Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/21.1T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DEVER DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
PREJUÍZO PARA OS CREDORES
CULPA GRAVE
INDEFERIMENTO LIMINAR
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 238.º, N.º 1, ALÍNEA D) DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: I) São de verificação cumulativa os pressupostos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante enunciados no artigo 238.º, n.º 1, alínea d) do CIRE., sendo que nesse âmbito o ónus da prova de tais pressupostos incumbe aos credores.

II) O pressuposto da culpa grave deve ser aferido segundo o critério de apreciação enunciado no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, devendo considerar-se verificado esse pressuposto se estiver em causa uma conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso.

III) O retardamento na apresentação à insolvência não é, ipso facto, causa de prejuízos para os credores, devendo exigir-se um nexo de causalidade entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores que, em qualquer caso, deve ser irreversível e grave e tem de ser tal que implique patente agravamento da situação dos credores que, assim, ficam mais onerados pela atitude culposa do devedor.

IV) Por não poder dar-se como verificado o pressuposto da existência de prejuízo para os credores, não devia ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante do devedor que: i) começou a incumprir as suas obrigações em 2005, a mais volumosa das quais foi incumprida em Junho de 2006, terminando tais incumprimentos em 30 de Abril de 2010, apesar do que, em acto único, contraiu em 1 de Fevereiro de 2010 uma dívida bancária de 12.694, 73 €, considerada incumprida em 28 desse mês; ii) apenas requereu a insolvência em 2021.

Decisão Texto Integral:




            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

No requerimento de apresentação à insolvência, datado de 02 de Janeiro de 2021, o devedor/apresentante, A…, já identificado nos autos, requereu a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos artigos 235.º e ss. do CIRE.

Tendo sido declarado insolvente, veio a decretar-se o respectivo processo de insolvência.

O Administrador da Insolvência propôs se procedesse ao deferimento liminar de tal pedido.

Nenhum dos credores se opôs à requerida concessão da requerida exoneração do passivo restante, não obstante, para tal notificados.

Após o que o M.mo Juiz a quo ordenou ao AI que informasse quais as datas de constituição e incumprimento dos créditos por si reconhecidos, o que este fez, cf. fl.s 92 a 94.

Conclusos os autos ao M.mo Juiz, este, cf. decisão proferida em 20 de Maio de 2021, (aqui recorrida), decidiu o seguinte:

“Por todo o exposto e em conformidade com o preceituado no artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE, indefere-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante”.

Ficando as custas a cargo da massa insolvente.

Inconformado com a mesma, dela interpôs recurso, o requerente/insolvente, A…, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 112), apresentando as seguintes conclusões:

(…)

Apenas uma nota prévia, relativamente ao que o recorrente designa por “impugnação da matéria de facto”, para referir que não estamos em face da impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada, pretendendo o autor que se acrescente o que se menciona na sua conclusão I.ª.

Pretende, pois, que se dê como provado que desempenhou as funções ali descritas, das quais auferiu “rendimentos, participações e direitos, que não se apuraram”.

Ora, tal alegação não corporiza qualquer factualidade relevante para a decisão da matéria em apreço, uma vez que não se quantificam quaisquer rendimentos e só isso, temporalmente localizado, poderia relevar para a decisão a proferir.

Assim, carece de justificação a pretensão do recorrente em que se adite à matéria de facto a considerar, o acima referido, o que, assim, se decide, permanecendo inalterada a matéria de facto dada como provada em 1.ª instância.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se deve ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente, ora recorrente, com fundamento no disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE, por este, desde 2005, que não cumpre as obrigações assumidas perante os seus credores e, não obstante isso, voltou a contrair crédito perante o D…, em 01/02/2010, incumprido em 28/02/2010.

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

1. O devedor nasceu em 06.10.1963, encontra-se divorciado desde 29.11.2007 e, actualmente, reside com a sua companheira.

2. Por sentença proferida em 12.01.2021, já transitada em julgado, o devedor foi declarado insolvente.

3. O devedor trabalha na Agência Funerária …, com a categoria de ‘indiferenciado’ e aufere mensalmente o vencimento mínimo nacional.

4. O rendimento líquido do devedor em 2019 foi de 3.600,00 €.

5. Por sentença de 23.04.2021, foi homologada a lista de créditos reconhecidos sobre o devedor, no montante global de 222.810,27 €.

6. O devedor constituiu as seguintes obrigações, consideradas incumpridas:

a. junto do B…, S.A., no montante de 928,41 €, constituída em 26.08.1986 e considerada incumprida em 02.01.2009;

b. junto da C…, STC, S.A., no montante de 153.699,53 €, constituída em 30.04.1999 e considerada incumprida em 30.06.2006;

c. junto da C…, STC, S.A., no montante de 22.104,30 €, constituída em 20.09.2001 e considerada incumprida em 26.07.2005;

d. junto da C…, STC, S.A., de 12.405,49 €, constituída em 04.10.2005 e considerada incumprida em data anterior a 2010;

e. junto do Instituto da Segurança Social, IP, de 20.014,50 €, constituída em Novembro de 2005 e considerada incumprida em Novembro de 2005;

f. junto do Ministério Público (em representação do Estado – Fazenda Nacional), no montante de 963,31 €, constituída em 31.12.2009 e considerada incumprida em 30.04.2010;

g. junto do D… , S.A., no montante de 12.694,73 €, constituída em 01.02.2010 e considerada incumprida em 28.02.2010.

7. Encontravam-se instauradas contra o devedor, à data da sua declaração de insolvência, as seguintes acções executivas:

a. Proc. nº. 3251/06.0TBCBR;

b. Proc. nº. 2000/06.8TBCBR;

c. Proc. nº. 2539/10.0TJCBR;

d. Proc. nº. 1436/11.7TJCBR.

8. O devedor não tem registada a seu favor a propriedade de qualquer bem imóvel.

9. O devedor tem registada a seu favor a propriedade dos seguintes bens móveis sujeitos a registo (automóveis):

a. Fiat, modelo 131 Mirafiori CL 1300, com a matrícula…, de 1979;

b. Citroen, modelo GS Break 1220 Type GX, com a matrícula …, de 1977.

10. O devedor não tem quaisquer outros bens ou rendimentos

11. O devedor não apresenta antecedentes criminais e nunca beneficiou da exoneração do passivo restante.

Se deve ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente, ora recorrente, com fundamento no disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE, por este, desde 2005, que não cumpre as obrigações assumidas perante os seus credores e, não obstante isso, voltou a contrair crédito perante o D…, em 01/02/2010, incumprido em 28/02/2010.

Como resulta do relatório que antecede e da alegação do recorrente, este insurge-se contra a decisão recorrida, a qual, no seu entender, devia ter deferido liminarmente o pedido em referência, com o fundamento no facto de não bastar, para tal, o mero atraso no dever de apresentação à insolvência, exigindo-se, ainda, que daí decorra um prejuízo grave, irreversível e significativo, para os credores e sabendo ou não podendo ignorar, o devedor, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Ao invés, na decisão recorrida, como resulta do mesmo relatório, considerou-se que o insolvente revela manifesta incapacidade de cumprir as suas obrigações desde, pelo menos, 2010 e não obstante ter o dever de se apresentar à insolvência nos seis meses subsequentes, bem sabendo da sua incapacidade em satisfazer os compromissos assumidos, em 01 de Fevereiro de 2010, ainda assumiu perante o D…, um crédito no montante de 12.694,73 €, considerado incumprido em 28 desse mês.

Considerou-se que o atraso do devedor em se apresentar à insolvência, causou prejuízo aos seus credores “em virtude do avolumar do passivo daí decorrente”, porque “o decurso do tempo conduziu ao aumento da quantia total em dívida, com a inerente impossibilidade de a solver, o que tudo não podia ignorar sem culpa grave”.

Desde logo, cumpre mencionar que como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2015, a pág. 855, não é ao devedor que incumbe fazer prova dos requisitos previstos no n.º 1, cabendo aos interessados invocar e demonstrar que não se verificam, ali indicando vária jurisprudência, nesse sentido.

Para além dos Arestos ali citados, pode, ainda, exemplificativamente, ver-se, no mesmo sentido, o Acórdão do STJ, de 14 de Fevereiro de 2013, Processo n.º 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, no qual se decidiu que “o ónus da prova dos requisitos descritos no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, incumbe aos credores”.

Vejamos, então, face à factualidade dada como provada, se existem, ou não, razões para ser, como o foi, liminarmente indeferido, o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pelo ora recorrente.

Constam do artigo 237.º do CIRE, os pressupostos da efectiva concessão da exoneração do passivo restante.

Sem esquecer que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento.

Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “ (…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”.

Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e tem como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[1].

É assim uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

Ou seja, a exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade”[2].

Por outro lado, constam do disposto no artigo 238.º, n.º 1, os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Como referem Carvalho Fernandes e Luís Labareda, in ob. cit., pág.854/5, as suas alíneas b) a g) “definem, embora pela negativa, requisitos de cuja verificação depende a exoneração, podendo reconduzir-se a três grupos diferentes.

Respeita um deles a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram [als. b), d) e e)]; outro compreende situações ligadas ao passado do insolvente [als. c) e f)]; finalmente a al. g) configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência”.

Ora, dispõe-se no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE (no que ao presente recurso interessa) o seguinte.

“1- O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

(…)

d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Assim, resulta desta alínea d) que a mesma pressupõe, para a verificação da situação nela prevista, que o devedor se tenha abstido do dever de apresentação à insolvência ou a isso não estando obrigado, como se verifica in casu, não se tenha apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; com prejuízo para os credores e; bem sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Refere o recorrente que a decisão recorrida “não particulariza um único facto concreto donde se possa extrair prejuízos graves e irreversíveis para os credores resultantes da omissão do ónus de apresentação à insolvência”.

Como se refere no Acórdão desta Relação e Secção, de 20 de Março de 2018, Processo n.º 4694/15.4T8VIS-D.C1, disponível no respectivo sítio do itij, dada a omissão do CIRE na indicação do critério da apreciação da culpa, deverá aplicar-se, analogicamente, o critério do artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, segundo o qual a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso.

Citando Assunção Cristas (Exoneração do passivo restante, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 171) “a culpa grave corresponde à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso”.

Citando, ainda, no mesmo sentido, Inocêncio Galvão Teles, in Direito das Obrigações, 7.ª Edição, Reimpressão, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, pág. 354, que ali refere que “a culpa grave apresenta-se como uma negligência grosseira”.

Como resulta da factualidade provada – e só esta releva – como resulta do seu item 6.º, o devedor começou a incumprir as suas obrigações em 2005, sendo que a mais vultuosa, foi considerada incumprida em Junho de 2006. Terminando, tais incumprimentos em 30 de Abril de 2010. Sendo que não obstante isso, o recorrente em 01 de Fevereiro de 2010, contraiu mais uma dívida perante o D…, no montante de 12.694, 73 €, considerada incumprida em 28 desse mês; ou seja, presume-se, nada cumpriu quanto a esta.

Assim, tal como referido na decisão recorrida, pode considerar-se que o devedor estava em situação de insolvência, pelo menos em 2010 e, ainda assim, contraiu mais esta obrigação.

Como resulta da petição inicial, o pedido de insolvência foi apenas requerido em 02 de Janeiro de 2021, ou seja, mais de 10 anos decorridos sobre a data em que se já se verificava a sua situação de insolvência, assim se devendo concluir que o mesmo incumpriu o dever de se apresentar à insolvência no prazo de 6 meses, a que se alude no preceito e alínea ora aplicável.

No entanto como o retardamento na apresentação à insolvência não é, ipso facto, causa de prejuízos para os credores – cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 855 e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pág.s 565/7 – antes se exigindo um nexo de causalidade entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores e em que o conhecimento ou desconhecimento com culpa grave por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica deverá ser visto, por sua vez, como a circunstância que faz com que os outros dois factos assumam relevância qualificada, importa aferir da verificação cumulativa destes três fundamentos/requisitos.

A nível jurisprudencial, entre outros, no sentido de que os fundamentos constantes da alínea d) do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE são autónomos e por isso, cumulativos, podem ver-se os Acórdãos do STJ, de 24 de janeiro de 2012, Processo n.º 152/10.1TBBRG-E.G1.S1 e de 14 de Fevereiro de 2013, Processo n.º 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, ambos disponíveis no respectivo sítio do itij (e em que cita diversa jurisprudência acerca desta temática).

Ora, assente que o devedor incumpriu o seu dever de se apresentar à insolvência, em 2010, apenas o tendo feito em Janeiro de 2021, está verificado o 1.º dos assinalados requisitos.

De igual modo, fora de dúvidas, se encontra verificado o 3.º de tais requisitos, conhecimento de que a sua situação não lhe permitia satisfazer os compromissos assumidos, nem perspectiva séria de o poder vir a fazer.

Efectivamente, é o próprio devedor que confessa na petição inicial não ter rendimentos que lho permitam fazer (artigos 12.º a 14.º), nem que tal se perspective no imediato ou a breve trecho.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 10 de Fevereiro de 2013, acima já citado “o legislador aponta para um juízo de verosimilhança sobre a melhoria económica da situação do devedor, alicerçada naturalmente em indícios consistentes e não em fantasiosas construções ou optimismo compulsivo”.

Em suma, um circunstancialismo em que o devedor sabia ou não podia deixar de saber que a situação em que se encontrava era definitiva, no sentido de que não iria ser alterada num curto ou médio prazo.

Ora, reitera-se, é o próprio devedor que na petição inicial confessa a situação de impossibilidade de cumprimento em que se encontra e dada a inexistência de rendimentos ou bens que perspectivassem uma alteração de tal estado de coisas, também, este requisito se tem de ter por verificado.

Resta, assim, averiguar do requisito da existência de prejuízo para os credores.

Como se escreve no Acórdão do STJ, de 24/1/2012, acima já citado, a exoneração do passivo restante “só deve ser concedida a quem a merecer; a lei exige uma actuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo que já resulta da insolvência não seja incrementado por actuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende  exonerar-se do passivo residual requerendo a exoneração”.

Ali se acrescentando:

“O conceito de prejuízo da al. d) do art. 238.º, n.º 1, do CIRE tem assim e de harmonia com a ratio legis de ser um prejuízo sensível que, se verificado em função da apresentação à insolvência fora do prazo, evidencie que o devedor não merece o benefício da segunda oportunidade, devendo arcar com as consequências da lei sem o benefício que a exoneração afinal é.

(…)

O prejuízo, entendemos, tem de ser tal que constitua patente agravamento da situação dos credores que assim ficariam mais onerados pela atitude culposa do insolvente”.

Ou, como se refere no Acórdão do STJ acima citado, de 14/2/13:

“o prejuízo a que se refere o artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE, deve ser irreversível e grave, como aquele que resulta da contracção de dívidas, estando já o devedor em estado de insolvência (…) constituindo um patente agravamento da situação dos credores, de modo a onerá-los pela atitude culposa do devedor insolvente, evidenciando que este não merece o benefício da segunda oportunidade («fresh start») pressuposta pela nova concepção ideológica do CIRE”.

Como vimos, na decisão recorrida considerou-se que o retardamento na apresentação à insolvência por parte do devedor permite o avolumar do passivo.

Este avolumar do passivo não pode ser outra coisa se não o avolumar dos juros que se continuam a vencer, uma vez que o capital em dívida permaneceu inalterado. No entanto, no que se refere aos juros, tal prejuízo inexiste, porquanto nos termos do disposto no artigo 48.º, n.º 1, al. b), do CIRE, a respectiva contagem não cessa com a declaração de falência, continuando a vencer-se e são considerados como créditos subordinados.

Pelo que, com este fundamento, não pode prevalecer a decisão recorrida.

Resta, assim, a questão da contracção do crédito no montante de 12.694,73 €, junto do D…, em Fevereiro de 2010.

É indubitável que tal comportamento não revela comedimento por parte do devedor, atenta a situação em que já se encontrava.

Todavia, ocorreu ainda no início do ano de 2010, considerado como aquele em que o devedor se encontrava em situação de insolvência e constitui acto único, na medida em que desde esta data e aquela em que se veio a apresentar à insolvência – mais de 10 anos volvidos – não assumiu novas dívidas.

Por último, como resulta de fl.s 193/4, os créditos reconhecidos ascendem ao montante de 222.810,27 €, pelo que a quantia relativa a este último crédito assume uma relevância diminuta face ao valor global.

Mas mais decisivo do que isso é o facto de ter sido contraído ainda no ano de 2010, a que não se seguiu a contracção de novas dívidas; ou seja, tratou-se de acto isolado e ainda num tempo de indefinição acerca da situação de falência em que se encontrava o devedor.

Como acima se referiu, o prejuízo a considerar deve ser “irreversível e grave”, em que, fora de dúvidas se insere a contracção de dívidas, daí devendo resultar um patente agravamento da situação dos credores.

Ora, salvo o devido respeito pelo expendido na decisão recorrida, o acto em apreço não é de tal modo grave que tenha acarretado um agravamento relevante da situação dos credores, atenta a proporção entre os valores dos créditos reconhecidos e o desta dívida em particular.

Esta nova dívida é contemporânea da verificação da situação de insolvência e não posterior e trata-se de um acto isolado, pelo que, apenas com base, nela indeferir-se liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante, se nos afigura como desproporcionado e desadequado aos fins tidos em vista pelo legislador, em função do que não pode subsistir a decisão recorrida.

Consequentemente, procede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que admite liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pelo devedor, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

Custas, a cargo da massa insolvente.

Coimbra, 07 de Setembro de 2021


[1]A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. “Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133.
[2] Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.