Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
41/18.1T9CBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PERDA DE INSTRUMENTOS
CRITÉRIO PARA AFERIÇÃO DA SUA PERIGOSIDADE
Data do Acordão: 05/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 109.º DO CP
Sumário: I - A perda de instrumentos do crime regulada no art.º 109.º do Código Penal constitui uma forma de confisco que assenta em razões de natureza preventiva. Não se trata, pois, de uma ferramenta que visa assegurar que o crime não compensa, mas, essencialmente, prevenir os riscos causados pela detenção de objectos que, pela sua natureza, ou pelas circunstâncias do caso, sejam perigosos.

II - São pressupostos legais da declaração de perda de instrumentos:

- Que os objectos a confiscar sejam instrumentos da prática de um facto ilícito típico, isto é, que tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática desse facto;

- A perigosidade de tais objectos.

III – Para a aferição desta perigosidade, a nossa lei penal prevê um critério misto (objectivo, concreto e, eventualmente, subjectivo). Assim, para a qualificação de um instrumento como perigoso, há que atender à aptidão que o mesmo tem, em função das suas características próprias, para porem em risco a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem o risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos (critério objectivo), bem como às circunstâncias do caso concreto (critério concreto), sendo que a relação entre a perigosidade objectiva e a concretas circunstâncias do caso pode determinar a convocação do próprio agente, implicando, nesta medida, que na avaliação da perigosidade intervenha também tal (critério subjectivo).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No inquérito nº 41/18.1T9CBR [Actos jurisdicionais], que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Instrução Criminal de Coimbra – Juiz 1, onde é arguido, RL, em 1 de Outubro de 21019, o Mmo. Juiz de instrução proferiu o seguinte despacho:

O Ministério Público veio requerer a declaração de perda a favor do Estado das armas identificadas a fls. 139 ss com os fundamentos que aqui dou por reproduzidos.

 Notificado, o arguido, não deduziu oposição.


*

 Cumpre apreciar e decidir:

 Nesta matéria dispõe o Código Penal que:

 Artigo 109.º

 Perda de instrumentos

1 – São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.

2 – O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

3 – Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.

4 – Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.

Embora dos elementos probatórios recolhidos nos autos se verifique o arguido não utilizou na violência exercida em relação às vitimas as referidas armas de fogo, verificando-se o tipo de factos, a personalidade revelada pelo arguido, e ainda a circunstância de a DGRSP informar que existem pendentes vários assuntos familiares por resolver como questões patrimoniais que podem causar tensão entre o casal bem como do processo de divórcio que não se concretizou e existindo deste modo sério risco que o arguido venha a praticar novos factos ilícitos típicos de violência sobre a pessoa da vitima.

 Em conformidade, e nos termos do art.º 109º, n.º 1 do Código Penal declaro perdidas a favor do Estado as armas de fogo apreendidas nos autos – cfr. fls. 139-140 por existir concreto risco de serem utilizadas na pratica de factos ilícitos típicos, e a sua entrega à PSP – art.º 78º da Lei das Armas;

 Notifique.


*

Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1ª O presente recurso visa discutir a decisão tomada, por despacho de 01/10/2019 do Tribunal recorrido, que determinou a perda de armas (instrumentos) a favor do Estado, considerando o regime definido pelo art. 109º do Código Penal.

2ª Com efeito, nem a ausência de pronúncia prévia do recorrente à promoção do MP afecta ou preclude o seu direito pleno ao recurso constitucionalmente garantido (art. 32º nº 1 da CRP), sendo que decisão contrária o violaria ostensivamente,

3ª Nem existem razões que permitam questionar a tempestividade da interposição do presente recurso, face à falta de notificação do arguido do despacho que decretou a perda de instrumentos, corrigida posteriormente, considerando-se o arguido notificado deste a 18/11/2019, e daí, nos termos gerais, se contando o prazo de 30 dias para recorrer.

4ª Apesar de se constatar que o arguido não utilizou as armas nem como ameaça nem directamente contra a vítima, que cumpriu as injunções determinadas na suspensão provisória do processo – o que levou ao arquivamento do mesmo –, e que foi o próprio arguido, voluntariamente, a entregar as suas armas no posto da PSP, o Tribunal a quo determinou que, ainda havendo questões patrimoniais por resolver no processo de divórcio, existem razões para determinar a sua perda a favor do Estado.

