Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
516/12.6TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: DIREITO DE VIZINHANÇA
AÇÃO NEGATÓRIA
PREJUÍZO
USO
IMÓVEL
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – PENACOVA – JUÍZO COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1346º C. CIVIL.
Sumário: I – O chamado “direito de vizinhança”, extrapolando a clássica tutela do direito de propriedade, impõe-se com um direito subjectivo público, derivando sobretudo da relação de facto emergente da utilização da propriedade em consequência do exercício da actividade económica privada, socialmente vinculada, cujo equilíbrio da “coexistência pacífica” é rompido pela perturbação anormal ou excessiva, isto é, intolerável.

II - O art.1346º do C.Civ. consagra a “ação negatória”, atribuindo ao proprietário de imóvel o poder de se opor às emissões que resultem reflexamente da actividade exercida em certo prédio, quando esta actividade ou os seus efeitos se propaguem ou difundam naturalmente e atinjam os prédios vizinhos.

III - Exige-se que as emissões importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho ou que não resultem da utilização normal do prédio que emanam, operando os requisitos em alternativa.

IV - O “prejuízo substancial para o uso do imóvel“ deve ser entendido de forma lata, de modo a abranger também as lesões que a conduta do vizinho infractor cause ao morador do imóvel ou seja, que afectem os seus direitos de personalidade.

V - A tutela inibitória pressupõe o carácter de continuidade, ou, pelo menos, de periodicidade das emissões, pois só nesta medida é que a concreta perturbação se poderá configurar como excessiva e, por isso, intolerável.

VI - As normas do RGEU, apesar de serem de interesse público, não deixam de proteger também interesses privados no âmbito das limitações à construção civil, embora não coincidentes com as do art.1360º do Código Civil, podendo legitimar a pretensão inibitória do particular lesado.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1.- O Autor – M... – instaurou (26/10/2012) acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra os Réus:

C..., Ldª, com sede na Rua ...,

A... e M... (por sua morte, os habilitados ...).

Alegou, em resumo:

O Autor é dono de um prédio urbano sito na Rua ..., confiante com um prédio urbano, pertence aos 2ºs Réus, e no qual a Ré Sociedade tem a sua sede e estabelecimento comercial de padaria.

Há cerca de cinco anos os réus procederam a obras de remodelação e ampliação do prédio e colocaram um tubo vertical de exaustão de fumos, fuligens e outros resíduos de combustão decorrentes da laboração do estabelecimento na parede poente do edifício onde funciona o estabelecimento, o qual invade em toda a sua dimensão o espaço aéreo do prédio do autor e, a um ritmo diário, é também invadido por tais fumos, fuligens e outros resíduos de combustão que saem pela chaminé.

Também o quarto do filho do autor tem humidade e infiltrações nas paredes, tectos e soalho confinantes com as paredes da ré, proveniente da inexistência de caleira ou algeroz no telhado do edifício dos réus e da falta de isolamento da placa de cobertura, na qual existem fissuras e outras anomalias exteriores.

Em finais de Novembro do ano de 2010 uma peça da chaminé de exaustão de fumos e fuligens caiu sobre o telhado da casa ao autor, tendo provocado a quebra de cerca de 1m2 de telha.

            Pediu a condenação dos Réus:

a) A reconhecer a propriedade do autor sobre o prédio identificado, o qual confina do seu lado norte com o prédio dos réus;

 b) A retirar a chaminé do espaço aéreo do prédio do autor e afastar a chaminé da confinância com o logradouro, anexo e moradia do autor, deslocando-a, relativamente à implementação actual; a altear a chaminé em medida que permita que os fumos sejam levados pelos ventos e não descendam sobre o prédio do autor; 

c) Em todo o caso, adoptar as medidas técnicas necessárias e adequadas a evitar a emissão de fumos, fuligem e partículas para o prédio do autor;

d) subsidiariamente, que os Réus adquiram fornos eléctricos ou alimentados por outra fonte energética adequada à não emissão de partículas para o prédio do autor;

 e) Colocar caleiras ou algerozes no telhado de forma a apanhar as águas daí provenientes, de modo a que as águas pluviais caídas do prédio dos réus não vão, através da sua infiltração, prejudicar o prédio do autor;

