Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/11.5YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: RECUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE SEVER DO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECUSA DE JUIZ
Decisão: DEFERIDO
Legislação Nacional: ART.º 43º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Se o Juiz em causa já interiorizou, legítima e forçosamente, uma perspectiva da conduta do ora requerente, o que se constata pela motivação elaborada na sentença, tal pode ser entendido, em tese, como motivo grave e sério adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, pela comunidade, na medida em que, manifestamente, em anterior processo, formou convencimento sobre a conduta do arguido, a ser apreciada no novo processo (então, enquanto testemunha, agora, na qualidade de arguido, a quem se imputa a falsidade daquele testemunho).
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
No Tribunal da Comarca do Baixo Vouga, Juízos de Sever do Vouga, Juízo de Instância Criminal, no âmbito do Processo Comum n.º 27/10.4T3SVV, o arguido MA..., melhor identificado nos autos, em 12/1/2011, veio, com base nos artigos 43.º, n.ºs 1 a 3, 45.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, deduzir incidente de recusa da Meritíssima Juiz titular do processo, Sra. Dra. MM..., alegando, a fls. 2/8, os seguintes fundamentos: 1) Foram distribuídos ao Juízo de Instância Criminal de Sever do Vouga, Comarca do Baixo Vouga, os autos de Processo Comum n.º 27/10.4T3SVV.
2) Como consta da Acusação deduzida pela Digna Representante da Pretensão Punitiva do Estado, figura no referido Processo como arguido MA..., sendo-lhe aí imputada a prática, em autoria material, e na forma consumada, de factos integrantes de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do C. Penal.
3) A matéria de facto descrita na acusação apresenta como alicerce uma alegada prestação de um depoimento falso ou contrário à “realidade factual” – na asserção da acusação – por parte do referido arguido MA…, então na qualidade de testemunha de defesa, no decurso da audiência de julgamento realizada no âmbito do Processo Comum Singular n.º 47/08.9TASVV, do Juízo de Instância criminal de Sever do Vouga, Comarca do Baixo Vouga, em que era arguido AT....
4) O julgamento do sobredito Processo n.º 47/08.9TASVV foi presidido pela MM.ª Juiz titular, igualmente, do Processo Comum n.º 27/10.4T3SVV, tendo sido a MM.ª Juiz que elaborou a pertinente sentença e que ordenou, deferindo o requerido pela Digna Magistrada do Ministério Público, a extracção da certidão com vista à instauração de procedimento criminal contra a mencionada testemunha.
5) A MM.ª Juiz titular dos dois processos tomou, pois, posição sobre a prova já produzida no dito julgamento, constando da respectiva sentença: “(…) De salientar que não valoramos o depoimento da testemunha MA... por se mostrar atentatório e incompatível com as regras da experiência comum e bem assim manifestamente contraditório com os depoimentos das testemunhas acima mencionadas (…)”, ou seja, os agentes da GNR.
6) O juízo de valor referido em 5) poderia interferir nos que agora a MM.ª juiz viesse a formular caso o presente requerimento de recusa fosse indeferido.
7) Face ao conteúdo da motivação supra transcrita, pode-se afirmar que a MM.ª Juiz revela um posicionamento no qual, de forma insofismável, formou convencimento através de pré-juízo acerca do thema decidendum no processo que lhe foi distribuído.
8) Tal situação, que se aproxima do impedimento, pode perante terceiros, designadamente o arguido, levantar dúvidas acerca das garantias de imparcialidade e isenção que um juiz deve oferecer, havendo, por conseguinte, motivo de recusa, por se verificarem os requisitos legitimadores do pedido formulado - cfr. artigo 43.º, n.º 1 e n.º 3, do CPP.
Foi cumprido o disposto no artigo 45.º, n.º 3, do CPP.
A Senhora Juiz em causa, em 19/1/2011, veio responder, a fls. 36, dizendo, em síntese:
1) Foram distribuídos a este Juízo os autos de Processo comum n.º 27/10.4T3SVV em que figura como arguido MA..., publicamente acusado da prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do C. Penal, por factos indiciariamente praticados no âmbito da audiência de julgamento dos autos n.º 47/08.9TBSVV.
2) Ora, na qualidade de juíza neste juízo de Instância criminal de Sever do Vouga, presidi à audiência de julgamento dos autos n.º 47/08.9TBSVV e proferi a sentença nos mesmos autos, tal como consta da certidão junta pelo requerente.