5ª Para a aplicação da perda de instrumentos permitida pelo art. 109º nº 1 do CP torna-se necessária a verificação de dois requisitos cumulativos:

               I. Que os objectos em causa tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou que tenham sido seu produto [requisito subjectivo]; e

II. Que os objectos sejam perigosos [requisito objectivo].

6ª Ora não consta dos factos indiciados no despacho que promove a suspensão provisória do processo (fls. 170 a 176 verso dos autos) qualquer menção de uso de violência através da utilização das armas apreendidas, ou sequer de ameaça da sua utilização, não existindo, também, um único que consubstancie qualquer violência física ou ameaça da mesma,

7ª Referindo ainda o MP que, ao ponderar os critérios para promover a SPP, concluiu que dos factos indiciados, à luz dos elementos de prova recolhidos, não se verifica grau elevado de culpa nem de ilicitude, e que o arguido, não possuindo quaisquer antecedentes criminais, “não demonstra ser detentor de uma personalidade criminógena”.

8ª Não existe, no caso dos autos, nenhum “perigo concreto” de utilização das referidas armas, uma vez que, para além de nada a esse respeito vir indiciado, podemos retirar da prova constante dos autos que:

I. A própria ofendida (cfr. fls. 72 e 73), apesar de referir que lhe foram feitas ameaças pelo seu marido, afirma claramente, sem margem para dúvidas, que “o seu marido é caçador, tem várias armas de caça e outras, no entanto nunca as utilizou nem fez referência às mesmas nas ameaças que lhe tem feito”;

II. Foi o próprio recorrente quem as decidiu entregar voluntariamente na esquadra da PSP (cfr. ofício constante nos autos, datado de 22/03/2018, a fls. 136);

III. O arguido encontra-se devidamente licenciado para a detenção de todas estas armas (cfr. fls. 136);

IV. O arguido cumpriu as injunções e regras de conduta prescritas no âmbito da suspensão provisória do processo, de tal modo que o processo se encontra arquivado (cfr. fls. 227);

V. No Relatório Final de Acompanhamento da SPP, elaborado pela DGRSP, e constante a fls. 205 dos autos, pode ler-se, para lá da referência às possíveis tensões futuras relacionadas com o processo de divórcio, que o arguido compareceu às entrevistas, colaborou com os técnicos, cumpriu as injunções, demonstrou respeito pelo sistema judicial, e que, já não existindo residência conjunta com a vítima, não houve notícia da parte desta de ter sido importunada.

9ª Deve referir-se que o processo de divórcio de arguido e ofendida, autuado com o nº (…), e que corre os seus termos no Juízo de Família e Menores de (…), tem julgamento marcado para o próximo dia 16/01/2020, e nele já se encontra aceite, como data da separação de facto do casal, o dia 19/08/2016.

10ª Acresce que, boa parte das armas são herança de família do recorrente, tendo por elas uma especial afectação emocional e sentimental;

11ª O nosso legislador adoptou um critério de razoabilidade na aplicabilidade do “confisco” de instrumentos, exigindo, não apenas que estes sejam objectivamente susceptíveis de ser considerados perigosos por si, mas que tenham sido utilizados na prática de um facto ilícito típico, ou estivessem destinados a sê-lo.

12ª Tal consideração é de aceitação praticamente unânime, quer na doutrina – cfr. JOÃO CONDE CORREIA, Da proibição do confisco à perda alargada, 1ª Edição, INCM, Lisboa, 2012, pp. 70 a 72, ponto 2.2 –, quer na jurisprudência – vejam-se essencialmente os Acórdãos da Relação de Coimbra de 04/11/2015 (VASQUES OSÓRIO) e da Relação do Porto de 25/03/2015 (ARTUR OLIVEIRA).

13ª A situação decidida no Acórdão da Relação de Coimbra de 04/11/2015 (VASQUES OSÓRIO) é em tudo análoga àquela que aqui se discute uma vez que tratamos do mesmo tipo de ilícito (violência doméstica), da mesma situação processual (aplicação bem-sucedida de suspensão provisória do processo), dos mesmos objectos (armas de fogo), e da omissão nos factos indiciados de qualquer referência à utilização de armas de fogo ou ameaça da sua utilização.

14ª No caso dos autos não se acha verificado o requisito subjectivo/destinação da perda de instrumentos, não havendo razões que justifiquem, em concreto, a existência de qualquer perigo de utilização das referidas armas.

15ª Entende o recorrente que o despacho deste Douto Tribunal de 01/10/2019 violou, assim, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art. 109º nº 1 do CP, ao decretar a perda de objectos que se não destinaram à prática de um facto ilícito típico, pelo que deve ser revogada, por ilegal, e substituída por uma que mande entregar ao recorrente as armas apreendidas e legalizadas, licitamente detidas pelo mesmo, identificadas a fls. 141 a 151 dos autos.

16ª O despacho recorrido, do mesmo passo, viola ainda o disposto no art. 18º nº 2 e 62º da CRP, ao criar, com a interpretação que faz do art. 109º nº 1 do CP, uma restrição desnecessária, desadequada e desproporcional ao direito de propriedade do recorrente relativo às armas apreendidas.

TERMOS EM QUE,

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser o despacho de 01/10/2019 revogado e substituído por uma que mande entregar ao recorrente as armas apreendidas e legalizadas, licitamente detidas pelo mesmo, identificadas a fls. 141 a 151 dos autos.


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

               1 – Cumpre ressalvar, conforme decorre dos autos e bem assim, como bem assinalado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, no despacho de recebimento de recurso, o arguido foi devidamente notificado da promoção do Ministério Público, no sentido de perda das armas, prévia à decisão que ora impugna, pelo que tinha o direito de, em sede própria, alegar e refutar os argumentos aduzidos pelo Ministério Público, o que optou por não fazer.

2 – No que concerne ao mérito da decisão, importa referir que a declaração de perda favor do Estado a que alude o disposto no art, 109º, n.º 1, do C.P., não se aplica apenas aos casos em que os objectos apreendidos nos autos tenham sido utilizados no cometimento do crime.

3 – Na verdade, é admissível a aplicação deste instituto tanto na sequência de arquivamento, como em caso de absolvição, caso se verifiquem os requisitos de perigosidade dos objectos, os quais, associados à personalidade do agente e à gravidade dos factos, redundam num juízo de prognose desfavorável no que concerne à restituição das armas.

4 – No caso em apreço é notório que estamos perante instrumentos perigosos, e que poderão ser utilizados na prática de factos ilícitos o que, conjugado com os factos imputados ao arguido, à personalidade demonstrada e ao actual contexto do casal (divórcio e questões patrimoniais pendentes), redunda num juízo de necessário perigo que recidiva e de utilização destes instrumentos, o que apenas a perda a favor do Estado poderá evitar.

5 – Pelo que bem andou o Tribunal ao efectuar este prognóstico de perigosidade manifesta, e de decidir pela salvaguarda da vida e integridade física da vítima de violência doméstica nestes autos.

6 – Ao arguido foi aplicada a suspensão provisória do processo, mediante o cumprimento de injunções, por se considerar fortemente indiciada a prática do crime de violência doméstica, crime que, como se sabe, assume contornos que implicam uma ponderação diversificada no que concerne à manutenção de objectos perigosos na posse de um arguido relativamente ao qual existe a verificação de uma personalidade desviante e desconforme ao direito.

7 – Pelo que a retirada ao arguido de instrumentos perigosos, ainda que não impeça o cometimento de novos crimes, representa ainda assim uma mensagem da máquina sancionatória penal do Estado no sentido de impedir o agente de aceder facilmente a instrumentos que são manifestamente perigosos e facilitadores de crimes mais graves.

8 – Ainda que se possa considerar que do ponto de vista objectivo, os factos imputados ao arguido neste inquérito sejam menos graves, não deixam de ser profundamente atentatórios da dignidade da vítima, e nessa medida o juízo de prognose de potencial utilização de armas afigura-se perfeitamente razoável e ajustado.

Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso ora interposto, mantendo-se a decisão nos precisos termos em que foi formulada, fazendo, desta forma, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, a costumada JUSTIÇA.


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            Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concordando com a fundamentação do despacho recorrido e com a argumentação da resposta do Ministério Público, realçando que a perda de instrumentos tem carácter preventivo dos riscos decorrentes da disponibilidade dos objectos que, pela sua natureza e circunstâncias do caso, são perigosos, que a informação da existência de assuntos familiares pendentes e questões patrimoniais podem causar tensão no casal, que está em fase de divórcio, e concluiu pela improcedência do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

            Respondeu o recorrente reafirmando parte da argumentação que levou à motivação, esclarecendo que o divórcio entre si a ofendida já foi decretado, sendo que os únicos contactos que existem entre ambos se reduzem às conversações normais para a partilha, sendo que ela, na sua maioria, já está feita através de doações às filhas de ambos, e concluiu pela procedência do recurso.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se estão ou não verificados os pressupostos de que depende a declaração de perdimento das armas apreendidas nos autos.


