Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1483/16.2T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
FRAÇÃO AUTÓNOMA
APARCAMENTO
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1251, 1287, 1294, 1415, 1417, 1418, 1419 CC, DL Nº 555/99 DE 16/12, DL Nº 127/01 14/6
Sumário:
I – As frações autónomas objeto de propriedade horizontal – artigo 1415.º do Código Civil –podem ser constituídas por áreas descontínuas, mas para que uma área descontínua integre a fração autónoma exige-se que a área em causa (no caso dos autos o espaço de um aparcamento com 15 m2 situado na cave), seja não só distinta, como também isolada fisicamente da restante área e não apenas delimitada (diferenciada) no pavimento através de linhas impressas a tinta.
II - Não é possível constituir e adquirir por usucapião uma fração nova, ou uma parte da área de um edifício objeto de propriedade horizontal, para agregar a uma fração existente, porque isso implicaria a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal e esta alteração só é possível, nos termos do artigo 1419.º do Código Civil, por acordo de todos os condóminos legalmente formalizado.
Decisão Texto Integral:

Recorrentes…………………...E (…) e esposa A (…)
Recorrida………………………M (…)
*
I. Relatório
a) O presente processo tem como objeto de litígio a determinação do titular do propriedade sobre o espaço melhor descrito no artigo 17.º da petição, relativo a um lugar de aparcamento na cave de um edifício constituído em propriedade horizontal, que a Autora afirma ser parte integrante da sua fração autónoma e a indemnização que alega ser-lhe devida pela ocupação de tal espaço pelos Réus.
Para o efeito a autora, ora recorrida, formulou estes pedidos:
«a) Declarar-se que a A. é a legítima proprietária e possuidora do imóvel melhor descrito no art.º 1º da P.I. que é a fração autónoma designada pela letra “…”, integrada no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito no n.º … de polícia da Av. ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Guarda sob o art.º ..., descrito na Conservatória do registo Predial da Guarda sob a descrição ... de 02/11/1988 e o respetivo direito de propriedade aí inscrito a favor da A. sob a apresentação ... de 23/06/2016.
b) Declarar-se que o espaço com cerca de 15 m² existente na 3ª cave, identificado com a letra “O”, destinado a estacionamento de veículos, sito entre a rampa de acesso e o espaço para aparcamento de veículos identificado com a letra “N”, está integrado na sobredita fração “O” fazendo parte integrante da mesma, sendo assim propriedade da A.
c) Condenar o R. a deixar tal espaço livre e desimpedido da sua pessoa e bens.
d) Condenar o R. a pagar à A., a titulo de indemnização pela ocupação abusiva de tal espaço, a quantia de 5,00 € diários, contabilizados desde a sua interpelação ocorrida em 03/08/2016 até a entrega efetiva de tal espaço à A., cifrando-se atualmente no montante de 460,00 € (quatrocentos e sessenta euros) tal valor indemnizatório».
Os Réus contestaram, alegando, em síntese, que sempre ocuparam o lugar de estacionamento «O», exclusivamente, e que o lugar da Autora é o que se encontra assinalado com a letra «N», porquanto ocorreu na altura da constituição da propriedade horizontal a supressão da letra «K» atribuída a um a das frações habitacionais, pelo que o lugar de estacionamento que inicialmente esteve atribuído à fração «O» passou a ser o «N» e assim sucessivamente até ao lugar de estacionamento afeto à fração «L» que ocupou o lugar da primitiva fração «K», devendo, por isso, a ação improceder.
No final foi proferida a seguinte decisão:
«…o Tribunal decide julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
- declara que a Autora M (…) é a legítima proprietária e possuidora do imóvel melhor descrito no artigo 1.º da petição inicial que é a fração autónoma designada pela letra “O”, integrada no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito no n.º .. de polícia da Av. ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Guarda sob o art.º ..., descrito na Conservatória do registo Predial da Guarda sob a descrição ... de 02/11/1988 e o respetivo direito de propriedade aí inscrito a favor da Autora sob a apresentação ... de 23/06/2016;
- declarar que o espaço com cerca de 15 m² existente na 3.ª cave, identificado com a letra “O”, destinado a estacionamento de veículos, sito entre a rampa de acesso e o espaço para aparcamento de veículos identificado com a letra “N”, está integrado na sobredita fração “O” fazendo parte integrante da mesma, sendo assim propriedade da Autora;
- condena os Réus (…) a deixar tal espaço livre e desimpedido da sua pessoa e bens;
- absolve os Réus do demais peticionado contra si pela Autora. 50
Custas a suportar pela Autora e Réus, na proporção do decaimento – cfr. artigos 527.º, n.º 1 e 2, 528.º, nº.1 do Código de Processo Civil».
b) É desta decisão que recorrem os Réus tendo formulado as seguintes conclusões:
c) A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.
(…)
II. Objeto do recurso
De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.
Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:
1 – A primeira questão colocada pelo recurso respeita à impugnação da matéria de facto.
a) Os Recorrentes pretendem que a matéria do facto provado n.º 17 passe a «não provada».
b) Que a matéria declarada provada em 39 dos factos considerados como provados, passe a ser a seguinte:
«Seja o Réu (e sua esposa), sejam os seus antecessores naquela fração ((…)), desde pelo menos 1... (altura em que este últimos passaram a viver na fração autónoma hoje pertencente ao réu), ocuparam e utilizaram o espaço físico destinado a aparcamento de viaturas, sito na 3ª cave do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal aqui em apreço identificado pela letra O na planta, o que os réus passaram a fazer de forma exclusiva a partir de 2001».
c) Que a matéria declarada como provada em 42 dos factos considerados como provados, passe a ser a seguinte:
«Exercendo tais poderes na convicção de que exerciam um direito em nome próprio, com exclusão de outrem».
d) Deve dar-se como provado que:
(I) «Da fração autónoma identificada pela letra P do prédio urbano acima identificado, faz parte integrante o espaço físico ora reivindicado pela autora (como lugar destinado ao aparcamento de veículos)».
(II) «Os lugares de aparcamento de viaturas sitos na 3.ª cave (então já identificados com tinta no chão daquele piso) sofreram as alterações de identificação referidas em 23, 36 e 37».
(III) «O lugar de aparcamento correspondente à fração autónoma hoje da propriedade da autora é aquele que se encontrava individualizado pela letra N (seja no piso da 3.ª cave, seja no projeto apresentado junto da Câmara Municipal da Guarda) e o lugar de aparcamento correspondente à fração autónoma hoje do réu (e de sua esposa) é aquele que se encontrava individualizado pela letra O (seja no piso da 3.ª cave, seja no projeto apresentado junto da Câmara Municipal da Guarda)»
(IV) «O referido de 39 a 41 ocorreu sempre desde 1992, exclusivamente e sem oposição ou contestação de outrem».
(V) «jamais os antecessores da autora na fração por esta adquirida ocuparam ou utilizaram tal lugar para estacionamento de veículos ou para o que quer que fosse».
2 – Em segundo lugar, caso tenha procedido no todo ou em parte a impugnação da matéria de facto, cumpre verificar se face às normas jurídicas aplicáveis a ação improcede por não ser possível concluir que «o espaço com cerca de 15 m2 existente na 3.ª cave, identificado com a letra O, destinado a estacionamento de veículos, sito entre a rampa de acesso e o espaço para aparcamento de veículos identificado com a letra N, está integrado na sobredita fração O fazendo parte integrante da mesma, sendo assim propriedade da Autora».
3 – Em terceiro lugar, verificar se compaginando a matéria de facto dada como provada em 25, 26, 27 e 28 com a disciplina jurídica do disposto no art. 1294º, Cód. Civil, se deve concluir que o lugar de garagem objeto de litígio foi adquirido pelos Réus.
III. Fundamentação
a) Impugnação da matéria de facto.
Antes de iniciar a apreciação concreta cumpre deixar exaradas algumas ideias sobre o tem, na expetativa de que sirvam para melhor compreensão do irá ser dito e do sentido da decisão.
Em primeiro lugar, contrapondo-se duas versões acerca dos factos, que mutuamente se excluem, como é o caso dos autos, só uma delas pôde ter existido, pois a realidade que nos cerca é só uma em cada momento histórico.
Por ser assim, se o juiz declara um facto ou uma versão factual como provada, isso implica que a respetiva situação contrafactual não tenha existido e resulta logicamente não provada.
Em segundo lugar, todo o facto controvertido que integra uma das hipóteses factuais em disputa, caso tenha existido, é explicável e é explicável através de outros factos anteriores, que o «causaram», digamos, e que valem como provas da sua existência.
Como todo o facto que existiu é explicável, logicamente, o que não existiu não é explicável e, por isso, não obtém corroboração em outros factos, quer sejam anteriores, contemporâneos ou posteriores.
Por outro lado, o facto controvertido que existiu efetivamente produziu, em regra, outros factos que são seus resultados ou consequências.
Um facto que não tenha existido não é explicável, nem podem existir provas de onde se infira a sua existência. Ser porventura foram apresentadas provas que aparentam corroborá-lo, então ou não são genuínas ou, se o são, a corroboração insere-se num processo de explicação necessariamente parcial e aparente que será refutado em globo por outras provas.
Em terceiro lugar, um facto que tenha existido é sempre adequado a obter múltiplas corroborações e é fértil no sentido de ser apto a produzir, a partir da sua matéria factual, novas conjeturas sobre possíveis outras provas que o corroborarão, não sendo refutável, salvo por ignorância de todas as circunstâncias factuais em que esteve inserido.
A corroboração existe quando um facto probatório faça parte de um processo causal ou teleológico, no caso de se tratar de ações humanas, no âmbito do qual seja possível estabelecer uma ligação entre o facto a provar e o facto probatório e vice-versa.
Em quarto lugar, em termos de raciocínio prático, o juiz partirá da ideia de que cada núcleo das versões factuais em confronto existiu e, seguidamente, verificará que dados empíricos, isto é, que provas corroboram ou refutam cada uma das versões.
Em quinto lugar, a versão que corresponder à realidade histórica apresentará sintomas da sua existência como facto real.
Assim, é sintoma de verdade o facto de um meio de prova ou o núcleo de uma versão factual serem apoiados por meios de prova diversificados, pois um facto quando existe, existe entre variados outros, como uma peça de um puzzle se insere na realidade mais vasta do puzzle e se harmoniza com todas as suas peças que, nesta media, atestam que aquele peça é daquele puzzle.
