Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3690/14.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
EXECUÇÃO
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 09/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 277 C), 281 CPC
Sumário: 1. A “negligência das partes”, a que alude o art.º 281º do CPC, pressupõe efectiva omissão da diligência normal em face das circunstâncias do caso concreto.

2. No processo executivo, a que se refere o n.º 5 do art.281 CPC, deverá ser apreciada a imputação subjectiva da paralisação processual - objectivada apenas a ausência de actos por parte do agente de execução, tal é insuficiente para, sem notificar o exequente para se pronunciar sobre tal paralisação processual, estabelecer a sua negligência na paragem do processo.

3. Só a partir de então se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes.

4. Na interpretação e aplicação do art.º 281º, n.º 5 do CPC, haverá que levar em conta a actual “estrutura” do processo executivo marcada por uma acentuada desjudicialização, pela limitação dos poderes e da intervenção do juiz e pela ausência de uma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução, e não se poderá olvidar a actual “crise” económica e social, e seus efeitos, nomeadamente, ao potenciar o surgimento de novas situações adversas à regular tramitação das acções executivas, o que exigirá, porventura, redobrado ou, pelo menos, diferente empenho na detecção e na resolução de problemas/incidentes emergentes dessa mesma tramitação, quiçá, com uma diferente e mais avisada intervenção judicial.

Decisão Texto Integral:      



      

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:         
           

            I. Em 17.5.2013, na Comarca de Coimbra, Banco (…), S. A., instaurou execução para pagamento de quantia certa contra J (…) e mulher, M (…), indicando, no requerimento executivo, o valor (capital, juros e imposto de selo) de € 10 779,66 e os bens (móveis) a penhorar[1].
            A exequente nomeou o agente de execução.

            Em 05.4.2016, foi elaborada, pela Sr.ª oficial de justiça, a seguinte “cota”: «(…) constata-se que os autos se encontram a aguardar o impulso processual há mais de seis meses. Assim nos termos do art.º 277º, alínea c) e art.º 281º, n.º 5 ambos do C. P. Civil, extingue-se a instância executiva. Tendo sido paga e arrecadada pelo IGF a taxa de justiça devida nos autos, e não havendo lugar a pagamento de encargos, nos termos do art.º 29º, n.º 1 al. c), da Lei 7/2012 de 13 de Fevereiro, não há lugar à elaboração da conta.[2]

            Por requerimento de 06.4.2016, a exequente, dizendo-se “notificado do despacho da Senhora Oficial de Justiça (…) que julgou deserta a instância” nos termos do art.º 281º, n.º 5, do Código de Processo Civil (CPC), veio, ao abrigo do disposto no art.º 157º, n.º 5, do dito Código, reclamar, aduzindo, nomeadamente, que “continua a aguardar que o Solicitador de Execução (SE) notifique o exequente, por intermédio do advogado signatário, do resultado da penhora nos bens que guarnecem a residência dos executados, penhora logo requerida no requerimento executivo”, e pedindo que fosse ordenado “o normal e regular prosseguimento da presente execução e a notificação do SE para dar cumprimento aos preceitos que a lei lhe impõe e determina, designadamente a notificação ao exequente das diligências que tem levado a efeito, ou que não realizou, para a implementação da penhora que requerida foi e/ou de outras que se justifique”.

            Seguidamente, foi proferido o seguinte despacho (a 21.4.2016):

            «(…) Desde 17.5.2013 (data da instauração da presente acção executiva (…)) até 2016 (momento actual) não foram encontrados bens penhoráveis aos executados, sendo certo que os 3 meses – aludidos no art.º 750º, do CPC – e reportados até ao momento presente, já decorreram há muito tempo.

            A exequente, por seu turno, desde 2013 que não apresenta requerimento nestes autos executivos, nomeadamente, comunicando que o AE nada lhe responde ou inclusivamente pedindo a substituição desse AE (ou mesmo requerimento dirigido ao AE).

            Com a introdução da norma do art.º 750º, do NCPC (…), o Agente de Execução passou a ficar mais responsável na fase de pesquisa e penhora de bens dos executados, porquanto possui 3 meses para concretizar as diligências prévias que permitirão localizar bens penhoráveis e, caso não sejam encontrados, é devolvido ao exequente o ónus de identificar o património que garante o seu crédito.

            A presente execução foi instaurada em Maio de 2013, ou seja, 4 meses antes da entrada em vigor do NCPC.

            Durante todo o período entre 17.5.2013 e 05.4.2016, nenhum requerimento, dirigido ao AE ou ao juiz, foi apresentado pela aqui exequente.

            Em suma, a exequente deixou “integralmente nas mãos” do Agente de Execução – por si indicado no requerimento executivo – a CONDUÇÃO deste processo executivo.

            E apenas se lembrou de apresentar requerimento a indicar bens penhoráveis ao executado depois de ter sido notificada da cota da secretaria a considerar deserta a instância executiva.

            Na perspectiva da exequente, a mesma estava a aguardar a comunicação por parte do AE das diligências de penhora. Mas, como já vimos, nos termos do art.º 750º, do CPC, deverá ser a exequente a identificar património ao executado, de modo a facilitar a penhora, que se pretende seja célere e não demore, em lugar dos 3 meses estipulados na lei, cerca de 3 anos na fase de pesquisa.

            Pretende-se a existência de SINTONIA na fase de pesquisa e penhora de bens entre o AE e a exequente.

            Mas também se pretende a existência de SINTONIA entre o AE e a exequente quando a execução deva ser considerada extinta por falta de bens penhoráveis.

            Ambos são responsáveis nas duas fases. E, por isso, não é, ou não deve ser, legalmente admissível a argumentação da exequente de que “estaria a aguardar a comunicação do AE sobre as diligências de penhora”, pois deveria ter insistido com o AE para proceder à penhora, já solicitada no requerimento executivo, de bens móveis na residência dos executados – não pode deixar que o processo se “arraste” cerca de 3 ANOS na fase da pesquisa de bens e sem que o AE proceda conforme ela havia requerido no princípio.

            Há, pois, negligência da exequente e falta de interesse no impulso dos autos executivos (…), o que conduziu à deserção da instância. A execução não pode eternizar-se.

            (…) a exequente tinha conhecimento – ou deveria ter porque o mandatário tem acesso à consulta electrónica deste processo – que o último acto praticado pelo AE tem a data de 24.8.2015 e a cota a considerar deserta a instância – sem que tivesse sido praticado qualquer acto pelo AE ou pela exequente até ao momento – é de 05.4.2016, ou seja, cerca de 8 (OITO) meses depois.

            Por outro lado, resulta expressamente da Portaria 282/2013, art.º 5, n.º 1, que ´O processo executivo é tramitado por via electrónica, através dos sistemas informáticos de suporte à actividade dos agentes de execução e do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, nos termos previstos na portaria que regulamenta a tramitação electrónica dos processos judiciais.`.

            E o n.º 5 prescreve que ´O sistema informático de suporte à actividade dos agentes de execução e o sistema informático de suporte à actividade dos tribunais asseguram que qualquer acto registado pode ser consultado no histórico electrónico do processo, através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais (…)`.

            Por seu turno, o art.º 3, n.º 2, da Portaria 280/2013, estabelece que ´O sistema informático previsto no número anterior (de suporte à actividade dos tribunais) disponibiliza módulos específicos para a tramitação do processo e prática de actos por magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e funcionários judiciais, e para a prática de actos e consulta de processos por mandatários judiciais.´.

            No módulo “Citius mandatários” está disponível o formulário de comunicação de mandatário a agente de execução, que, quando utilizado, permite que os tribunais possam consultar electronicamente o processo, nos termos estabelecidos nas Portarias supra mencionadas e ainda de acordo com o art.º 132, do CPC, com as excepções previstas no art.º 144 do mesmo diploma legal e do art.º 10, da Portaria 280/2013, permitindo ver o impulso processual que o exequente vem dando aos autos.

            Não obstante a lei não o regulamentar expressamente, é nosso entendimento que a inobservância destas disposições legais leva a que se considere não praticado o acto.

            E o mesmo raciocínio se aplica aos Agentes de Execução, que comunicam por esta via ou por mail com os exequentes e executados, esquecendo-se, muitas vezes, de os juntar aos autos.