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            Com relevo para a resolução desta questão, colhem-se dos autos os seguintes elementos:

            i) O inquérito supra identificado, cuja onde era investigada a prática de um crime de violência doméstica, tem o recorrente como arguido e como ofendida, MC, reciprocamente casados em 19 de Setembro de 1982.

               ii) Neste inquérito, a ofendida prestou declarações perante o OPC em 12 de Fevereiro de 2018, onde declarou, além do mais, que o arguido «é caçador, tem várias armas de caça e outras, no entanto, nunca as utilizou nem fez referência às mesmas nas ameaças que lhe tem feito.» (fls. 24 a 26 destes autos de recurso em separado).

            iii) No dia 21 de Março de 2018, no seguimento de solicitação do OPC para a entrega das armas de que fosse detentor, o arguido entregou voluntariamente no Comando Distrital de Coimbra da PSP, onze armas de fogo [quatro espingardas, quatro carabinas, duas pistolas e um revólver], respectivos livretes de manifesto e a licença de uso e porte de arma (fls. 27 a 42 destes autos de recurso em separado).

iv) Por despacho de 29 de Maio de 2018, a Digna Magistrada do Ministério Público titular do inquérito, com a anuência da ofendida e obtida a concordância do arguido, determinou, verificada que fosse a concordância do juiz de instrução, a suspensão provisória do processo pelo período de doze meses, com a imposição, àquele, das seguintes injunções:

- Não voltar a cometer factos semelhantes aos denunciados nos presentes autos;

- Manter uma postura de respeito para com a vítima, não a importunando sob qualquer forma ou pretexto;

- Comparecer a consulta avaliativa na entidade de saúde que a DGRSP entender, para se aferir se padece de alguma patologia do foro psiquiátrico, e na afirmativa, sujeitar-se ao tratamento médico que vier a ser delineado;

- Comparecer sempre que solicitado perante técnicos da DGRSP responsáveis pela monitorização da medida, acatando as instruções que estes vierem a transmitir.

v) No despacho referido na alínea anterior, constam como suficientemente indiciados, os seguintes factos:

1.º O arguido RM e a ofendida M., casaram-se m 19.09.1982, os quais fixaram a residência do casal na (…),.

2.º Desse relacionamento nasceram duas filhas – AL em 23.04.1984 e HL em 18.04.1987.

3.º A partir do ano de 2009, designadamente, a partir da altura em que se reformou, o arguido começou a revelar-se uma pessoa muito ciumenta, possessiva, controladora e autoritária.

4.º No dia 04 de julho de 2010, sem motivo, o arguido na presença das filhas e no âmbito de uma discussão apelidou a ofendida de "parva, malcriada, pensas que és um grande merda".

5.º Em várias ocasiões e em datas não concretamente apuradas, o arguido dirigia à ofendida as seguintes expressões "tu não vales nada, és a coisa mais reles, de baixa categoria que conheci, imprestável, não fazes nada em casa".

6.º Em 30 de agosto de 2014, no âmbito de uma discussão, o arguido dirigiu à ofendida as seguintes expressões "tens atitudes e comportamentos que não são próprios de uma esposa e de uma mãe de família, enquanto eu estiver fora e não houver coincidência de opiniões, sou eu que decido, sou o chefe de família".

7.º Em 25 de abril de 2015, no âmbito de uma outra discussão o arguido dirigiu à ofendida as seguintes expressões "tens atitudes altamente suspeitas e comprometedoras, não são próprias do lugar que ocupas de mãe e de esposa, não tenho a menor dúvida que tens alguém, tenho um envelope lacrado e bem guardado com provas para ser aberto quando eu achar que é a altura, quando eu entender as filhas saberem o tipo de mãe que têm".

8.º Em setembro de 2015, em dia não concretamente apurado, na presença das filhas, o arguido apelidou a ofendida de "reles, falsa, nojenta e mentirosa".

9.º O arguido em várias ocasiões acusou a ofendida de ter amantes e tendo-se convencido de tal facto, começou a controlar as chamadas e mensagens do telemóvel da ofendida, consultando as faturas detalhadas que eram remetidas pela operadora.

10.º Tendo dito à ofendida que tinha um amigo na Polícia Judiciária que o ajudava no controlo dos seus movimentos, bem como conseguia controlar o seu computador.

11.º O arguido propalou junto dos familiares e amigos mais próximos, que a ofendida tinha amantes, que lhe era infiel.

12.º Em data não concretamente apurado, mas no início do ano de 2016, o arguido disse à ofendida a seguinte expressão "por menos, muitos maridos já teriam feito muito mais" dizendo-lhe "basta ver televisão", acusando a ofendida de ter destruído a família.

13.º No início do mês de março de 2016, em dia não concretamente apurado, o arguido dirigiu à ofendida a seguinte expressão "és a coisinha mais reles que conheço, pessoa de baixa categoria, como sabes que ando a controlar o computador, passaste a usar o tablet, vais lá falar com o teu amante".

14.º Ainda no mês de março 2016, em dia não concretamente apurado, o arguido pediu às filhas para reunirem dizendo que "ia desmascarar a ofendida, que ia sujeitá-la a um teste do polígrafo e a uma sessão de hipnose", ao que a ofendida anuiu na expetativa de que o arguido se convencesse que não tinha amantes.

15.º Face ao comportamento do arguido a ofendida viu-se obrigada a receber acompanhamento psicológico e sugeriu ao arguido que a acompanhasse nas consultas de forma a restabelecerem a relação amorosa.

16.º Todavia, o arguido recusou-se e nada fez para alterar os seus comportamentos.

17.º Efetivamente, no mês de abril de 2016, em dia não concretamente apurado, o arguido retirou o tablet à ofendida e guardou-o no cofre contra a vontade da ofendida, impedindo-a que continuasse a utilizá-lo.

18.º No dia 16 de abril de 2016, o arguido apelidou a ofendida de "reles, estúpida, sabida, desonesta e de baixa categoria".

19.º No dia 08 de maio de 2016, o arguido exigiu à ofendida que lhe dissesse o que tinha feito para percorrer 20 kms de carro.

20.º Tendo a partir dessa data, começado a controlar as distâncias que a ofendida percorria no seu veículo, sendo que, em data não concretamente apurada, mas entre os meses de março/abril de 2016 o arguido disse à sua filha HM que tinha colocado um dispositivo no carro da ofendida para controlar os seus movimentos.

21.º Em várias ocasiões, o arguido dirigiu à ofendida as seguintes expressões ameaçadoras "não sei do que sou capaz, que por muito menos, outros maridos fazem pior às suas mulheres".

22.º Em data não concretamente apurada, mas no ano de 2016, o arguido disse à ofendida "para sair do quarto e que se insistisse em ir para lá a ia usar conforme lhe apetecesse".

23.º No dia 19 de agosto de 2016, a ofendida não aguentando mais a pressão, a perseguição, o controlo do arguido que a limitava na sua circulação e receando que o arguido pudesse atentar contra a sua integridade física, abandonou a residência.

24.º A partir dessa data, o arguido não se coibiu de continuar a divulgar junto de familiares e amigos que a ofendida lhe era infiel, que era uma pessoa desprezível e demente.

25.º Efetivamente, no dia 28 de janeiro de 2017, num evento ocorrido no (…), o arguido disse a uma das funcionárias, com relações familiares próximas do círculo profissional da ofendida que esta tinha um amante e que por tal razão se separaram.

26.º Nesse mesmo dia, o arguido telefonou a uma funcionária da escola onde a ofendida leciona de nome EM, dizendo-lhe que a ofendida não era a mesma pessoa, que precisava de ajuda, que estava dias inteiros em casa de pijama.

27.º A partir dessa data, o arguido intensificou a sua conduta no que se refere à difamação da ofendida, junto de amigos do casal e de familiares reafirmando que aquela tinha amantes.

28.º O arguido, ainda no ano de 2017, contactou telefonicamente colegas de trabalho da ofendida solicitando-lhe informações a seu respeito designadamente, o seu horário, a cumprir, eventuais comportamentos suspeitos, sempre com o intuito de a controlar.

29.º Em 12 de fevereiro de 2017 o arguido remeteu uma mensagem à ofendida com o seguinte teor "Volta para casa, por favor, para juntos, serenamente, encontrarmos uma solução para o nosso problema. Corta todo e qualquer contacto com esse filho da puta antes que eu faça um disparate".

30.º Em 12 de abril de 2017, o arguido remeteu várias mensagens para o telemóvel da ofendida apelidando-a de "leviana irresponsável, desmiolada, sem carácter, sabida, convencida, mulher para ser usada e deitada fora".

31.º Em dezembro de 2017, em data não concretamente apurada, a ofendida compareceu com o arguido numa consulta de psiquiatria, na tentativa de procurar tratamento para o arguido, sendo que no âmbito da consulta o arguido reafirmou todas as acusações (dizendo que a ofendida tinha amantes) dizendo que tinha provas dos factos, documentos voltando a insistir no teste do poligrafo para lavra a honra da esposa.

32.º No final do ano de 2017, em data não concretamente apurado o arguido disse à ofendida que iria "dar a conhecer às filhas a mãe que têm, que iria revelar o que a ofendida é no trabalho desta, na sua terra natal", dizendo ainda que "a pasta está bem guardada e irá ser revelada quando entender" e as seguintes expressões ameaçadoras "esteve-se à beira de uma tragédia, não me provoques, sou vingativo, comigo não levas a melhor, em situações extremas não sei do que sou capaz".

33.º O arguido ao atuar da forma descrita, mormente ao proferir as expressões ameaçadoras e injuriosas à ofendida, no interior da habitação, na presença das filhas, ao controlar as suas rotinas diárias, bem como ao difamar a ofendida junto de terceiros, de modo reiterado e sucessivo, pretendia atingir o bem-estar psicológico da ofendida, lesando a sua liberdade pessoal, fragilizando-a, gerando na mesma, um ambiente de intimidação e medo, que logrou alcançar, apesar de como seu marido, dever-lhe particular respeito e consideração.

34.º O arguido atuou sempre de forma livre e conscientemente, apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Tais factos foram considerados como susceptíveis de integrarem a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º nºs, 1, a) e 2, do C. Penal.

vi) Por despacho de 4 de Junho de 2018, a Mma. Juíza de instrução manifestou a sua concordância com a suspensão provisória do processo, com as injunções determinadas pelo Ministério Público.

vii) Findo o período da suspensão provisória do processo, a DGRSP elaborou o relatório final de acompanhamento, com o seguinte teor:

O arguido compareceu às entrevistas, cumprindo as injunções impostas nos termos da presente SPP.

RL demonstrou respeito pelo sistema judicial, prestando todas as informações solicitadas pelos técnicos.

Da monitorização efetuada junto da vítima MC, mantém-se o casamento mas o casal não reside junto.

A mesma verbaliza a existência de um relacionamento de afastamento por parte do arguido, e que este não a importunou, durante o período da suspensão.

De salientar que ambos os elementos do casal tiveram acompanhamento médico em conjunto e/ou individual com Dr.ª (…) – consulta de medicina psicossomática – CHUC e Dr. (…) – Psicologia.

Mantém-se no entanto vários assuntos familiares por resolver, nomeadamente, questões patrimoniais que podem causar tensão entre o casal, assim como o processo de divórcio que ainda não se concretizou.

Não há conhecimento de outras ocorrências causadas pelo arguido.

A ofendida (MC) tem em curso o processo 25/19.2GDCBR – DIAP – 2º Secção de Coimbra.

Assim a avaliação do caso presente considera que RL cumpriu a generalidade das injunções aplicadas nos termos da presente SPP.

viii) Contactada telefonicamente, a ofendida informou que o arguido não a tem importunado pois não mantêm contactos, que tem conhecimento, por terceiros de que o mesmo a difama, e que intentou contra si um processo por crime de furto, apenas para afectar o seu bem estar.

ix) Por despacho de 27 de Agosto de 2019 a Digna Magistrada do Ministério Público, considerando estarem cumpridas as injunções impostas para a suspensão e inexistirem razões para o prosseguimento do inquérito, determinou o seu arquivamento.

x) Em 6 de Setembro de 2019 o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu a declaração de perdimento a favor do estado das armas de fogo apreendidas nos autos e a sua consequente entrega à PSP, por oferecerem riscos sérios de serem utilizadas para cometimento de novos factos típicos.

xi) Em 1 de Outubro de 2019 foi proferido o despacho recorrido.


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Da verificação ou não dos pressupostos de que depende a declaração de perdimento das armas apreendidas nos autos

1. Como dissemos já, a questão submetida pelo recorrente ao conhecimento da Relação prende-se com a verificação ou não, dos pressupostos legais da declaração de perda de instrumentos a favor do Estado, regulada no art. 109º do C. Penal (redacção da Lei nº 30/2017, de 30 de Maio, em vigor).

Dispõe este artigo, com a epígrafe «Perda de instrumentos»:

1 – São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.

2 – O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

3 – Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.

4 – Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.

