Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
125/08.4TBFCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
REQUISITOS NECESSÁRIOS
Data do Acordão: 09/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1383º E 1384º DO CC
Sumário: I – São dois os requisitos caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: a) o uso directo e imediato do mesmo pelo público; b) e a imemorialidade desse uso.

II- Requisitos esses cumulativos e cuja prova compete a quem alega tal dominialidade ou dela pretende beneficiar.

III- A publicidade de um caminho pressuporá ainda a sua afectação à utilidade pública (visando a satisfação de interesses colectivos).

IV- O conceito de “imemorialidade ou tempos imemoriais” deve ser interpretado no sentido de significar “que o seu uso perdura através dos tempos, de tal modo que os vivos não sabem quando começou o uso do caminho, ou seja, que o mesmo é tão antigo que o seu início se perdeu da memória dos homens.”

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. A autora, Freguesia de …, instaurou (em 31/10/2008), contra os réus, C… e P…, todos melhor identificados nos autos, a presente acção declarativa sob a forma ordinária (que inicialmente seguiu sob a forma sumária):

Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte (tomando-se também já em conta a nova petição inicial aperfeiçoada por si apresentada – a fls. 90/94 – na sequência do despacho/convite que, a fls. 66/77, para o efeito lhe foi dirigido):

Que desde tempos imemoriais existem dois caminhos públicos sitos no lugar do Vale de …, freguesia de …, concelho de ...

Caminhos esses que fazem a ligação entre a estrada nacional (nº 221) que liga … e a estrada nacional que liga … e que antes de entroncarem nestas duas estradas dão acesso a diversas propriedades pertencentes a diferentes donos, apresentando uma largura de 4m na parte mais estreita e 8m na parte mais larga, percorrendo, cada um deles, uma distância de cerca de 2,5 km entre as duas referidas estradas nacionais.

Acontece que, em Maio ou Junho de 2008, os réus, agindo em conjugação de esforços e sem a sua autorização e vontade, abriram duas valas nesses caminhos com cerca de 20m de comprimento e 1m de profundidade e com cerca de 1m de largura, com o que cortaram a ligação desses caminhos à estrada nacional nº 221 e retiraram uma placa de sinalização STOP que ali existia.

Na mesma ocasião, os réus lavraram e eliminaram outros dois caminhos públicos, um deles que era o prolongamento dos dois anteriores referidos caminhos e um outro no sítio denominado Prado Grande que se situa a poente da referida estrada nacional nº 221, e que era anterior à construção dessa estrada, servindo cada um de acesso a diversas propriedades pertencentes a diferentes donos.

A autora já procedeu, entretanto, à reabertura deste denominado caminho Prado Grande, com o que gastou a quantia de € 234,00, e da qual deve ser reembolsada pelos RR., à luz do disposto no artº 483º do CC.

Todos os referidos caminhos estão no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais, neles podendo transitar livremente todas as pessoas quer a pé, quer com quaisquer tipos de veículos sem autorização de quer quem quer que seja, sendo por isso, considerados caminhos públicos.

Pelo que terminou a autora pedindo que os réus sejam condenados, solidariamente, a tapar as valas que abriram nos citados caminhos; a pagarem à autora a quantia de 234,00€ que esta despendeu com a reabertura do caminho denominado Prado Grande; a reabrirem o troço daquele caminho que eliminaram; a reporem todos os caminhos como se encontravam ou, em alternativa a esta reposição, sejam os réus condenados a pagar à autora a quantia necessária a essa reposição e a quantificar em execução de sentença.

2. Citados os RR., os mesmos apresentaram contestação conjunta, na qual se defenderam (e tendo também já em conta o novo articulado aperfeiçoado que apresentaram - a fls. 71/74 -, na sequência do mesmo despacho judicial atrás referido que, à semelhança da A., também lhe foi dirigido), em síntese, nos termos seguintes:

Por excepção, alegando a ineptidão da petição inicial.