            Por todo o exposto (…), decidimos manter a deserção da instância executiva, o que não impede a exequente de deduzir nova acção executiva, baseada no mesmo título executivo, já que não se encontra extinto o direito que pretendia exercer contra os executados. (…)»

            Inconformada, a exequente interpôs a presente apelação formulando a seguinte conclusão:

            Por violação do disposto nos art.ºs 2º, n.º 1, 754º, n.º 1, alínea a), e nos n.ºs 1 e 5 do art.º 281º, do Código de Processo Civil, deve, atento o que dos autos consta, revogar-se o despacho recorrido substituindo-se o mesmo por Acórdão que, aliás, deferindo o requerido em 06.4.2016, ordene o normal e regular prosseguimento da execução, nos termos que requeridos foram, desta forma se fazendo correcta e exacta interpretação e aplicação da lei.

            Os executados não responderam à alegação de recurso.

            A única questão a decidir consiste em saber se deve ser declarada a deserção da instância executiva.


*

            II. 1. A factualidade a considerar é a que consta do anterior relatório, e ainda:[3]

            a) Em 29.6.2013 e 12.9.2013, o SE providenciou, junto de diversas entidades, pela obtenção de informação sobre a existência de qualquer tipo de rendimentos dos executados e de outros bens/direitos penhoráveis.[4]

            b) Em 29.6.2013, o SE procedeu à “penhora de um terço da Pensão que o executado aufere através da CGA”.

            c) Por ofício de 13.5.2014, o SE foi notificado para informar o tribunal do “estado da diligência” referente aos executados.

            d) Em 02.9.2014, o SE informou que se encontrava na fase da “Pesquisa de Bens Penhoráveis”.

            e) Por ofício de 08.4.2015, o SE foi notificado para informar o tribunal do “estado da diligência” referente aos executados.

            f) Em 06.7.2015 e por referência à “notificação para penhora de pensão do executado”, o SE solicitou à Caixa Geral de Aposentações (CGA) que informasse “para quando se prevê o términus da penhora a decorrer sobre a pensão”.

            g) Em 24.8.2015 a CGA informou que o executado, aposentado, possui uma penhora (Proc.º n.º 658/10.2TJCBR) a decorrer, sendo o valor global da penhora de € 13 750,01; e ainda outra “em curso” (Proc.º n.º 328/10.1TBPFR), sendo o valor global da penhora de € 142 400,86, encontrando-se outros processos a aguardar o início dos descontos [1044/10.0TBCBR; 78/14.0TJCBR; 528/14.5T8CBR e 2943/10.4TJCBR-A].

            h) Após, sem que haja notícia de qualquer outro acto processual, foi lançada a mencionada “cota” de 05.4.2016.

            i) Em 14.4.2016 o SE realizou (nova) pesquisa sobre a existência de bens da executada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.

            j) Em Julho de 2013, encontravam-se pendentes contra os executados, entre outros, os seguintes processos executivos: 3586/09.0TJCBR, 658/10.2TJCBR, 961/10.1TBCBR, 1044/10.0TBCBR, 1110/10.1TBCBR, 1280/11.1TJCBR, 551/12.4TJCBR e 203/13.8TJCBR.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

             Preceitua o art.º 281º do Código de Processo Civil[5] (sob a epígrafe “deserção da instância e dos recursos”): Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (n.º 1); O recurso considera-se deserto quando, por negligência do recorrente, esteja a aguardar impulso processual há mais de seis meses (n.º 2); Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (n.º 3); A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator (n.º 4); No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (n.º 5).

            O regime pretérito (CPC de 1961), relativo à interrupção e deserção da instância, era o seguinte: “A instância interrompe-se, quando o processo estiver parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependa o seu andamento” (art.º 285º); “Cessa a interrupção, se o autor requerer algum acto do processo ou do incidente de que depende o andamento dele, sem prejuízo do disposto na lei civil quanto à caducidade dos direitos” (art.º 286º); “Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos” (art.º 291º, n.º 1).

