Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
654/08.0TBMGR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PENHOR
CRÉDITO LABORAL
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 377º DO CÓDIGO DO TRABALHO; 666º, Nº 1, 733º, 747º E 749º, Nº 1, DO C.CIV..
Sumário: Concorrendo créditos garantidos por penhor com créditos de trabalhadores beneficiados com privilégio creditório mobiliário geral, aqueles têm, na pertinente graduação, preferência no pagamento pelo valor dos bens empenhados.
Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         Nos autos de reclamação de créditos apensos ao processo de insolvência nº 654/08.0TBMGR, em que é requerida “S…, Lda”, e na qual foram apreendidos apenas bens móveis, foram reclamados e incluídos pelo Administrador da insolvência na relação/lista a que alude o artº 129º, nº 1 do CIRE, entre outros, os seguintes créditos: € 77.504,34, de trabalhadores, a que foi atribuída a natureza de créditos privilegiados, por gozarem de privilégio creditório mobiliário geral nos termos do artº 377º do Código do Trabalho; € 21.461,12 do Instituto de Segurança Social, I.P., a que foi atribuída a natureza de créditos privilegiados, por gozarem de privilégio creditório mobiliário geral, nos termos dos artºs 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 09/05 e 97º, nº 1, al. a) do CIRE; e € 36.972,28, do Instituto de Segurança Social, I.P., a que foi atribuída a natureza de créditos comuns, nos termos 47º, nº 4, al. c) do CIRE.

Sobre alguns dos bens apreendidos (equipamentos) recai, de acordo com a lista dos credores por si reconhecidos apresentada pelo Administrador da insolvência, penhor mercantil a favor do Instituto de Segurança Social, I. P., garantindo créditos no valor de € 24.410,95.

Tendo os autos seguido a sua normal tramitação, foi, em 31/08/2010, proferida sentença que julgou reconhecidos e verificados os créditos constantes da relação/lista apresentada pelo Administrador da insolvência, e procedeu à graduação dos mesmos nos termos seguintes:

“A) Graduação Geral:

1. Em primeiro lugar, serão pagos os créditos dos trabalhadores (enquanto dotados de privilégio mobiliário geral);

2. Em segundo lugar, será pago o crédito do Instituto de Segurança Social, I.P.;

3. Em terceiro lugar, pelo remanescente, se o houver, serão pagos os restantes créditos (comuns), com rateio entre eles;

4. Em quarto lugar, serão pagos os créditos subordinados.”

Inconformado, o Instituto de Segurança Social, I. P. recorreu, encerrando a alegação que apresentou com as conclusões seguintes:

Não foi apresentada resposta.

Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


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         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se, em graduação de créditos operada nos autos de reclamação apensos a processo de insolvência, um crédito garantido por penhor deve ou não ser graduado, para ser pago pelo valor dos bens empenhados, antes de créditos dos trabalhadores, privilegiados por gozarem de privilégio creditório mobiliário geral, nos termos do artº 377º do Código do Trabalho.

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         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         A factualidade e ocorrências processuais relevantes para a decisão do recurso são as constantes do relatório antecedente que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.


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         2.2. De direito

         Não é posto em causa no recurso que os créditos reclamados pelos trabalhadores, incluídos pelo Administrador da insolvência na lista dos credores por si reconhecidos com a indicação de que gozam de privilégio creditório mobiliário geral, nos termos do artº 377º do Código de Trabalho[1], beneficiem efectivamente de tal privilégio.

         Da mesma forma que não há motivo para duvidar que, como é referido pelo Administrador da insolvência na mencionada lista, parte do crédito do Instituto da Segurança Social, I. P. ali indicado como comum, no montante de € 24.410,95, “é garantido por Contrato de Penhor Mercantil e Depósito (sobre Equipamentos)”.

         A discordância do recorrente centra-se na graduação de créditos feita na sentença recorrida, sustentando que, relativamente aos bens empenhados, deveria ter sido feita uma graduação especial, colocando em primeiro lugar os créditos garantidos pelo penhor e só depois os créditos dos trabalhadores beneficiados com o privilégio creditório mobiliário geral.

         Vejamos se tem ou não razão:

         Estabelecia o artº 377º do Código do Trabalho:

         “1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

         a) Privilégio mobiliário geral;

         b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

         2 – A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

         a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil;

         b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.”

         O privilégio creditório é, como refere o artº 733º do Cód. Civil, a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros. O privilégio creditório mobiliário geral, que é o que interessa para o caso que nos ocupa, incide sobre o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente (artº 735º do Cód. Civil).

         Não incidindo sobre bens certos e determinados, o privilégio mobiliário geral não se consubstancia em garantia real de cumprimento de obrigações, funcionando como mera causa de preferência legal de pagamento[2]e[3].

Preceitua, por sua vez, o artº 666º, nº 1 do Cód. Civil:

         “1. O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”.

         O penhor recai sobre bens móveis concretos, implicando mesmo a sua entrega ao credor ou a terceiro (artº 669º do Cód. Civil), não havendo dúvida de que constitui verdadeira e própria garantia real, oponível aos demais credores.