Por impugnação negando a existência e o carácter público dos caminhos a que a autora alude, sendo que, de qualquer forma, mesmo que porventura eles existissem, com a construção da nova estrada, os mesmos passaram a ser meros atalhos ou atravessadouros, e como tal abolidos.

Por reconvenção, alegando que, com a sua conduta, a autora invadiu a propriedade do 2º R, danificando-lhe uma sementeira de sorgo, causando-lhe um prejuízo não inferior a € 5.000,00, e bem assim a propriedade do 1º R., causando-lhe um prejuízo não inferior a € 1.000.00.

Pelo que terminou pedindo:

a) Absolvição da instância, com base na ineptidão da p.i., e, assim não se entendo, sempre a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

b) A procedência da reconvenção, declarando-se que os prédios de que os RR são proprietários não são atravessados por qualquer caminho público; e condenando-se a A. a abster-se de praticar qualquer acto lesivo daquele seu direito de propriedade sobre tais prédios e ainda a pagar ao 1º e 2ºs RR., respectivamente, as quantias indemnizatórias de € 5.000,00 e € 1.000,00.

3. Respondeu a A. pugnando pela improcedência da excepção dilatória aduzida pelos RR. e bem assim defendendo a ineptidão da sua reconvenção e, de qualquer modo, sempre a improcedência da mesma, com a procedência da sua acção.

4. Foi entretanto proferido despacho a julgar improcedentes aquelas excepções dilatórias aduzidas pelos RR. e pela A. e formular a ambas as partes o convite de aperfeiçoamento daqueles seus articulados iniciais (e de que atrás já demos nota).

5. No despacho saneador, afirmou-se a validade e a regularidade da instância, após o que se procedeu à selecção da matéria de facto, sem que tivesse sido alvo de qualquer censura das partes.

6. Mais tarde, teve lugar a realização do julgamento – com a gravação dos depoimentos ali prestados, tendo o tribunal no inicio da 1ª sessão da audiência procedido a uma inspecção judicial ao local -, que terminou com a decisão da matéria de facto, sem qualquer reclamação das partes.

7. Seguiu-se a prolação da sentença, que, no final, julgou improcedentes quer a acção, quer a reconvenção, absolvendo os RR. e a A. dos respectivos pedidos.

8. Inconformada com tal sentença dela apelou a autora, tendo concluído as respectivas alegações de recurso nos termos seguintes:

9. Contra-alegaram os RR., pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.

10. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Devem ter-se como provados os seguintes factos:

B) De Direito

1. Do objecto e mérito do recurso.

É sabido (entendimento que continua a manter-se com a actual reforma, aqui aplicável, introduzida ao CPC pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1) que é pelas conclusões das alegações dos respectivos recursos que se fixa e delimita o seu objecto.

Ora, calcorreando as conclusões das respectivas alegações do presente recurso interposto pela A., verifica-se que a única questão que aqui importa apreciar e decidir traduz em saber se o tribunal a quo errou ou não no julgamento de direito sobre o mérito da acção, o que implica que uma reapreciação do mérito da acção (e já não do mérito da reconvenção deduzida pelos RR., já que estes se conformaram com a sentença, dela não tendo interposto recurso).

Importa, desde já, sublinhar que essa reapreciação sobre o mérito da acção, far-se-á à luz dos factos acima descritos como provados, pois que a A./apelante não impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto.

1.2 Como resulta do que acima se deixou exarado no relatório, a autora alegando que os RR., agindo em conjugação de esforços e sem a sua autorização e vontade, abriram valas nuns caminhos públicos - eliminando mesmo um deles -, que identifica e cuja manutenção é da sua responsabilidade, pretende com a presente acção obter a condenação, solidária, daqueles a tapar essas valas que abriram nos referidos caminhos; a pagarem à autora a quantia de 234,00€ que a mesma despendeu com a reabertura a que já procedeu de um dos caminhos; a reabrirem o troço do caminho daquele caminho que eliminaram; a reporem todos os caminhos como se encontravam ou, em alternativa a esta reposição, que sejam os réus condenados a pagar à autora a quantia necessária a essa reposição e a quantificar em execução de sentença.

Na sentença sob recurso, com fundamentação que a autora não logrou provar, como lhe competia, a característica pública dos aludidos caminhos e nem que despesa invocada tenha sido para aquele alegado efeito (reabertura de um dos caminhos), julgou-se improcedente a acção.

Como se vê da causa de pedir e do pedido final da acção, a pretensão da autora (e o seu êxito) pressupõe, desde logo, o reconhecimento da natureza pública dos aludidos caminhos (reconhecimento esse cujo pedido se deve, aliás, considerar implicitamente formulado).

1.2.1 Como é sabido, na falta de uma definição legal precisa sobre o conceito de “domínio público”, e por ser aquela que, segundo o entendimento ultimamente dominante, melhor se adapta às realidades da vida – visto ser com frequência muito difícil, se não muitas vezes impossível, encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição, administração e conservação -, tem-se recorrido à definição doutrinal que foi fixada pelo assento do STJ de 19/04/1989 – publicado no BMJ nº 386-121 - (hoje, face ao disposto nos artº 17, nº 2, do DL nº 329-A/95 de 12/12 e 732-A do CPC, apenas com o valor de acordão de uniformização de jurisprudência) e segundo a qual “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.

Com o referido assento visou-se pôr fim a uma divergência que na altura, e desde há muito, vinha graçando, sobretudo a nível da nossa jurisprudência, sobre a caracterização ou conceito de caminho público, defrontando-se então duas correntes de opinião:

Uma primeira que defendia só poderem considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se encontrarem no uso directo e imediato do público, fossem administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público e se encontrassem sob a sua jurisdição (vide, entre outros, acordãos do STJ de 21/12/62 e de 10/4/69, respectivamente, in “BMJ nº 122 – 173” e in “BMJ nº 196 – 203”).

E uma outra que - foi aquela que mais próxima esteve do entendimento perfilhado pelo dito assento – segundo a qual se deveriam considerar públicos os caminhos sempre que eles estivessem no uso directo e imediato do público (cfr., entre outros, Acordãos do STJ de 24/3/1977, in “BMJ nº 252 – 156”; de 26/3/85, in “BMJ nº 345 – 366”; de 2/12/92, in “BMJ nº 422 – 355” e de 12/2/98, in “BMJ nº 474 – 481”).
Para a primeira corrente, a mais rigorosa e na altura a com mais adeptos (e que encontrava apoio no conceito de “coisa pública”, constante do artº 380º do Código Civil de 1867), exigia-se a prova de o caminho ter sido produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público.

Já para uma outra solução mais intermédia, defendia-se que provado o uso imemorial pelo público era de presumir ter havido apropriação lícita por parte de entidade de direito público, sendo esta presunção ilidível mediante prova em contrário.

Resulta, pois, do citado assento que são dois os requisitos, cumulativos, caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: a) o uso directo e imediato do mesmo pelo público; b) e a imemorialidade desse uso.

Extrai-se, assim, e desde logo, a conclusão de que para que um caminho possa ser considerado público torna-se necessária a prova do seu uso directo e imediato pelo público desde tempos imemoriais.
Porém, tem vindo a constituir entendimento praticamente pacífico, quer a nível da nossa doutrina, quer a nível da nossa jurisprudência, que o referido assento deve, todavia, ser interpretado, por um lado, restritivamente, e, por outro lado, extensivamente.

Restritivamente no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, a qual, por sua vez, deve consistir no facto de o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância (interpretação restritiva essa que só se impõe em relação ao próprio texto final do assento, já que da análise do corpo do acordão a que ele conduz vê-se claramente que o mesmo aponta no sentido daquela interpretação restritiva que lhe foi feita e que se pretende consagrar).