A perda de instrumentos do crime [bem como a perda de produtos do crime, regulada no art. 110º do C. Penal, na mesma redacção] constitui uma forma de confisco que assenta em razões de natureza preventiva. Não se trata, pois, de uma ferramenta que visa assegurar que o crime não compensa, mas, essencialmente, prevenir os riscos causados pela detenção de objectos que, pela sua natureza, ou pelas circunstâncias do caso, sejam perigosos (cfr. João Conde Correia, Da Proibição do Confisco à Perda Alargada de Bens, 2012, INCM, págs. 69 e ss.).

2. São pressupostos legais da declaração de perda de instrumentos:

- Que os objectos a confiscar sejam instrumentos da prática de um facto ilícito típico, isto é, que tenham sido servido ou estivessem destinados a servir para a prática desse facto;

- A perigosidade de tais objectos.

a. Relativamente ao primeiro pressuposto, cumpre notar que a referência feita no nº 1 do art. 109º do C. Penal a «facto ilícito típico», em vez de «crime» significa que a declaração de perda dos instrumentos do crime não depende da existência de culpa (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 619, João Conde Correia, ob. cit., pág. 70, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 454), podendo, por isso, ter lugar, por exemplo, na aplicação de medida de segurança a inimputável.

Por outro lado, a referência, no mesmo nº 1, a objectos que «estivessem destinados a servir para a» prática de «facto ilícito típico» significa que a declaração de perda dos instrumentos do crime não depende da consumação do facto, bastando-se com a mera tentativa, enquanto o nº 2 do mesmo art. 109º, para além dos dois casos que expressamente refere (morte do agente e declaração de contumácia) significa que o instituto é aplicável não obstante a verificação de qualquer outro pressuposto de punibilidade, v.g., a prescrição do procedimento ou a amnistia (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 621, João Conde Correia, ob. cit., pág. 70 e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. e loc. cit.).

Tudo isto acentua a natureza preventiva da declaração de perda de instrumentos que, por isso, pode ter lugar na sequência de um despacho de arquivamento do inquérito, na sequência de um despacho determinante da suspensão provisória do processo ou mesmo, na sequência de uma sentença absolutória.

b. Relativamente ao segundo pressuposto, deve notar-se que o confisco não abrange todo e qualquer instrumento que tenha servido ou estivesse destinado a servir para a prática do facto ilícito típico, mas apenas aqueles que, para além desse fim, sejam também perigosos, isto é, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos. Assim, apenas devem ser objecto da declaração de perdimento os instrumentos que, atenta a sua natureza intrínseca, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 621).

A determinação do carácter perigoso dos instrumentos varia em função do critério para tanto utilizado. Assim, pode ser usado um critério objectivo, que atende apenas às características do objecto, um critério subjectivo, que atende à utilidade do objecto para o agente, um critério concreto, que atente às circunstâncias do caso concreto, um critério abstracto, que considera a perigosidade em termos gerais e um critério misto, conjugando vários dos anteriores critérios (cfr. João Conde Correia, ob. cit., pág. 71).

O C. Penal, como resulta do nº 1 do art. 109º, prevê um critério objectivo. Para a qualificação de um instrumento como perigoso, há que atender à aptidão que o mesmo tem, em função das suas características próprias, para porem em risco a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem o risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos. Mas a lei prevê também um critério concreto, quando determina no mesmo nº 1, que também as circunstâncias do caso concreto devem aferir a perigosidade do instrumento objecto da declaração de perda.

Sendo o critério objectivo complementado pelo critério concreto, a relação entre a perigosidade objectiva e a concretas circunstâncias do caso pode determinar, como alerta Figueiredo Dias (ob. cit., pág. 623), a convocação do próprio agente, implicando, nesta medida, que na avaliação da perigosidade intervenha também um critério subjectivo.

Em suma, o ponto de partida é sempre a perigosidade objectiva do instrumento, à qual se devem juntar as concretas circunstâncias do caso e a personalidade do agente que através da prática do facto se revela, para, numa análise global, se concluir a final, pela perigosidade ou não e consequente confisco ou não, daquele.

Deste modo, a lei prevê um critério misto para o confisco do instrumento.

3. Revertendo para o caso concreto, temos que os objectos cujo confisco foi decretado na decisão recorrida, consistem em onze armas de fogo [quatro espingardas, quatro carabinas, duas pistolas e um revólver]. Todas estas armas estão devidamente licenciadas e o recorrente é titular de licença de uso e porte de arma (fls. 27 a 42 destes autos de recurso em separado).