        

Concorrendo com outros créditos que também gozem de privilégio mobiliário geral, os créditos dos trabalhadores que beneficiem desse privilégio têm preferência, graduam-se à frente, pois tal resulta do artº 377º, nº 2, al. a) do Cód. do Trabalho e do artº 747º do Cód. Civil.

         Mas no caso de concorrerem com créditos beneficiados por garantia real, como, no caso, o penhor, já não está em causa a ordem estabelecida no artº 747º do Cód. Civil, antes se impondo a norma do artº 749º, nº 1 do mesmo diploma legal, segundo a qual o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.

         Neste caso – concurso entre créditos de trabalhadores com privilégio creditório mobiliário geral e créditos garantidos por penhor – a preferência no pagamento pelo valor dos bens empenhados é dos segundos[4]e[5].

         Assim sendo, como nos parece, havia que ter sido feita uma graduação especial para os bens empenhados, em que fosse levado em conta o penhor de que beneficia parte do crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. e uma graduação geral para os restantes bens (artº 140º do CIRE).

        

Logram êxito, pois, as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz à procedência da apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida e graduação dos créditos nos termos seguintes:

         A) Graduação especial:

Pelo valor dos bens sobre que incide o penhor serão pagos os créditos reclamados, reconhecidos e verificados pela ordem seguinte:

         1) A parte do crédito do Instituto da Segurança Social, I. P., no montante de € 24.410,95, garantida pelo penhor;

         2) Os créditos dos trabalhadores dotados de privilégio mobiliário geral;

         3) O crédito do Instituto da Segurança Social, I. P. beneficiário de privilégio mobiliário geral;

         4) Os créditos comuns;

         5) Os créditos subordinados.

         B) Graduação geral:

Pelo valor dos restantes bens apreendidos serão pagos os créditos reclamados, reconhecidos e verificados pela ordem seguinte:

         1) Os créditos dos trabalhadores dotados de privilégio mobiliário geral;

         2) O crédito do Instituto da Segurança Social, I. P. beneficiário de privilégio mobiliário geral;

         3) Os créditos comuns;

         4) Os créditos subordinados.

         Cumprindo o disposto no artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário:

         Concorrendo créditos garantidos por penhor com créditos de trabalhadores beneficiados com privilégio creditório mobiliário geral, aqueles têm, na pertinente graduação, preferência no pagamento pelo valor dos bens empenhados.


***

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, consequentemente, em revogar parcialmente a sentença recorrida substituindo a graduação de créditos nela feita pela seguinte:

         A) Graduação especial:

Pelo valor dos bens sobre que incide o penhor serão pagos os créditos reclamados, reconhecidos e verificados pela ordem seguinte:

         1) A parte do crédito do Instituto da Segurança Social, I. P., no montante de € 24.410,95, garantida pelo penhor;

         2) Os créditos dos trabalhadores dotados de privilégio mobiliário geral;

         3) O crédito do Instituto da Segurança Social, I. P. beneficiário de privilégio mobiliário geral;

         4) Os créditos comuns;

         5) Os créditos subordinados.

         B) Graduação geral:

Pelo valor dos restantes bens apreendidos serão pagos os créditos reclamados, reconhecidos e verificados pela ordem seguinte:

         1) Os créditos dos trabalhadores dotados de privilégio mobiliário geral;

         2) O crédito do Instituto da Segurança Social, I. P. beneficiário de privilégio mobiliário geral;

         3) Os créditos comuns;

         4) Os créditos subordinados.

         As custas são a cargo da massa insolvente.


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Artur Dias (Relator)
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo


[1] Trata-se do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 9/2006, de 20/03, 59/2007, de 04/09 e 12-A/2008, de 27/02, já que, tendo a insolvência da “ S..., Lda” sido declarada em 19/05/2008 (cfr. sentença de graduação de fls. 100 e seguintes), ainda não tinha entrado em vigor o Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/02. É essa versão que teremos em mente sempre que referirmos o Código do Trabalho.
[2] Ac. do STJ de 11/10/2007 (Proc. 07B3427) e de 25/03/2009 (Proc. 08B2642), ambos relatados pelo Cons. Salvador da Costa, consultáveis em www.dgsi.pt/jstj.
[3] No Ac. do STJ de 15/03/2005 (Proc. 04A4136, relatado pelo Cons. Faria Antunes), in www.dgsi.pt/jstj, diz-se mesmo que, porque não sujeito a registo, o privilégio creditório é “uma perigosa garantia oculta”.
[4] Ac. do STJ de 05/05/2005 (Proc. 05B835, relatado pelo Cons. Neves Ribeiro), de 30/05/2006 (Proc. 06A1449, relatado pelo Cons. Urbano Dias) e de 10/12/2009 (Proc. 864/07.7TBMGR-I.C1.S1, relatado pelo Cons. Paulo Sá), todos consultáveis em www.dgsi.pt/jstj. No último dos arestos referidos é indicada abundante jurisprudência e doutrina sobre a questão em discussão.
[5] Cfr. também o nº 1 do artº 175º do CIRE, segundo o qual “o pagamento dos créditos privilegiados é feito à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes, com respeito pela prioridade que lhes caiba, e na proporção dos seus montantes, quanto aos que sejam igualmente privilegiados”.