f) Proceder às reparações necessárias para repor a casa do autor no estado em que se encontrava antes do início da sua actividade, nomeadamente proceder à substituição das telhas partidas, remoção dos danos provocados no tecto, paredes e soalho do quarto do filho do autor e substituição da janela da casa de banho do autor ou pagamento do valor de € 463,60, valor correspondente ao orçamentado para reparação; 

g) Suportar os custos de reparação das paredes e tectos já realizados no valor de € 150,00;

h)Pintar, com a inerente aplicação de materiais e mão-de-obra, toda a parede da moradia do autor voltada para o estabelecimento de padaria dos réus; i) pagar ao autor a título de danos não patrimoniais a quantia de € 1.500,00 a que acrescerá os juros que se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento;

j) Numa sanção pecuniária compulsória a ser fixada prudentemente pelo Tribunal, mas que se entende não dever ser inferior a 10 euros diários, para o caso de não cumprimento da sentença condenatória que vier a ser proferida.

Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:

Ao construírem o seu prédio, tiveram inicialmente de derrubar os imóveis que antes ali existiam, com excepção das paredes que se encontravam “coladas” a paredes dos prédios vizinhos, sendo que o espaço onde se encontra a chaminé de exaustão dos fornos é o espaço deixado aquando da construção que ao invés edificarem a sua parede na extrema do prédio, deixaram aquele espaço correspondente à antiga parede ali existente e pertencente ao prédio demolido, existindo também nesse espaço um escoadouro de águas pluviais.

A chaminé de exaustão tem a altura exigida pelas autoridades fiscalizadoras e competentes para o licenciamento para o fim a que a mesma se destina e não emite resíduos sólidos, apenas fumo, nem quaisquer partículas ou resíduos incandescentes.

O telhado do imóvel não se encontra a gotejar para a cobertura do imóvel do A. e no mesmo foi construído um algeroz a toda a sua extensão lateral, de forma a que as águas pluviais não se precipitem do telhado dos RR. na sua parte lateral, mas sim escoem através daquele telhado para a parte frontal do prédio, local onde existe caleira que possibilita o escamento dessas mesmas águas.

Concluíram pela improcedência da acção.

O Autor respondeu.

1.2.- Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:

a)Condenar os Réus:

i) A reconhecer o Autor M... como dono e legítimo possuidor do prédio o urbano, sito na Rua ..., inscrito na matriz predial da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...;

ii)A proceder à substituição das telhas partidas no telhado do imóvel do Autor, proveniente da queda de uma peça da chaminé de exaustão de fumos e fuligens existente no imóvel dos Réus; -

iii)No pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no cumprimento da decisão, a contar do trânsito em julgado da sentença;

b) Absolver os Réus dos demais pedidos.

            1.3.- Inconformado, o Autor recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

            Os Réus não contra-alegaram.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1.- O objecto do recurso

As questões submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões, são as seguintes:

A impugnação de facto;

O direito de vizinhança, o direito de propriedade, e a tutela dos direitos de personalidade – a acção inibitória

2.2. A impugnação de facto

Conforme consta da fundamentação, o tribunal justificou a decisão dos factos na conjugação e análise crítica da prova (pericial, documental, testemunhal, depoimento de parte do Autor).

Na verdade, exarou-se, a dado passo, o seguinte:

“ A conjugação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento com os documentos e relatório pericial juntos aos autos permitem concluir que, à excepção dos danos provocados no telhado da habitação do A., provenientes da queda de uma peça da chaminé, os demais danos aí existentes, nomeadamente provocados por humidade, não são provenientes das alterações feitas no imóvel dos Réus, conforme se constata do relatório pericial. Com efeito, resulta do mesmo, desde logo, quanto à edificação da chaminé, que esta foi concebida com a altura adequada e necessária e de acordo com os requisitos legais de construção para o edifício e estabelecimento em causa, não existindo razão objectiva para que aquela traga prejuízos para a edificação vizinha, nomeadamente para o prédio do autor.

Quanto à janela e parede da casa de banho, concluiu-se que se encontra encardida, mas tal facto será resultado, maioritariamente, da pouca exposição solar a que o local está sujeito e que, embora possam cair algumas cinzas/fuligem no caixilho da janela, não é de modo a ser esta a acção exclusiva ou preponderante para encardir a parede tal como se encontra.

 Por outro lado, concluiu-se também que existe uma distância entre a chaminé e a parede da casa de banho da habitação do Autor e que, embora a chaminé aqueça em período de laboração dos fornos da padaria, não se considerou que configurasse um sobreaquecimento, adequado a provocar danos na habitação do Autor.

Relativamente à origem da humidade existente na parede do quarto do filho do Autor, concluiu o Sr. Perito que tal poderá ter origem no telhado dessa residência e/ou na junta entre a parede exterior do Autor e a parede exterior do Réu, sem que tenha apurado, em concreto, de onde vem tal humidade, sendo que ficou afastada a possibilidade dessa humidade ser proveniente de fissuras ou da falta de isolamento da placa de cobertura da parede, bem assim ficou afastada a possibilidade de tal humidade ter origem na falta de caleiras ou algeroz, dado que se confirmou a sua existência, não se verificando também o gotejamento da caleira ou dos rufos metálicos sobre o telhado do quarto do filho do A. ou sobre a placa de cobertura da casa de banho, conforme alegado pelo Autor.

Perante tais conclusões constantes do relatório pericial, não se afigura demonstrado que os danos existentes na habitação do Autor, sejam provenientes das obras efectuadas no imóvel dos Réus, à excepção dos danos provocados no telhado com a queda de uma peça da chaminé, danos esses que os Réus logo admitiram na contestação apresentada.  No que se reporta aos invocados danos não patrimoniais, para além da prova de que o autor fica perturbado, desgastado e aborrecido com a situação proveniente da existência de humidade na sua habitação, mais nenhuma prova foi feita quanto à existência de qualquer outro dano”.
...
O Tribunal da Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar a decisão da 1ª instância nas situações previstas no art.662 nº1 CPC ( als a), b) e c) do nº1 do anterior art.712 do CPC)
Muito embora a revisão do anterior Código de Processo Civil, operada pelo DL 329‑A/95, de 12/2, haja instituído de forma mais efectiva a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mantida e reforçada no actual (aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26/6),  o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Para além da possibilidade de conhecimento estar confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.640 CPC, a verdade é que o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar ( até pela própria natureza das coisas ) a livre apreciarão da prova do julgador, fundada também na base da imediação e da oralidade, pois na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados.
Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão.
Neste contexto, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância, embora exija uma avaliação da prova (e não apenas uma mera sindicância do raciocínio lógico) deve, no entanto, restringir‑se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal ou por depoimento de parte é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e, na avaliação da respectiva credibilidade, tem que reconhecer‑se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.

Por isso, se entende não bastar qualquer divergência de apreciação e valoração da prova, impondo-se a ocorrência de erro de julgamento ( cf., por ex., Ac STJ de 15/9/2010 ( proc. nº 241/05), de 1/7/2014 ( proc. nº 1825/09), em www dgsi.pt ), tanto mais que o nosso sistema é predominantemente de reponderação.
Por outro lado, a prova deve ser valorada de forma holística, ou seja, no seu conjunto, reclamando uma ponderação global, segundo o standard da “probabilidade lógica prevalecente”, em que havendo versões contraditórias sobre determinado facto, o julgador deve escolher das diferentes probabilidades a que, perante o conjunto dos elementos probatórios, se evidencie como a mais provável ( cf Michele Taruffo, La Prueba de Los Hechos, 2002, pág.292 e segs.).
É com base nestes princípios de orientação que se passa a aquilatar da impugnação de facto.
...

Num juízo de ponderação, com ressalva da alteração ao ponto 2) dos factos não provados, a prova indicada não impõe decisão diversa.

2.3.- Os factos provados

...

2.5. – O direito de vizinhança, o direito de propriedade e a tutela dos direitos de personalidade – a acção inibitória

A sentença, perspectivando a questão tanto pelo direito de propriedade, no domínio das relações de vizinhança, como pela directa tutela dos direitos de personalidade, negou a pretensão do Autor, visto não se comprovar que a actuação dos Réus viole o direito de propriedade e o direito à saúde e qualidade de vida, nem que importe prejuízo para o uso do imóvel.

            Em contrapartida, o Apelante insiste na violação dos direitos fundamentais, de forma a justificar a acção inibitória, mas no pressuposto da alteração dos factos, o que não logrou obter, ficando comprometida a pretensão recursiva.