3) Na verdade, e no exercício das minhas funções procedi à apreciação dos depoimentos das testemunhas arroladas nos autos acima mencionados, nomeadamente da testemunha MA..., nos termos que constam da motivação da decisão da matéria de facto da sentença.
4) Apenas conheço o requerente do exercício das minhas funções e julguei o depoimento prestado pelo mesmo nos termos previstos no artigo 127.º, n.º 1, do CPP.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência, para julgamento da requerida recusa.
****
Cumpre decidir:
II. Fundamentação:
A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (artigo 43, n.º 1 do C.P.P.).
O incidente da recusa apresenta-se, assim, como um expediente que visa impedir a intervenção de um juiz em determinado processo quando existam razões sérias e graves susceptíveis de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, sendo que esta é uma exigência específica de uma decisão justa, despida de quaisquer preconceitos ou pré-juízos em relação à matéria a decidir ou em relação às pessoas afectadas pela decisão. Relembre-se que, já na Antiguidade, uma das quatro características de um juiz consistia em decidir com imparcialidade, paralelamente a ouvir com atenção, responder com sabedoria e pensar com prudência. A lei não define o que deve entender-se por motivo sério e grave, mas deixa claro que ele terá de ser adequado a “gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, isto é, a seriedade e gravidade das razões invocadas para fundamentar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz terão que ser apreciadas e valoradas à luz do senso e da experiência comuns, a fim de apurar se há justificações objectivas para o incidente de recusa (ver, neste sentido, Ac. da Relação de Coimbra, de 10/7/1996, C.J. IV, páginas 62 e 63, Ac. do S.T.J, de 6/11/1996, C.J. III, página 187, Ac. do S.T.J., de 16/5/2002, rec. IP4914, www.dgsi.pt). Como sublinhou o Tribunal Constitucional, “ A imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.” – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 935/96, citado no Acórdão n.º 186/98 (TC), DR n.º 67/98, Série I-A, de 20 de Março de 1998. No caso em apreço, os presentes autos visam apreciar uma situação que, em boa verdade, já foi apreciada, em larga medida, num outro momento pela julgadora cuja recusa é requerida, tendo a Meritíssima Juiz já valorizado prova comum aos dois processos, tendo sido, necessariamente, formada a sua convicção. Tal é pacífico nestes autos. Na realidade, ter de ouvir o recusante como arguido, depois de o ter ouvido como testemunha e ter chegado à conclusão de que não valoramos o depoimento da testemunha MA... por se mostrar atentatório e incompatível com as regras da experiência comum e bem assim manifestamente contraditório com os depoimentos das testemunhas acima mencionadas”, não seria conveniente para a imagem que a Justiça tem de projectar para a comunidade, em termos de imparcialidade. A Justiça é um dos pilares de um Estado de Direito. A imparcialidade dos juízes não pode ser colocada em causa, sob pena de nada ter sentido. No caso concreto, a Meritíssima Juiz ora em causa já interiorizou, legítima e forçosamente, uma perspectiva da conduta do ora recorrente (veja-se a motivação elaborada na sentença), o que pode ser entendido, em tese, como motivo grave e sério adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade pela comunidade, na medida em que, manifestamente, em anterior processo, formou convencimento sobre a conduta do arguido, a ser apreciada no novo processo (então, enquanto testemunha, agora, na qualidade de arguido). Não há, assim, necessidade de colocar a julgadora numa situação de desconforto perante terceiros. Diga-se que, caso permanecesse nos autos, tudo faria para julgar com imparcialidade. Dúvidas não fiquem no ar quanto a tal assunto, tanto mais que um juiz não julga por capricho nem imbuído de livre arbítrio, antes de acordo com a lei, devendo sempre fundamentar as suas decisões em termos objectivos. Porém, esse esforço, em caso de eventual condenação do recusante, seria inglório, pois sempre poderia ser alvo de suspeições graves, face a tudo o que vimos de referir. Por conseguinte, perante os elementos dos autos, entendemos ser de afastar do processo a Meritíssima Juiz em causa, em virtude de melhor se defender a sua dignidade e o seu brio profissional, a imagem da Justiça aos olhos do cidadão e os direitos de defesa do arguido.
****
III. Decisão:
Nestes termos acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da relação de Coimbra em deferir o pedido de recusa da Meritíssima Juiz, Sra. Dra. MM..., deduzido pelo arguido MA..., no processo n.º 27/10.4T3SVV, a correr termos no Juízo de Instância Criminal de Sever do Vouga, Comarca do Baixo Vouga.
Sem tributação.
****


José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo