Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1191/22.5T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI MOURA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO EM PODER DA PARTE CONTRÁRIA
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 429.º, 615.º, 1, B) E 665.º, 1, DO CPC.
ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I-Os documentos destinam-se a fazer prova das alegações de facto que forem feitas nos articulados.
II-A ré não explica o propósito probatório que reserva aos documentos cuja junção pretende da parte contrária, não podendo, pois o tribunal concluir pelo seu interesse para a decisão da causa.
III-Como se sabe, litiga com abuso de direito quem exerce em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante.
IV-Neste momento, face aos articulados das partes, não se alcança que a autora venha exercer o seu direito de acção, através deste processo, de modo ilegítimo, como o define o artigo 334º do CC.
Nada por isso legitima a que oficiosamente se satisfaça a pretensão da ré em se notificar a autora para juntar determinados documentos, apenas porque se defende na contestação, por excepção, invocando abuso de direito por parte da autora.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 2ª Secção Judicial do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

i)-
O processo principal – de que este apenso A é de recurso em separado – trata de uma acção declarativa de condenação com processo comum que
A..., LDA., com sede e estabelecimento principal no Largo ..., ... ...
intenta contra
- B..., LDA., com sede na Estrada ..., ... ... (...)
Com os seguintes fundamentos:
1
A AUTORA é uma sociedade comercial por quotas que se dedica, para além de outras actividades, ao comércio de combustíveis (doc. 1).
2
No âmbito desta sua actividade a AUTORA explora um postos de abastecimento de combustível, sito na Zona Industrial ...,
3
Estando mesmo certificado de acordo com a norma ISO 9001:2015.
4
Durante largos anos foi a RÉ quem fazia o abastecimento de combustíveis à AUTORA
5
Sem que se tivessem verificado, ao longo desses anos, quaisquer conflitos ou desentendimentos.
6
No dia 29-10-2021 a RÉ procedeu à entrega, no posto da AUTORA, de diverso combustível, nele se incluindo, além do mais, 6.000 litros de gasóleo rodoviário (doc. 2),
7
E no dia seguinte (30-10-2021) procedeu ao fornecimento de mais 10.000 do mesmo combustível, fornecimento este que ocorreu logo às primeiras horas do dia (doc. 3).
8
Ora, pouco depois de efectuado a entrega deste combustível no depósito da AUTORA, os veículos abastecidos com ele começaram a manifestar avarias, imobilizando-se mesmo, o que levou a AUTORA a suspender de imediato os abastecimentos,
9
E a contactar com a RÉ, cujos funcionários acabariam por regressar (perto do fim da manhã) às instalações da AUTORA.
10
Constatou-se que o combustível (gasóleo rodoviário) colocado pela RÉ nos depósitos da AUTORA continha uma grande quantidade de água, que o contaminava, e
11
A qual, por sua vez, provocava as avarias referidas nos carros com ele abastecidos.
12
A situação referida nos números anteriores ter-se-á devido, segundo a explicação na altura dada pelos funcionários da RÉ que entretanto haviam regressado às instalações da AUTORA em razão da reclamação de imediato apresentada, à circunstância de os tampões superiores da cisterna do transporte haverem ficado mal fechados durante a noite anterior e à chuva e tempestade verificada na noite anterior, permitindo dessa forma a infiltração de águas no seu interior.
13
O enceramento do posto de abastecimento manteve-se durante todo aquele dia 30 de Novembro de 2021, para que se pudesse proceder ao seu despejo e limpeza
14
Bem como à limpeza das bombas e filtros.
15
Ficando a RÉ de vir proceder ao levantamento do combustível entretanto retirado dos depósitos,
16
O que todavia não fez.
17
Por esse motivo viu-se a AUTORA obrigada a recorrer a outro fornecedor de combustível.
18
Ainda que sem de imediato “cortar” as relações comerciais com a RÉ, uma vez que pretendia, como sempre pretendeu, resolver o seu litígio com ela de forma consensual.
19
Em razão do fornecimento de gasóleo rodoviário “defeituoso” (isto é, com água misturada) a AUTORA sofreu diversos prejuízos.
20
Desde logo o gasóleo (no valor de 14 070,00 €) danificado viria a contaminar o restante gasóleo existente no depósito,
21
Gasóleo este, o previamente existente no depósito, que correspondia a quantidade superior a 20.000 litros (aqui se considerando aquele que a RÉ havia fornecido na véspera, dia 29-10-2021) e cujo valor, aos preços da época, se estima em 34 612,20 €, e
22
Gasóleo que teve de ser todo retirado do depósito, por inutilizado.
23
A AUTORA obrigou-se a ter o seu posto de abastecimento encerrado durante todo o dia de 30 de Outubro de 2021, dada a necessidade de proceder à limpeza do depósito, dos filtros e bombas.
24
E teve ainda de arcar com a substituição junto dos clientes do combustível adulterado, em quantidade de cerca de 1,250 lts (no valor de 2 163,26 €)
25
E com o custo da reparação dos veículos que haviam sido já abastecidos até ao enceramento do posto e viriam a sofrer avarias consequências do combustível adulterado,
26
Nesta parte tendo despendido o montante de 5 250,00 €. (de forma não exaustiva as facturas juntas como doc. 4).
27
Porém, o dano maior sofrido pela AUTORA é ainda de natureza não patrimonial.
28
Não obstante a sua pronta intervenção, procedendo ao enceramento do seu posto de abastecimento e lidando junto dos clientes no sentido de lhes garantir o ressarcimento dos danos sofridos, o certo é que a notícia dos inúmeros carros “avariados” após o abastecimento ali começou a correr na área do concelho e concelhos limítrofes,
29
Afectando a imagem que a AUTORA sempre procurou manter, de competência e profissionalismo,
30
E prejudicando mesmo a sua clientela
31
Uma vez que muitos clientes deixaram de consumir no posto de abastecimento da AUTORA,
32
Dano este de que, não obstante os esforços feitos, a AUTORA não conseguiu recuperar totalmente até à data.
33
Desta forma prejudicando todo o investimento e esforço feito pela AUTORA, seja através da sua certificação, seja por uma prática comercial irrepreensível, criando uma imagem de serviço de excelência, de rigor e de profissionalismo
33
Imagem que a AUTORA sempre cultivou durante o meio século da sua existência.
34
Este dano de ordem não patrimonial merece a tutela do direito e deverá ser ressarcido através de condigna indemnização, a liquidar segundo critério de equidade e em valor nunca inferior a 90.000,00 € (noventa mil euros).
35
Não obstante as inúmeras promessas da RÉ que iria resolver a situação e suportar os danos sofridos pela AUTORA, o certo é que nada fez até à data.
36
Depois de inicialmente se comprometer a ressarcir a AUTORA
37
Recusou-se depois não só a levantar o combustível contaminado.
38
Como a proceder à sua substituição.
39
E a suportar as despesas com as reparações das viaturas que, por abastecidas com aquele combustível, havarem revelado avarias.
40
Daí a necessidade da presente acção.

Conclui:
DEVE A PRESENTE ACÇÃO SER JULGADA PROVADA E PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, CONDENADA A RÉ:
1) A PAGAR À AUTORA A TOTALIDADE DO PREJUÍZO PATRIMONIAL QUE SOFREU, QUE ASCENDE A 56 095,46 € (cinquenta e seis mil noventa e cinco euros e quarenta e seis cêntimos), ACRESCIDO DOS JUROS QUE SE VIEREM A VENCER ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO E CONTADOS DESDE A CITAÇÃO PARA A PRESENTE ACÇÃO.
2) A PAGAR À AUTORA, A TÍTULO DE RESSARCIMENTO PELOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS, O VALOR QUE, EM SEDE DE JUÍZO DE EQUIDADE O TRIBUNAL ENTENDA ADEQUADO, MAS EM MONTANTE NUNCA INFERIOR A 90 000,00 € (noventa mil euros)

Junta procuração e documentos.

ii)-
Citada, a Ré contestou, dizendo:

1. A presente acção carece em absoluto de sentido e fundamento.
2. Como se evidenciará, a mesma radica em factos que não correspondem à verdade.
3. E isto porque a Autora, tem perfeito conhecimento e consciência, que a Ré não é responsável pelos factos que lhe imputa, nem nunca assumiu a sua autoria, sendo de todo descabido o peditório inicial e o inusitado pedido de condenação por danos patrimoniais e de não patrimoniais.
4. Não passando a presente acção de uma torpe tentativa da Autora, para lograr obter um crédito, que lhe permita compensar a divida líquida, certa e exigível que possui perante a Ré decorrente dos fornecimentos de combustíveis efectuados e reconhecida por acordo autenticado.
5. Feita esta breve resenha introdutória, aceitam os RR, aqui Contestantes, como verdade o alegado nos arts 1.º, 2.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 9.º da PI
6. Não é exacto e como tal não reproduz integralmente a verdade, o alegado nos arts 8.º, 10.º, 18.º, e por isso, se impugna.
7. É falso e não corresponde à verdade o alegado nos arts 12.º, 13.º a 16.º, 19.º a 23.º, 27.º a 40.º da P.I., e, por isso, se impugna, inclusive no tocante aos documentos para que se remete. Artºs 374.º do Código Civil e 544.º do Cód. Processo Civil.
8. Por outro lado, a Ré, ignora, sem ao seu conhecimento estar obrigada, a veracidade ou não do alegado nos artºs 3.º, 11.º, 17.º, 24.º a 26.º da P.I, o que alega nos termos e para os efeitos do art. 574°, n° 3, do Cód. Proc. Civil, tb inclusive nos inclusive no tocante aos documentos para que se remete. Artºs 374.º do Código Civil e 544.º do Cód. Processo Civil.

Dos factos:
9. Por documento particular autenticado denominado “ACORDO DE PAGAMENTO”, outorgado no dia 2 de Dezembro de 2021, a aqui Autora “A..., LDA”, confessou-se devedora e obrigou-se a pagar, faseadamente, à aqui Ré, a quantia de 148.579,36€, respeitante ao valor dos fornecimentos de mercadorias que lhe foram efectuados – identificados no extracto junto como Anexo I ao acordo – acrescida de encargos e juros vencidos até à respectiva outorga – conforme documento que se junta e aqui se considera integralmente reproduzido(como todos os demais documentos), para todos os efeitos legais, evitando assim a sua transcrição (documento 1)
10. Porque a Autora não cumpriu o plano de pagamentos, não restou outra alternativa à Ré, esgotadas todas as tentativas para a sua cobrança extrajudicial, avançar para a cobrança coerciva do remanescente do valor em dívida, inscrito na confissão de dívida, execução que deu entrada no dia 23/02/2022.
11. Estando a correr neste tribunal, no Juízo de Execução, Juiz ... o processo executivo com o número ...2..., em que outrossim figura como exequente e credora a aqui Ré e executada a aqui Autora e fiador, seu representante legal, AA. Cfr. Documento 1

