Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45764/19.3YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: AÇÃO DE HONORÁRIOS
MUNICÍPIO
TRIBUNAL MATERIALMENTE COMPETENTE
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 4º, Nº 1, AL. E) DO ETAF.
Sumário: Para conhecer de um litígio – acão de honorários - emergente da execução de um contrato de mandato (judicial) celebrado entre uma sociedade de advogados e um Município, dado o mesmo estar sujeito a legislação sobre contratação pública, são competentes os tribunais da jurisdição administrativa – art. 4º, nº 1, e), do ETAF.
Decisão Texto Integral:





I – Relatório

1. A... – Sociedade de Advogados, Sp, Rl, com sede em ..., apresentou, em Maio de 2019, requerimento de injunção contra o Município de ..., peticionando o pagamento da quantia de 11.172€, sendo 9.000€ de honorários, acrescidos de 2.070€ relativos a IVA, mais juros vincendos sobre o capital em dívida até integral pagamento, bem assim como o pagamento de 102 € de taxa de justiça.

Alegou ter sido mandatada pelo R., com procuração passada em Maio de 2011, para, em sua representação, instaurar contra .., uma acção judicial cível para que fosse decretada a resolução de contrato de arrendamento, celebrado entre o R. e a referida Ré, bem como a condenação desta a despejar e a entregar o respectivo locado e a pagar as rendas vencidas e vincendas. O que fez, em Outubro de 2011, e cuja acção teve o seu termo em Setembro de 2017. Apresentou nota de despesas e honorários ao réu, em Maio de 2018, mas este não pagou.

O réu deduziu oposição, onde invocou a incompetência do tribunal em razão da matéria, por entender ser competente a jurisdição administrativa.

*

Foi proferido despacho que julgou a exceção de incompetência em razão da matéria improcedente.

2. O R. recorreu, concluindo que:

1. Em causa está a apreciação de um contrato de prestação de serviços acertado entre o ilustre advogado autor e o réu Município em inícios de 2007, o qual se veio a consubstanciar em 21 contratos de mandato para representação judicial deste por aquele, até 24 de Outubro de 2013.

2. O contrato de prestação de serviços e o mandato (que não é mais que uma forma daquele outro) são reconduzíveis à categoria de contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público a que refere o nº 6 do art. 1º do CCP, enquadrando-se pois na qualificação de contratos administrativos.

3. Sendo a ré uma autarquia local, é aplicável aos contratos sub judice o regime da contratação pública ex vi o nº 2 do art. 1º do CCP.

4. O Código dos Contratos Públicos integra o conceito de «legislação sobre contratação pública» nos termos e para os efeitos do da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

5. A entender-se ser aplicável a lei em vigor à data do acerto da prestação de serviços (ou seja, início de 2007), sempre a aquisição de serviços sub judice se reconduziria ao conceito de «contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público» [cfr. art. 4º 1 e) do ETAF na redacção da Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro].

6. Em qualquer dos casos sempre será materialmente competente para conhecer da acção sub judice a jurisdição administrativa, sendo aliás irrelevante para a determinação da competência a natureza privada ou administrativa do contrato.

7. Declarando competente a jurisdição comum, a douta decisão recorrida terá feito errada interpretação – e assim violado – as regras dos arts. 4º, 1 e) do ETAF, 1º, 2 e 6 do CCP.

8. Deveria o Mmo Juiz o quo ter proferido decisão declarando a incompetência em razão da matéria do tribunal cível.

TERMOS EM QUE,

Com suprimento de V.Exas – que se espera e reclama – haverá de proceder o presente recurso, por ele se revogando a decisão recorrida, substituindo-a por outra que declare a incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, absolvendo o réu na instância, com custas na forma da lei, assim se fazendo JUSTIÇA.

3. A A. não contra-alegou.

II – Factos Provados

A factualidade a considerar é a que resulta do Relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Incompetência em razão da matéria do tribunal recorrido.

2. No despacho recorrido escreveu-se que:

“Como é sabido o nexo de competência fixa-se no momento em que a ação é proposta, relevando para efeitos de fatores atributivos de competência, o pedido formulado e a causa de pedir, no quadro da lei vigente a essa data.

No caso, na conformação que a Autora dá à lide, está em causa o incumprimento por parte do Município da obrigação de pagamento do preço dos serviços jurídicos prestados pelo Autor, no âmbito de um contrato de mandato.

O contrato remonta ao período compreendido entre 09-09-2010 a 08-05-2018.

A Autora foi mandatada pelo Réu para, em sua representação, instaurar contra a ..., uma ação judicial – então, designada acção com processo ordinário, para que fosse decretada a resolução de contrato de arrendamento, celebrado entre o Município ... e a Ré, ..., e ainda a condenação desta a despejar e a entregar ao Município de ... A petição inicial deu entrada no Tribunal Judicial de ..., onde a ação correu termos como Proc.n.º ...

É quanto basta para ajuizar da competência deste tribunal para a presente causa.

A corroborar este entendimento, o disposto no art 73.º, do CPC (com as especificidades decorrentes da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).”.

Não se acompanha tal fundamentação jurídica, desde logo porque a norma do art. 73º do NCPC é de competência territorial e o que primeiramente interessa considerar é se o tribunal judicial recorrido é competente materialmente, a coberto do art. 64º do mesmo código.

A argumentação do recorrente é a seguinte:

Está-se pois perante um contrato de mandato celebrado entre o Município de ... e a ilustre sociedade de advogados autora, resultando igualmente do alegado na p.i. que tal contrato se desenvolveu ao longo do período desde data anterior a 11.10.2011 …e se ele mostra titulado pela procuração forense outorgada pelo Município em favor da sociedade autora e pela respectiva junção aos autos por este mesma sociedade.

Não parece oferecer dúvida que o mandato seja uma das modalidades do contrato de prestação de serviços, como literalmente dispõe o art. 1155º do Código Civil.

Por seu turno, o art. 1º do Código dos Contratos Públicos define no seu nº 2 que «o regime da contratação pública estabelecido na parte II do presente Código é aplicável à formação dos contratos públicos, entendendo-se por tal todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código», adiantando nº 1 do art. 3º do mesmo diploma que «são entidades adjudicantes: (…) c) As autarquias locais». Dúvidas também se não suscitam que o réu Município é uma autarquia local, designadamente para efeitos do disposto neste último normativo.

Por outro lado, o nº 6 do art. 1º do mesmo CCP define que «reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer uma das seguintes categorias:

a) Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito

público (…)»

Ora,

Resulta directamente do nº 2 alínea e) do art. 16º do CCP que «as prestações típicas abrangidas pelo objecto» do contrato de aquisição de serviços … devem prosseguir o procedimento da Parte II do mesmo código.

Salvo melhor entendimento, o Código dos Contratos Públicos integra o conceito de «legislação sobre contratação pública» nos termos e para os efeitos do da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF, sendo que, por força do já exposto, o contrato de prestação de serviços acordado entre autor e réu Município integra o conceito de «contratos administrativos ou (…) quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública», estando pois as questões sobre a sua interpretação, validade e execução cometidas à jurisdição administrativa e fiscal.

Em todo o caso e ainda que se entendesse que a lei aplicável seria aquela em vigor à data do acerto da prestação de serviços (alegadamente antes de Outubro de 2011, cfr. 2º parágrafo dos fundamentos da p.i., sempre a aquisição de serviços sub judice se reconduziria ao conceito de «contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público» [cfr. art. 4º 1 e) do ETAF na redacção da Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro]. Como entendia a doutrina, «os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos desta alínea e), são quaisquer contratos – administrativos ou não, com excepção dos de natureza laboral, por força da alínea d) do art. 4º /3 – que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento précontratual regulado por normas da direito administrativo. (…) A competência contratual da jurisdição administrativa vale, portanto, quer no caso de o procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, quer no caso de a entidade administrativa contratante – por não ser tal forma obrigatória (só permitida) – ter optado legalmente por uma forma de pré-contratação de natureza privatista» 1.Cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, vol. I, ed. Almedina, Coimbra 2004, pp. 48 ss., p. 50.

Resulta assim, salva melhor opinião, que no processo sub judice, existe competência material da jurisdição administrativa, sendo pois o tribunal cível incompetente em razão da matéria.

No mesmo sentido, aliás, em processo que apreciava uma situação em tudo idêntica à presente 2Em causa estava a jurisdição competente para decidir uma acção de honorários devidos pela propositura e acompanhamento de uma acção, na qual as mandatárias representaram judicialmente um município., decidiu recentemente o Tribunal dos Conflitos 3Vide Ac. do Tribunal dos Conflitos de 11 de Janeiro de 2017 proferido no Procº 020/16, in www.dgsi.pt/jcon.: «para julgar o presente processo é competente a jurisdição administrativa, sendo irrelevante para a determinação da competência a natureza privada ou administrativa do contrato» 4Vide Ac. do Tribunal dos Conflitos de 11 de Janeiro de 2017 proferido no Procº 020/16, in www.dgsi.pt/jcon.. Também este mesmo Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 24.10.2017, deixou expresso o entendimento jurisprudencial a tal propósito: «Em ação de honorários de advogado contra demandando/cliente privado (pessoa jurídica privada), mesmo que por patrocínio judiciário executado em processo da esfera da jurisdição administrativa e fiscal, são materialmente competentes os Tribunais Judiciais. Porém, são competentes os Tribunais Administrativos para conhecer de litígio decorrente da execução de contrato de prestação de serviços de advogado celebrado com um Município (cliente), por esse mandato judicial estar, à luz do disposto no DLei

n.º 197/99, de 08-01, sujeito a um regime pré-contatual de direito público (art.º 4.º, n.º 1, al.ª e), do ETAF, na redação anterior à introduzida pelo DLei n.º 214/G/2015, de 01-12)» 5Cfr. sumário do Ac. do TRC de 24.10.2017 proferido no Procº 6024/15.6T8VIS-A.C1, in www.dgsi.pt/jtrc.”.

Concorda-se, inteiramente, com este discurso jurídico. Importando aclarar e precisar os seguintes cinco pontos, para total compreensibilidade.

- a redacção completa do art. 4º, nº 1, e), do ETAF, única que interessa considerar, pois a presente acção foi proposta em Maio de 2019, é a actual (na redacção emergente do DL 214-G/2015, de 2.10) que reza que:

1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

(…)
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e
execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;- o sublinhado é nosso.

-  a redacção do art. 1º, nº 2, e 2º (e não 3º), nº 1, c), do Código dos Contratos Públicos, que é a indicada pelo recorrente, é a original e a que interessa levar em conta, pois o contrato de mandato entre a A. e o R. ocorreu por volta de Maio de 2011.

- O mesmo acontece com o apontado art. 16º, nº 2, e), referido pelo recorrente. A redacção completa é a seguinte:

1 - Para a formação de contratos cujo objeto abranja prestações que estão ou sejam suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, as entidades adjudicantes devem adotar um dos seguintes tipos de procedimentos:

a) Ajuste direto;

(…)
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, consideram-se submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objeto dos seguintes contratos, independentemente da sua designação ou natureza:

(…)
e) Aquisição de serviços;

(…).

Sendo que o contrato entre o R. e a A. acabou por ser celebrado por ajuste directo (como resulta de cópia do despacho do Sr. Presidente da Câmara, junto aos autos).

- No citado Ac. do Trib. Conflitos, em que a questão a decidir era a de saber qual a jurisdição competente para decidir uma acção de honorários devidos pela propositura e acompanhamento de uma acção (uma acção administrativa que correu termos no TAF), em que as mandatárias representaram o Município, apropriadamente argumentou-se que:

Consequentemente, para julgar o presente processo é competente a jurisdição administrativa, sendo irrelevante para a determinação da competência a natureza privada ou administrativa do contrato. Na verdade, como decorre do art. 4º, 1, al. e) do ETAF, o elemento determinante da competência não é a natureza jurídica da relação jurídica de onde emerge o litígio, mas sim a sujeição do mesmo ou a possibilidade da sua sujeição a um regime pré-contratual de direito público, o que quer dizer que a jurisdição administrativa é competente quer a relação jurídica subjacente seja, ou não, uma relação jurídico-administrativa.”.

- No mencionado Ac. da Rel. Coimbra, em que a questão a decidir era a de saber qual a jurisdição competente para decidir uma acção de honorários devidos pela prestação de vários serviços de advocacia, em que o mandatário representou o Município, concluiu-se que:

2. Porém, são competentes os Tribunais Administrativos para conhecer de litígio decorrente da execução de contrato de prestação de serviços de advogado celebrado com um Município (cliente), por esse mandato judicial estar, à luz do disposto no DLei n.º 197/99, de 08-01, sujeito a um regime pré-contatual de direito público (art.º 4.º, n.º 1, al.ª e), do ETAF, na redação anterior à introduzida pelo DLei n.º 214/G/2015, de 01-12).”.

Importa, agora, finalizar.
Estando em jogo, no nosso caso, o conhecimento sobre a execução de um contrato celebrado ao abrigo de legislação sobre contratação pública, valem, assim, de pleno, toda a argumentação invocada, pelo que só pode concluir-se que é materialmente competente a jurisdição administrativa para conhecer da presente ação de honorários forenses em que é demandado um município.
Procede a apelação, devendo absolver-se o R. da instância, em conformidade com o disposto nos arts. 96º, a), 99º, nº 1, e 278º, nº 1, a), do NCPC.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Para conhecer de um litígio – acção de honorários - emergente da execução de um contrato de mandato (judicial) celebrado entre uma sociedade de advogados e um Município, dado o mesmo estar sujeito a legislação sobre contratação pública, são competentes os tribunais da jurisdição administrativa – art. 4º, nº 1, e), do ETAF.

IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, e, em consequência, se declara a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal judicial recorrido, por ser competente a Jurisdição Administrativa, assim se absolvendo o R./Município da instância.

Custas pela A.

                                                                                       Coimbra, 23.2.2021

                                                                                       Moreira do Carmo

                                                                                       Fonte Ramos

                                                                                       Alberto Ruço