Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
127-C/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: EXTENSÃO DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 673.º E 677.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. O caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença ou no acórdão, e não sobre a respectiva motivação, sobre as razões que determinaram o juiz, as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar aquela conclusão final.

2. Embora a fundamentação não adquira força de caso julgado, é legítimo recorrer a ela para fixar o sentido e o alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

O Conselho Directivo dos Baldios do A...e B...propôs, em representação da Assembleia de Compartes dos Baldios das povoações do A...E B...., concelho de ..., acção declarativa com processo ordinário contra a Junta de Freguesia do A...., ..., e contra C.... e mulher D...., melhor identificados no processo.

Pediu, em síntese, se declarasse que os prédios descritos nos artigos 3º, 14º e 15º da petição pertenciam ao Baldio dos compartes das povoações do A...e de B..., se declarasse que as escrituras de justificação referidas nos autos eram nulas e se cancelasse qualquer registo a favor da ré sobre os prédios atrás citados. 

E..., melhor identificada nos autos, sob a alegação de que era comparte dos Baldios do A... e B...e que tinha interesse na decisão da causa, requereu a sua intervenção nos autos como autora a fim de fazer valer direito próprio paralelo ao do Conselho Directivo dos Baldios do A... e B....

A Junta de Freguesia opôs-se à intervenção. Para tanto alegou que a intervenção estava prejudicada dado que, aquando do pedido de intervenção, o autor havia desistido do pedido; além disso, a requerente não era comparte dos Baldios do A... e B...[1].

Por despacho proferido em 26 de Junho de 2003, foi decidido não admitir a intervenção da requerente. Em abono da decisão considerou-se que, tendo a requerente deduzido a sua intervenção após a desistência do pedido por parte do autor e impondo a lei, ao requerente, a aceitação da causa no estado em que se encontrar (artigo 322º, n.º 2, do CPC), a requerente teria de aceitar a desistência do pedido por parte do autor, fazendo também sua essa posição.

A requerente interpôs recurso da decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido em 30-11-2004, revogou a decisão e ordenou o prosseguimento do incidente.   

Em 10 de Novembro de 2008, foi proferida decisão sobre a admissibilidade do incidente, rejeitando a intervenção principal da requerente.    

E... interpôs o presente recurso de agravo contra este despacho, pedindo a revogação dele e o prosseguimento do incidente de intervenção.

Fundamentou o recurso nas seguintes razões:

1. O despacho recorrido colide com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação já transitada em julgado.

2. A recorrente deduziu intervenção principal espontânea antes do despacho saneador e da entrada dos requerimentos de todos os demais intervenientes para a desistência da instância.

3. Fê-lo atempadamente e remeteu-se para o articulado do Conselho Directivo que intentou a acção e que pretendia que a acção corresse os seus trâmites.

4. A lei, como a lógica, exigem que o incidente seja decidido antes da decisão final.

5. A sentença que homologou a desistência da instância ainda não transitou em julgado, pois um dos réus não a aceitou expressamente nem para tal foi notificado.

6.  Sendo admitida a intervenção, a interessada será citada para os termos do processo, recebendo cópia dos requerimentos já oferecidos e dos despachos proferidos para serem contestados, recorridos ou transitados em julgado.

7. A desistência em questão é legitimada por acta que importa a afirmação da vontade da parte relativamente a direitos indisponíveis sobre baldios.

8. A recorrente ainda não percebeu o que temem os demais intervenientes processuais para tentarem por tudo obstar a que chegue a julgamento o presente processo.

9. Foram violados os artigos 298º, 299º, 301º [por lapso a recorrente refere-se aos artigos 299º e 301º, do Código Civil], 321º, 322º, 323º e 324º e seguintes do Código de Processo Civil.

A Assembleia de Compartes do Baldio do A... e B...respondeu, alegando, em primeiro lugar, que a recorrente não era comparte do Baldio. Em segundo lugar alegou que o recurso não devia ter sido admitido. Para tanto considerou que o recurso foi interposto para além do prazo previsto na lei, que a recorrente não solicitou a emissão de guias para pagamento de multa pela prática do acto fora do prazo legal e que o requerimento de interposição do recurso foi enviado apenas por fax. Contra a admissibilidade do incidente de intervenção alegou que, aquando da dedução do incidente, a requerente não pagou a taxa de justiça a que estava obrigada.

A Junta de Freguesia do A... também respondeu ao recurso. Em primeiro lugar, alegou que o recurso não devia ter sido admitido. Para tanto considerou que o requerimento de interposição de recurso foi apresentado fora do prazo legal, que a requerente não solicitou a emissão de guias para pagamento de multa pela prática do acto fora do prazo legal e que não foi junto pela sua subscritora o original do requerimento de interposição de recurso como o impunha o Decreto-Lei n.º 28/92, de 27 de Fevereiro. Caso assim se não entendesse, era de manter a decisão recorrida. Em qualquer caso, a recorrente devia ser condenada como litigante de má fé.


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      Considerando que as questões relativas à interposição do recurso fora do prazo legal e ao envio do requerimento de interposição de recurso através de telecópia foram resolvidas no despacho preliminar, as questões que subsistem são as seguintes:

A primeira é a de saber se a decisão recorrida viola o caso julgado formado pelo acórdão proferido pela Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 30 de Novembro de 2004.

A segunda é a de saber se a decisão recorrida violou os artigos 298º, 299º, 301º, 321º, 322º, 323º e 324º, todos do Código de Processo Civil. 


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são os constantes do relatório.

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      Vejamos, em primeiro lugar, se a decisão recorrida violou o caso julgado formado pelo acórdão proferido pela Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 30 de Novembro de 2004.

      As decisões judiciais (salvo tratando-se dos despachos de mero expediente ou dos proferidos no uso legal de um poder discricionário) logo que não sejam susceptíveis de recurso ordinário ou de reclamação, nos termos dos artigos 668º e 669º, ambos do Código de Processo Civil, adquirem força ou autoridade de caso julgado (artigo 677º, do Código de Processo Civil).

      Considerando que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas (artigo 158º, n.º 1, do CPC), coloca-se a questão de saber se a autoridade do caso julgado cobre apenas a decisão propriamente dita (parte dispositiva) ou se se estende também aos fundamentos.

O artigo 673º, do CPC, subordinado à epígrafe, alcance do caso julgado, dispõe que a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.

Com base neste preceito tem-se entendido, como o fez o acórdão do STJ proferido em 12 de Janeiro de 2010, no processo n.º 3272/04.8TBAVR, publicado no sítio http://www.dgsi.pt/jstj, que “o caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença ou no acórdão, e não sobre a respectiva motivação, sobre as razões que determinaram o juiz, as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar aquela conclusão final” (neste mesmo sentido se pronuncia Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, e Sampaio e Nora, em Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, páginas 699).

Importa, no entanto, dizer que, embora a fundamentação não adquira força de caso julgado, é legítimo, no entanto, recorrer a ela para, nas palavras dos autores acima citados, páginas 697, “fixar o sentido e o alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado” (neste mesmo sentido se pronuncia o acórdão supra citado).

Aplicando as soluções expostas ao caso, elas significam que o segmento do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 30 de Novembro de 2004 que tem força de caso julgado é o que, sob a epígrafe ”decisão”, revogou o despacho recorrido e ordenou a substituição dele por outro que fizesse prosseguir o incidente de intervenção.

Considerando que se tratou de uma decisão que recaiu sobre a relação processual, ela passou a ter força obrigatória dentro do processo (artigo 672º, do CPC).

Esta força obrigatória implicava para o tribunal a quo o dever de proferir nova decisão e o dever de não contrariar, com ela, a que havia sido proferida pelo tribunal da Relação (cfr. n.º 2 do artigo 497º, do CPC).

Não foi, no entanto, o que sucedeu. Vejamos.

O dispositivo do acórdão do tribunal da Relação de Coimbra é susceptível de ser interpretado em dois sentidos.

Em primeiro lugar, é susceptível de ser interpretado no sentido de impor ao tribunal a quo nova decisão sobre a admissibilidade da intervenção.

Em segundo lugar, é susceptível de ser interpretado no sentido de impor ao tribunal a quo a prolação de decisão que admita a intervenção principal espontânea da requerente.

Tendo em conta a questão que foi submetida ao tribunal da Relação e a fundamentação do acórdão, é este último sentido o que melhor se ajusta aos termos da decisão. Vejamos.

A decisão sobre a qual se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30 de Novembro de 2004, não admitiu a intervenção da requerente nos autos porque entendeu que, tendo o requerimento sido apresentado após a declaração de desistência do pedido por parte do autor, a requerente teria de aceitar a desistência do pedido por parte do autor, fazendo também sua. Esta aceitação resultava do disposto no n.º 2 do artigo 322º, do CPC, nos termos do qual o interveniente aceita a causa no estado em que se encontrar.

A citada decisão reconheceu – como se escreveu na fundamentação do acórdão - que:

a) A requerente estava assistida de igual direito ao do autor (pedir a nulidade das escrituras de justificação e a restituição dos terrenos objecto delas ao Baldio), legitimidade que lhe era conferida pelo artigo 4º da Lei n.º 68/93, de 4 de Setembro, caso viesse a provar a qualidade de comparte dos Baldios de A... e B...que invocou;

b) A sua intervenção abrigava-se no artigo 320º, alínea a), do CPC;

c) A causa ainda não estava definitivamente julgada no momento do requerimento do incidente da intervenção.       

A única questão que importava decidir era a de saber se a aceitação da causa pela interveniente no estado em que ela se encontrava implicava, no caso, a aceitação da desistência pela interveniente. 

O acórdão do Tribunal da Relação, apoiado nos artigos 322º, n.º 2 e 298º, ambos do CPC, solucionou esta questão, dizendo que a desistência do primitivo autor, independentemente de ser anterior ou posterior ao pedido de intervenção, não produzia efeitos em relação ao interveniente e não impedia a continuação da lide com este.

Ora, à luz desta motivação, o sentido que melhor se ajusta à parte dispositiva do acórdão que revogou a decisão recorrida e a mandou substituir por outra que fizesse prosseguir o incidente é o de impor ao tribunal a quo a substituição do seu despacho por outro que admita a intervenção.  

De resto, tendo a recorrente pugnado nas suas alegações pela admissibilidade da intervenção e tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra concluído que procediam, no essencial, as conclusões da agravante, não se vê como dar à parte dispositiva do acórdão um sentido diferente daquele que se vem defendendo. 

Assim, por força do disposto no artigo 672º, do CPC, estava vedado ao tribunal a quo decidir em sentido contrário ao do acórdão. Ao fazê-lo violou o disposto no artigo 672º, do CPC.

Chegados aqui estava naturalmente indicado passar à apreciação dos restantes fundamentos do recurso. Considerando, no entanto, a procedência do primeiro fundamento do recurso, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões (artigo 660º, n.º 2, do CPC, aplicável ao acórdão proferido em sede de recurso por força do disposto no artigo 713º, n.º 2, do CPC).

Resta dizer que não cabe a este tribunal de recurso conhecer da falta de pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso, alegada pela Assembleia de Compartes na resposta ao recurso.

Com efeito, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais (artigo 676º, n.º 1, do CPC), destinando-se a reapreciar a decisão recorrida e não a conhecer de questões novas. Ora, não tendo a falta de pagamento de taxa de justiça sido alegada pela recorrida na oposição que deduziu à intervenção nem tendo sido objecto de conhecimento pela decisão recorrida, é inequívoco que constitui, para efeitos de recurso, uma questão nova.   


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      Quanto ao pedido de litigância de má fé da recorrente, o mesmo está votado ao fracasso, pois a sua actuação em sede de recurso não se ajusta a nenhum dos comportamentos que, nos termos do artigo 456º, n.º 2, alíneas a) a d), do CPC, caracterizam a litigância de má fé.   

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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, admitindo-se a requerente a intervir nos autos como associada da autora.


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Sem custas por as recorridas delas estarem isentas (artigo 32º, n.º 2, da Lei n.º 68/93, e artigo 2º, n.º 1, alínea e), do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção em vigor na altura em que a acção foi instaurada).


[1] A descrição dos termos da oposição da Junta de Freguesia foi feita com base no relatório da decisão proferida em 26/06/2003, dado que a oposição da Junta de Freguesia ao pedido de intervenção não está nos autos de recurso.