Por excepção: - DO ABUSO DO DIREITO:
12. A Ré manteve durante largos anos uma relação comercial com a Autora, como inequivocamente o demonstra o extracto de conta corrente em anexo. Cfr. Documento 2
13. Esta relação foi pautada por constantes atrasos na liquidação do valor inscrito nas facturas no respectivo prazo, com cheques devolvidos, transferências programadas e posteriormente canceladas.
14. Como se referiu supra, Autora e Ré, esclarecidas e conciliadas no respectivo clausulado, outorgaram no dia 2 de Dezembro de 2021. “ACORDO DE PAGAMENTO”.
15. A Autora efectuou pagamentos por conta desse acordo, cujo saldo de capital em divida (sem juros, despesas ou penalidades) ascende actualmente a 60.322,20 € conforme extracto actualizado que se junta. Cfr. Documento 3
16. A Autora nunca questionou a validade desse acordo/contrato, bem pelo contrário, sempre afirmou, a vontade de o cumprir.
17. Não fazendo na mesmo qualquer ressalva ou reserva relativamente às responsabilidades que ora demanda a Ré.
18. E de que tinha pleno saber, inclusive dos prejuízos que ora demanda, fazendo fé dos documentos por si juntos, além do mais, considerando a anterioridade dos factos que constituem causa de pedir na presente acção. (vide docs 4 da PI).
19. Sendo forçoso de concluir, inclusive na dimensão valorativa das “regras da experiência comum” que se fosse vontade da Autora imputar à Ré a responsabilização por tais prejuízos/ocorrência (o que nunca fez) esta não teria outorgado esse acordo e/ou assumido a integralidade da sua divida perante a Ré.
20. Nunca tendo a Autora, manifestado a sua vontade de exigir responsabilidades à Ré, em qualquer momento que fosse, inexistindo qualquer interpelação, inclusive escrita, para esta as satisfazer.
21. Ao ter lançado mão da presente acção após a instauração da execução a Autora mais não visa do que tentar evitar o pagamento do preço que se obrigou a pagar pelos fornecimentos que lhe foram efectuados pela Ré.
22. Tal conduta, além de violar as regras mais elementares da boa-fé, é manifestamente abusiva, traduzindo claramente um ‘venire contra factum proprium’, o que consubstancia um clamoroso abuso de direito – que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos.
23. O abuso do direito apresenta-se como um conjunto de situações típicas em que o direito, por exigência do sistema, entende paralisar um comportamento que, em princípio, se apresentaria como legítimo, porém, não raras vezes, antes deverá considerar-se ilegítimo, no caso concreto, pelo decurso do tempo e pela confiança que a inércia do Autor criou, funcionando como uma válvula do sistema.
24. O princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa-fé e o caso concreto, que exige que as partes sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas (no que ao caso concreto concerne, conforme referido supra, a Autora nunca anteriormente exigiu qualquer responsabilidade á aqui Ré, nem nas circunstância de tempo a que alude na PI, nem ulteriormente.
25. A parte que confie, legitimamente, num certo estado de coisas, não pode ser tratada como se não tivesse confiado, uma vez que a tutela da confiança, apoiada na boa-fé deve nortear todas as relações jurídicas.
26. No caso concreto a postura manifestada na acção em apreço, em que, a Autora, volvidos quase 6 meses (Outubro de 2021), em relação aos factos que constituem a causa de pedir, aproveitando a existência da execução a que se aludiu supra, vem reclamar a existência de “defeitos” no fornecimento de combustível concretizado em Outubro de 2021, nunca anteriormente reclamados, constitui uma situação de abuso de direito, na modalidade de “Venire Contra Factum Proprium”.
27. Pretende-se, pois, com esta figura censurar o comportamento da parte cuja inacção/inércia atinge a outra parte que depositou a sua confiança num determinado comportamento.
28. A postura da Autora contraria e viola os princípios da boa-fé que devem nortear todas as relações jurídicas.
29. Em quaisquer relações jurídicas, as partes devem proceder segundo as regras da boa-fé, em respeito pelo disposto no artigo 762º do Código Civil.
30. A conduta da Autora, supra descrita, objectivamente e subjectivamente considerada, é ostensivamente contrária à boa-fé, bons costumes e fim social ou económico do direito em causa, em violação do artigo 334º do Código Civil, na medida em que contraria a conduta anteriormente adoptada pela Autora, pelo que se traduz num “venire contra factum proprium”.
31. O exercício de qualquer direito está sujeito a limites e restrições.
32. Nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
33. Refere Baptista Machado na RLJ, ano 118, pág. 171 e 172 – que se transcreve para mais fácil análise – é necessário, em primeiro lugar, que aquele contra quem é invocado o abuso de direito, tenha criado “(…) uma situação objectiva de confiança (…)”, ou seja, tenha tido uma conduta que, “(…) objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará coerentemente, de determinada maneira (…).
Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação da confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro”.
34. Em segundo lugar, é necessário que, “(…) com base na situação de confiança criada (…)”, a contraparte tome “disposições ou organize planos de vida de que lhe surgirão dúvidas, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada”.
35. E em terceiro lugar, é necessária a “boa-fé da contraparte que confiou”.
36. E só por isto, prima facie, a acção deverá improceder na totalidade, sendo a Ré absolvida do pedido.