É também sintoma de verdade a circunstância de um facto ou o núcleo de uma versão factual implicarem novos elementos factuais (provas) não contemplados inicialmente na hipótese, o que apenas é possível na generalidade dos casos, quando o facto ou a versão factual correspondem à realidade.
É sintoma de verdade a circunstância de um facto ou o núcleo de uma versão factual não serem refutados por provas cuja realidade não seja razoavelmente questionável ou resistam elas mesmas à refutação.
É sintoma de verdade a simplicidade dos factos aferida pelas regras da experiência, isto é, de acordo com aquilo que habitualmente ocorre na natureza ou é habitual verificar nas ações humanas.
É sintoma de verdade a circunstância das provas se inserirem num todo coerente, pois a realidade que existe é idêntica a si mesma e não pode deixar de ser coerente, sendo as ações humanas coerentes, no sentido de serem compreensíveis, uma vez conhecidas as intenções com que foram realizadas.
É sintoma de verdade a própria probabilidade do facto ou do núcleo da versão factual, terem ocorrido face ao conjunto dos factos consensualmente admitido entre as partes e com as regras da experiência convocáveis pela natureza dos factos.
É sintoma de verdade a circunstância das provas produzidas e do núcleo da versão factual conferirem a possibilidade de serem confirmadas ou refutadas.
É sintoma de falsidade, no sentido de não corresponder à realidade histórica, o inverso do acabado de referir.
Em sexto lugar, o juiz verificará, sempre em termos globais, olhando ao mesmo tempo para a totalidade dos factos sob prova e para as provas, procurando verificar se existem nexos causais ou teleológicos que interliguem as diversas provas.
Alinhados os dados probatórios que corroboram cada uma das hipóteses, o juiz verificará se algum conjunto de dados probatórios permite montar um esquema explicativo, teleológico ou causal, que implique a existência dos factos a provar.
Se isso ocorrer, adquirirá a convicção de que aquela hipótese factual corresponde à realidade, ficando excluída, por incompatibilidade a outra versão factual.
*
(…)
Improcede, pois, na sua totalidade a impugnação da matéria de facto.
c) Matéria de facto – Factos provados
1. A Autora figura como titular proprietária de um imóvel de natureza urbana, fração autónoma designada pela letra «O», correspondente ao 3º andar posterior, com o lugar «O» de estacionamento na 3ª cave, e a dependência “O” para arrumos na 2.ª cave, integrada no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito no nº 13 de polícia da Av. ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Guarda sob o art. ... e descrito na Conservatória do registo Predial da Guarda sob o nº... de 02/11/1988, estando o respetivo direito de propriedade aí inscrito a favor da Autora sob a apresentação ... de 23/06/2016.
2. Do título constitutivo da propriedade horizontal realizado em 15.11.1991, consta, entre o mais, que «…a terceira cave destina-se a lugares de estacionamento (…) O – Terceiro andar posterior, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, sala comum, despensa, corredor, duas casas de banho, três quartos de dormir, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave».
3. Da planta da 3.ª cave, inserta no respetivo projeto de construção e licenciamento, emitido pelo município, está descriminado o referido lugar de estacionamento «O» conforme documento datado de 04/12/2015, junta a fls. 27, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
4. A propriedade referida em «1.» adveio à Autora por intermédio de compra que em 23.06.2016 fez a (…), solteira, maior, residente na Rua (…)em ….
5. Há mais de 20 anos a esta parte que a Autora, por si e pelos anteriores proprietários, usa, frui e dispõe de tal fração, na parte de habitação e arrumos, segundo a sua livre vontade, nomeadamente desde a data de sua aquisição.
6. Nele habitando e guardando os seus haveres pessoais, como sejam roupas, mobiliário e outros bens móveis.
7. Sobre o mesmo desde então pagando taxas e impostos.
8. Assim como os consumos de água, eletricidade, gás e telefone no mesmo despendidos.
9. Limpando-o e zelando pela sua manutenção em geral, bem como efetuando as obras e reparações necessárias à sua conservação.
10. O que desde sempre fez à vista de tudo e todos.
11. Sem discussão nem oposição de ninguém, nomeadamente do Réu, exceção feita ao lugar destinado ao estacionamento.
12. Sem quaisquer interrupções ou hiatos.
13. Na convicção de não estar a lesar a posse ou quaisquer interesses ou direitos de outrem, maxime do Réu.
14. Exercendo tais uso, fruição, disposição e poder de facto sobre a coisa nos termos acima referidos, sem quaisquer tipos de restrições ou limitações, que não as infra referidas quanto ao local de estacionamento, plenamente convicta de estar a exercer um direito próprio e absoluto sobre a totalidade do prédio, com exclusão de outrem, enquanto proprietária.
15. O Réu, contra a vontade e sem o consentimento da Autora, desde antes de meados de Agosto de 2016 a esta parte que vem ocupando com veículos o espaço físico com cerca de 15 m2, existente no piso destinado às garagens comuns do prédio, sito na 3.ª cave, situado entre a rampa de acesso ao interior do prédio e o espaço para garagem destinado à fração «N».
16. Espaço esse identificado com a letra «O» e constando do projeto como parte integrante da fração «O», cfr. planta junta a fls. 27.
17. O qual era ocupado e utilizado, esporadicamente durante alguns períodos de férias e até 2010, anteriormente por (…), anterior proprietária da referida fração «O».
18. Pese embora o R. tenha sido instado por carta registada com A.R. em 02.09.2016 a desocupar tal espaço, deixando-o assim livre de pessoas e bens, o mesmo insiste em continuar a ocupá-lo.
19. O Réu vem impossibilitando assim a Autora de aí aparcar o seu veículo.
20. Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º .../19881102, freguesia da Guarda (...), o prédio urbano sito na Rua ..., n.º 1, freguesia da Guarda (...), e inscrito na matriz sob o art. ..., da dita freguesia de Guarda (...), composto de 1ª, 2ª, 3ª e 4ª caves, R/C, 1º, 2º e 3º andares.
21. Com data de 30/10/91 foi apresentada junto do Serviço de Finanças da Guarda «Declaração para inscrição ou alteração de inscrição de prédios urbanos na atriz» (documento de fls. 126 a 128, que aqui se dá por reproduzido relativa ao prédio urbano composto de «rés-do-chão, 1.º andar esquerdo, 1.º andar dto. frente, 1.º andar dto. trás,2.º andar esquerdo, 2.º andar dto frente, 2.º andar dto trás, 3.º andar esquerdo, 3.º andar dto frente, 3.º andar dto trás, 1.ª cave,2.ª cave, 3.ª cave e 4.ª cave e rampa de acesso às garagens», o qual confrontava de norte com Rua, sul com Estrada Nacional 16, nascente com Lote B e poente com passagem de peões»
22. A letra «K» que no projeto e na declaração que vem referir-se individualizava a fração autónoma correspondente ao 2.º andar direito posterior foi eliminada na declaração fiscal e aí substituída pela letra «L».
23. Em consequência do que as frações seguintes (L, M, N e O) passaram a aí ser identificadas pelas letras imediatamente seguintes (ou seja, M, N, O e P) (mas não já no projeto, nem no espaço de garagem).
24. Com data de 1571171991 foi outorgada no Cartório Notarial da Guarda escritura pública de constituição da propriedade horizontal respeitante ao «prédio urbano com a superfície coberta de quatrocentos e setenta e seis metros quadrados que se compõe e de primeira, segunda, terceira e quarta caves, rés- do- chão, primeiro, segundo e terceiro andares, designado por Lote B 1, sito na Quinta do Ferrinho, freguesia de ..., desta cidade e concelho da Guarda, ainda omisso na matriz, tendo sido apresentada a declaração para a sua inscrição em trinta e um de Outubro último, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o número novecentos e noventa e dois, da indicada freguesia de ..., ali inscrito a favor deles outorgantes pela inscrição G-DOIS (…)
Que a terceira cave destina-se a lugares de estacionamento e a segunda cave anterior a arrumos.
Que as frações de que compõe em o prédio constituem unidades independentes, são distinta e isoladas entre si e têm saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública que submetem o referido prédio ao regime de propriedade horizontal com as seguintes frações autónomas
– A – Quarta cave, destinada a armazém, que se compõe e por dependência ampla, pequena dependência de arrumações, com acesso ao corpo principal de escadas e com acesso independente e direto do exterior, a que atribuem o valor de cinco milhões e novecentos mil escudos, o que corresponde a cento e dezoito por mil do valor total do prédio
– B – Segunda cave direita posterior, que se compõe por hall de entrada, cozinha, sala comum, despensa, corredor, duas casas de banho, três quartos de dormir, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e quinhentos e cinquenta mil escudos, o que corresponde a cinquenta e um por mil do valor total do prédio esta fração destina-se a habitação
- C – Segunda cave esquerda posterior, destinada a habitação, que se compõe e por hall de entrada, cozinha, marquise, sala comum, uma despensa unto à cozinha, uma despensa unto ao hall de entrada, casa de banho, dois quartos de dormir, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e quatrocentos mil escudos, o que corresponde a quarenta e oito por mil do valor total do prédio
– D – Primeira cave direita posterior, destinada a habitação, que se compõe e por hall de entrada, cozinha, sala comum, despensa, corredor, duas casas de banho, três quartos de dormir, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e seiscentos mil escudos, o que corresponde a cinquenta e dois por mil do valor total do prédio
– E – Primeira cave esquerda posterior, destinada a habitação, que se compõe e por hall de entrada, cozinha, marquise, sala comum, despensa, casa de banho, dois quartos de dormir, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de um milhão e setecentos mil escudos, o que corresponde a trinta e quatro por mil do valor total do prédio
– F – Primeira cave anterior e todo o rés- do- chão, destinada a escritório, compondo-se a primeira cave anterior por uma biblioteca, três dependências destinadas a economato, dependência destinada a arquivo morto, laboratório, dependência para arrumos do laboratório e anexa a esta, hall de distribuição, casa de banho simples, despensa, dependência destinada ao sistema de aquecimento central e uma escada de ligação ao rés-do-chão, e o rés-do-chão compõe-se por receção, corredor de distribuição, escadas de ligação á primeira cave, dependência para arrumos, três casas de banho, catorze salas de trabalho, duas varandas no alçado posterior esta fração tem ainda dois lugares de estacionamento na terceira cave, duas dependências para arrumos ma segunda cave atribuem a toda a fração o valor de dez milhões e quatrocentos mil escudos, o que corresponde a duzentos e oito por mil do valor total do prédio
– G – Primeiro andar direito frente, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, despensa, sala comum, corredor, dependência para arrumações, duas casas de banho, três quartos de dormir, uma varanda no alçado principal, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e seiscentos mil escudos, o que corresponde a cinquenta e dois por mil do valor total do prédio.