De forma extensiva, quando nele, no seu corpo, se afirma que deixou de subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade pública e estar afecto à utilidade pública (permitindo, assim, continuar a fazer a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros – pois, se assim não fosse, traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros, ou atalhos, em vias de comunicação afectadas ao interesse de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração terem de ser qualificados como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos artºs 1383º e 1384º do CC, que passariam a constituir letra morta).

Vem hoje também constituindo entendimento pacífico que o conceito de “imemorialidade ou tempos imemoriais” deve ser interpretado no sentido de significar “quando os vivos não sabem quando começou o uso do caminho, ou seja, que o mesmo é tão antigo que o seu início se perdeu da memória dos homens”.

Por outro lado, e como atrás se deixou exarado, ao fazer-se a interpretação extensiva do referido assento (hoje, repte-se, acordão uniformizador) é, possível, sem violação do disposto nos citados artigos 1383º e 1384º, continuar a fazer a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros (se não, e como atrás se viu, corria-se o risco de qualquer “atalho” ou simples “atravessadouro” poder vir a ser considerado de caminho público, bastando para tal perdurar o seu uso pelo público por tempos imemoriais ou longa duração).

Não tem sido fácil, havendo mesmo algumas dissonâncias, caracterizar o conceito de “atravessadouro”.
Depois de os atravessadouros terem sido abolidos, já no século XVIII, pelo Alvará de 9/7/1973, e confirmado pelo Decreto de 17/7/1778, e depois de Pais de Silva ter defendido a consagração de tal medida no Código Civil de 1886, o certo é que tal acabou por não acontecer, tendo o Visconde de Seabra então entendido que “as servidões constituídas por utilidade pública, como as de fontes e pontes, ficariam para os regulamentos e leis especiais”. Contudo, em 1966 veio já a prevalecer solução contrária, na medida em que se considerou que os atravessadouros têm relevantes “reflexos no domínio privado e são já tão antigas as leis que os aboliram”. Além de que “convinha sempre pôr em relevo a distinção entre servidão de direito privado e servidão administrativa”, o que se acabou por fazer na parte final do citado artigo 1383 do CC.

Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (tomo I, página 439) “atravessadouro” significa: “caminho que atravessa terras cultivadas”; caminho alternativo, que encurta distâncias”, “atalho”; “vereda”; “trilha”.

Segundo o conceito tradicional, os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante desses prédios. Os caminhos públicos, por sua vez, destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre as povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público.

Já a nível do direito, tem vindo a obter dominância a corrente que entende que a distinção entre “caminhos públicos” e atravessadouros” deverá ser feita nos seguintes termos: um caminho no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública (ou seja, se visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância); de contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros.

Porém, - e como se faz notar no brilhante acordão do STJ de 19/12/2002, cujo, pensamento vimos seguindo de perto, publicado na CJ, Acs. do STJ, Ano X, T3, pág. 144” -, não será fácil, em muitos casos, aplicar, desde logo, tais critérios aos diferentes casos concretos.

Para isso contribui, por um lado, a natureza difusa de noções tais como: “encurtamento não significativo de distâncias” ou “satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”. Na verdade, não poderá deixar de se reconhecer a fluidez de conceitos caracterizados (ou condicionados) por expressões tais como “não significativo” ou “de certo grau ou relevância”, bem como a inevitável subjectividade a que pode dar lugar a respectiva apreciação em concreto.