Por impugnação:
37. No dia 29-10-2021 a Autora, solicitou à Ré o fornecimento de 6 000 Lts de Gasóleo Rodoviário, tendo a Autora emitido a respectiva guia de carga e de entrega n.º 59/196, bem como a Factura número ...91 de 29-10-2021. Cfr. Documento(s) 4
38. No final desse mesmo dia, solicitou novo reabastecimento, de 10000 Lts, tendo a Autora emitido a respectiva guia de carga e de entrega n.º 59/197, bem como a Factura número ...55 de 30-10-2021. Cfr Documento(s) 5
39. Logo após essas descargas e inclusive estando os funcionários da Ré ainda no Posto, a Ré iniciou os abastecimentos a clientes, sem inutilizar o combustível dos depósitos e sem cumprir as medidas de segurança. (No sentido de que sempre que os tanques de combustível de um posto de abastecimento são abastecidos, durante a descarga e os 20 a 30 minutos seguintes, não poderão ser executados quaisquer abastecimentos de modo a evitar misturas de água ou outros resíduos com o combustível, procedimento este que foi incumprido pela Ré.)
40. Anda nesse mesmo dia no período da manhã, o Gerente da B... Lda., Sr. BB, foi contactado pelo gerente da Autora a informar que a viatura de um cliente tinha parado à frente do posto, questionando se haveria algum problema no combustível, solicitando-lhe auxílio para averiguar a situação.
41. Face a esta solicitação, a Ré disponibilizou dois dos seus funcionários, CC e DD que se deslocaram ao local, ainda no período da manhã e que depois de averiguada a situação detectaram que no reservatório do posto existia uma pequena quantidade de água junto com o combustível, não tendo sido possível detectar a origem da mesma.
42. Tendo esses funcionários, efectuado a retirada de cerca de 1000 Lts de combustível do fundo do tanque, onde se detectou a respectiva água, para um reservatório propriedade da Autora, retomando de imediato o posto a normalidade do serviço.
43. De notar que o procedimento efectuado para repor a normalidade do funcionamento do posto foi apenas a retirada da quantidade referida no parágrafo anterior, e toda a restante quantidade existente no respectivo tanque foi comercializada pela A... logo que reposto o respectivo funcionamento da instalação.
44. Nunca tendo os referidos funcionários, competentes a não ser através de alegação se coaduna com a má fé da Autora (cuja invocação se relega para momento oportuno), dado quaisquer explicações da causa do sinistro, reiterando-se, a total falsidade, do alegado em 12.º da PI.
45. Convindo clarificar que a água devido às diferentes densidades não se mistura com o combustível, pelo que sendo adicionada água a um tanque de combustível, toda ela se assentará no fundo do tanque.
46. Estando os funcionários da Ré estão habilitados para o transporte de combustível Cfr Documento(s) 6 com conhecimento pleno de todos os procedimentos de carga e descarga do combustível, que respeitaram.
47. Assim, aquando a descarga do fornecedor, o combustível foi armazenado no seu depósito localizado nas instalações da Ré em ....
48. Depósito que cumpre as normas legais em vigor e encontra-se licenciado. Cfr
Documento 7
49. É deste depósito que o abastecimento é efectuado para as viaturas da Ré, que pernoitam no interior do seu armazém e destas directamente para o depósito dos clientes, as quais estão licenciadas para o exercício dessa actividade e cumprem os normativos legais em vigor, conforme certificados de aprovação para transporte de matérias perigosas, das viaturas que realizaram os fornecimentos, uma com cisterna acoplada, que se juntam aos autos. Cfr. Documento(s) 8.
50. Noutro prisma, também o combustível fornecido à Autora, se encontrava em perfeitas condições de utilização. Cfr. Documento 9.
51. Foi adquirida pela Ré à empresa C... Lda., de acordo com os seguintes documentos, que o atesta:
52. Factura n.º ...21 de 28.10.2021, referente ao CMR n.º ...59 e albarran de carga n.º 6407953. Cfr. Documento(s) 10.
53. Factura n.º ...21 de 29.10.2021, referente ao CMR n.º ...02 e albarran de carga n.º 6415381. Cfr. Documento(s) 11.
54. Outrossim, o combustível fornecido por a Ré nos dias 29 e 30, foi adquirido ao mesmo fornecedor.
55. Ora, a Autora não é a único cliente da Ré, tendo esse combustível adquirido à empresa C... Lda., sido também vendido a outros clientes.
56. Para prova do exposto, requer-se a junção aos autos do extracto de movimento de compras e vendas da Ré entre os dias 28 e 31 de Outubro de 2021, extracto que identifica os fornecimentos efectuados por a Ré nesse período, respectiva facturação e clientes. Cfr. Documento 12.
57. Que não apresentaram qualquer reclamação dos fornecimentos.
58. Do exposto resulta que a Ré não é responsável pela entrada de água no depósito de abastecimento da Autora.
59. Aliás, a Ré em bom rigor, desconhece se a Autora efectuou a participação dessa ocorrência à sua Companhia Seguradora, estando obrigada no âmbito da sua actividade de exploração de Posto de Combustível, a possuir seguro de responsabilidade civil de exploração.
60. Ocorrência, que como já se referiu, não participou à Ré, apenas solicitando o seu auxílio, como em tantas outras situações em quem se socorria da Autora e que esta não deixou de prestar, resolvendo de imediato a situação.
61. Sendo sabido, que as infiltrações de água em depósitos, como o da Ré, podem ocorrer por diversas causas, entre outras, pelo esgoto das águas pluviais, pelas varas de medição do combustível, pelas juntas da entrada do tanque ou pelos tubos de pesca dos combustíveis para as bombas, por fissura do tanque de combustível…etc, não deixando de se registar que a noite de 29 para 30 de Outubro, foi uma noite de mau tempo com fortes intempéries. Cfr. Documento 13.
62. No caso, a entrada de água nos depósitos da Autora não resultou de qualquer culpa da Ré e/ou má entrega do combustível ou má qualidade do próprio combustível, antes ocorreu por razões alheias à Ré, que assim não são imputáveis à acção, muito menos a uma qualquer omissão da Ré.
63. O nexo de causalidade entre o facto e o dano traduz-se no juízo de imputação objectiva do dano ao facto que lhe é causal.
64. Apurar quais os danos resultantes do facto ilícito implica uma operação mental de busca de uma relação de causalidade adequada entre este e aqueles, nos termos estabelecidos pelo artigo 563º do Código Civil, onde é consagrada a teoria da causalidade adequada.
65. Tal operação envolve matéria de facto, a vertente naturalística do nexo – o facto sem o qual o dano não se teria verificado – e matéria de direito – que o facto em abstracto ou em geral seja causa adequada do dano.
66. No caso concreto não há dúvidas em relação à ocorrência do facto (entrada de água no depósito da Autora.
67. Porém, importa demonstrar o que terá estado subjacente a essa entrada de água, desde logo, se a mesma poderá ser imputada à aqui Ré.
68. Impondo-se, para responsabilização da aqui Ré, demonstrar a concreta causa da entrada da água que pretensamente terá provocado os danos, logo, demonstrar que tal se deveu à comportamento da Ré, ou seja, provar a verificação do nexo de causalidade – bem como a culpa.
69. In casu, conforme exaustivamente alegado e documentado, a Ré cumpriu diligentemente, a obrigação contratual a que estava obrigada – soçobrando a verificação do nexo de causalidade – bem como a culpa, cujos factos alegados evidenciam não ser susceptível de ser assacada à ré.
70. Não sendo responsável por os danos patrimoniais ou de compensação por danos não patrimoniais reclamados por a Autora, que por dever de zelo de patrocínio, pecam por excessivos e infundamentados, não terem sido reclamados à Autora, que neste seguimento não teve oportunidade de os verificar, por não ter sido afectada a capacidade a prossecução do escopo social da Autora, quer por os danos não patrimoniais não estarem objectivamente alegados com dados concretos, que demonstrem inequivocamente a sua relevância e a sua gravidade e estarem claramente abaixo da fasquia da gravidade exigida pelo n.º1 do artigo 496 do C. civil.

Conclui: NESTES TERMOS, deverá a acção ser julgada improcedente, por não provada com as legais consequências;

Formulou o requerimento de prova.
Indicou testemunhas.
E escreveu ainda:
II - Mais Requer:
A notificação da Ré para vir juntar aos autos:
A) O número da apólice do seguro responsabilidade civil da sua exploração e informar se participou o sinistro dos autos e qual o “estado” do processo de sinistro.
B) O detalhe de todas as transacções/vendas/ abastecimentos efectuados no seu Posto de Combustível entre os dias 28 a 31 de Outubro de 2021, inclusive. (sublinhado nosso)

Juntou documentos e procuração.

iii)-
A Autora, por requerimento certificado a fls. 16 verso a 17, apresentado a 06-05-2022, exerceu o contraditório quanto aos documentos juntos pela Ré.
Nesse mesmo requerimento pronunciou-se sobre os meios de prova indicados pela Ré.
Quanto a II-A, elucidou não ter participado o incidente uma vez que o mesmo se encontra no âmbito da responsabilidade civil de terceiro – a ora Ré.
Quanto a II-B, escreveu:   

…Da mesma parece violar o direito de sigilo comercial da Autora – e disz-se – parece – uma vez que não se entende o que, em concreto, pretende a Ré, designadamente se documentos, e, nesse caso, se documentos pretende. (sublinhado nosso)

Quanto a II-A e B, termina:

Deve ser, por conseguinte indeferido o que vem requerido pela Ré. (sublinhado nosso)

iv)-
Em sede de audiência prévia, e no que interessa, foi proferido douto despacho sobre o requerimento probatório, que, no tocante ao requerido
em
iii)- II A e B-, se escreveu:

Mais se defere o requerido pela Ré em II- A e B nos termos do previsto no artigo 429º do CPC.

O Senhor Juiz veio completar e suprir nulidades deste douto despacho (uma vez que a Autora dele recorreu), em 3 de Novembro de 2022, nos termos do artigo 617º, 1 e 2 do CPC, escrevendo então:

…, bem sabe … a Autora, que existe lapso no requerimento da Ré ao indicar a notificação da “Ré” para juntar, pretendendo, como é lógico e decorre do próprio texto da contestação e do requerimento em questão (cfr. art.º 249.º, ex vi art.º 295.º, ambos do Cód. Civil), que se ordene a notificação da “Autora” para juntar documentação, o que se determinou, ao abrigo do disposto no art.º 429.º, do Cód. Proc. Civil.
Tal lapso de escrita foi inclusivamente reconhecido pela Autora no requerimento que formalizou nos autos no dia 6.05.2022, pelo que, muito se estranha o agora por si alegado, nesse ponto.
Invoca, porém, a Autora – e nisso se lhe reconhece razão – que tal despacho não foi devidamente fundamentado, o que constitui nulidade nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b), ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do Cód. Proc. Civil.
Por conseguinte, ao abrigo do disposto no art.º 617.º, n.º 1, ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do Cód.Proc.Civil, supre-se a aludida nulidade nos seguintes termos:
Independentemente do alegado pela Autora, a verdade é que o requerimento de prova da Ré, constante de II, A) e B), assume especial relevância para a boa decisão da causa, porquanto, por um lado, cumpre aquilatar da bondade da pretensão da Autora tendo presentes as figuras do abuso de direito – invocado pela Ré na sua contestação – e, bem assim, da litigância de má fé, de conhecimento oficioso.
De facto, atenta a factologia constante da petição inicial e o alegado em sede de contestação, entende-se ser da maior utilidade para o apuramento da verdade e assim para realização da justiça aquilatar se a Autora – que alega danos de elevado montante – participou o alegado sinistro à companhia de seguros onde contratou o seguro de responsabilidade civil de exploração.
Por outro lado, alegando a Autora elevadas perdas resultantes do evento que descreve na Petição Inicial, concretamente das vendas de combustível, e alegando a Ré a falsidade de tal alegação, óbvio se torna que reveste especial interesse para o apuramento da verdade a verificação, de forma detalhada, de todas as transacções comerciais efectuadas no seu estabelecimento de venda de combustíveis entre os dias 28 a 31 de Outubro de 2021, inclusive, ou seja, desde o dia anterior ao alegado evento causador de prejuízos cujo pagamento por parte da Ré reclama nos autos até ao dia seguinte ao da reabertura do estabelecimento.
O decidido pelo Tribunal surge no âmbito do requerimento de prova da Ré mas sempre seria de ordenar oficiosamente, atentas as posições das partes constantes dos articulados e a previsão do art.º 411.º, do Cód. Proc. Civil, não se vislumbrando que o alegado sigilo comercial da Autora se possa sobrepor às necessidades probatórios e às ordens legitimamente emanadas do tribunal, atenta a previsão do n.º 2, do art.º 205.º, da C.R.Portuguesa, pois que, como se referiu, contrariamente ao que parece ser o entendimento da Autora, a junção da descrita documentação é essencial para a demonstração das alegadas perdas de clientes e de facturação/receitas.

v)-
Notificada, exprime a Autora a sua discordância, dizendo:

…no que respeita ao deferimento do requerido pela Ré em II, A) e B) da sua contestação, já entende o recorrente que o recurso deve manter-se, uma vez que, não obstante conhecida a nulidade invocada, o certo é que o douto despacho ora proferido mantém intactos os argumentos que o motivaram.
Na verdade na pretensa reforma não foi suprida a nulidade, uma vez que no despacho, de forma expressa, afasta-se a apreciação do contraditório, deixando-se expresso que a decisão é tomada independentemente do alegado pela AUTORA, sendo certo que no despacho em causa nem uma palavra é votada ao contraditório exercido.
De referir ainda que o interesse da realização da justiça, como fundamento de uma decisão jurisdicional, não pode ser encarado de forma abstracta, já que a satisfação dos diversos sigilos (profissional, bancário, comercial, familiar, de dados) traduzem, eles também, uma forma de realização da justiça, que o julgador não pode olvidar.
Por fim, certamente que fruto por certo do reflexo condicionado a que se fez já alusão, persiste a admissão do requerido pela RÉ com dispensa do ónus imposto pelo n.º 1 do artigo 429.º do C.P.C., dispensa que se torna mais desproporcionada quando, na correcção do disposto no primeiro segmento decisório recorrido o M.mº Juiz não se esqueceu de impor ao recorrente (AUTORA) o cumprimento do ónus a que alude o n.º 2 do artigo 452.º do C.P.C. (ónus dispensado na primeira versão do segmento decisório em que era, por lapso, visada a RÉ).
Termos em que, se mantém o recurso integralmente no que respeita ao deferimento do requerido pela Ré em II, A) e B) da sua contestação.
E inclusivamente mantendo-se, sem alterações, as conclusões tiradas.

Em sede de alegações de recurso a Autora levanta as seguintes questões:

1-
Prima facie a AUTORA não teria legitimidade para a interposição do recurso, uma vez que, atendendo ao teor literal do requerido e do deferido, nada ali se pede ou decide que afecte a AUTORA, dirigindo-se o pedido para a junção de documentos para a própria RÉ (que os poderia ter junto por sua iniciativa sem o requerer ao juiz, ainda que sujeitando-se ao juízo posterior quanto à sua concreta admissibilidade).
Todavia, embora tal não fosse requerido nem apreciado jurisdicionalmente – poder-se-á entender que a junção pretendida se dirigiria à AUTORA e não à RÉ, e que o texto do requerido (e do decidido por remissão) conteria um erro ou lapso rectificável.
Mas isto não foi sequer apreciado e não está aqui em causa (e o recurso quanto a tal questão não teria lugar aqui, mas apenas juntamente com a apelação que se interpusesse a final).
Todavia, e se esse era o sentido atendível do requerido e do decidido (o que dos autos não e alcança) então a decisão sobre a admissibilidade da prova requerida já seria susceptível de recurso e aqui se deixando, face a esse hipotético sentido, a motivação da AUTORA.
2-
Quanto a esta pretensão da RÉ (considerada neste sentido) pronunciou-se a AUTORA nos termos do requerimento que apresentou a 06-05-2022, no exercício do contraditório que lhe cabia, argumentando, no que respeita à participação de seguro que tratando-se como se trata de uma questão que, na sua óptica, se enquadra no âmbito da responsabilidade civil da própria RÉ (e não da AUTORA) não tinha cabimento trazer à colação o seguro de responsabilidade civil da AUTORA, mas sim o da própria RÉ, razão porque, naturalmente, não houve (nem teria de haver) participação só sinistro por parte da AUTORA, e deveria ter sido a RÉ, responsável pelo sinistro, a efectuar tal participação.
3-
Ainda considerando o mesmo sentido do requerido pela RÉ, exerceu a AUTORA, através daquele seu requerimento, o exercício do contraditório, argumentando não só com a ininteligibilidade do solicitado mas ainda com a circunstância de o mesmo violar de forma clara quer as regras do segredo comercial, quer ainda, atenta a extensão da infirmação solicitada e por permitir o acesso a informação fiscal pessoal dos clientes da AUTORA, designadamente os respectivos números de contribuintes e moradas, o sigilo quanto aos dados referentes aos seus clientes que a AUTORA está obrigada a a observar por força do RGPD.
4-
Acresce que a total ausência de referência, no despacho recorrido, ao contraditório exercido traduz, na prática, que tal contraditório foi totalmente ignorado.
Foi violado desta forma, o princípio do contraditório e o da igualdade substancial das partes e, reflexamente, os princípios constitucionais de onde eles directamente derivam.
5-
Acresce, por fim, que a RÉ não especificou, no requerimento dirigido ao Tribunal, quais os factos que com ele pretendia provar não cumprindo por conseguinte, com o ónus que lhe é imposto pelo n.º 1 do artigo 429.º do C.P.C. e não permitindo, dessa forma, aferir do interesse do solicitado para a ao decisão da causa.

A Apelante indica como normas jurídicas violadas - as regras dos artigos 3.º, 4.º, 415.º, 432.º, 435.º, 452.º, 466.º, 607.º, n.º 4, 615.º, n.º 1, b) e d), todos do C.P.C.

Conclui pela revogação do despacho recorrido.

vi)-
O recurso interposto pela Autora vem admitido como apelação, a subir imediatamente, em separado e efeito meramente devolutivo.

vi)-
Não se contra-motiva.

*
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Pelas conclusões das alegações do recurso se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo.
“Questões” são as concretas controvérsias centrais a dirimir.

III - OBJECTO DO RECURSO 

A questão colocada pela presente apelação consiste em saber se, no caso, cabia proferir a decisão recorrida, ou não.

Relevante a factualidade e o percurso processual referidos no relatório I, para que se remete.

IV – MÉRITO DO RECURSO 

Como vimos, a Ré formulou requerimento sobre meios de prova nos seguintes termos:
II - Mais Requer:
A notificação da Ré para vir juntar aos autos:
A) O número da apólice do seguro responsabilidade civil da sua exploração e informar se participou o sinistro dos autos e qual o “estado” do processo de sinistro.
B) O detalhe de todas as transacções/vendas/ abastecimentos efectuados no seu Posto de Combustível entre os dias 28 a 31 de Outubro de 2021, inclusive.

O Senhor Juiz deferiu ao requerido conforme douto despacho constante do Relatório iv)- supra, despacho em crise.

*

Vejamos.

Face ao sentido do requerimento da Ré e ao elemento sistemático e gramatical de interpretação da declaração, não há dúvida existir um lapso, pois o que efectivamente se pretendeu foi que a notificação pretendida fosse dirigida à Autora e não à Ré.
Pese embora a Autora não tenha rectificado o requerimento, actuou correctamente o tribunal recorrido ao assumir existir um erro na declaração, que relevou.

*

Assim, A Autora, tem legitimidade para recorrer, uma vez que se sente prejudicada pela decisão e é parte na causa – cfr. artigo 631º, 2 do CPC.

*

O que a Ré pretende é a notificação da Autora para vir juntar aos autos - 
A) O número da apólice do seguro de responsabilidade civil da sua exploração e informar se participou o sinistro dos autos e qual o “estado” do processo de sinistro.
B) O detalhe de todas as transacções/vendas/ abastecimentos efectuados no seu Posto de Combustível entre os dias 28 a 31 de Outubro de 2021, inclusive.

*

Em causa o disposto no artigo 429º do CPC que sobre documentos em poder da parte contrária dispõe:
1- Quando se pretende fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar;
2- Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a dcisão da causa, é ordenada a notificação.

Do teor do art. 429º, resulta que a previsão da notificação da parte contrária para apresentar documento que possua em seu poder, pressupõe:

- a identificação do concreto documento cuja junção se requer;

- a indicação de quais os factos que com o identificado documento se pretende provar;

- que se tratem de documentos que se encontrem em poder da parte contrária e que a própria parte não consiga obter.

Quanto à finalidade de tais exigências, afirma Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, Coimbra Editora -1987, pág. 38:

A 1ª exigência tem por fim dar a conhecer ao notificado qual o documento que dele se requisita. (…) Para que a parte contrária possa tomar conscientemente qualquer atitude perante o despacho que requisitar a apresentação, é indispensável que ela saiba, ao certo, qual a espécie de documento que se lhe exige – se uma carta, se uma letra, se um relatório, se um balanço, se um título de arrendamento, etc. E não basta que se se indique a espécie, em abstracto, é necessário que se caracterize a espécie, que se individualize o documento, dizendo-se por exemplo, de que data é a carta e quem a expediu, a que prédio se refere o arrendamento e em que data se celebrou, etc.

A 2ª exigência destina-se, em primeiro lugar, a habilitar o juiz a deferir ou a indeferir o requerimento e, em segundo lugar, a fazer funcionar a sanção”.

A Autora opôs-se à pretensão da Ré.

Assim o requerido pela Ré passou a ser controvertido. Cabia ao tribunal a quo tomar posição sobre a controvérsia, decidindo fundamentadamente, para tal indicando as razões de facto e de direito que suportam o raciocínio lógico que determinou a decisão no sentido de deferir o requerimento da Ré.

Não o fez.

Por isso a decisão proferida não se mostra devidamente fundamentada, sendo nula por violação do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 615º do CPC, o que se declara.
Neste sentido o Ac. TRP de 5-1-2017, proc. 10853//16.5T8PRT-A.P1, dgsi.net.

Nos termos do disposto no artigo 665º, 1 do CPC cabe a esta Relação substitui-se ao tribunal recorrido e proferir a competente decisão.
O processo contém todos os elementos necessários a tal desiderato, não existindo motivo para operar a notificação prevista no nº 4 daquele dispositivo.

*

Rememorando, a Autora demanda a Ré por danos materiais e morais alegadamente produzidos por fornecimento de combustível - gasóleo rodoviário - adulterado, contaminado por água, ocorrido a 29 e 30 de Outubro de 2021, uma sexta-feira e um sábado, portanto em sede de responsabilidade civil contratual.
Invoca que tal se ficou a dever à circunstância de os tampões superiores da cisterna do transporte da Ré haverem ficado mal fechados durante a noite anterior e à chuva e tempestade verificada na noite anterior, permitindo dessa forma a infiltração de águas no seu interior.
A Ré riposta, impugnando e negando qualquer responsabilidade no sucedido.
Assim, alega no artigo 61. da contestação: Sendo sabido, que as infiltrações de água em depósitos, como o da Ré, podem ocorrer por diversas causas, entre outras, pelo esgoto das águas pluviais, pelas varas de medição do combustível, pelas juntas da entrada do tanque ou pelos tubos de pesca dos combustíveis para as bombas, por fissura do tanque de combustível…etc, não deixando de se registar que a noite de 29 para 30 de Outubro, foi uma noite de mau tempo com fortes intempéries. Cfr. Documento 13.
E no artigo 62.: No caso, a entrada de água nos depósitos da Autora não resultou de qualquer culpa da Ré e/ou má entrega do combustível ou má qualidade do próprio combustível, antes ocorreu por razões alheias à Ré, que assim não são imputáveis à acção, muito menos a uma qualquer omissão da Ré.
Apresenta depois uma versão diferente dos factos, de modo a imputar o sucedido e suas consequências a incúria da Autora e desrespeito por esta das devidas medidas de segurança.
Assim, alega no artigo 39. da contestação: Logo após essas descargas e inclusive estando os funcionários da Ré ainda no Posto, a Ré iniciou os abastecimentos a clientes, sem inutilizar o combustível dos depósitos e sem cumprir as medidas de segurança. (No sentido de que sempre que os tanques de combustível de um posto de abastecimento são abastecidos, durante a descarga e os 20 a 30 minutos seguintes, não poderão ser executados quaisquer abastecimentos de modo a evitar misturas de água ou outros resíduos com o combustível, procedimento este que foi incumprido pela Ré.)

Sendo certo nos parecer que a Ré pretendeu dizer:
Logo após essas descargas e inclusive estando os funcionários da Ré ainda no Posto, a Autora iniciou os abastecimentos a clientes, sem inutilizar o combustível dos depósitos e sem cumprir as medidas de segurança. (No sentido de que sempre que os tanques de combustível de um posto de abastecimento são abastecidos, durante a descarga e os 20 a 30 minutos seguintes, não poderão ser executados quaisquer abastecimentos de modo a evitar misturas de água ou outros resíduos com o combustível, procedimento este que foi incumprido pela Autora.)

É nesta dialéctica processual que surge a solicitação de pedir à Autora o número da apólice de seguro de responsabilidade civil de exploração do seu posto de combustíveis e a informação da participação do sinistro à seguradora.
Relativamente ao pedido do nº da apólice do seguro da Autora a Ré não especifica os factos que com ele quer provar. A Autora situa a causa de pedir em sede de responsabilidade civil contratual, e por isso se opõe à juntada da informação.
A Ré não explica o seu propósito probatório, não podendo, pois o tribunal concluir pelo seu interesse para a decisão da causa.
Improcede a pretensão da Ré.

Relativamente ao pedido de informação sobre a eventual participação do sinistro a uma seguradora
A Autora informou não ter feito qualquer participação de sinistro, explicitando a razão.
Assim a pretensão da Ré está satisfeita, não havendo nada mais a solicitar – teor da participação, estado do processo, etc..

Relativamente ao pedido de entrega do detalhe de todas as transacções/vendas/ abastecimentos efectuados no seu Posto de Combustível entre os dias 28 a 31 de Outubro de 2021, inclusive a Ré não explica o seu propósito probatório, não podendo, pois o tribunal concluir pelo seu interesse para a decisão da causa.

Não se alcança a priori qualquer utilidade em tal informação detalhada para os autos.
A Autora não formula qualquer pedido indemnizatório por ter estado com o posto encerrado no dia 30 de Outubro de 2021.
Os valores indemnizatórios referentes a danos matérias peticionados têm a ver com o valor do gasóleo contaminado por grandes quantidades de água que foi fornecido pela Ré a 29 e 30 desse mês, mais o valor do gasóleo que se contaminou pois estava nos depósitos e entrou em contacto com o defeituoso. O restante diz respeito à reposição de gasóleo com as características legais aos clientes afectados, e à reparação dos veículos dos clientes que ficaram com avarias por via de a Autora lhes ter vendido gasóleo avariado. A paragem do posto deveu-se, conforme alegado -, com a necessidade de esvaziar os tanques, limpar os tanques e os filtros das bombas, e procurar outro fornecedor, uma vez que a Ré tendo-se comprometido a repor o combustível, não o fez.
Destas actuações haverá certamente prova testemunhal e documental, pois as reparações, o transporte de gasóleo novo e a retirada do avariado para certificação, tudo isso envolve pessoas, veículos, meios materiais, documentos, contactos e pagamentos.

Numa situação destas, dependendo da dimensão e valências dos postos de venda, o aceitável é encerrar a parte em reposição e manter a venda ao público de gasolina, gás e outros serviços.

A Ré não explica o seu propósito probatório, não podendo, pois o tribunal concluir pelo seu interesse para a decisão da causa.

Improcede a pretensão da Ré.

*
Certo que a Ré se defende na sua contestação invocando abuso de direito por parte da Autora, acusando esta de orquestrar a presente acção de modo a não pagar o que lhe deve e está em litígio em processo executivo.

O Senhor Juiz no 1º grau defere ao requerido pela Ré argumentando esta defesa por parte da Ré e esmiuçando que sempre, oficiosamente, os documentos e informações solicitadas em sede de requerimento probatório o seriam com vista a decidir sobre tal pedido.

Vendo bem, a Autora certamente não nega a existência de outra acção, mas, no que tange a esta, explica no artigo 18º da sua petição o seguinte:

Ainda que sem de imediato “cortar” as relações comerciais com a RÉ, uma vez que pretendia, como sempre pretendeu, resolver o seu litígio com ela de forma consensual.

A Autora considera esta acção isolada das eventuais demais.
A Ré é que, como se vê da sua contestação, 12º a 36º, se defende por excepção, relacionando esta acção com uma outra executiva onde é executada a ora Autora e ainda, na qualidade de fiador, o seu representante legal, AA.

Como se sabe, litiga-se com abuso de direito quem exerce em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante.

Neste momento, face aos articulados das partes, não se alcança que a Autora venha exercer o seu direito de acção, através deste processo, de modo ilegítimo, como o define o artigo 334º do CC.
Nada por isso legitima a que oficiosamente se satisfaça a pretensão da Ré.

*

Por isso, não cabia proferir o despacho recorrido.

A apelação é de proceder. 

V-DECISÃO:

Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar a Apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida.

Custas pela Apelada, Ré na acção.
Valor da causa: € 146.095,46.

Coimbra, 7 de Fevereiro de 2023.


(Rui  António Correia  Moura)                                

(João Moreira do Carmo)

(Fonte Ramos)