            No conflito entre os titulares de prédios vizinhos, o problema da protecção da vizinhança é hodiernamente uma questão não só de direito privado, mas também de direito público, pelo que o já chamado “direito de vizinhança” ganha cada vez mais foros de cidadania, em que extrapolando a clássica tutela do direito privado se impõe como um verdadeiro direito subjectivo público

            No caso concreto, o conflito estruturado pelas partes circunscreve-se aos parâmetros do direito privado, em sede das relações de vizinhança (arts.1346 do CC) e à tutela dos direitos de personalidade do Autor ( art.70 nº2 do CC ).

A moderna teorização do “direito de vizinhança”, engendrada no terreno fértil da jurisprudência, não se compadece com uma concepção pandectística do direito de propriedade, como direito absoluto e ilimitado, já que no actual estádio da dominialidade dos bens cada vez mais se acentua a função social do direito de propriedade, perspectivado agora como um “dever social”, pelo que a problemática deriva sobretudo da “relação de facto” emergente da utilização da propriedade em consequência do exercício da actividade económica privada, socialmente vinculada, cujo equilíbrio da “coexistência pacífica” é rompido pela perturbação anormal ou excessiva, isto é, intolerável.

            Daí que alguns autores empreguem sugestivamente a noção de “quase contrato de vizinhança” para realçarem as obrigações recíprocas entre titulares de prédios vizinhos. É justamente o rompimento desse equilíbrio, com a violação das obrigações recíprocas de vizinhança, que faz desencadear o mecanismo sancionatório, com vista à reposição do “status quo ante”, quer através da tutela ressarcitória, quer da tutela inibitória, também chamada de “acção negatória” ( cf. Cesare Salvi, Le Imissioni Industriali, Rapporti di Vicinato e Tutela Dell'Ambiente, Milano, 1979; Oliveira Ascensão, “ A previsão do equilíbrio imobiliário como princípio orientador das relações de vizinhança”, ROA 67, pág. 7 e segs. ).

A regulamentação do direito de vizinhança no Código Civil Português foi enquadrada no capítulo reservado à propriedade de imóveis, cujo art.1346 consagra a “acção negatória”, ao atribuir ao proprietário de um imóvel o poder de se opôr às emissões provenientes de prédio vizinho.

            Este normativo, inspirado no § 906 do BGB, apresenta um conceito geral de emissão, o qual abrange realidades físicas, materiais, sob a forma energética, gasosa ou em pequenas partículas, corpos gaseiformes misturados com o ar, visto que a enumeração é meramente exemplificativa, como, aliás, resulta do próprio texto (cf. Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, II, pág.13, Henrique Mesquita, Direitos Reais, pág.142).

            Por outro lado, contemplam-se somente as emissões que resultem reflexamente da actividade exercida em certo prédio, quando esta actividade ou os seus efeitos se propaguem ou difundam naturalmente e atinjam os prédios vizinhos.

            Mas para que seja fundada a oposição é necessário que as emissões importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho ou que não resultem da utilização normal do prédio que emanam.

Note-se, porém, que a essencialidade do prejuízo deve ser apreciada objectivamente, conforme a natureza e a finalidade do prédio vizinho, e o uso normal do prédio depende do seu destino económico, também objectivamente considerado.

            Não sendo uniforme o entendimento doutrinal quanto à exigência dos dois requisitos, deve, no entanto, e contrariamente à posição de Menezes Cordeiro (Direitos Reais, pág.595), adoptar-se o entendimento de que os mesmo operam em alternativa, como sustentam Pires de Lima / Antunes Varela, no Código Civil Anotado, vol.III, 2ªed., pág.178, com o sufrágio da jurisprudência (por ex., Ac R.P. de 25/5/82, C.J. ano VII, tomo III, pág.213, Ac R.C. de 7/1/92, C.J. ano XVII, tomo I, pág.83).

            Acresce ser pressuposto da tutela inibitória o carácter de continuidade, ou, pelo menos de periodicidade das emissões, como observa Antunes Varela (RLJ ano 114, pág.74), pois só nesta medida é que a concreta perturbação se poderá configurar como excessiva e, por isso, intolerável.

            Importa realçar que o conceito de “ prejuízo substancial para o uso do imóvel “ deve ser entendido de forma lata, de modo a abranger também as lesões que a conduta do vizinho infractor cause ao morador do imóvel ( cf., por ex., Vaz Serra, RLJ ano 103, pág.378), ou seja, que afectem os seus direitos de personalidade, no caso o caso concreto, o direito fundamental à saúde e qualidade de vida ( arts.64 e 66 da CRP e art.70 do CC ).

            Muito embora se prove que por vezes caem nas traseiras do prédio do Autor algumas fuligens, provenientes da chaminé, tal facto não assume relevância suficiente, porque não traduz um prejuízo substancial para o uso do prédio, e muito menos que afecte a sua saúde e bem estar, para além de faltar o requisito da continuidade ou até de periodicidade.

            O Apelante convoca a norma do art.114 do RGEU ( “As chaminés de instalações cujo funcionamento possa constituir causa de insalubridade ou de outros prejuízos para as edificações vizinhas serão providas dos dispositivos necessários para remediar estes inconvenientes”), para sustentar a sua pretensão inibitória relativamente à chaminé dos Réus.

            A este propósito, segundo determinada corrente jurisprudencial, as normas do RGEU não conferem aos particulares o direito de se oporem à construção ( ou requererem a demolição ) de edifícios ( cf., por ex., Ac RC de 24/1/91, C.J. ano XVI, tomo I, pág.149, Ac RP de 25/11/93, C.J. ano XVIII, tomo V, pág.231). Argumenta-se, em síntese, serem normas que condicionam o direito de construção, com base nas quais a autarquia emitirá juízo prévio para o respectivo licenciamento, e cujas vantagens para os cidadãos são meramente reflexas, logo não poderem os tribunais comuns substituírem-se às autarquias locais na escolha dos procedimentos mais ajustados à realização do interesse público (Ac STJ de 5/4/84, BMJ 336, pág.425 ) e ao controlo do seu poder discricionário para outras soluções( cf. arts.63 e 64 do RGEU ).

Em todo o caso, ainda que se admita outra solução, como mais razoável, no sentido de que o particular só tem o direito de pedir a demolição de edificação que lese os seus direitos de propriedade, por violação das normas do RGEU, se a Câmara Municipal tiver o poder de ordenar a sua demolição por estar em desconformidade com o disposto nos arts.1º a 7º do Regulamento ( art.165º ) ( cf., por ex., Ac STJ de 26/9/96, C.J. ano IV, tomo III, pág. 20, ), cujo enfoque é posto, por um lado, na “ função social “ da propriedade e, por outro, no espectro tutelar mais abrangente das normas do RGEU, que, apesar de serem de interesse público, não deixam de proteger também interesses privados no âmbito das limitações à construção civil, embora não coincidentes com as do art.1360 do Código Civil, a verdade é que também por esta via a pretensão do Autor não tem sucesso. É que, para além de se demonstrar que o estabelecimento dos Réus está devidamente licenciado, bem como todas as instalações relacionadas com o mesmo, não se comprovou que qualquer emissão seja causa de salubridade ou de outro prejuízo substancial.

            2.6.- Síntese conclusiva

a).O chamado “direito de vizinhança”, extrapolando a clássica tutela do direito de propriedade, impõe-se com um direito subjectivo público, derivando sobretudo da “relação de facto“emergente da utilização da propriedade em consequência do exercício da actividade económica privada, socialmente vinculada, cujo equilíbrio da “coexistência pacífica” é rompido pela perturbação anormal ou excessiva, isto é, intolerável.

b) O art.1346 do CC consagra a “acção negatória”, atribuindo ao proprietário de imóvel o poder de se opor às emissões que resultem reflexamente da actividade exercida em certo prédio, quando esta actividade ou os seus efeitos se propaguem ou difundam naturalmente e atinjam os prédios vizinhos.

            c) Exige-se que as emissões importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho ou que não resultem da utilização normal do prédio que emanam, operando os requisitos em alternativa.

d) O  “prejuízo substancial para o uso do imóvel“ deve ser entendido de forma lata, de modo a abranger também as lesões que a conduta do vizinho infractor cause ao morador do imóvel ou seja, que afectem os seus direitos de personalidade.

            e) A tutela inibitória pressupõe o carácter de continuidade, ou, pelo menos de periodicidade das emissões, pois só nesta medida é que a concreta perturbação se poderá configurar como excessiva e, por isso, intolerável.

f) As normas do RGEU, apesar de serem de interesse público, não deixam de proteger também interesses privados no âmbito das limitações à construção civil, embora não coincidentes com as do art.1360 do Código Civil, podendo legitimar a pretensão inibitória do particular lesado.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:

1)

Julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença.

2)

            Condenar o Apelante nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.

            Coimbra, 4 de Abril de 2017.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo )

(Falcão de Magalhães)