Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5867/18.3T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
CREDOR
ALIMENTOS
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 8CC
Sumário: O progenitor que conviva com os filhos não tem legitimidade, como credor, para pedir a declaração de insolvência do outro progenitor, quando a dívida cujo incumprimento se imputa a este último é dívida de alimentos aos filhos do casal, já de maioridade à data do pedido da declaração de insolvência.
Decisão Texto Integral:



Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

J (…), residente (…), pediu a insolvência de JR (…) residente (…), .

Fundamentou o pedido na seguinte alegação:
1. Que o requerido, que é casado com a requerente, foi condenado a pagar, em processo de regulação das responsabilidades parentais, a cada uma das duas filhas do casal, a quantia de 150 euros, a título de alimentos, a partir de 20 de Junho de 2014;
2. Que o requerido não pagou qualquer prestação de alimentos desde Junho de 2014 até ao momento em que foi apresentado o presente pedido de insolvência;
3. Que o requerido está desempregado;
4. Que os factos demonstram que o requerido não cumpre, desde Junho de 2014, com a generalidade das suas obrigações;
5. Que o requerido está em situação de insolvência.

Citado, o requerido opôs-se ao pedido. Na sua defesa impugnou o valor dado à acção, alegou que a requerente não gozava de legitimidade para pedir a declaração de insolvência, dele, requerido, e impugnou a alegada situação de insolvência.

Após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que declarou a insolvência do requerido.

O requerido não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse a sentença com todas as consequências legais.

As razões pelas quais pede a revogação da sentença são, em resumo, as seguintes:
1. A recorrente é parte ilegítima, nos termos dos artigos 30.º, n.º 1, do CPC, e 20.º, n.º 1 do CIRE, devendo o recorrente ser absolvido da instância, cfr. Artigo 278.º, n.º 1, alínea d) do CPC;
2. O depoimento de S (…) e A (…) , como testemunhas, foi ilícito, nos termos dos artigos 496.º, 452.º e seguintes e 466.º do CPC e, por isso, não valorável;
3. Não está demonstrada a verificação dos elementos constitutivos da presunção do artigo 20.º, alínea b), do CIRE;
4. Está provada a razão do não pagamento, que não tem nada a ver com impossibilidade, afastando o artigo 3.º do CIRE;
5. Estão provados nos autos património e rendimentos de sobra para pagar a dívida alegada;
6. É excessivo por desproporcionado requerer a insolvência de alguém que tem património e rendimentos mais do que suficientes para pagar a dívida integralmente, sem previamente seguir qualquer dos meios normais de cobrança do crédito.

Não houve resposta da requerente.


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O recurso suscita fundamentalmente as seguintes questões:
1. Saber se a sentença decidiu correctamente quando afirmou que a requerente gozava de legitimidade para pedir a declaração de insolvência;
2. Saber se a sentença decidiu correctamente quando afirmou que estava verificada presunção de insolvência prevista no artigo 20.º, n.º 1, alínea b);
3. Saber se o depoimento de S (…) e A (…) , como testemunhas, é ilícito porque, na realidade são partes ou devem ser equiparadas às partes;
4. Saber se é desproporcionado requerer a insolvência de alguém que tem património e rendimentos mais do que suficientes para pagar a dívida, sem previamente seguir qualquer dos meios normais de cobrança do crédito.

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Não tendo havido impugnação da decisão relativa à matéria de facto e não havendo razões para a alterar oficiosamente, julgam-se provados os seguintes factos discriminados na sentença:
1. A requerente J (…), era esposa do requerido.
2. Requerente e requerido têm duas filhas, S (…)  que nasceu em ...de Fevereiro de 1996, e A (…), que nasceu em .... de Abril de 1997.
3. A requerente intentou, em 29 de Fevereiro de 2012, uma acção de regulação das responsabilidades parentais, que correu termos sob o n.º 435/13.9TMPRT-A na Comarca do Porto – Instância Central – 1.ª Secção de Família e Menores – J1.
4. Na sentença proferida no âmbito desta acção, em 3 de Setembro de 2015, foi fixada pelo Tribunal uma prestação mensal, a pagar pelo requerido a título de alimentos, a cada uma das filhas, no valor de € 150,00, com início em 20 de Junho de 2014.
5. O requerido, desde essa data até ao presente, não liquidou nenhuma prestação.
6. O requerido é dono de uma fracção autónoma designada pela letra “B” do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (...) , concelho de (...) , sob o artigo (...) .º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) .
7. Esta fracção está onerada com uma penhora registada a favor da Autoridade Tributária – Serviço de Finanças do (...) – 5 no valor de € 54.079,67.
8. À fracção “B” do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de (...) , concelho de (...) , sob o artigo (...) .º, foi atribuído pelo Serviço de Finanças o valor patrimonial de € 102.770,35.
9. O património comum do casal que foi formado pela requerente e pelo requerido é integrado por uma fracção autónoma designada pela letra “K” do dito prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de (...) , concelho de (...) , sob o artigo (...) .º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) .º.
10. A esta fracção foi atribuído o valor patrimonial de € 110.040,00.
11. O requerido esteve emigrado, até muito recentemente, na (...) .
12. Estava ausente do país quando foi proferida sentença no processo n.º 435/13.9TMPRT-A.
13. Neste processo, o requerido invocou, para justificar o não pagamento das prestações de alimentos, a impossibilidade de transferir fundos da (...) , e falta de rendimentos suficientes para o respectivo pagamento, tendo requerido que o mesmo fosse assegurado pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores.
14. Não tendo o requerido pago as custas do processo em que fora condenado, o Ministério Público não instaurou execução por custas em virtude de serem desconhecidos bens ou rendimentos do devedor.

Factos julgados não provados
a) Que o valor do imóvel, actualmente, atendendo à conjuntura económica que o país atravessa, tem valor inferior ao valor do passivo assumido pelo requerido;
b) Que o requerido está desempregado;
c) Que foi no âmbito da sua ausência que foi condenado, sem oposição, em alguns processos da Segurança Social e Autoridade Tributária;
d) Que Entendendo que nada deve a estas entidades, o requerido está a apurar o estado destes processos e estudar as melhores soluções para se defender deles;
e) Que o requerido não paga os alimentos porque os acha injustos e por entender que, a serem pagos, o devem ser às filhas.


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Descritos os factos, passemos à resolução das questões supra enunciadas.

Como resulta do acima exposto, o recurso suscita várias questões. Quando assim suceda, o tribunal deve conhecê-las segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica. Tendo presente este princípio [enunciado no n.º 1 do artigo 608.º a propósito do conhecimento das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância], impõe-se conhecer, em primeiro lugar, da questão da legitimidade da requerente para pedir a declaração de insolvência do requerido. Com efeito, se a questão obtiver resposta negativa, a consequência é a absolvição do requerido da instância, por aplicação combinada do n.º 2 do artigo 576.º do CPC com a alínea e) do artigo 577.º do mesmo diploma. E se o requerido for absolvido da instância ficará prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recurso. Questões que, com excepção da relativa à ilegalidade do depoimento de S (...) e A (...) como testemunhas, contendem com o mérito da sentença recorrida.


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Legitimidade da requerente para pedir a declaração de insolvência

A sentença sob recurso resolveu a questão da legitimidade suscitada pelo requerido na oposição, no sentido da legitimidade da requerente, dizendo, em resumo, o seguinte: se o progenitor convivente detinha legitimidade para reclamar coercivamente, em processo executivo singular, o pagamento das prestações de alimentos devidas ao filho maior ou emancipado, vencidas durante a menoridade ou após este atingir a maioridade, deveria poder igualmente requerer a insolvência deste quando tal cobrança em execução singular se revelasse inviável. Com efeito – prosseguiu a decisão - sendo o processo de insolvência um processo de execução universal (art.º. 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), ao requerer a declaração de insolvência o progenitor convivente estava a exercer o crédito do filho maior, em substituição processual, como estaria na execução singular. Negar-lhe tal possibilidade, quando pode ter – como tinha no caso – um título executivo exercitável, redundaria numa diferenciação que se julga injustificada quando a execução singular estivesse destinada ao insucesso.

Salvo o devido respeito, os argumentos usados para justificar a legitimidade da autora não têm amparo na lei.

A resposta à questão de saber quem tem legitimidade para uma acção é dada pela lei ou de modo directo, mediante a indicação dos sujeitos que podem propor a acção, ou de maneira indirecta, considerando que tem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor (n.ºs 1 e 2, e 2.ª parte do n.º 3 do artigo 30.º do CPC).

No caso, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [CIRE] dá resposta directa à questão de saber quem tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência de um devedor no n.º 1 do artigo 18.º, no artigo 19.º e no n.º 1 do artigo 20.º. Assim:
1. O n.º 1 artigo 18.º atribuiu legitimidade ao devedor para requerer a declaração da sua insolvência;
2. O artigo 19.º estabelece que, não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores;  
3. O n.º 1 do artigo 20.º atribuiu legitimidade para requerer a declaração de insolvência de um devedor a quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, a qualquer credor e ao Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados.

Segue-se das normas acabadas de indicar que os sujeitos legitimados para pedir a declaração de insolvência de um devedor são os seguintes:
1. O próprio devedor;
2. Aqueles que forem legalmente responsáveis pelas suas dívidas;
3. Qualquer credor;
4. O Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados.

Visto que a requerente invocou expressamente a qualidade de credora do requerido para pedir a declaração de insolvência dele [artigo 6.º da petição inicial], era por referência a tal qualidade que devia ser aferida a legitimidade dela.

Quanto aos factos a ter em conta para tanto, eles eram constituídos pelos que a autora alegara na petição. Com efeito, segundo o n.º 1 do artigo 25.º do CIRE, quando, como sucedia no caso, o pedido proviesse de credor, o requerente da declaração de insolvência devia justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito. Esta solução está em conformidade com a circunstância de a legitimidade que está em causa no n.º 1 do artigo 20.º ser a legitimidade processual e não a legitimidade substantiva [a favor deste entendimento cita-se Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, página 117].

Tendo em conta os factos alegados na petição, a requerente não era credora do requerido. Com efeito, a dívida cujo incumprimento se imputava a ele, era uma dívida de alimentos às filhas do casal, já de maioridade à data do pedido da declaração de insolvência, S (…), nascida em 2/2/1996, e A (…), nascida em 3/04/1997. Dívida que tinha como título a sentença condenatória proferida em 3 de Setembro de 2015, na acção de regulação das responsabilidades parentais das filhas do casal, que correu termos no juízo de Família e Menores do Porto sob o n.º 435/13.9TMPRT-A. Resultava, assim, da petição que quem era credor eram as filhas da requerente e do requerido.

E assim, uma vez que, segundo os factos que a própria requerente alegou na petição, não era ela quem era a credora do requerido, devia o tribunal a quo declará-la parte ilegítima para requerer a declaração de insolvência e, em consequência, absolver o réu da instância, conforme prescreve a alínea d) do n.º 1 do artigo 278.º do CPC, aplicável ao processo de insolvência por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE.

A decisão recorrida, ao afirmar a legitimidade da requerente com os fundamentos acima expostos, argumentou como fosse de equiparar, para efeitos de legitimidade, o processo de insolvência ao processo de execução instaurado pelo progenitor convivente, para pagamento das prestações de alimentos devidos ao filho maior ou emancipado, vencidas durante a menoridade ou após este atingir a maioridade.  

E faz esta equiparação com base na seguinte lógica: sendo o processo de insolvência um processo de execução universal, ao requerer a declaração de insolvência o progenitor convivente está a exercer o crédito do filho maior, em substituição processual, como estaria na execução singular; negar-lhe a possibilidade de requerer a declaração de insolvência, quando tem um título executivo exercitável, redundaria numa diferenciação injustificada, quando a execução singular estivesse destinada ao insucesso.

Salvo o devido respeito, esta equiparação não tem fundamento.    

Em primeiro lugar, não é exacto dizer-se que, sendo o processo de insolvência um processo de execução universal (art.º 1.º do CIRE), ao requerer a declaração de insolvência, o progenitor convivente está a exercer o crédito do filho maior, em substituição processual, como estaria na execução singular. Com efeito, apesar de o n.º 1 do artigo 1.º do CIRE afirmar que o processo de insolvência é um processo de execução universal, o pedido de declaração de insolvência não é assimilável ao requerimento executivo que dá início à execução singular para pagamento de quantia certa. Socorrendo-nos das palavras de Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, página 104 “no pedido de declaração de insolvência não se evoca um direito de crédito para o efeito de conseguir a satisfação através do património do devedor (…). Aquilo que o autor, seja ele qual for, pretende é, invariavelmente, a obtenção de uma sentença judicial que desencadeie o funcionamento dos mecanismos jurídicos adequados às necessidades especiais de tutela criadas pela situação. Esta, portanto, sempre em causa o exercício de um direito de acção judicial-declarativa e não o exercício de um poder de execução”. Mais à frente, página 115, escreve: “… de modo algum requerer a declaração de insolvência equivale a … requerer a execução”.

Em segundo lugar não é pertinente invocar, no caso, a situação da execução singular destinada ao insucesso visto que a requerente não baseou o pedido de insolvência em tal circunstância. Recorde-se que, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, o insucesso da execução singular que fundamenta o pedido de insolvência há-de consistir na “… insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor”.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência:
1. Revoga-se a decisão que declarou a insolvência do requerido;
2. Em substituição da decisão recorrida decide-se julgar a requerente parte ilegítima para a acção e, em consequência, absolve-se o requerido da instância;
3. Julga-se prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recurso.

Visto o disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC e a decisão acabada de proferir, condena-se a requerente nas custas da acção e nas do recurso.

Coimbra, 29 de Janeiro de 2019       

  

Emídio Santos ( Relator )

Catarina Gonçalves

Ferreira Lopes