            Concluiu-se, assim, que a actual lei processual civil, além de ter encurtado para seis meses o prazo, até aí de dois anos, que a parte dispunha para impulsionar os autos sem que fosse extinta a instância por deserção, eliminou também a figura da interrupção da instância, ou seja, a instância fica deserta logo que o processo, por negligência das partes, esteja sem impulso processual durante mais de seis meses sem passar, portanto, pelo patamar intermédio da interrupção da instância; estamos, pois, perante um regime mais severo para sancionar a negligência das partes em promover o andamento do processo, colimando logo com a ´deserção` e consequente `extinção da instância` [art.º 277º, c)] aquela falta de impulso processual.[6]

            3. Nos termos do art.º 281º, para se considerar deserta a instância será necessário, não apenas que o processo esteja parado há mais de seis meses a aguardar impulso processual da parte, mas também que tal se verifique por negligência (da parte) em promover o seu andamento.

            Segundo a mesma previsão legal, a instância declarativa, ou o recurso, não se poderão considerar desertos “independentemente de qualquer decisão judicial” (despacho do juiz ou do relator), decisão que já não será necessária quando se trate de um processo de execução[7], aqui, ao que tudo indica, em virtude da utilização privilegiada e tendencialmente única, nesta forma de processo, dos procedimentos electrónicos e informáticos.

            Contudo, daí não se poderá concluir que se tenha pretendido prescindir, quanto ao processo executivo, da efectiva negligência das partes enquanto causa/requisito da situação do processo a aguardar impulso processual, de resto, exigência ou pressuposto claramente expresso na letra e no espírito da lei.

            A “negligência das partes”, segundo a citada previsão legal, pressupõe a efectiva omissão da diligência normal em face das circunstâncias do caso concreto [não resultando da lei que o exequente sempre devesse impulsionar os autos e reagir contra qualquer aparente paralisação superior a seis meses…], não podendo, assim, vingar uma qualquer responsabilidade automática/objectiva susceptível de abranger a mera paralisação aparente (por vezes, fruto de omissões e imprecisões graves do processo electrónico/informático).[8]

            4. Esta a perspectiva que domina na jurisprudência das Relações e que, nesta Relação, será até unânime.

            Na verdade, tem-se defendido que, no processo executivo, se é certo que a deserção da instância opera automaticamente - independentemente de qualquer decisão judicial que a declare - ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes.

            E tão pouco bastará, para esse efeito, que o processo esteja parado por culpa do agente de execução em promover os seus termos - o agente de execução, sendo embora escolhido pelo exequente, não está no processo ´como mandatário do exequente, ainda que sem representação, mas como auxiliar de justiça do Estado, escolhido pelo exequente`…E, sendo esta a veste do agente de execução, a sua actuação omissiva, consistente em não andar com o processo, não se ´repercute` automática e irreversivelmente sobre o exequente – sem que este seja notificado para se pronunciar sobre a paralisação processual decorrente de tal actuação omissiva – e não pode valer e ser ´iuris et de iure` considerada como inobservância, por negligência, do ónus de impulso processual por parte do exequente.

            A inércia do agente de execução poderá determinar a sua destituição por incumprimento dos deveres inerentes às funções de que foi encarregado, mas, ainda que perdure por mais de seis meses, não será suficiente para fazer operar a deserção da instância, já que essa inércia não se repercute, de forma automática e imediata, sobre o exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para a parte o ónus de reagir contra essa inércia, requerendo, designadamente, a destituição do agente de execução - o exequente apenas terá o ónus de reagir contra a inércia do agente de execução (para se concluir que, não o fazendo, a falta de movimento processual lhe é imputável) se for notificado para esse efeito, pelo que, constatando-se que o processo não apresenta movimento durante um período temporal que seja bastante para concluir que o agente de execução não está a cumprir os seus deveres, deverá o Tribunal notificar o exequente para requerer o que tiver por conveniente em face desse incumprimento; só a partir de então se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes.[9]

            5. Reafirmando o referido entendimento, já se argumentou, de forma impressiva, que a ´solução final` (extinção da instância, por deserção) que se pretende dar ao processo, não pode ser sentenciada sem sujeitar a contraditório o que objectivamente resulta dos autos.

