Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
127/21.5GCVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: REMESSA DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO PARA OS MEIOS CIVIS
RECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Legislação Nacional: ARTS. 82º, N.º 3, E 400º, N.º 1, AL. B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: É irrecorrível o despacho proferido ao abrigo do art. 82º, n.º 3, do Código de Processo Penal, desde que fundamentado.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

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Decisão sumária

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           I.  O assistente AA veio interpor recurso do despacho proferido no processo comum singular nº 127/21...., do Juízo de Competência Genérica ..., Tribunal Judicial da Comarca ...,  que remeteu o conhecimento do pedido de indemnização por si formulado nos autos contra “Z..., PLC” para os tribunais civis, ao abrigo do disposto no art. 82º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

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            II. Após exame preliminar o relator profere decisão sumária sempre que o recurso deva ser rejeitado, nomeadamente por se verificar causa que devia ter determinado a sua não admissão, nos termos do art. 414º, n.º 2 (artigos 417º, nº6, alínea b), e 420º, nº1, alínea b), do Código de Processo Penal).


                III. O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.

            Ora, dispõe o art. 400º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal: “Não é admissível recurso de decisões que ordenam atos dependentes da livre resolução do tribunal”. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que cai nesta previsão o despacho proferido ao abrigo do art. 82º, n.º 3, da mesma norma.

            Na verdade, a possibilidade de remessa para os meios cíveis do pedido de indemnização formulado no processo de natureza crime ao abrigo do princípio da adesão (art. 71º do Código de Processo Penal) encontra-se prevista da seguinte forma: “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização cível inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal"”.

            O princípio da adesão visa obstar a que sejam proferidas decisões contraditórias quando estão em causa os mesmos factos, bem como respeitar a economia de meios ao fazer intervir apenas um tribunal numa mesma ação em lugar de duas ações distintas em duas jurisdições, a que acresce o respetivo aumento de custos. O julgamento conjunto é imposto pelo princípio da celeridade processual e pelo princípio da concentração da atividade probatória, para além da necessidade de coerência do sistema, evitando dessa forma decisões contraditórias ou concorrentes e a exigência de unidade do juízo valorativo ([1]).

As exceções ao princípio da adesão encontram-se enunciadas no art. 72º do Código de Processo Penal, de forma taxativa, constituindo uma livre opção do lesado aderir ou não ao processo crime para efeitos de dedução do pedido cível, como claramente resulta da expressão “pode ser” constante do corpo da norma.

Outra exceção ao princípio da adesão é precisamente o caso previsto no art. 82º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que prevê casos de reenvio para o tribunal cível do pedido de indemnização cível formulado no processo penal, em restrição ao princípio da suficiência enunciado no art. 7º do mesmo Código.

O fundamento desta norma visa dar cumprimento ao direito de obtenção de uma decisão um prazo razoável e mediante um processo equitativo, a que se referem os arts. 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, evitando deste modo uma maior demora na decisão de caráter penal.

Assim, a lei conferiu ao julgador o poder de remeter as partes para os tribunais cíveis caso ocorram circunstâncias que, segundo o seu pudente arbítrio, inviabilizem uma decisão rigorosa (que pode assentar, por exemplo, na complexidade das questões jurídicas a conhecer no estrito âmbito do pedido deduzido) ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal (razão na qual se baseia a decisão proferida nos autos, objeto do recurso interposto).

O modo como a norma se encontra redigida deixa uma larga margem de interpretação e aplicação ao julgador, que terá de usar critérios de prudência e conveniência caso a caso, segundo as concretas circunstâncias do processo. Desta forma, o juiz lançará mão do reenvio  para os tribunais cíveis quando a manutenção da adesão se apresentar como desvantajosa para o próprio pedido cível, por uma ou ambas as razões referidas, evitando dessa forma os prejuízos que podem ocorrer com a manutenção da adesão, mormente quando está em causa a boa decisão da causa cível e o julgamento da causa penal num prazo razoável.

A irrecorribilidade da decisão proferida ao abrigo do art. 82º, n.º 3, do Código de Processo Penal encontra conforto na doutrina:

- “A decisão que remeta as partes para os tribunais cíveis depende da apreciação do tribunal, segundo critérios exclusivamente prudenciais perante as circunstâncias específicas do caso; constitui uma decisão que depende da livre resolução do tribunal (livre, embora motivada), não sendo suscetível de recurso, nos termos do art. 400º/1/b. A manutenção do princípio da adesão obrigatória da ação civil ao processo penal mas alargando as hipóteses em que a ação civil pode ser proposta em separado, nomeadamente nos casos em que – dada a dificuldade, a complexidade ou a natureza das questões postas – o juiz penal entenda não estar em condições de decidir sobre o pedido civil, ou em que tal possa causar uma sensível demora à decisão da causa penal – esta faculdade/poder/dever do juiz penal é usada frequentemente na prática judiciária. Na verdade, trata-se de uma decisão cautelar, destinada a evitar que através do sistema de adesão, que em princípio se consagra, se possa entravar a rápida administração da justiça penal” ([2]);

- “Em circunstâncias que o prudente arbítrio considerará, o tribunal pode decidir não conhecer do pedido de indemnização civil, remetendo as partes para os tribunais civis; constitui um limite subsequente à adesão determinado por decisão do tribunal, num lugar paralelo com o reenvio da questão prejudicial em restrição ao principio da suficiência do art. 7º C.P.P.

Os fundamentos da decisão hão-de reverter para a complexidade do caso, seja material «quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa», ou processual, com a «suscetibilidade de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal».

A decisão que remeta as partes para os tribunais cíveis depende da apreciação do tribunal, segundo critérios exclusivamente prudenciais perante as circunstâncias específicas do caso; constitui uma decisão que depende da livre resolução do tribunal (livre, embora motivada), não sendo suscetível de recurso, nos t4ermos do artigo 400º, n.º 1, alínea b), do C.P.P.” ([3]).

Trata-se, assim, de uma decisão pautada por critérios a que o legislador concede ao juiz uma elevada margem de discricionariedade, tendo em vista a boa e competente administração da justiça, para além da obtenção da decisão no prazo mais curto possível.

            Naturalmente que a regra da irrecorribilidade é quebrada se o despacho proferido for arbitrário, incompreensível, discriminatório ou fundado em outras razões inimigas da Constituição, caso em que será garantido o recurso com fundamento nos arts. 20º, n.ºs 1 e 5, e 32º, n.ºs 1 e 7, da Constituição da República Portuguesa, e 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal (violação do dever de fundamentação) ([4]).

           

            No caso dos autos, o juiz anunciou previamente a sua intenção, cumpriu o contraditório (nada tendo então oposto o recorrente), encontrando-se o despacho proferido devidamente fundamentado, nos seguintes termos:

            “Nos termos do artigo 82º, nº 3 do Código de Processo Penal, o tribunal pode, oficiosamente, remeter a questão dos PIC para os meios cíveis, quando a questão possa causar inscientes que retardem intoleravelmente o processo crime.

            Nos prestes autos os factos são de 04-02-2020.

O crime imputado é o de ofensas à integridade física por negligência. Previsto e punido pelo artigo 148º do  Código Penal, com prisão ate um ano.

            O PIC possui um valor de €107.268,80.

            A maior questão prende-se com o dano corporal do demandante.

            É consabido que as perícias médico-legais tardam em média 5-7 meses.

            Que após a realização da mesma, poderão requeridos esclarecimentos e eventualmente segunda perícias.

            Tais diligências, irão provocar demoras intoleráveis ao processo crime.

            Assim, ao abrigo do disposto no artigo 82º, nº 3 do  Código de Processo Penal, remeto o demandante AA, quanto ao pedido de indemnização civil, formulado contra Z... PLC, para os meios cíveis.

           

            Em consonância com o exposto, encontrando-se a decisão que remeteu as partes civis para os tribunais cíveis motivada, a mesma não é suscetível de recurso.

           


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          IV. Pelo exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 82º, n.º 3, 400º, n.º 1, al. b), 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, rejeito liminarmente o recurso interposto pelo assistente AA.

           Custas a cargo da recorrente, fixando em 3  UCs a taxa de justiça (artigo 420º, nº3, do Código de Processo Penal).

            Notifique.

           

Coimbra, 15 de fevereiro de 2024

Ana Carolina Cardoso (relatora - processei e revi)


[1] - V. Declaração de voto do Des. Donas Botto no Ac. da Relação do Porto de 6.6.2018, proc. 1923/16.0T9VNG-A.P1, a que aderimos na totalidade.
[2] V. Luís Lemos Triunfante, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, tomo I, pág. 876.
[3] V. Henriques Gaspar, “Código de Processo Penal Comentado”, 2ª ed., págs. 254-255.
[4] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., pág.1042.