– H – Primeiro andar posterior, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, sala comum, despensa, corredor, duas casas de banho, três quartos de dormir, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões quinhentos e cinquenta mil escudos, o que corresponde a cinquenta e um por mil do valor total do prédio
– I – Primeiro andar esquerdo frente, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, marquise, sala comum, despensa, hall íntimo dos quartos, duas casas de banho, três quartos de dormir, duas varandas no alçado principal, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e novecentos e cinquenta mil escudos, o que corresponde a cinquenta e nove por mil do valor total do prédio
– J – Segundo andar direito frente, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, despensa, sala comum, corredor, dependência para arrumos, duas casas de banho, três quartos de dormir, uma varanda no alçado principal, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e seiscentos mil escudos, o que corresponde a cinquenta e dois por mil do valor total do prédio
– L – Segundo andar posterior, que se compõe por hall de entrada, cozinha, sala comum, despensa, corredor, duas casas de banho, três quartos de dormir, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e seiscentos mil escudos, o que corresponde a cinquenta e dois por mil do valor total do prédio esta fração destina-se a habitação
– M – Segundo andar esquerdo frente, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, marquise, sala comum, despensa, hall intimo dos quartos, duas casas de banho, três quartos de dormir, duas varandas no alçado principal, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de três milhões de escudos, o que corresponde a sessenta por mil do valor total do prédio
– N – Terceiro andar direito frente, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, despensa, sala comum, corredor, dependência para arrumações, duas casas de banho, três quartos de dormir, varanda no alçado principal, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e seiscentos mil escudos, o que corresponde a cinquenta e dois por mil do valor total do prédio
– O – Terceiro andar posterior, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, sala comum, despensa, corredor, duas casas de banho, três quartos de dormir, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de dois milhões e quinhentos e cinquenta mil escudos, o que corresponde a cinquenta e um por mil do valor total do prédio
– P – Terceiro andar esquerdo frente, destinado a habitação, que se compõe por hall de entrada, cozinha, marquise, sala comum, despensa, hall íntimo dos quartos, duas casas de banho, três quartos de dormir, duas varandas no alçado principal, varanda no alçado posterior, lugar de estacionamento na terceira cave, dependência para arrumos na segunda cave, a que atribuem o valor de três milhões de escudos, o que corresponde a sessenta por mil do valor total do prédio.
Que são comuns a todas as frações a rampa de acesso ao piso de estacionamento (terceira cave e átrio de entrada no rés-do-chão, e o hall de entrada no rés do chão.
Que os lugares de estacionamento na terceira cave, e as dependências para arrumos na segunda cave anterior são designados pelas letras correspondentes às frações autónomas a que pertencem».
25. Pela apresentação 25 de 2001/07/18 encontra-se inscrita a favor do Réu e de (…), a fração identificada pela letra do prédio urbano acima identificado, cfr. documento de fls. 42 verso, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
26. O Réu é casado com (…), sob o regime de comunhão de adquiridos.
27. E a sua (deles casa de morada de família é constituída pela fração autónoma identificada pela letra do prédio urbano acima identificado.
28. Desde há pelo menos quinze anos, os Réus têm vindo a ocupar, utilizar e usar, à vista de todos e continuamente o “espaço físico com cerca de 15 m2 existente no piso destinado às garagens comuns do prédio, sito na 3.ª cave” que a Autora reivindica.
29. O réu (e sua esposa (…), através de escritura pública outorgada no Cartório Notarial da Guarda em 11-06-2001, compraram a (…) «a fração autónoma designada pela letra – terceiro andar esquerdo frente – para habitação – com o lugar de estacionamento P na terceira cave e a dependência P para arrumos na segunda cave, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Lote …, sito na Quinta …, Rua ..., freguesia de ..., desta cidade e concelho da Guarda, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o número novecentos e noventa e dois, da aludida freguesia de ... (…)».
30. Por sua vez, os aludidos (…) por escritura pública outorgada no Cartório Notarial da Guarda em 30/11/1993, haviam comprado a (…) a fração autónoma que vem de identificar-se.
31. Foi este (…) quem construiu o prédio urbano (constituído no regime de propriedade horizontal) do qual faz parte a fração autónoma que vem de referir-se.
32. Razão pela qual foi este (…) quem apresentou o projeto de construção de tal prédio urbano.
33. Da mesma forma que foi ele quem apresentou junto do serviço de Finanças da Guarda a supra aludida “ declaração para inscrição ou alteração de inscrição de prédios urbanos na atriz”.
34. Dos quais constava a individualização das frações autónomas com a inclusão da letra K.
35. Acontece que a letra K foi eliminada nessa “declaração” tributária e na ulterior constituição da propriedade horizontal e registo predial.
36. E, assim, as frações seguintes (L, M, N e O) passaram a ser identificadas fiscalmente pelas letras imediatamente seguintes (ou seja, M, N, O e P).