Por outro lado, nem a mera afectação do “caminho” à satisfação do interesse público, nem a imemorialidade daquela utilização são, em si mesmas, suficientes para distinguir, com segurança, os “caminhos públicos” dos “atravessadouros”. Ou seja: também estes podem, ser utilizados, desde tempos imemoriais, para a prossecução de um interesse colectivo, qual seja, o encurtamento das distâncias.
Pelo que o problema terá, assim, de ser resolvido perante cada caso concreto, atendendo às concretas características do próprio caminho e à dimensão das necessidades colectivas que a sua utilização proporciona.
Vidé, a propósito da temática que vimos abordando, o já citado Ac. STJ de 19/12/2002, in “CJ, Acs. do STJ, Ano X, T3 – 139”; Ac. do STJ de 15/6/2000, in “CJ, Acs. do STJ, Ano VIII, T2 – 117”; Ac. da RC de 26/7/99, in “CJ, Ano XXIV, T4 – 23”; Ac. do STJ de 10/11/93, in “CJ, Acs. do STJ, Ano I, T3 – 135”; Ac. da RP de 14/3/2000, in “CJ, Ano XXV, T2 – 23”; Ac. do STJ de 12/12/2002, in “Rec. Rev nº 3461/2002”; Ac. do STJ de 2/12/92, in “BMJ nº 422 – 355 e ss”; os profs. Pires de Lima e A. Varela in “Código Civil anotado, Vol. III, 2ª ed., págs. 281/282 e 283/284”.
1.2.2 Postas estas considerações, e clarificado o conceito de caminho público, é altura de, com base nelas, nos debruçarmos sobre o caso sub júdice.
Ora, calcorreando a matéria factual apurada (vg. nº s 1 a 6 e 9), facilmente, a nosso ver, se chega à conclusão que os caminhos (e apenas a existência desses ficou provada – e já não também daquele que a A. alegava que os RR. entretanto eliminaram) em causa e referidos e descritos em 1. a 5. não podem ser considerados de caminhos públicos.
E, desde logo, porque lhes falta o requisito da imemorialidade do seu uso (cujo conceito atrás deixamos definido e caracterizado), sendo que aqueles factos, e particularmente o descrito sob o nº 9, se revelam manifestamente insuficientes para preencher o referido em conceito.
E tanto basta para que, como supra deixámos enfatizado, a acção tenha, desde logo, de soçobrar, pois que autora não logrou provar, como lhe competia (artº 342, nº 1, do CC) a alegada dominialidade pública de tais caminhos.
Refira-se ainda, em reforço de tal conclusão, que à pergunta feita no quesito 1º da base instrutória sobre se os dois referidos caminhos “existem desde tempos tão longínquos que as pessoas nem sabem a sua antiguidade”, o tribunal a quo respondeu: “provado apenas que tais caminhos existem desde data que, em concreto, não foi possível apurar” (resposta essa que deu origem ao facto acima descrito sob o nº 9.).
O que significa, face a tal resposta restritiva, que o tribunal a quo deu como não provada a existência de tais caminhos “desde tempos tão longínquos que as pessoas nem sabem a sua antiguidade.”
Ora perante tal resposta, e como se sugere apelante, não se poderia sequer, a partir dos demais factos (vg. pelas suas características e dimensões dos caminhos), extrair a ilação da imemorialidade do seu uso e concluir tratar-se de caminhos públicos.
É sabido que as ilações se retiram de factos conhecidos para afirmar outros desconhecidos.
Porém, constitui hoje entendimento prevalecente que as ilações a extrair pela Relação dos factos provados só podem conduzir ao complemento e esclarecimento da decisão de facto e nunca à alteração das respostas dadas à base instrutória, e particularmente daquelas que foram negativas. (Neste sentido vide, entre outros, Ac. do STJ de 17/11/2005, in “Rev. 2495/05, 2ª sec.”; Ac. da RC de 14/3/2006, in “Apelação nº 55/06” e o prof. Calvão da Silva, in “RLJ, Ano 135, pág. 125”).
Mesmo que assim, não se entendesse, a acção estaria ainda sempre votada ao insucesso (pela falta do requisito da dominialidade pública dos caminhos, e apenas a este requisito nos continuamos a reportar) pelo seguinte:
