alínea P) da decisão de facto, se encontram cobertos pela apólice de seguro de avaria de máquinas; já não os danos sofridos pelos demais equipamentos existentes no PT 2 em resultado do incêndio, descritos na alínea O) da mesma decisão.

19. Por conseguinte, impõe-se a revogação parcial da alínea R) da decisão de facto, com vista a extrair do seu âmbito os danos descritos na alínea O). Nesse sentido, propõe-se que a referida alínea R) adopte a seguinte redacção: “A ré, além do mais, responde pelo custo de substituição da bateria de condensadores referido em P) na proporção de € 1.415.000,00 (capital seguro) para € 1.900.000,00 (valor dos objectos seguros), montante ao qual haverá ainda de deduzir a franquia de 10%;”.

20. Por seu lado, as alíneas b) e c) dos factos não provados deverão transitar para os factos provados.

Do Direito

21. A decisão de facto deixa transparecer o seguinte:

a) As máquinas seguras foram os equipamentos existentes em cada um dos três postos de transformação - alíneas A) e B) dos factos provados;

b) As cláusulas 2ª/3 d) e 4ª/1 das condições gerais, reproduzidas nas alíneas C) e D) dos factos provados, integram o contrato de seguro de avaria de máquinas celebrado entre as partes;

c) Ocorreu um curto-circuito numa das baterias de correcção do factor de potência existentes no PT 2, o qual originou um incêndio, que provocou danos aos demais equipamentos existentes nesse posto de transformação - alíneas F), N) e O) dos factos provados.

22. Nos termos das referidas cláusulas 2ª/3 d) e 4ª/1 das condições gerais, só se encontram cobertos pela apólice de avaria de máquinas os danos sofridos pela própria bateria que sofreu o curto-circuito e originou o sinistro, a qual é um dos equipamentos seguros e discriminados na alínea B) dos factos provados.

23. Os danos causados aos demais equipamentos existentes no PT 2 foram causados pelo incêndio, e não por efeito directo da corrente eléctrica, pelo que não se enquadram na definição de avaria contida na alínea d) do nº 3 da cláusula 2ª das condições gerais, nem se encontram, por conseguinte, contratualmente cobertos.

24. A proceder, a requerida modificação da decisão de facto, que é imposta pelos elementos probatórios já identificados e, além do mais, constitui decorrência natural dos factos já contemplados nas alíneas A), B), C), D), F), N) e O) da decisão de facto, obrigará a concluir, definitivamente, e com absoluta segurança, que, pela apólice de avaria de máquinas, se encontra coberta a substituição da bateria avariada pelo curto-circuito (referida na alínea P. dos factos provados), mas já não os danos aos restantes equipamentos existentes no PT 2, que foram consequência do incêndio (referidos na alínea O. dos factos provados), pelo que a responsabilidade da R., ao abrigo daquela apólice, se restringe ao ressarcimento dos prejuízos relacionados com aquela substituição, gerando uma obrigação de indemnização no valor de € 10.344,28 (após aplicação da regra da proporcionalidade, nos termos do art. 134º do DL nº 72/2008, de 16.4, e a dedução da franquia contratualmente prevista, equivalente a 10% da indemnização).

25. A obrigação de indemnização da R. para com a A. deverá ser fixada em € 21.437,12, correspondente à soma do valor de € 10.344,28, para o qual deverá ser reduzida a condenação ao abrigo do seguro de avaria de máquinas, com o valor de € 11.092,84, em que a R. foi condenada nos termos do seguro multirriscos.

26. Na sentença recorrida, a 1ª instância não extraiu as devidas consequências dos factos contemplados nas alíneas A), B), C) D), F), N) e O) da decisão de facto, incorreu num erro grosseiro de interpretação da documentação contratual, formada pela proposta de seguro e pelas condições particulares e gerais da apólice de avaria de máquinas, violou as cláusulas 2ª/3 d) e 4ª/1 daquelas condições gerais, bem como o art. 236º/1 do C.C., e aplicou indevidamente o art. 11º do DL nº 446/85, de 25.10, que estabelece o regime das cláusulas contratuais gerais. (...)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – “Reapreciação” da decisão de facto

Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da R./apelante – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este tribunal.

Questões que não exigem uma verdadeira e autêntica reapreciação da decisão de facto.

Vejamos:

Como resulta da transcrição que supra efectuámos das conclusões da R/apelante, esta diz que foram mal julgadas a alínea L) dos factos provados e as alíneas R) dos factos provados e b) e c) dos factos não provados.

Assiste razão à R./apelante, porém, não estamos, em qualquer dos casos, perante erros de julgamento.

No caso da alínea L), como aliás a R/apelante bem salienta, toda a motivação da decisão de facto – que é onde, efectiva e realmente, se externaliza o que se pretende decidir de facto – vai no sentido defendido pela R/apelante.

Basta, para tal, referir aqui que se começou por dizer, na motivação da decisão de facto, que, “relativamente à dimensão e extensão total dos prejuízos, (...) o relatório pericial não judicial, de averiguação de sinistro promovido pela ré seguradora - mais concretamente da W... - (...) o qual foi confirmado e explicitado em audiência pelas testemunhas da ré (nomeadamente pela testemunha D... , que o elaborou) permite dar resposta ao facto questionado referente às despesas suportadas pela autora, sendo que a autora não logrou demonstrar a totalidade dos parcelares valores enunciados no seu mapa de despesas efectuadas (...)”; e logo a seguir acrescentou-se que “(...) a autora não logra demonstrar que corresponda a efectivo dispêndio daquilo que vai além do valor que a W... admite no seu relatório- valor este ao qual o tribunal se atém - tanto mais que assente nos documentos apresentados pela segurada, que aprecia criticamente- mostrando-se objectivo (...)”.

Ou seja, o que aconteceu – e resulta claro da transcrição que se acaba de efectuar – foi que não se retratou devidamente na redacção dos factos provados o que se havia efectivamente decidido (e que se exteriorizou na motivação da decisão de facto); dito doutra forma, os factos provados não reflectem, devida e completamente, aquilo que se disse ser a convicção do tribunal.

Efectivamente, se o tribunal a quo se “ateve” ao relatório da W... e se deu como provados os montantes que constam das alíneas O), P) e T) dos factos provados da sentença recorrida, então – até para os números baterem certo – as despesas de reparação dos danos decorrentes do sinistro suportadas pela A. não podem ser os € 147.809,48 constantes da alínea L) impugnada.