37. Letra K foi substituída pela letra L, a letra L foi substituída pela letra M, a letra M foi substituída pela letra N, a letra N foi substituída pela letra O e a letra O foi substituída pela letra P.
38. Razão pela qual as frações que eram individualizadas por estas letras sofreram as alterações de identificação que vêm de referir-se, embora os lugares de aparcamento de viaturas sitos na 3.ª cave (então já identificados com tinta no chão daquele piso) não tenham sofrido tais alterações de identificação (assim como o projeto).
39. Seja o Réu (e sua esposa), sejam os seus antecessores naquela fração (Fátima e João Caramelo), desde pelo menos 1992 (altura em que estes últimos passaram a viver na fração autónoma hoje pertencente ao réu), ocuparam e utilizaram, pontualmente e sempre que a antecessora da Autora não o utilizava, o espaço físico destinado a aparcamento de viaturas, sito na 3.ª cave do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal aqui em apreço, identificado pela letra «O» na planta, o que os Réus passaram a fazer de forma exclusiva e sem interrupções a partir de 2010.
40. Designadamente os Réus aí parqueando os seus veículos automóveis e velocípedes e limpando-o e zelando pela sua conservação.
41. O que fizeram desde então à vista de toda a gente e sem interrupções.
42. Exercendo tais poderes na convicção de que exerciam um direito em nome próprio, com exclusão de outrem, não obstante a oposição dos titulares da fração «O».
Matéria de facto – Factos não Provados
- O referido em «3.» ocorre há mais de 30 anos.
- A ocupação referida em «17.» ocorresse antes de (…) pelos anteriores proprietários da sobredita fração «O».
- Há mais de 20 anos a esta parte que a Autora, por si e considerando os anteriores proprietários de tal espaço, usa, frui e dispõe de modo geral, segundo a sua livre vontade, de tal espaço físico, aí aparcando veículos automóveis, limpando-o e zelando pela sua manutenção.
- O que desde sempre fez ostensivamente, à vista de tudo e todos.
- Sem discussão nem oposição de ninguém, nomeadamente do Réu, sem quaisquer interrupções ou hiatos.
- Na convicção de não estar a lesar a posse ou quaisquer interesses ou direitos de outrem, maxime do Réu.
- Exercendo tais uso, fruição e disposição sobre aquele espaço de estacionamento de forma direta e imediata, sem quaisquer tipos de restrições ou limitações, plenamente convicta de estar a exercer um direito próprio e absoluto sobre tal espaço, com exclusão de outrem, enquanto proprietária.
- 50,00€ (cento e cinquenta euros por mês é o valor equivalente à locação, e, ou, custo de estacionamento de um espaço idêntico por igual período de tempo.
- Da fração autónoma identificada pela letra do prédio urbano acima identificado, faz parte integrante o espaço físico ora reivindicado pela autora (como lugar destinado ao aparcamento de veículos.
- Os lugares de aparcamento de viaturas sitos na 3ª cave (então já identificados com tinta no chão daquele piso sofreram as alterações de identificação referidas em 23, 36 e 37.
- O lugar de aparcamento correspondente à fração autónoma hoje da propriedade da autora é aquele que se encontrava individualizado pela letra N (seja no piso da 3ª cave, seja no projeto apresentado junto da Câmara Municipal da Guarda e o lugar de aparcamento correspondente à fração autónoma hoje do réu é aquele que se encontrava individualizado pela letra «O» (seja no piso da 3ª cave, seja no projeto apresentado junto da Câmara Municipal da Guarda)
- O referido de «39» a «41» ocorreu sempre desde 1992, exclusivamente e sem oposição ou contestação de outrem.
- Jamais os antecessores da autora na fração por esta adquirida ocuparam ou utilizaram tal lugar para estacionamento de veículos ou para o que quer que fosse,
b) Apreciação das restantes questões objeto do recurso.
1 – Pretendiam os Réus obter a alteração da sentença no sentido de se declarar que que «o espaço com cerca de 15 m2 existente na 3.ª cave, identificado com a letra O, destinado a estacionamento de veículos, sito entre a rampa de acesso e o espaço para aparcamento de veículos identificado com a letra N, está integrado na sobredita fração O fazendo parte integrante da mesma, sendo assim propriedade da Autora».
Esta questão dependia da alteração da matéria de facto e esta manteve-se inalterada.
Improcede, por isso esta pretensão dos Réus.
2 – Em segundo lugar, compaginando a matéria de facto dada como provada em 25, 26, 27 e 28 com a disciplina jurídica do disposto no art. 1294.º, Cód. Civil, cumpre verificar se o lugar de garagem objeto de litígio foi adquirido pelos Réus.
Não assiste razão aos Réus.
Como se referiu na sentença estes lugares de estacionamento não são usucapíveis.
Afigura-se, com efeito, que só é possível adquirir por usucapião frações que existam como tal no título constitutivo da propriedade horizontal; ou espaços que reúnam as condições físicas e legais (incluindo as administrativas), necessárias para poderem figurar no/em título constitutivo da propriedade horizontal como frações autónomas ou partes integrantes de frações autónomas já existentes.
Pelas seguintes razões:
(I) Nos termos do art.1287.º do Código Civil, «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião».