Traduzindo-se tal dominialidade na prática reiterada de actos materiais de posse (pelo público, neste caso) e traduzindo-se a posse - segundo o conceito adoptado pelo nosso ordenamento jurídico - na simultânea existência ou composição de um “corpus” (correspondente ao elemento externo, material, que se identifica com o exercício de certos poderes de facto sobre o objecto, de modo contínuo e estável) e de um “animus” (o elemento interno, psicológico, que se traduz na intenção de exercer os poderes de facto em termos do direito, real, indiciados por esses factos), da materialidade factual apurada não se pode concluir pela prova da existência desses dois elementos, sendo que no que concerne ao último nem sequer foi alegado.
Não verdade, da matéria factual apurada não é possível concluir-se que as pessoas passavam, desde tempos imemoriais, pelos ditos caminhos e que o fizessem sempre na convicção de se tratar de caminhos abertos a quem quer que precisasse de por ali passar, ou seja, de que se tratavam de caminhos livremente acessíveis ao público que os quisessem utilizar (o facto nº 10 mostra-se, a esse respeito insuficiente). É que perante as respostas totalmente negativas que mereceram os quesitos 2º a 6º da B.I., que visavam provar nomeadamente o elemento do corpus (conducente à dominialidade pública dos ditos caminhos), não se pode, agora, pelas razões que atrás deixámos expressas, lançar “a mão” de ilações que, contrariando tais respostas, apontassem para conclusão da referida dominialidade pública.
Diga-se ainda que a A. nem sequer logrou provar, como igualmente lhe competia (artº 342, nº 1, do CC) que a reclamada quantia de € 234,00 fosse despendida, como a mesma alegara, com a reabertura e reposição de qualquer um dos aludidos caminhos ou qualquer outro (cfr. resposta restritiva ao quesito 16º da B.I., e da qual resultou o facto nº 11.).
Defende ainda A./apelante, neste seu recurso, que, mesmo não sendo de concluir pela característica pública desses caminhos, “tendo sido dado como provado que os caminhos em causa com a largura que varia entre 4m e 8m dão acesso a diversas propriedades pertencentes a diferentes donos por onde transitam pessoas e que esses caminhos fazem a ligação entre duas estradas municipais e, ainda, que os réus obstruíram esses caminhos com a abertura de valas e deles retiraram uma placa de sinalização STOP,” tais factos são “só por si, são suficientes para que se condene os réus a repôr esses caminhos como se encontravam antes da sua intervenção, sem o que se está a impedir que as demais pessoas, nomeadamente os diferentes donos de várias propriedades que são servidas por aqueles caminhos, possam utilizá-los livremente.”
Como o devido respeito, a A. lavra num equívoco, pois nada se tendo provado sobre a quem está afecta a dominialidade dos ditos caminhos, nunca se poderia, sem mais, condenar os RR. a repor os mesmos no seu estado anterior (à abertura das valas e retirada da placa stop), e depois ainda porque, não se tendo provado a dominialidade pública dos ditos caminhos e nem sequer que a A. tivesse a responsabilidade de proceder à sua manutenção (cfr. resposta negativa ao quesito 6º da B.I.), sempre carecia a mesma de legitimidade (formal e substantiva) para formular tal pedido.
Termos, pois, em que face a tudo o exposto, se terá de julgar improcedente o recurso, conformando-se a sentença da 1ª instância.

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III- Decisão
Assim, por tudo o atrás exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª instância.
Custas do recurso pela autora/apelante.
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Sumário:

I- São dois os requisitos caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: a) o uso directo e imediato do mesmo pelo público; b) e a imemorialidade desse uso.

II- Requisitos esses cumulativos e cuja prova compete a quem alega tal dominialidade ou dela pretende beneficiar.

III- A publicidade de um caminho pressuporá ainda a sua afectação à utilidade pública (visando a satisfação de interesses colectivos).

IV- O conceito de “imemorialidade ou tempos imemoriais” deve ser interpretado no sentido de significar “que o seu uso perdura através dos tempos, de tal modo que os vivos não sabem quando começou o uso do caminho, ou seja, que o mesmo é tão antigo que o seu início se perdeu da memória dos homens.”

Coimbra, 2011/09/13

Isaías Pádua (Relator)
Teles Pereira
Manuel Capelo