Como é evidente – e corresponde ao que a R/apelante vem sustentar - as despesas de reparação dos danos suportadas pela A. hão-de coincidir com a soma dos montantes referidos em O), P) e T) (€ 149.629,73) menos o valor do salvado (€ 4.637,00)[7].

Temos pois, espelhando o que se pretendeu decidir na sentença recorrida (corrigindo, no fundo, o “erro material” que ocorreu na concretização do que se pretendeu decidir), que a alínea L dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: “As despesas de reparação dos danos decorrentes do sinistro referido em F) ascenderam ao montante de € 144.992,73 (ou seja, à soma dos montantes referidos em O), P) e T) – € 149.629,73 – abatida do valor do salvado, de € 4.637,00)”;

No caso das alíneas R) dos factos provados e b) e c) dos factos não provados, a “razão” da R./apelante assenta noutras premissas e raciocínios.

Nestas alíneas não há qualquer discrepância entre o que se deu como provado e não provado e o que, a propósito das mesmas, se externou na motivação da decisão de facto.

Mas também não estamos perante um erro de julgamento.

Sucede, isso sim, que estamos perante “conteúdos” que não são fixados em sede de facto ou, mais exactamente, que não podem, com base no que foram ser fixados em sede de facto.

Expliquemo-nos:

Por trás do que se deu como provado e não provado em tais alíneas (R) dos factos provados e b) e c) dos factos não provados) está uma determinada e concreta interpretação que se fez das cláusulas das condições gerais da apólice, transcritas nas alíneas C) e D) dos factos provados.

A tal propósito – sobre a interpretação de cláusulas contratuais, ou seja, da declaração negocial – importa distinguir a indagação da vontade real (236.º/2 do C. Civil) e a interpretação da declaração negocial segundo critérios normativos (236.º/1 do C. Civil e, no caso, ainda[8] o art. 11.º do DL 446/85); sendo prevalente a vontade real do declarante, desde que conhecida do declaratário (236.º/2 do C. Civil)[9], e valendo a declaração, se não há acordo dos intervenientes num conteúdo comum, com o sentido com que ela se apresenta objectivamente no tráfico jurídico[10] (“salvo se este/declarante não puder razoavelmente contar com o sentido do declaratário”) ou, de acordo com o art. 11.º/2 do DL 446/85, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário, prevalecendo o sentido mais favorável ao aderente.

Significa isto, para poder prevalecer a vontade real quando a exteriorização não tenha sido perfeita, que têm que ser alegados/reunidos/alinhados factos que revelem tal vontade real; doutro modo, “prevalece” a impressão do destinatário/declaratário ou vale o princípio in dubio contra proferentem.

Daí o dizer-se que constitui matéria de facto, impondo a produção de prova, a determinação/indagação da real intenção/vontade dos contraentes, a que alude o art. 236.º/2 do C. Civil, o que, porém, só ocorre, insiste-se, se tiverem sido alegados factos (respeitantes a tal vontade real) que possam servir de objecto à incidência de tal prova; doutro modo, se apenas se esgrimir a partir e com base no estrito conteúdo da declaração, estar-se-á tão só perante a interpretação da declaração negocial segundo critérios normativos (de harmonia com a teoria da impressão do destinatário, acolhida no 236.º/1 do C. Civil, ou o princípio in dubio contra proferentem, constante do art. 11.º/1 do DL 446/85).

Ou seja, só descendo ao concreto – e analisando o que haja sido dito com exactidão – é que, em cada caso, podemos dizer se podemos estar perante um caso de indagação da vontade real ou antes perante uma interpretação da declaração negocial segundo critérios normativos.

Efectuando tal análise – descendo ao concreto, que, no caso, acaba por ser a motivação da decisão de facto – impõe-se concluir por trás do que se deu como provado e não provado em tais alíneas (R) dos factos provados e b) e c) dos factos não provados) está uma determinada e concreta interpretação que se fez das cláusulas das condições gerais da apólice, transcritas nas alíneas C) e D) dos factos provados.

E sobre as razões de tal interpretação deixou-se escrito na motivação da decisão de facto:

“(...) Nesse mesmo relatório da W... se transpõe o entendimento- decorrente da interpretação do clausulado contratual - de que efectivamente a apólice de seguro de máquina cobre (e apenas) os danos no equipamento bateria de condensados, que originou o incêndio.

Desde logo diremos que a questão chave para obtenção de tal conclusão fáctica- e resposta desde logo ao facto R) - perpassa pela consideração [ou não] de cada PT- globalmente como uma máquina. Na verdade, na interpretação do clausulado no contrato de seguro (contrato de adesão), em caso de dúvida, deverá prevalecer o sentido mais favorável a quem dele beneficia (ambiguitas contra stipulatorum) – artº 11º, nº 2, do DL nº 446/85, de 25/10 e Acs. do STJ, de 12/06/2003 (proc. 1580/03-2ª) e 11/07/2006 (proc.1855/06-1ª). Isto porque o contrato de seguro é um contrato de adesão às cláusulas já pré-fixadas pelas seguradoras, como é o caso em análise.

Para a interpretação do contrato de seguro valem as regras de interpretação dos negócios jurídicos contidas nos arts. 236º e 238º do C.C., e o princípio da protecção do contraente fraco em posição desfavorável, inserto no art. 11º/2 do DL 446/85, de 25.10 (regime das cláusulas contratuais gerais aplicável ás cláusulas ou apólices uniformes em sede de seguros). E nos negócios formais, o sentido objectivo correspondente à teoria da impressão do destinatário (art. 236º) não pode valer se não tiver "um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso" (art. 238º/1).

Não resulta do acervo fáctico que negociações - e se as houve - das partes, na fase de contratação: nenhuma testemunha revelou conhecimento.

A autora, entendendo que cada PT é composto por diversos elementos e componentes integrantes aí elencados, todos contíguos e agregados, não podendo ser considerados individualmente, lembra que tal consta de forma inequívoca da proposta de seguro e listagem anexa (Cfr. Doc. n.º2 junto pela ré), e assim, entendendo a ré cada um destes PT como o conjunto de diversos componentes, tendo o sinistro ocorrido no PT 2 (contíguo à nave pré-esforço, sendo os restantes em local diverso-o PT 1 situa-se junto à subestação e o PT 3 no pavilhão de molas/arame, deve efectuar o ressarcimento dos danos apurados no PT referido).

Após o que se relataram os pretensos contributos das testemunhas para a interpretação do contrato de seguro, contributos baseados na interpretação que elas/testemunhas fazem do clausulado contratual e do seu conceito de máquina; a propósito do que se concluiu que “não estando definido o conceito a adoptar, vale aquele mais comum, de conjunto de mecanismos, e assim, temos como admissível - e a ambiguidade funciona a favor da tomadora do seguro - considerar “ máquina” o Posto de Transformação”.

Enfim, lendo a motivação da decisão de facto (o que tribunal externou como tendo contribuído para a formação da sua convicção), é patente que o que se deu como provado (alínea R)) e não provado (alíneas b) e c)) resultou tão só de considerações à luz das regras dos art. 236.º, 238.º do C. Civil e art. 11.º/2 do DL 446/85[11]; mas, como supra referimos, em sede de decisão de facto e tendo em vista fixar os factos provados, não são convocáveis e aplicáveis tais regras, que só funcionam no momento seguinte da decisão/sentença, no momento em que se aplica o direito aos factos previamente fixados, ou seja, as considerações interpretativas constantes da motivação de facto não têm lugar em sede de decisão de facto, sendo o seu lugar/sede próprios no momento seguinte da sentença[12].

Em sede de decisão de facto, tendo em vista a interpretação normativa que a seguir se terá que fazer, obtêm-se e registam-se os elementos que possam ajudar, depois, a referida interpretação normativa, mas não se fixa – preto no branco – a interpretação normativa da cláusula nem se diz quais os danos que, por interpretação, a mesma cobre.

E os referidos contributos até estão fixados (pelo que nada há a acrescentar em termos factuais) – sem oposição da R/apelante – nas alíneas B) e S) da sentença recorrida, que descrevem o que é um PT (composto por diversos elementos e componentes, contíguos e agregados).

Temos pois, concluindo, que a prova produzida e apreciada (de que dá relato a motivação da decisão de facto) não deu “contributos” respeitante à vontade real e que tudo girou à volta da interpretação normativa (que constitui matéria de direito), pelo que não se podia fixar como provado o que consta da alínea R) dos factos provados[13] e como não provado o que consta das alíneas b) e c) dos factos não provados, que assim se retiram do elenco da fundamentação de facto[14].

É quanto há a dizer e concluir sobre o recurso de facto, que procede nos estritos termos e razões que acabam de ser referidos e estabelecidos.


*

III - Fundamentação de Facto

III – A – Factos Provados[15]

A. Em 4 de Junho de 2009, Autora e Ré celebraram, pelo prazo de um ano e seguintes, um contrato de seguro de avaria de máquinas, titulado pela apólice n.º (....)6, que descreve o equipamento seguro como “PT 1 - € 165.000,00, PT 2 - € 900.000,00 e PT 3 - € 365.000,00”, sito nas instalações fabris da Autora, em (....) , (....) , Cantanhede, com o capital garantido de € 1.415.000,00 e uma franquia de 10% da indemnização (mas nunca inferior a € 250,00), regulado pelas respectivas condições gerais e particulares. – cfr. fls. 9 v.º, 10, 50 a 55v.º que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

B. Por força do referido contrato foram seguros os seguintes equipamentos:

i. PT 1:

a. 1 transformador de 1250 kva,

b. 1 transformador de 1800 kva,

c. 1 transformador de 2000 kva,

d. 7 celas de média tensão,

e. 1 cela de média tensão IM,

f. 1 quadro elétrico

g. cablagem,

no valor total de € 165.000,00;

ii. PT 2:

a. 3 transformadores de 2000 kva,

b. 7 transformadores de 1250 kva,

c. 10 filtros de harmónicas,

d. 10 baterias de correção do fator de potência,

e. 10 quadros elétricos,

f. 10 celas de média tensão,

g. 2 celas de média tensão IM

h. cablagem,

no valor total de € 900.000,00.

iii. PT 3:

a. 3 transformadores de 2000 kva,

b. 1 transformador de 1250 kva,

c. 2 baterias de correção do fator de potência,

d. 4 quadros elétricos,

e. 4 celas de média tensão,

f. 2 celas de média tensão IM

g. cablagem,

no valor total de € 350.000,00.

C. Da cláusula 2ª – objecto e âmbito do contrato – do contrato referido em A) resulta:

“1.O presente contrato tem por objecto a indemnização dos prejuízos materiais causados por avaria nas máquinas e instalações seguras, durante o período e no local designado nas Condições Particulares e de acordo com os limites nestas expressamente enumerados. (…)

“3. São considerados como avaria de máquinas, os danos causados por: (…)

d) efeitos directos de corrente elétrica, nomeadamente sobretensão e sobreintensidade incluindo os produzidos pela eletricidade atmosférica, curtos-circuitos, arcos ou outros fenómenos semelhantes, mesmo que qualquer um destes dê origem a incêndio, considerando-se, no entanto, neste caso, apenas cobertos os prejuízos na própria máquina que deu origem ao sinistro”.

D. Da cláusula 4ª – exclusões relativas a eventos – do contrato referido em A) resulta:

“1.No âmbito deste contrato não ficam cobertos os danos ou perdas que derivem directa ou indirectamente de: (…) - Incêndio, e sua extensão, (…).”

E. Em 22 de Março de 2011, Autora e Ré celebraram, pelo prazo de um ano e seguintes, um contrato de seguro multirriscos (com a designação comercial “ B... Total Empresarial”), titulado pela apólice nº (....)0, e regulado pelas respectivas condições gerais e particulares, que teve por objecto:

i. Edifícios (sitos na sede da Autora):

1. Edifício fabril (€ 7.000.000,00),

2. Edifício de escritórios (€ 1.000.000,00),

ii. Conteúdos:

1. Laboratórios máquinas (€ 800.000,00),

2. Escritórios fabris: a. equipamento (€ 20.000,00) b. mobiliário (€ 5.000,00),

3. Escritórios : a. Mobiliário (€ 100.000,00); b. Equipamentos – computadores, central telefónica, servidores e ares condicionados (€500.000,00);

iii. Riscos elétricos (€ 350.000,00);

– cfr. fls. 10v.º a 12 v.º, 61v.º a 63v.º, 80 a 95, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

F. No dia 12 de Março de 2012, cerca das 17h00, ocorreu um curto-circuito na bateria de condensadores (de 400 kva) de correcção do factor de potência do PT n.º 2, que originou um incêndio no respectivo quadro geral (QG 2.8), o qual provocou danos no espaço físico afeto ao PT n.º 2 (no QG 2.8 e na bateria de condensadores do QG 2.8), incluindo no quadro geral 2.9.

G. O sinistro referido em F) sobreveio por facto alheio à Autora.

H. A Autora participou à Ré o sinistro referido em F) e esta determinou a realização de uma vistoria que foi realizada em 13 de Março de 2012, pela “ W... ”, a qual fez constar da respetiva “confirmação de vistoria” que o incêndio deflagrou com origem num quadro de bateria de condensadores 400 KVA, resultando danos substanciais em quadros eléctricos, cabos, iluminação, ventilação infraestruturas internas do PT e estrutura da cobertura e paredes, decorrentes da chama, fuligens e fumos - cfr. fls. 13 v.º que aqui se dá por integralmente reproduzida.

I. Foi igualmente realizada vistoria externa pela empresa “ Y... , Lda.”, que se deslocou ao local no dia 14 de Março de 2012 e que fez exarar no respetivo “relatório de ocorrência” que o incêndio terá tido origem em curto-circuito na bateria de condensadores ligada ao quadro QG2.8, tendo consumido completamente todo o equipamento integrado no armário respectivo; que foram também afectados o quadro QG2.8 e o QG2.9 a exigir total substituição, bem como os cabos alimentadores estabelecidos na caldeira existente na área afectada, incluindo os cabos alimentadores do transformador de 1250 KVA ao respectivo quadro de distribuição; no interior do PT a instalação ficou, no geral, danificada (armaduras de iluminação, normal e de emergência, detecção de incêndio, ventiladores de exaustão e cablagem), obrigando à substituição de toda esta aparelhagem e canalizações; também foram afectadas as instalações de utilização (iluminação e tomadas) da sala de compressores anexa – cfr. fls. 14 a 17 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzida.

J. O objecto do contrato referido em E) não compreende os equipamentos dos postos de transformação (PT) (item 10 dos temas de prova), mas o seu habitáculo constitui edifício para efeitos do contrato de multirriscos.

K. O incêndio que deflagrou no dia 12 de Março de 2012 também danificou

a. Os cabos alimentadores instalados em caleira adjacente existente em zona inferior à área afetada (em vala localizada no solo) e que estabelece a ligação entre os diferentes quadros, incluindo o respectivo quadro de distribuição;

b. a cablagem;

c. Instalações de utilização (iluminação e tomadas), detecção de incêndio e ventilação;

L. As despesas de reparação dos danos decorrentes do sinistro referido em F) ascenderam ao montante de € 144.992,73 (ou seja, à soma dos montantes referidos em N), O) e R) – € 149.629,73 – abatida do valor do salvado, de € 4.637,00);

M. A Autora suportou essas despesas;

N. A substituição da bateria de condensadores ascendeu a € 15.433,15;

O. O posto de transformação nº 2 sofreu ainda os seguintes danos nos demais componentes - decorrentes de incêndio causado pelo curto circuito do componente bateria de condensadores: no quadro eléctrico QG 2.8 - cuja substituição importou em € 54.867,50; no quadro eléctrico QG 2.9- cuja substituição importou em € 40.060,50; diversos cabos eléctricos e acessórios de montagem dos mesmos - que importaram em € 16.489,36; luminárias, kits de emergência, cabos de pequenas secção e outros acessórios - um custo de € 1.333,76; acessórios para reparação da instalação eléctrica - que importaram em € 278,17 e líquido de limpeza de equipamentos - que importou em 66,50- num total de € 117 715,79.

P. O valor total dos equipamentos existentes nos postos de transformação (valor em risco) ascende a € 1.900.000,00;

Q. Os postos de transformação são equipamentos que integram a instalação eléctrica, inerente ao processo fabril, sendo, considerados equipamentos industriais e podendo, a todo o tempo, ser desmontados e transportados para outro espaço (para diversa sala que os albergue, sempre necessitando novo projecto);

R. Os danos no edifício fabril têm um custo de reparação de € 16.480,79;

S. O valor do edifício fabril (valor em risco) é de € 10.400.000,00;


*

2. Factos não provados:

a) O incêndio que deflagrou no dia 12 de Março de 2012 também danificou:

- no Posto de Transformação 1: um transformador 1250 KVA, um transformador 1600 KVA, um transformador 2000 KVA, sete celas de média tensão, uma cela de média tensão IM, um quadro eléctrico e cablagem;

- No Posto de Transformação 3: três transformadores 2000 KVA, um transformador 1250 KVA, duas baterias correcção factor de potência, quatro quadros eléctricos, quatro celas de média tensão, duas celas de média tensão IM e cablagem;

- e ainda no Posto de Transformação 2: três transformadores 2000 KVA, sete transformadores 1250 KVA, dez filtros de harmónicas, dez baterias correcção fator de potência, dez quadros elétricos, dez celas de média tensão, duas celas de média tensão IM.


*

IV – Fundamentação de Direito

Como claramente resulta das alegações e conclusões da R/apelante, circunscreve-se a apelação, na parte estritamente substantiva, à interpretação das cláusulas transcritas nos pontos C) e D) dos factos provados deste acórdão[16].

Diz a R/apelante que “o tribunal a quo julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. no pagamento à A., ao abrigo da apólice de avaria de máquinas, das quantias de € 10.344,28 e € 78.900,54 (num total de € 89.244,821), e, ao abrigo da apólice multirriscos, da quantia de € 11.092,84, o que perfaz o montante global de € 100.337,66.”; acrescentando mais à frente que “o presente recurso de apelação tem por objecto a decisão condenatória, na parte em que se considerou cobertos pela apólice de avaria de máquinas os danos avaliados em € 117.715,79 e condenou a R. no pagamento à A. de uma indemnização, a esse título, no valor de € 78.900,54. (...)

Temos pois que as condenações da R. no montante de € 10.344,28 (correspondente à indemnização pelos danos da bateria de condensadores, ao abrigo do seguro/apólice de de avaria de máquinas) e no montante de € 11.092,84 (correspondente à indemnização pelos danos no edifício fabril, ao abrigo do seguro/apólice multirriscos) estão totalmente estabilizadas nos autos: tais montantes correspondem ao que, desde a primeira hora, a R/apelante aceitou como indemnizações devidas (como consta do relatório inicial) e, por outro lado, a A/apelada conformou-se, a propósito de tais danos, com os montantes indemnizatórios fixados na sentença recorrida (e que representam a improcedência parcial dos montantes que, a propósito de tais danos, eram pedidos na PI).

A divergência (o objecto do recurso), repete-se, circunscreve-se pois ao montante indemnizatório de € 78.900,54, concedido, ao abrigo do seguro/apólice de de avaria de máquinas, para reparar os danos descritos no ponto O dos factos provados (em que se diz que o PT n.º 2, além dos danos da bateria de condensadores, “sofreu ainda os seguintes danos nos demais componentes - decorrentes de incêndio causado pelo curto circuito do componente bateria de condensadores: no quadro eléctrico QG 2.8 - cuja substituição importou em € 54.867,50; no quadro eléctrico QG 2.9- cuja substituição importou em € 40.060,50; diversos cabos eléctricos e acessórios de montagem dos mesmos - que importaram em € 16.489,36; luminárias, kits de emergência, cabos de pequenas secção e outros acessórios - um custo de € 1.333,76; acessórios para reparação da instalação eléctrica - que importaram em € 278,17 e líquido de limpeza de equipamentos - que importou em 66,50- num total de € 117 715,79”).

Situando-se, fora de toda a dúvida, o âmago e a génese de tal divergência na interpretação das cláusulas transcritas nos pontos C) e D) dos factos provados deste acórdão; daí que, simplificando, tenhamos começado por dizer que a apelação se circunscreve, na parte estritamente substantiva, à interpretação de tais cláusulas.

Vejamos, então:

Na origem do litígio estão, como claramente se vê dos factos e documentos juntos, dois contratos de seguro de danos (um de avaria de máquinas e outro multirriscos) celebrados entre a A. como tomadora (e segurada/beneficiária) e a R. como seguradora; sucedendo que – não há e nunca houve, a propósito do evento ocorrido, qualquer discussão – em 12/03/2012, ocorreu um sinistro (curto-circuito na bateria de condensadores de 400 kva de correcção do factor de potência do PT n.º 2, que originou um incêndio no respectivo quadro geral 2.8), o mesmo é dizer a realização do risco previsto nos contratos de seguro, sinistro que causou diversos danos, divergindo as partes na cobertura de tais danos, ou seja, mais exactamente, na cobertura dos danos descritos no ponto O) dos factos provados, que, segundo a R/apelante, não cabem na extensão da cobertura conferida pelo seguro de avaria de máquinas[17].

Sustenta a R/apelante que, nos termos das referidas cláusulas 2ª/3 d) e 4ª/1 das condições gerais, só se encontram cobertos pela apólice de avaria de máquinas os danos sofridos pela própria bateria de condensadores que sofreu o curto-circuito e originou o sinistro; que os danos causados aos demais equipamentos existentes no PT 2, tendo sido causados pelo incêndio e não por efeito directo da corrente eléctrica, em face do que consta da alínea d) do nº 3 da cláusula 2ª das condições gerais, não se encontram contratualmente cobertos; e tudo isto por na parte final de tal claúsula se dizer que, quando a avaria da máquina dá origem a incêndio, se consideram “apenas cobertos os prejuízos da própria máquina que deu origem ao incêndio” e, ainda, por na claúsula 4.ª, se excluirem os danos que derivem directa ou indirectamente de incêndio.

A questão – o fulcro da questão – está pois na interpretação de claúsulas provenientes de condições gerais, ou seja, na interpretação de cláusulas padronizadas e pré-redigidas/pré-elaboradas pela R/apelante (e sem qualquer possibilidade de participação da A. no seu conteúdo); sendo indiscutível que as relações contratuais estabelecidas com a A/apelada constituiram verdadeiros contratos de adesão individualizado, que é um contrato individual que se forma a partir de cláusulas contratuais gerais, sendo por isso ao caso aplicável as especialidades do diploma das ccj, isto é, o DL 446/85.

Especialidades que dizem respeito à formação contratual, à interpretação, à integração, aos critérios de validade do conteúdo e aos efeitos da invalidade parcial (e também aos meios judiciais e extrajudiciais de controlo preventivo e sancionatório).

Especialidades que, porém, não serão assim tão especiais; uma vez que correspondem, em grande medida, ao que já resulta da aplicação das regras gerais à eficácia e âmbito das declarações contratuais e à interpretação de comportamentos enquanto tal.

Efectivamente, a comunicação integral, oportuna e adequada é requisito de eficácia de qualquer declaração contratual: quem pretenda que um contrato abranja determinadas cláusulas (gerais ou individuais) tem de agir de modo que a outra parte possa compreender que tais cláusulas fazem parte do âmbito do consenso obtido, por inclusão nas declarações contratuais ou por remissão a partir delas (232.º e 236.º do CC).

Assim, neste aspecto, o regime de inserção de ccg em contratos singulares só reforça o dever de informação pré-contratual, só reforça o ónus de comunicação (art. 5.º/3 do DL 446/85) e o dever de informação prévia (art. 6.º do DL 446/85) e, sobre o conteúdo das cláusulas, só torna o dever de informação pré-contratual mais abrangente, incluindo também o esclarecimento do sentido das cláusulas predispostas, independentemente de qualquer concreto juízo em função de critérios de boa fé[18].

Verdadeiramente, as maiores especialidades são dadas pelo princípio in dubio contra proferentem (cfr. art. 11.º/2 do DL 446/85), segundo o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário, prevalece o sentido mais favorável ao aderente; e pela proibição de cláusulas contrárias à boa fé (cfr. art. 15.º do DL 446/85), proibição que o art. 16.º procura precisar, por referência a 2 aspectos, próprios da boa fé: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.

Isto dito, revertendo ao contrato de adesão indvidualizado sob análise, importa começar por referir que, em termos de formação, não se coloca qualquer questão: nada tendo a A./apelada invocado a tal propósito, nenhuma questão/obstáculo se coloca em termos de comunicação, informação, esclarecimento do sentido das cláusulas[19]; ou seja, nenhuma censura pode ser feita no que diz respeito ao modo como a R/apelante deu cumprimento ao dever de informação pré-contratual, no que diz respeito ao cumprimento do ónus de comunicação (art. 5.º/3 do DL 446/85), do dever de informação prévia (art. 6.º do DL 446/85) e do esclarecimento do sentido das cláusulas predispostas[20].

Assim, o que é relevante para o desfecho dos autos/recurso vem a seguir e traduz-se em saber qual o sentido que deve ser conferido às citadas claúsulas (e, eventualmente e se for o caso, se o clausulado em causa viola ou não o princípio geral da boa fé).

E, com tal propósito, importa ter presente que um dos elementos essenciais do contrato de seguro e que tem a ver com o seu objecto é o risco[21] – evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro; risco que define/delimita o objecto dum concreto contrato de seguro.

Denotando isto que as vulgarmente designadas “definições/exclusões”, constantes das condições gerais e especiais, se integram ainda na delimitação do objecto e âmbito do contrato de seguro; e que é necessário ter em conta, na delimitação do objecto do contrato de seguro, tanto as estipulações negociais que indicam, pela positiva, quais os riscos cobertos pelo contrato de seguro, como as que, negativamente, limitam o âmbito de cobertura através das designadas exclusões de responsabilidade.

O que, porém, não significa, por estarmos perante cláusulas respeitantes ao objecto do contrato, que possam escapar de todo a um “controlo” interpretativo (assim como não escapam ao controlo da sua natureza/conteúdo abusivo).

Apesar da delimitação/exclusão dos riscos ser lícita, por assentar na liberdade contratual, é preciso apurar se, em concreto e na prática, tal delimitação/exclusão, interpretada em determinado sentido, não desvirtua o objecto do contrato; se o contrato, interpretado de determinada maneira, não fica esvaziado no seu objecto/risco.

É também pois por este prisma – do risco/objecto – que se coloca a interpretação da cláusula; que se coloca a interpretação da expressão “prejuízos na própria máquina que deu origem ao sinistro”. Efectivamente, como se refere na sentença recorrida (embora, com todo o respeito, não no momento processual próprio), a “questão chave perpassa pela consideração (ou não) de cada PT como uma máquina”.

Vejamos:

O contrato de seguro em apreço, até pela sua própria designação, foi certamente apresentado e contratado pela A. para cobrir os prejuízos causados pelas avarias das máquinas; sendo esta a finalidade da garantia/cobertura em causa, era dever da utilizadora das ccg (a aqui R.) conformar o conteúdo das cláusulas por forma a que o mesmo não traia o seu objectivo e que não fique aquém daquilo (cobertura/garantia) com que um segurado de boa fé possa contar.

É que a cobertura dum contrato de seguro, em resultado de cláusulas de definição/explicitação/delimitação/exclusão, não pode ficar sem “objecto material”.

É usual referir-se – voltando um pouco atrás – a propósito do momento da formação contratual, que a lei (DL 446/85) separa a obrigação de comunicação da obrigação de informação (cfr. art. 5.º e 6.º do DL 446/85), com o que enfatiza a necessidade de cabal esclarecimento das cláusulas contratuais, com o que dá a entender que a obrigação de comunicação é muitas vezes insuficiente para assegurar que o acordo do aderente foi livre e esclarecido.

Efectivamente, do mero teor literal das cláusulas nem sempre é fácil, para uma pessoa de diligência média, retirar o seu sentido: há, por vezes, cláusulas que, pela sua complexidade (e pelo seu significado jurídico), a generalidade das pessoas não compreende ou não compreende completamente; há cláusulas cujo significado é diverso do aparente, já que carecem duma interpretação combinada com outras – que podem estar até sistematicamente distantes do texto do clausulado – não se apercebendo o aderente do seu sentido.

Ora – no contexto do concreto contrato de seguro que estamos a analisar (do que consta da apólice e demais documentos) – a cláusula em questão (ao dizer que apenas são considerados, em caso de incêndio, “os prejuízos na própria máquina que deu origem ao sinistro”) não tem um sentido indiscutível, tendo que ser considerada ambígua.

É sabido que o contrato de seguro, quer pela regulação detalhada do seu conteúdo, quer acima de tudo pela falta de clareza de muitas das cláusulas utilizadas, é daqueles que mais problemas interpretativos suscita.

Em princípio, as palavras e expressões utilizadas, nas condições gerais e especiais, devem ser interpretadas no sentido corrente da linguagem do dia a dia (e o sentido corrente é o do dicionário), porém, a interpretação literal deve ser afastada se conduzir a soluções desprovidas de qualquer racionalidade.

Sucede que, utilizando-se condições gerais, são não raras vezes utilizadas claúsulas que não se ajustam devidamemte aos riscos concretamente em causa, colocando-se a questão de saber em que medida são aplicáveis.

Daí também o princípio in dubio contra proferentem, constante do art. 11.º/2 do DL 446/85, que, como já se referiu, estabelece o princípio segundo o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário[22], prevalece o sentido mais favorável ao aderente.

E que há duvidas no sentido do que se deve entender por “máquina” (para efeitos da cláusula em apreço) resulta logo do modo como a própria R/apelante faz as contas quando invoca a situação de sub-seguro (arts. 17.º a 29.º da contestação).

Diz o art. 134.º do LCS que, “salvo convenção em contrário, se o capital seguro for inferior ao valor do objecto seguro, o segurador só responde pelo dano na respectiva proporção

Pois bem, sendo assim, na lógica interpretativa (das cláusulas) da R/apelante, o objecto seguro devia então ser a própria bateria de condensadores (onde ocorreu o curto-circuito) e as contas do sub-seguro deviam ser feitas entre o capital pelo qual estava segura tal bateria de condensadores e o seu efectivo valor; não sendo necessário, como a R/apelante fez, “subir” ao capital seguro global (€ 1.415.000,00) e depois compará-lo com o valor efectivo de todo o equipamento seguro[23].

Aliás, neste ponto do raciocínio, não podemos deixar de observar – embora, reconhece-se, tal observação seja próxima dum controlo de conteúdo, segundo a boa fé (art. 15.º do DL 446/85)[24] – que a lógica interpretativa (das cláusulas) da R/apelante, a prevalecer, representaria desproporção e desequilíbrio contratuais.

Como se refere em A) dos factos provados, as partes celebraram um contrato de seguro de avaria de máquinas, em cuja apólice se descreve o equipamento seguro como “PT 1 - € 165.000,00, PT 2 - € 900.000,00 e PT 3 - € 365.000,00” e se diz que o valor seguro são € 1.415.000,00.

Todavia, a prevalecer a lógica interpretativa da R/apelante – em que só se encontram cobertos os danos sofridos no próprio equipamento que sofreu/originou o sinistro – nunca a R/apelante responderá pela totalidade do valor seguro (longe disso); efectivamente, sempre que houver um sinistro ele iniciar-se-á/deflagrará num concreto equipamento e, a partir daí, os danos causados em todos os outros equipamentos passam a estar (na lógica interpretativa da R/apelante) excluídos da cobertura[25].

Tudo isto para dizer/concluir, na sede interpretativa em que nos movemos, que para um contraente/aderente normal – que tem uma apólice a descrever o equipamento seguro como “PT 1 - € 165.000,00, PT 2 - € 900.000,00 e PT 3 - € 365.000,00” e a dizer que o valor seguro são € 1.415.000,00 – não será imeditamente decifável e compreensível que haja uma cláusula (a em questão ou qualquer outra) que queira dizer, como a R/seguradora sustenta, que só se encontram cobertos os danos sofridos no próprio equipamento que sofreu/originou o sinistro; ou seja, para um contraente/aderente normal, não é imediatamente compreensível que se lhe diga que o valor seguro é de € 1.415.000,00 e que, ao mesmo tempo, haja uma cláusula que significa, em termos práticos e úteis, que nunca a seguradora responderá pela totalidade do valor seguro.

Dito doutra forma, tudo isto para dizer/concluir que um contraente/aderente normal – que tem uma apólice a descrever o equipamento seguro como “PT 1 - € 165.000,00, PT 2 - € 900.000,00 e PT 3 - € 365.000,00” e a dizer que o valor seguro são € 1.415.000,00 – retirará (ou, pelo menos, é legítmo que possa retirar) do clausulado em questão (que a seguradora interpreta do modo supra referido) um sentido diverso; um sentido que não deixe os danos nos equipamentos seguros sem cobetura até ao limite do valor seguro, ou seja, atribuirá à expressão “máquina”, constante da claúsula, um sentido mais amplo (poderá, por ex., em face da descrição feita na apólice, interpretar a expressão “maquina” como referindo-se a cada um dos “PT”).

É que, importa referi-lo, não encontramos nas cláusulas/condições gerais que passaram a fazer parte do presente contrato de seguro qualquer definição do que se deve entender por “máquina”, havendo, todos o sabemos, desde máquinas simples a outras muito complexas[26], compostas por muitos aparelhos e mecanismos, pelo que o critério da R/apelante, que vê “máquinas” em todos os instrumentos e aparelhos existentes nos 3 PT, se afigura discutível, refutável e, acima de tudo, impreciso e incerto.

Aliás, se olharmos para o que consta de alínea B) dos factos provados e para o modo como a R/apelante construiu o valor (em risco) dos objectos seguros (art. 21.º a 23.º da contestação), verificamos que a aplicação de tal critério da R./apelante leva, no limite, a que também sejam consideradas “máquinas” quer as cablagens quer os “materiais diversos” e os “materiais vários” (uma vez que é com o valor de tais materiais “diversos” e “vários” que a R/apelante chega ao valor em risco).

O que – o non sense de tal conclusão – só serve para demonstrar a falta de bondade do critério da R/apelante sobre o que deve entender-se por “máquina”.

É como supra referimos: devem ser afastadas interpretações que conduzam a soluções desprovidas de racionalidade; e a técnica da utilização das ccg conduz a que não raras vezes sejam utilizadas cláusulas que não se ajustam devidamente ao concreto contrato e que, por vezes, nem se percebe muito bem o que, para o caso, querem dizer[27].

Em síntese, encurtando razões, a cláusula contratual que, segundo a R/apelante, quer dizer que só se encontram cobertos pela apólice (de avaria de máquinas) os danos sofridos pela própria máquina que sofreu a avaria, é ambígua, motivo porque, na sua interpretação, “prevalece o sentido mais favorável ao aderente” (cfr. art. 11.º/2 do DL 556/85), sentido esse que é o de se encontrarem/considerarem cobertos todos os danos causados em equipamentos incluídos na descrição do equipamento seguro, ou seja, além dos danos na bateria de condensadores, estão também cobertos pela apólice (de avaria de máquinas) os danos nos demais componentes, decorrentes de incêndio causado pelo curto circuito na bateria de condensadores (isto é, os danos descritos na alínea O) dos factos provados).

O que significa, em conclusão, a improcedência da parte mais relevante do recurso, sendo a única excepção, a tal improcedência, a redução indemnizatória decorrente da nova redacção dada à alinea L) dos factos provados: redução equivalente a € 4.637,00 x (€ 1.415.000 : € 1.900.000) x 90%, ou seja, equivalente a € 3.108,01.


*

V - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, que se substitui por decisão a reconhecer que os danos nos materiais identificados estão cobertos e garantidos pelas Apólices n.º (....)6 e n.º (....)0, nos valores de € 86.136,81 e de € 11 092,84, motivo porque se condena a ré seguradora B... , S.A. no pagamento à autora A... , S.A., da quantia global de € 97.229,65 e no valor de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de juros civis, sobre o capital, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Custas, nesta instância, a cargo da A. e da R/apelante, na proporção de 1/25 e 24/25, respectivamente.


Coimbra, 14/03/2017

 (Barateiro Martins)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)



[1] Do documento que junta com a PI, logo se vê que a data alegada está incorrecta, sendo a correcta: 04/06/2009.
[2] Art. 12.º da contestação.
[3] Art. 13.º da contestação.
[4] Art. 28.º da contestação.