            Ainda que possam existir casos em que o contraditório prévio se mostre, aparentemente (em face de elementos dos autos), desnecessário e inútil - tanto por a negligência ser já patente, como por ser evidente a falta dela -, mesmo em tais hipóteses, há (sempre) que admitir que possa ter acontecido algo que, num plano de normalidade, não se entrevê, pelo que há que conceder ao ´visado` a possibilidade de o explanar.[10]

            6. Sabemos que no direito português anterior à reforma da acção executiva (operada pelo DL n.º 38/2003, de 08.3), cabia ao juiz a direcção de todo o processo executivo: cumpria-lhe providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento.

            Com a reforma de 2003, reduziu-se a intervenção do juiz no processo, cabendo-lhe ainda, inicialmente, por um lado, controlar a actividade do agente de execução e, por outro lado, decidir todas as questões suscitadas pelas partes ou terceiros intervenientes, inseridas na reserva constitucional de jurisdição, entre as quais a resolução de litígios entre as partes (cf., nomeadamente, o disposto no art.º 809º do CPC, nas redacções conferidas pelos DL n.ºs 38/2003, de 08.3 e 226/08, de 20.11).

            Actualmente (CPC de 2013) e no desenvolvimento de novas alterações ao processo executivo[11], os poderes do juiz foram drasticamente limitados.

            O juiz passou a exercer funções de tutela, intervindo em caso de litígio surgido na pendência da execução (art.º 723º, n.º 1, alínea b)), e de controlo, proferindo nalguns casos despacho liminar e intervindo para resolver dúvidas, garantir a protecção de direitos fundamentais ou matéria sigilosa (cf. os art.ºs 723º, n.º 1, alíneas a) e d), 726º, 738º, n.º 6, 749º, n.º 7, 757º, 764º, n.º 4 e 767º, n.º 1) ou assegurar a realização dos fins da execução (cf. os art.ºs 759º, 773º, n.º 6, 782º, n.ºs 2 a 4, 814º, n.º 1, 820º, n.º 1, 829º, n.ºs 1 e 2 e 833º, n.º 2), mas deixou de ter a seu cargo a promoção das diligências executivas, não lhe cabendo, nomeadamente, em regra, ordenar a penhora, a venda ou o pagamento, ou extinguir a instância executiva - a prática de tais actos, eminentemente executivos, bem como a realização de várias diligências do processo de execução, quando a lei não determine diversamente, passaram a caber ao agente de execução (art.ºs 719º, n.º 1 e 720º, n.º 6).

            Foi assim deslocado para um profissional liberal o desempenho dum conjunto de tarefas, exercidas em nome do tribunal, sem prejuízo da possibilidade de reclamação para o juiz dos actos ou omissões por ele praticados (art.º 723º, n.º 1), cabendo ao exequente proceder à sua designação e à sua destituição ou substituição, e criando-se um órgão disciplinar com o poder de destituição fundada (Comissão para a Eficácia das Execuções – cf., por último, o art.º 40º, n.º 1 da Portaria n.º 282/2013, de 29.8), regime mantido pelo CPC de 2013, ainda que o exequente deva, agora, expor o motivo da substituição (art.º 720º, n.º 4).

            Dúvidas não restam, assim, de que, sem retirar a natureza jurisdicional ao processo executivo, encontra-se hoje plenamente implantado um sistema caracterizado pela larga desjudicialização (entendida como menor intervenção do juiz nos actos processuais) e a diminuição dos actos praticados pela secretaria.[12]

            7. Vem sendo igualmente entendido que, considerada a pouca clareza do texto do art.º 281º quanto à competência para determinar a deserção da instância (e sem prejuízo do disposto no art.º 723º, n.º 1, alíneas c) e d)) e não havendo atribuição da competência para o efeito, quer ao juiz do processo, quer à secretaria, cabe ao agente de execução, nos termos do art.º 719º, n.º 1, decidir, em primeira linha, da deserção da instância do processo executivo.

            Na verdade, decorre da regra de competência residual estabelecida no art.º 719º, n.º 1, que o agente de execução tem competência para efectuar todas as diligências do processo executivo que não sejam da competência da secretaria (art.º 719º, n.ºs 3 e 4), nem do juiz (art.º 723º). No âmbito desta competência residual cabe a decisão sobre a deserção da instância, dado que a lei não atribui a competência para a decisão sobre aquela deserção nem ao juiz, nem à secretaria. A decisão do agente de execução é naturalmente reclamável para o juiz de execução (art.º 723º, n.º 1, al. c)).

            Esta perspectiva assenta no próprio teor literal do art.º 281º, n.º 5 - ao estabelecer que a instância executiva se considera deserta "independentemente de qualquer decisão judicial", o que demonstra que não é necessária nenhuma decisão do juiz de execução para que a instância se extinga por deserção -, sendo inequívoco que algum órgão tem de declarar a instância extinta e de comunicar essa extinção às partes, aos credores reclamantes e ao tribunal (art.º 849º, n.º 2 e 3), pois que a extinção não ocorre sem essa declaração e não é eficaz sem essa comunicação. Esse órgão só pode ser o agente de execução.[13]

            8. E nesta linha de entendimento conclui-se, ainda, que não há nenhuma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução - apesar de ser possível reclamar para o juiz de execução das decisões e dos actos do agente de execução (art.º 723.º, n.º 1, al. c)), cada um destes órgãos da execução tem uma competência funcional própria: se é evidente que o agente de execução não pode invadir a esfera de competência do juiz de execução (se isso suceder em actos de carácter jurisdicional, a consequência não pode deixar de ser mesmo a inexistência do acto ou da decisão daquele agente), também é claro que o juiz de execução não pode praticar, sob pena de nulidade, actos que pertencem à competência do agente de execução.[14]

            9. O agente de execução “tem o dever de prestar todos os esclarecimentos que lhe sejam pedidos pelas partes, incumbindo-lhe, em especial, informar o exequente de todas as diligências efectuadas, bem como dos motivos da frustração da penhora” [art.º 754º, n.º 1, a)] e esse dever de informação e comunicação do agente de execução perante as partes, garante da transparência na condução de cada processo, foi, por último, especialmente regulado pelo art.º 42º da Portaria n.º 282/2013, de 29.8 (aqui aplicável, na redacção introduzida pela Portaria n.º 233/2014, de 14.11 – cf. art.º 62º, n.º 1).[15]

            10. Assim, na interpretação e aplicação do art.º 281º, n.º 5, haverá, necessariamente, que levar em conta a actual “estrutura” do processo executivo, marcada por uma acentuada desjudicialização, pela limitação dos poderes e da intervenção do juiz e pela ausência de uma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução.

            Mas também não se poderá olvidar a actual “crise” económica e social, e seus efeitos, nomeadamente, ao potenciar o surgimento de novas situações adversas à regular tramitação das acções executivas, o que exigirá, porventura, redobrado ou, pelo menos, diferente empenho na detecção e na resolução de problemas/incidentes emergentes dessa mesma tramitação, quiçá, com uma diferente e mais avisada intervenção judicial.

            11. Decorre do processo electrónico que, em 06.7.2015, por referência à “notificação para penhora de pensão do executado”, o SE solicitou à CGA que informasse “para quando se prevê o términus da penhora a decorrer sobre a pensão”; em 24.8.2015 a CGA informou que o executado possuía penhoras “em curso”, uma no valor de € 142 400,86, encontrando-se outros processos a aguardar o início dos descontos; após, sem que haja notícia de qualquer outro acto processual, foi lançada a mencionada “cota” de 05.4.2016 [cf. II. 1. alíneas f), g) e h), supra].

            Podemos, pois, concluir que o processo estava a aguardar impulso processual há mais de seis meses e imputou-se, por presunção, essa falta de impulso, à exequente, quando é certo que a deserção da instância executiva não dispensa que se apure, concretamente, que a falta de impulso processual dos autos se deve a negligência das partes, sendo que, no caso, não se apurou essa negligência relativamente à exequente.[16]

            Assim, ainda que o processo estivesse sem qualquer movimento processual há mais de seis meses, não existiriam razões para julgar verificada a deserção da instância, porquanto nada resulta dos autos que permita afirmar que essa circunstância se tivesse ficado a dever ao incumprimento de qualquer ónus de impulso processual que recaísse sobre a exequente - apenas está retratada/objectivada nos autos, em termos de paralisação processual, a mera ausência de actos por parte do agente de execução.

            12. Nada apontando no sentido de que a acção executiva se encontrasse parada por falta de impulso da exequente (ou, sequer - ao contrário do que parece resultar da “nota 1” da decisão recorrida -, que a exequente tenha revelado desinteresse pela penhora da pensão do executado), seria porventura de interpelar o agente de execução para que informasse do estado da execução.

            E porque não é a inércia do agente de execução que se pretende punir com a deserção da instância executiva, mas a inércia do exequente, para que a paragem do processo lhe pudesse ser imputável, tinha de lhe ser dado conhecimento do estado do processo e de que, na sequência da informação prestada, o prosseguimento do processo ficaria a aguardar pela sua resposta ou o seu impulso.[17]
            13. Resta dizer que a Secção não tem
competência funcional para aferir da deserção da instância[18], e que, in casu, não se mostravam verificados os respectivos pressupostos, na previsão do art.º 281º, n.º 5 (maxime, o não andamento do processo imputável a falta, negligente, de impulso do exequente), pelo que, em consequência, não podia ser, desde já, declarada a deserção e extinta a instância executiva.


*

            III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento da execução.

            Sem custas.


*

20.9.2016

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Vítor Amaral



[1] Assim identificados: “Todo o mobiliário, aparelhos electrodomésticos, televisão, telefonia e demais recheio que guarnecem a residência dos executados” (fls. 2).
[2] Cf. pág. 359 do processo electrónico.
[3] Atendendo aos elementos levados ao processo electrónico.

[4] A 02.7.2013 havia sido proferido o seguinte despacho: “Tendo em vista a localização de bens que permitam a satisfação do direito de crédito do(a) exequente, nos termos dos artigos 519º-A e 833º nº 3 do Código de Processo Civil, autorizo o requerido pelo(a) Sr.(a) solicitador(a) de execução”.
[5] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem, aplicável à situação em análise (cf. o art.º 6º da Lei n.º 41/2013, de 26.6).

[6] Cf. o acórdão da RP de 02.02.2015-processo 4178/12.2TBGDM.P1, publicado no “site” da dgsi.

[7] Cf., neste sentido, à luz do novo CPC e tendo por objecto acções declarativas, entre outros, os acórdãos da RP de 02.02.2015-processo 4178/12.2TBGDM.P1 e da RC de 05.5.2015-processo 131/04.8TBCNT.C1, publicados no “site” da dgsi.

[8] Cf. o acórdão da RC de 16.12.2015- processo 651/08.5TBCTB-A.C1 (subscrito pelo relator e pela 1ª adjunta), publicado no “site” da dgsi.

[9] Cf. os acórdãos da RC de 01.12.2015-processo 2061/10.5TBCTB-A.C1 [com o seguinte sumário: «1 - Em todas as hipóteses de deserção da instância consideradas no art.º 281º do CPC se exige e alude à “negligência das partes”. 2 - Assim, embora o art.º 281º/5 do CPC, a propósito do processo de execução, diga que se “considera deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial”, tal não obsta a que, por despacho, se proceda à apreciação da imputação subjectiva da paralisação processual. 3 - Estando apenas retratado nos autos, em termos de paralisação processual, a ausência de actos por parte do agente de execução, tal é insuficiente para, sem notificar o exequente para se pronunciar sobre tal paralisação processual, estabelecer a sua negligência na paragem do processo.»] e 14.6.2016-processo 500/12.0TBAGN.C1 [assim sumariado: «I - Ainda que, no domínio do processo executivo, a deserção da instância opere automaticamente – independentemente, portanto, de qualquer decisão judicial que a declare – ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; para que tal deserção se tenha por verificada, será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes, sendo irrelevante, para esse efeito, a falta de impulso processual que apenas é imputável ao agente de execução. II - Estando o processo a aguardar, há mais de seis meses, a realização de diligências que são da competência do agente de execução, não poderá concluir-se, sem mais, que a falta de movimento processual é imputável a negligência do exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para este o ónus de reagir e tomar posição sobre a inércia e o incumprimento do agente de execução. III - Assim, constatando-se que o processo não apresenta movimento durante um período temporal significativo que seja bastante para concluir que o agente de execução não está a cumprir os deveres inerentes ao cargo, deverá o Tribunal notificar o exequente para requerer o que tiver por conveniente em face desse incumprimento; só a partir desse momento se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes.»], publicados no “site” da dgsi.

   Com idêntico entendimento, cf. ainda, entre outros, os acórdãos da RP de 14.3.2016-processo 317/06.0TBLSD.P1, RC de 07.6.2016-processo 302/13.6TBLSA.C1 [referindo-se no ponto 3 do sumário: “Não dependendo, em regra, a marcha do processo executivo do impulso do exequente, só se poderá falar em inércia do exequente para promover os respectivos termos se for expressamente notificado, por parte do agente de execução ou por determinação do tribunal, de que o processo ficará a aguardar a sua resposta ou impulso.”] e 06.7.2016-processo 132/11.0TBLSA.C1, RL de 26.3.2015-processo 2530-09.0TBPDL-A.L1-2, 16.6.2015-processo 1404/10.6TBPDL.L1-7 e 09.7.2015-processo 3224/11.1TBPDL.L1-2 e da RG de 02.5.2016-processo 1417/10.8TBVCT-A.G1, publicados no “site” da dgsi.

[10] Cf. o citado acórdão da RC de 06.7.2016-processo 132/11.0TBLSA.C1.
[11] Por exemplo, com o DL n.º 226/08, de 20.11, o juiz perdeu o poder geral de controlo (que o anterior art.º 809º do CPC lhe conferia) e o poder de destituir, fundadamente, o agente de execução (cf. a redacção introduzida ao art.º 808º do CPC).
[12] Vide, neste sentido, J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 29 a 34.

[13] Cf. o acórdão da RE de 19.11.2015-processo 84/13.1TBFAL.E1 [concluindo-se: “Não havendo atribuição da competência para o efeito, quer ao juiz do processo, quer à secretaria, cabe ao agente de execução, nos termos do art.º 719º, n.º 1, do CPC, decidir, em primeira linha, da deserção da instância do processo executivo.”] e a posição expressa sobre esta matéria pelo Professor Teixeira de Sousa no “blogue do IPPC.

   Em idêntico sentido, cf. o citado acórdão da RC de 07.6.2016-processo 302/13.6TBLSA.C1, relatado pela aqui 1ª adjunta [onde se refere: “Também relativamente à extinção da instância por deserção, a competência para a aferição dos seus pressupostos, incumbirá, em regra, ao agente de execução” e, depois, “Admitimos ainda que, nalgumas situações, também o juiz a poderá apreciar oficiosamente, desde que os autos lhe forneçam elementos seguros e objectivos para tal: por ex. se a inércia do exequente se segue a alguma interpelação por parte do tribunal ou após se ter certificado junto do AE, do estado do processo e de que os autos se encontram efectivamente parados pelo facto de se encontrarem dependentes de algum ato a praticar pelo exequente, e que tal inércia se prolonga há mais de seis meses.”].

[14] Cf. o dito artigo do Professor Teixeira de Sousa no “blogue” do IPPC.

[15] Cf. o preâmbulo da Portaria n.º 282/2013, de 29.8 e o n.º 1 do art.º 62º (sob a epígrafe “conteúdo do dever de informação e comunicação” e referente ao processo electrónico), que preceitua: O sistema informático de suporte à actividade dos agentes de execução assegura a disponibilização ao exequente, através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, no endereço http://citius.tribunaisnet.mj.pt, de informação sobre: a) O resultado das diligências prévias à penhora, previstas nos artigos 748º e 749º do CPC; b) Todas as demais diligências efectuadas pelo agente de execução ou sob sua responsabilidade; c) O motivo de frustração da penhora (n.º 1).

[16] Cf., a propósito, a decisão sumária desta Relação de 14.6.2016-processo 4386/14.1T8CBR.C1, publicada no “site” da dgsi.
[17] Cf. os arestos mencionados na “nota 9”, supra.

[18] Cf. o citado acórdão da RC de 07.6.2016-processo 302/13.6TBLSA.C1.