A posse, nos termos do artigo 1251.º do Código Civil, «...é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real». Pressupõe a existência simultânea dum poder de facto sobre a coisa, o denominado corpus, e a intenção (animus) de exercer um direito correspondente ao poder exercido, sendo que a ausência de qualquer um destes elementos (corpus/animus), inviabiliza a aquisição originária.
Por conseguinte, como é por demais sabido, a posse e o decurso do tempo podem dar origem à constituição de direitos reais sobre uma coisa.
Porém, estas normas não existem isoladamente, mas sim no âmbito de uma ordem jurídica, pelo que têm de ser aplicadas em harmonia com as restantes normas, designadamente com normas de direito administrativo, se for o caso.
(II) A propriedade horizontal constitui-se, nos termos do n.º 1 do artigo 1417.º do Código Civil1, «… por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário».
Perante esta norma não há qualquer dúvida que a propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião.
Sobre esta matéria, Pires de Lima/Antunes Varela pronunciaram-se nestes termos:
«Também uma situação possessória poderá conduzir à propriedade horizontal. Se, por exemplo, A, proprietário, de um edifício de dois andares (com os requisitos indicados no art. 1415.º), vende ou doa um dos andares a B, consensualmente ou por documento particular, o comprador, mal comece a fruir o andar, ficará na situação de possuidor do direito de propriedade horizontal (trata-se de posse não titulada, uma vez que o negócio jurídico é nulo por vício de forma) e, decorrido o prazo da usucapião, constituir-se-á, de modo definitivo um condomínio entre A e B (…) A constituição do condomínio, nestes casos, resulta directamente da posse do direito de propriedade horizontal e não de um outro título. A sentença que venha reconhecer a usucapião tem eficácia meramente declarativa» ( Ob. cit., pág. 403-404. No mesmo sentido Henrique Mesquita: «Quanto à usucapião, ocorrerá sempre que se estabeleça uma situação meramente possessória de propriedade horizontal e decorra o prazo necessário à aquisição do direito» - A Propriedade Horizontal no Código Civil Português, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXIII (1976), pág. 90 (cfr. tb. nota 31).).
Tendo a sentença, que julga verificada a usucapião do direito de propriedade horizontal sobre um dado objeto, natureza declarativa e não constitutiva, então a sentença nada acrescenta ao objeto usucapível, pelo que este tem de reunir todas as condições legais necessárias à constituição da propriedade horizontal, designadamente as administrativas.
Se o objeto não possuir todas as condições necessárias à constituição do direito, então a sentença não poderá declarar esse direito.
Tais condições, mas não todas, vêm mencionadas no artigo 1418.º do Código Civil, que dispõe o seguinte:
«1- No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.
2- Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente:
a) Menção do fim a que se destina cada fração ou parte comum;
b) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das frações autónomas;
c) Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio.
3- A falta da especificação exigida pelo n.º 1 e a não coincidência entre o fim referido na alínea a) do n.º 2 e o que foi fixado no projeto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo».
Avulta aqui a exigência de coincidência entre a «menção do fim a que se destina cada fração ou parte comum» e «o fim que foi fixado no projeto aprovado pela entidade pública competente» para cada fração ou parte comum.
Porém, podem existir e existem disposições de natureza administrativa relativas à edificação e utilização de edifícios que carecem de ser também observadas para que seja possível constituir a propriedade horizontal.
Com efeito, nos termos do n.º 5, do artigo 4.º, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro),
«Está sujeita a autorização a utilização dos edifícios ou suas frações, bem como as alterações da utilização dos mesmos».
Por conseguinte, não é possível constituir a propriedade horizontal relativamente a um edifício que foi construído sem autorização camarária.
Além disso, uma utilização, ou uma alteração da utilização que vem sendo feita relativamente a certo espaço de um edifício, dependem também, em regra, de autorização camarária.
É o que resulta do disposto no artigo 62.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, onde se determina que
«1 - A autorização de utilização de edifícios ou suas frações autónomas na sequência de realização de obra sujeita a controlo prévio destina-se a verificar a conclusão da operação urbanística, no todo ou em parte, e a conformidade da obra com o projeto de arquitetura e arranjos exteriores aprovados e com as condições do respetivo procedimento de controlo prévio, assim como a conformidade da utilização prevista com as normas legais e regulamentares que fixam os usos e utilizações admissíveis, podendo contemplar utilizações mistas.
2 - No caso dos pedidos de autorização de utilização, de alteração de utilização ou de alguma informação constante de licença de utilização que já tenha sido emitida, que não sejam precedidos de operações urbanísticas sujeitas a controlo prévio, a autorização de utilização de edifícios ou suas frações autónomas destina-se a verificar a conformidade da utilização prevista com as normas legais e regulamentares que fixam os usos e utilizações admissíveis, bem como a idoneidade do edifício ou sua fração autónoma para o fim pretendido, podendo contemplar utilizações mistas».
Adere-se, por isso ao entendimento expresso no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-10-2012 (Freitas Neto) no processo 16/11.1TBVZL (em www.dgsi.pt), onde se ponderou que «1. A sentença declarativa do regime de propriedade horizontal constituída por usucapião constata a presença dos requisitos de uma posse usucapível relativamente ao edifício e suas unidades, em moldes semelhantes aos do exercício de uma propriedade horizontal, bastando que essa posse revista as características gerais quanto ao elemento objectivo e subjectivo (ou volitivo) dos respectivos titulares, de harmonia com os artigos 1251.º e 1287.º e seguintes do Código Civil.
2. Se a posse exercida sobre as unidades independentes e isoladas entre si, e com saída própria, se verificar com as características legais durante o prazo respectivo de usucapião, então qualquer dos interessados pode requerer ao tribunal que profira sentença que a reconheça, uma vez que a situação possessória já se completou, gerando a usucapião da propriedade horizontal.
3. A declaração, por sentença, da propriedade horizontal constituída por usucapião, pressupõe a alegação e prova de que, além dos requisitos referidos no artigo 1415.º do Código Civil, o prédio respeita todos os requisitos administrativos necessários, os quais apenas podem ser avaliados e certificados pela Câmara Municipal, nos termos dos artigos 4.º e 62.º a 66.º do RJUEU, aprovado pelo DL 555/99 de 16/12, alterado pelo DL 177/2001 de 4 de Junho, sendo, por isso, indispensável que na acção venha alegada essa certificação» ().
Resumindo: para uma sentença poder declarar a aquisição de um direito de propriedade horizontal, por usucapião, há de existir uma situação de posse do direito correspondente, o que pressupõe a existência de um objeto possuído com as características necessárias à constituição do direito de propriedade horizontal, incluindo-se aqui as exigências administrativas atinentes à edificação, urbanização e utilização dos edifícios.
Muito embora a propriedade horizontal possa ser constituída por usucapião, já a alteração do respetivo título constitutivo não pode ter lugar pela via da usucapião.
Com efeito, o n.º 1 do artigo 1419.º do Código Civil dispõe que
«Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1422.º-A e do disposto em lei especial, o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos».
Como a lei exige, para a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, o acordo de todos os interessados, devidamente formalizado, esta exigência seria violada se fosse possível alterar o título constitutivo através de sentença que reconhecesse a aquisição, por usucapião, de uma fração ou parte de fração que ainda não existisse como tal no título constitutivo da propriedade horizontal ( Nada obsta, desde que se verifiquem os respetivos requisitos, à aquisição por usucapião de uma fração que já faz parte do título constitutivo da propriedade horizontal.).
Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-12-2007 (Mário Cruz) no processo 07A3023 (em www.dgsi.pt), mencionado na sentença recorrida, onde se ponderou que «I. Não pode adquirir-se a propriedade de parte física de fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal antes que haja alteração do título constitutivo que autonomize essa parte física da fracção da outra em que estava inserida. II. O Tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente, sem a aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia, porque não pode impor a terceiros nem aos Condóminos uma decisão que a todos atinge, quando os condóminos e o Município não são sequer partes na acção. III. O Tribunal só pode declarar adquiridas por usucapião fracções autónomas completas (a menos que se trate de aquisição em compropriedade), sob pena de fraude à lei» ( Cfr. tb. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-2011 (Martins de Sousa) no processo 369/2002 (em www.dgsi.pt).).
Tratou-se certamente de uma opção legislativa e não de uma impossibilidade jurídica originária.
Com efeito, como a usucapião é um mecanismo de aquisição de direitos reais e a propriedade horizontal é um deles, então, desde que demandados todos os interessados, aparentemente não existiria qualquer obstáculo substantivo à constituição do direito.
Compreende-se a opção legislativa atendendo à relevância social da propriedade horizontal ( Acerca das razões justificativas do instituto da propriedade horizontal ver Henrique Mesquita, ob. cit. págs. 79-85.), a qual permitiu o acesso à habitação a enormes massas populacionais que de outro modo não o alcançariam, o que implicou a assunção de cuidados por parte do Estado na regulamentação das inúmeras relações jurídicas mobilizadas, desde as relações jurídicas de direito administrativo ligadas à construção, utilização e segurança, higiene e salubridade das edificações, à promoção das boas relações e prevenção de litígios entre condóminos, de modo a que a habitabilidade dessas massas populacionais seja garantida.
Daí que se justifique a exigência do acordo de toda comunidade dos condóminos para tornar possível a alteração do status quo condominial, colocando-o a salvo de iniciativas individuais.
Conclui-se, por conseguinte, que não é possível constituir e adquirir por usucapião uma parte da área de um edifício, como um espaço de estacionamento porque isso implicaria a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal e esta alteração só é possível por acordo de todos os condóminos legalmente formalizado.
(IV) Olhando ao caso concreto, verifica-se que o espaço de estacionamento assinalado pela letra «O», não está fisicamente isolado do restante espaço e, por isso, não cumpre a exigência legal assinalada no artigo 1415.º do Código Civil ao objeto sobre o qual há de recair o direito de propriedade horizontal.
Por conseguinte, tem de se concluir que não existiu posse de um bem suscetível de constituir uma fração autónoma ou parte separada pertencente a uma fração autónoma já constante do título de constituição da propriedade horizontal.
Por outro lado, como acabou de se referir, não é possível constituir e adquirir por usucapião uma parte da área de um edifício porque isso implicaria a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal e esta alteração só é possível por acordo de todos os condóminos legalmente formalizado.
Por conseguinte, a pretensão dos Réus não pode proceder.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelos Réus.
*
Coimbra, 8 de maio de 2018


Alberto Ruço ( Relator)
Vítor Amaral
Luís Cravo