[5] Referindo, ainda, que a cobertura “facultativa” referida pela A. (“riscos eléctricos”) não tem aqui qualquer aplicação, pois, com excepção dos danos na bateria de condensadores (causados por curto-circuito), que estão cobertos pela apólice de seguro de avaria de máquinas, todos os outros foram causados pelo incêndio (e não, directamente, pela corrente eléctrica).
[6] Art. 39.º da contestação.

[7] O que também significa que não vemos motivo para também abater os € 66,50 (com a descrição “líquido de limpeza de equipamento eléctricos”) que, segundo a R/apelante, não terão sido peticionados pela A., uma vez que tais € 66,50 são reconhecidamente devidos e visto que ao incluirmos (não abatermos) tais € 66,50 não estamos a ultrapassar o pedido global formulado pela A..
[8] Como infra melhor explicaremos.

[9] Se há acordo entre os contraentes, ainda que a exteriorização tenha sido imperfeita, é aquele que vale (sem prejuízo do disposto no art. 238.º do C. Civil); é a este princípio que se dá tradicionalmente a designação falsa demonstrativo non nocet, segundo o qual o sentido objectivo da declaração pode não ter nenhuma relevância.

[10] Não há negócio jurídico sem, na sua origem, haver uma declaração intencional de conteúdo negocial; simplesmente, o que interessa ao direito é a vontade declarada e quem emite uma declaração negocial com destinatário tem o ónus de exprimir o seu pensamento em termos adequados.

[11] Repare-se que se referiu – sem discordância da R/apelante - que nenhuma testemunha revelou ter conhecimento das negociações, ou seja, nada foi dito em termos de “vontade real”.
[12] Como infra se verá, até concordamos com o essencial de tais considerações, porém, constituindo matéria de direito, não se decide nos factos.
[13] Na alínea R) constam também valores e a franquia, porém, estes elementos já constavam das alíneas A) e Q) (da sentença recorrida).
[14] O mesmo se fazendo, por idêntica razão e por uma questão de harmonia, com a alínea V) dos factos provados da sentença recorrida.

[15] Em que, além das acabadas de referir, se introduziu (em relação à sentença recorrida) uma pequena alteração de redacção (de acordo e ao abrigo da análise crítica de que fala o art. 607.º/4 do CPC, ex vi art. 663.º/2 do CPC) na alínea A): passando a constar que a apólice descreve o equipamento seguro como “PT 1 - € 165.000,00, PT 2 - € 900.000,00 e PT 3 - € 365.000,00”, em vez de “que teve por objecto os equipamentos existentes nos postos de transformação (PT) nºs 1, 2 e 3”; em que se retirou, por ser uma repetição, a alínea N) (em que constava que “ o curto circuito no componente bateria de condensadores deu causa ao sinistro”); e em que, em função de tudo isto e do que se referiu em sede de “reapreciação” da decisão de facto, não há, consequentemente, uma completa correspondência entre a numeração da sentença recorrida e a do presente acórdão.
[16] No fundo, é a questão de que supra dissemos não ter a sua sede própria na decisão de facto.
[17] Não havendo qualquer divergência quanto ao âmbito da cobertura do seguro multirriscos (como resulta da acta de fls. 133), que, estão de acordo, não cobre os danos elencados no ponto O dos factos provados.

[18] Embora, quanto aos efeitos, estabeleça a cominação radical de ineficácia das cláusulas não devidamente comunicadas (cfr. art. 8.º do DL 446/85).
[19] Isto é, nenhuma questão se coloca em termos de “controlo de inclusão”.

[20] O que não significa, naturalmente, que se saiba quais foram os concretos esclarecimentos dados, se existiram e se, nomeadamente, a R. explicou à A. a interpretação que faz das cláusulas em questão.
[21] Os outros elementos serão os intervenientes (seguradora e tomador do seguro), as obrigações dos intervenientes (pagamento do prémio pelo tomador e assunção do risco e realização da prestação pela seguradora) e o interesse.
[22] Isto é, tal princípio só tem lugar quando as regras de interpretação não permitem determinar qual a impressão do declaratário nos termos do art. 236.º/1 do CC e 11.º/1 do DL 446/85; ou seja, quando existem dúvidas na aplicação do critério objectivo do art. 11.º/1.

[23] Podia até dar-se o caso de, quanto à bateria de condensadores, não haver qualquer situação de sub-seguro; aliás, quanto ao efectivo valor das baterias de condensadores, nem percebemos muito bem como é que, para efeitos de constas do sub-seguro, podem valer € 17.500,00, € 23.000,00 e € 25.500 (cfr. art. 21.º da contestação) e, para efeitos da substituição (da que deu origem ao sinistro), o seu valor seja de apenas € 14.933,15 (art. 7.º da contestação).

[24] Boa fé que, aqui, incide directamente sobre as estipulações que se propõem determinar o conteúdo contratual; traça, em abstracto, limites objectivos que o predisponente tem que observar como condição de eficácia das cláusulas por si introduzidas no contrato; fixa limites gerais e objectivos à liberdade de estipulação do predisponente, imediatamente aplicáveis ao conteúdo das ccg (em função da natureza específica destas cláusulas); que é bem traduzida na seguinte reflexão: “ (…) quem põe em vigor condições gerais dos contratos reivindica para si em exclusivo, no que respeita à conformação do conteúdo, a liberdade contratual. Está por isso obrigado, segundo a boa fé, já na redacção das condições, a considerar devidamente os interesses dos seus futuros parceiros contratuais. Se fizer valer apenas os seus próprios interesses, abusa da liberdade contratual.” (Sousa Ribeiro, in Problema do Contrato, pág. 554, citando uma sentença do BGH de 04.11.1964).

[25] Sendo que a boa fé (art. 15.º do DL 446/85) se opõe a uma conformação desmesuradamente desequilibrada dos termos das ccg, abrindo a porta a uma valoração de interesses, em que se avalie da razoabilidade, em termos objectivos, de estipulações que, favorecendo uma das partes, se afastam do que corresponderia a uma equilibrada repartição de direitos e deveres, sendo os limites da tolerância ultrapassados quando a disposição é de molde a causar, sem justificação atendível, prejuízos graves e desproporcionados ao aderente.
[26] Com inúmeras hipóteses de permeio.

[27] Aliás, por vezes, fica-se com a sensação de que o querem dizer certas cláusulas é algo que só a verificação dum sinistro poderá verdadeiramente revelar.