Nos autos estava em causa o cometimento, pelo recorrente, de um crime de violência doméstica que tinha por ofendida o seu cônjuge, ML, a qual, nas declarações prestadas no inquérito, disse que o recorrente era caçador e que em casa, tinha diversas armas, de caça e de outra natureza, mas que nunca as utilizou nem fez referência às mesmas nas ameaças que lhe tem feito. Por sua vez, o recorrente entregou, voluntariamente, as armas de fogo em referência na PSP.

Nesta decorrência, no despacho da Digna Magistrada do Ministério Público proferido no inquérito, que determinou a suspensão provisória do processo não constam como suficientemente indiciados quaisquer actos executados pelo recorrente, susceptíveis de integrarem a prática do imputado crime de violência doméstica, nos quais, directa ou indirectamente, tenha aquele usado qualquer uma das armas de fogo em questão, designadamente, nas ameaças narradas nos artigos 12º, 21º, 22º, 29º e 32º da matéria de facto tida por suficientemente indiciada, do despacho em referência.

Não obstante, o despacho em crise, apesar do reconhecimento de que o recorrente não utilizou na violência exercida contra a vítima as armas de fogo em questão, ponderando o tipo de factos (sic), a personalidade daquele, a pendência de assuntos familiares por resolver aptos a causarem tensão entre o casal e a pendência do divórcio não concretizado, concluiu existir risco sério de o recorrente praticar novos actos de violência sobre a ofendida e, com tal fundamento, declarou o perdimento.

Com ressalva do respeito devido, afigura-se-nos que a decisão não deve subsistir, pelas razões que se passam a expor.

Sendo verdade que a violência doméstica constitui nos tempos que correm, uma chaga social que, apesar de sucessivas campanhas de sensibilização e do incremento das sanções legalmente previstas, não mostra, infelizmente, sinais de abrandamento, o que em muito eleva as exigências de prevenção, também é verdade que a necessária e/ou conveniente robustez da resposta do sistema de justiça a cada caso concreto, não permite, como é evidente, dispensar a verificação dos pressupostos legais dos institutos coadjuvantes da tutela dos bens jurídicos violados como, in casu, sucede com o confisco. Pois bem.

As armas de fogo – ex vi, espingardas, carabinas, pistolas, revólveres – pela sua própria natureza, são coisas objectivamente perigosas pois que, pelas suas próprias características, têm uma especial aptidão para criarem perigo para a segurança das pessoas.

Por outro lado, as armas de fogo, se usadas ou se destinadas a serem usadas na prática de um crime de violência doméstica – que, como se sabe, é um crime habitual – correm o sério risco de ser utilizadas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, em especial, integrando o mesmo tipo de crime.

É, pois, inquestionável, que as armas de fogo pertencentes ao recorrente são objectos perigosos.

Porém, a declaração de perda não se basta com a verificação do pressuposto perigosidade.

Com efeito, para que o confisco possa ser declarado, é também necessário que os objectos tenham sido usados ou estivessem destinados a ser usados, pelo agente, na prática do facto ilícito típico. Como nota João Conde Correia, coisas objectivamente perigosas que não tenham sido utilizadas na prática daquele nem constituam, por si só, um facto ilícito típico (v.g. a simples detenção de armas proibidas), não estão incluídas neste regime especial, devendo ser consideradas por outros ramos do direito (ob. cit., pág. 70).

Ora, como vimos, não está suficientemente indiciado que as armas de fogo do recorrente, objecto da declaração de perda proferida no despacho recorrido, tenham sido por ele usadas na prática do imputado crime de violência doméstica – a própria ofendida negou tal utilização – e também não existe suficiente indiciação de que fosse propósito do recorrente usá-las em tal prática o que significa que, in casu, não está verificado o primeiro pressuposto legal de que depende a declaração de perda de instrumentos.

4. Em conclusão do que antecede, estando as armas de fogo pertencentes ao recorrente devidamente legalizadas, sendo este titular de licença de uso e porte de arma, e não estando verificado um dos pressupostos legais de que depende a declaração de perda – a utilização das armas ou, pelo menos, de alguma delas, no cometimento do facto ilícito típico – não pode haver lugar ao confisco, pela declaração da respectiva perda.

Deste modo, a satisfação de exigências de prevenção que possam decorrer da, eventual, inaptidão do recorrente para lhe ser autorizada a detenção de armas de fogo, terá que ser aferida, sendo disso caso, em sede de direito administrativo.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido.


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            Recurso sem tributação, atenta a sua total procedência (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal).

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Coimbra, 6 de Maio de 2020


Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta.