Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
37/09.4TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
COISA IMÓVEL
DOCUMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 05/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 410º, 442º E 808º C.CIVIL.
Sumário: I – A exigência legal de documento particular no contrato promessa de compra e venda de bem imóvel não significa a imposição da unicidade material desse documento, pelo que não se torna indispensável a concentração das declarações negociais e das assinaturas das partes outorgantes num único documento material.

II - A resolução do contrato promessa e a consequente perda do sinal (art.442º C) pressupõe o incumprimento definitivo.

III - Para a resolução de um contrato com fundamento na perda de interesse do credor (art.808º, nº 2 C.Civil) só releva a perda que seja “consequência da mora” numa relação de causalidade adequada entre o desaparecimento do interesse do credor na prestação e a mora.

IV - A recusa antecipada de cumprimento pelo devedor constitui uma modalidade de incumprimento definitivo, devendo ser categórica e inequívoca, e pode ser expressa ou tácita.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1.- A Autora – R…,Lda., com sede em … - instaurou na Comarca da Covilhã acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré -  Massa Insolvente de C…, Lda. (representada pelo seu administrador Sr. …).

Alegou, em resumo:

No processo de insolvência da sociedade “C…, Lda.”, em 13/01/2005, por venda extra-judicial, foi adjudicado à Autora, pelo preço de 258.000,00€, o prédio urbano construído em alvenaria e cimento armando composto por três pisos e actualmente destinado à indústria de confecção de vestuário, sito na Avenida … com a área coberta de 925m2 e logradouro com a área de 2500m2, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ...

A Autora é uma sociedade que se dedica à construção civil, compra e venda de imóveis, a qual se interessou pela compra do imóvel, com vista à revenda para edificação de uma nova construção, e contactou uma sociedade de construção civil, a “D…, Lda.”, que se interessou em adquirir o prédio e posteriormente desinteressou – se, em consequência da área do prédio ser inferior em 804m2, à área constante da descrição predial.

A Autora, em 27/12/2006, pediu ao Administrador de Insolvência a devolução dos valores já pagos à leiloeira, e no dia 16/01/2008 realizou-se uma reunião, verificando-se que a área total do referido prédio é de 2.621m2 e não de 3.452 m2, havendo uma diferença de 831m2.”

À Autora, devido aos erros de medição, deixou de interessar o negócio, entendendo que lhes devem ser devolvidos os seguintes valores: princípio de pagamento 25.800,00€, agência de Leilões: 15.351,00€, projecto de arquitectura para pedido de viabilidade: 3.000,08€, despesas em deslocações, e administração do processo: 15.000,00€, topógrafo: 200,00€, tudo num total de 59.351,08€, correspondentes a parcelas de quantias que pagou.

Pediu:

a) Que seja anulada a adjudicação do prédio à Autora;

b) A condenação da Ré a pagar imediatamente à Autora as quantias de 41.151,00€ e 3.208,08€ pelas razões expostas nos art.ºs 15.º a 18.º da p.i, bem como os juros vencidos, que até 8 de Janeiro ascendem a 1.541,02€, e em juros vincendos à taxa legal até efectivo pagamento.

Contestou a Ré, defendendo-se, em síntese:

O auto de entrega do bem imóvel à Autora ocorreu em 13/01/2005, data em que adquiriu o imóvel pelo preço de 258.000,00€, isto é, dez por cento do valor global a título de sinal e princípio de pagamento, ficando de entregar o restante valor na data da outorga da competente escritura de compra e venda.

Em 14/06/2005 a Ré enviou carta registada com aviso de recepção à Autora informando-a estarem reunidas as condições para a outorga da escritura pública, solicitando, com a possível brevidade, o envio de fotocópias de certidão de registo comercial e dos documentos de identificação (B.I. e contribuinte) de quem outorga a escritura.

Por comunicação via fax, em 14/11/2006 transmitiu a Autora à Ré o seguinte: “Estando a chegar ao termo que nos marcou para a realização da escritura, agradecemos que nos indique quais os documentos que temos que enviar, bem assim como a data e local da escritura.”

Sucede que a Autora nunca enviou os documentos, pelo que a Ré enunca pôde marcar a data da escritura pública, e desde 2005 até 2008, apesar de interpelada nesse sentido, bem como sendo-lhe estabelecidos prazos limite para a marcação da escritura. Até que em 21/01/08 a Autora enviou à Ré fax manifestando não querer cumprir com a promessa de celebrar escritura pública de compra e venda.

A Autora não cumpriu o acordado, tendo a Ré o direito a ser indemnizada, fazendo seu o sinal entregue.

Concluiu pela improcedência da acção e em reconvenção pediu a declaração de resolução do contrato de compra e venda com efeitos a partir de dia 15 de Novembro de 2006 com a consequente perda de sinal entregue pela Reconvinda à Reconvinte no valor de 25.800,00€ (vinte cinco mil oitocentos euros).

Replicou a Autora, contraditando a contestação/reconvenção, em suma:

Nunca foi celebrado nenhum contrato de promessa de compra e venda do imóvel, o que, a ser celebrado teria obrigatoriamente que constar de documento escrito e assinado pelos representantes da vendedora e compradora.

A Autora de facto esteve disposta a celebrar a escritura de compra e venda, desde que fosse rectificada a área do prédio, como se comprometeu o Sr. Administrador da Insolvência, quer verbalmente, quer por escrito na sua mensagem de 5/01/2006,“…agradeço que, por mesma via, me facultem as medições entretanto efectuadas, a fim proceder em conformidade”.

A verdade é que a descrição predial nunca foi alterada e assim o negócio não interessa à Autora que quis adquirir um prédio urbano com 925m2 e logradouro com 2500 m2, o qual de facto apenas tem a área total de 2.621m2 e não 3.452m2, faltando 831 m2. Por esta razão, a Autora não celebrou nem quer celebrar a escritura de compra e venda, por não estar disposta a pagar 3.452 m2 e apenas receber 2.621m2. Concluiu pela improcedência da reconvenção.

No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu julgar:

a). A acção improcedente e absolver a Ré dos pedidos

b). A reconvenção improcedente e absolver a Autora do pedido reconvencional.

            1.3. - Inconformada, a Ré recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

            Contra-alegou a Autora no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso:

A questão submetida a recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em saber se assiste à Ré o direito potestativo de resolução do contrato promessa de compra e venda, com a perda do sinal a seu favor, ou seja, se há fundamento para a procedência da reconvenção.

2.2. – Os factos provados:

2.3. – O mérito do recurso:

A sentença julgou improcedente o pedido reconvencional, com a seguinte fundamentação:

 “ Retomando os autos, é de linear clareza que o cumprimento da prestação era realizável (por qualquer das partes), material e juridicamente, mesmo após a data aprazada para a sua realização, mas certamente em moldes diferentes dos contratados já que posteriormente se apurou que a área do imóvel era inferior.

“ Salientando-se que a A. informou a R. da diferença de área e da “necessidade de proceder às necessárias correções”, mesmo antes da indicação da data limite para realização da escritura, e após esta continuaram a troca de correspondência relativamente à detectada diferença de área e realizada reunião por 2 dos membros da comissão de credores, os dois vogais, foi referido que “aceitariam o preço proporcional à área real”.

Não pode, consequentemente, concluir-se, como pretende a R., que há impossibilidade de cumprimento do contrato por culpa da A., a fundamentar a resolução do mesmo com a perda do sinal por esta entregue àquela.”.

Considera a Ré/Apelante existir fundamento para a resolução do contrato promessa de compra e venda com base no incumprimento definitivo da Autora e da perda de interesse da Ré.

O contrato promessa de compra e venda:

As partes aceitaram que através do referido em A), celebraram um contrato promessa bilateral de compra e venda, prévio à venda por negociação particular a efectuar pelo liquidatário, como representante da massa insolvente (arts. 181 nº1 e 182 do CPEREF).

Temos assim que a Ré (representada pelo liquidatário), na qualidade de promitente vendedora, prometeu vender à Autora (promitente compradora), que prometeu comprar o prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, pelo preço de € 258.000,00, entregando a Autora como sinal a quantia de € 25.800,00, sendo o restante preço pago aquando da outorga da escritura pública.

O contrato promessa (art.410 nº1 CC) pressupõe o acordo das partes (bilateral) ou apenas uma delas (unilateral), pelo qual se obrigam a celebrar determinado contrato (principal ou prometido) e tem por objecto uma obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido contrato de compra e venda), reconduzindo-se a uma obrigação de prestação de facto positivo. Por força do princípio da equiparação, ao contrato promessa são aplicáveis as normas relativas ao contrato prometido, com excepção das relativas à forma e as que, por razão de ser, não se devam considerar extensíveis.

Em regra, a validade da declaração não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei o exigir – princípio da consensualidade ou liberdade de forma (art.219 do CC).

No caso de contrato promessa de venda de bens imóveis, a lei exige documento particular, assinado pelas partes (art.410 nº2 do CC). São razões de ponderação e reflexão das partes, a certeza e segurança do contrato e do comércio jurídico que impõem a redução a escrito do contrato promessa, sendo diferentes os interesses e as consequências jurídicas dos requisitos do nº2 e do nº3 do art.410 do CC.

Verifica-se que o documento de fls. 11, designado de “auto de entrega” apenas está assinado pelo Liquidatário Judicial, mas já não pelo legal representante da Autora.

Porém, na troca posterior de correspondência entre as partes outorgantes, a Autora assume por escrito a promessa de compra do referido prédio, com especial relevo para o fax de 21/9/2006 ( “quando prometemos comprar esta propriedade (…)”).

Tem-se entendido que a exigência legal de documento não significa a imposição da unicidade material desse documento, não sendo, assim, indispensável a concentração das declarações negociais e das assinaturas dos seus autores num único documento material ( cf., por ex., VAZ SERRA, RLJ ano 109, pág.72; ALMEIDA COSTA, RLJ ano 119; Ac STJ de 11/4/85, BMJ 346, pág.221).

Nesta medida, considera-se validamente formalizado o contrato promessa bilateral de compra e venda.

É certo não constarem os requisitos formais do art.410, nº3 CC (reconhecimento presencial e certificação da licença de construção ou utilização), mas essa omissão é qualificada como uma nulidade atípica, visto não ser invocável por terceiros, nem conhecida oficiosamente pelo tribunal (cf. Assentos do STJ de 28/6/94, DR IA de 12/10/94, e de 1/2/95, DR IA de 22/4/95). Apenas pode ser arguida pelo promitente-comprador, destinatário da norma protectora, e só excepcionalmente a parte final do nº3 do art.410 do CC confere ao promitente-vendedor a faculdade de invocar a omissão quando tenha sido causada culposamente pela outra parte.

A resolução do contrato e a perda do sinal:

Afirmada a validade formal, problematiza-se no recurso a resolução do contrato promessa e a perda do sinal.
A pretensão da Ré/reconvinte traduz-se na resolução do contrato promessa (embora se refira “a resolução do contrato de compra e venda”)  requerendo a perda do sinal (mencionando € 25.800,00).
         Antes das alterações introduzidas no art.442 do CC pelo DL nº 379/86, de 11/11, era entendimento pacífico que a sanção da perda de sinal ou da restituição do sinal em dobro só ocorria nas situações de incumprimento definitivo. Após as alterações, na vigência do DL nº379/86, a questão passou a ser controversa, devendo, contudo, adoptar-se a orientação prevalecente no sentido da exigência do incumprimento definitivo ( cf., por ex., SOUSA RIBEIRO, “ O Campo de Aplicação do Regime Indemnizatório do artigo 442 do Código Civil: Incumprimento Definitivo ou Mora?”, BFDUC, volume comemorativo, 2003, pág.209 e segs.; Ac STJ de 18/12/2008, de 13/1/2009, de 21/5/2009, disponíveis em www dgsi.pt ).
         Importa averiguar se houve ou não incumprimento definitivo imputável à Autora (promitente compradora), que tanto pode reportar-se à prestação principal, como incidir sobre os deveres acessórios de conduta, desde que assumam gravidade tal que afecte a base de confiança subjacente.
         A mora apenas legitima a resolução quando convertida em incumprimento definitivo (arts. 801 nº2 e 802 nº2, por força do art.808 do CC), quer pela perda de interesse do credor, só relevante se for objectiva, ou então pelo recurso à interpelação admonitória, com a fixação de prazo razoável, apenas dispensável se houver uma recusa antecipada do devedor em cumprir.
         Verifica-se que no contrato promessa não foi convencionado qualquer prazo para a outorga da escritura. Em regra, a prestação é devida mediante simples interpelação (art.777 nº1 CC), mas as obrigações emergentes de contrato promessa, carecem de um prazo de cumprimento, que não estando previsto terá se ser fixado judicialmente (art.777 nº2 CC) - cf., por ex., ANA PRATA, O Contrato Promessa, pág.633.
Daqui resulta que não se tendo estipulado ou fixado judicialmente o prazo de cumprimento, não há mora, que é por definição o retardamento temporário da prestação ( cf., por ex., Ac STJ de 18/6/96, em www dgsi.pt/jstj).
         Não se comprovando a mora, também não pode haver lugar ao incumprimento definitivo por conversão da mora em incumprimento definitivo, nem por falta de interesse.
         Ainda que o art.180 nº2 do CPEREF estabeleça o prazo de 6 meses para a liquidação do activo, a cargo do liquidatário judicial, não deve ser concebido como prazo absoluto ou prazo fixo para a outorga do contrato prometido, tanto mais que pode ser prorrogado pelo tempo necessário, a pedido daquele com parecer favorável a comissão de credores.
         Da troca de correspondência entre as partes, ressalta o seguinte:

Depois da Ré haver solicitado (em 14/6/2005, 29/7/2005 e 3/1/2006) à Autora alguns documentos para a celebração da escritura, esta comunicou (5/1/2006) enviar brevemente a mesma, informando haver divergência nas áreas, face ao levantamento topográfico.

            A Ré comunicou (16/10/2006) à Autora que o tribunal concedeu um prazo limite de 30 dias para a feitura da escritura e de que não haverá qualquer prorrogação, e posteriormente (29/10/2006) concretizou que o prazo concedido pela M.ma Juiz expira em 15/11/2006.

A Autora solicitou (14/11/2006) informação sobre os documentos que teria de enviar e a data e local da escritura.

Em 27/12/2006, a Autora, perante a diferença da área (de menos 804 m2) e as implicações apresenta duas sugestões: a nulidade do negócio ou a redução do preço.

Só em 16/1/2008 é que a comissão e credores deliberou sobre a discrepância  da área, concluindo pela diferença de 831 m2.

Em 21/1/2008  a Autora informou a Ré que o negócio deixou de lhes interessar face à diferença da área, não aceitando qualquer das hipóteses apresentadas pelos membros da comissão de credores, ou seja, cumprimento do contrato (independentemente da área) e pagamento proporcional do preço em relação à área real.

A primeira conclusão a retirar é a de que tanto na sequência da comunicação da Autora de 14/11/2006, como posteriormente, nunca foi marcada qualquer escritura e nem está comprovado que a Ré respondesse àquela comunicação, designadamente sobre o pedido de indicação dos documentos.

Muito embora esteja provado que a Ré nunca pôde marcar a escritura porque os documentos em falta nunca foram enviados pela Autora, a verdade é que não está comprovado que a Ré tivesse respondido ao pedido de informação da Autora sobre a indicação dos documentos. De resto, também a Ré não havia tomado posição sobre a diferença de área do prédio, apesar da comunicação da Autora em 5/1/2006 e 10/1/2006.

Por conseguinte, não tendo sido marcada a escritura, não se pode sequer falar de mora, e muito menos de incumprimento definitivo, por ausência de interpelação admonitória (conversão da mora).
Vejamos se há fundamento para a resolução do contrato por perda de interesse.
         O carácter definitivo do incumprimento do contrato promessa, para além dos casos de não observância de prazos absolutos, ocorre se em consequência da mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação, mas a perda de interesse que fundamenta a resolução deve ser apreciada objectivamente (art.808 nº2 do CC ).
         Para o efeito, não basta a simples diminuição do interesse da prestação, nem uma mudança de vontade do credor, mas a perda completa, resultante da mora no cumprimento, aferida segundo o critério da razoabilidade, próprio do comum das pessoas. Trata-se de uma perda de interesse subjectivo, justificada objectivamente (cf. ANTUNES VARELA, RLJ ano 118, pág.54 e segs.).
         Como referem P.LIMA/A.VARELA (Código Civil Anotado, vol.II, pág.27) – “ A perda do interesse do credor deve, nos termos do n.º 2, (Artigo 808) ser apreciada objectivamente. Pretende-se evitar que o devedor fique sujeito aos caprichos daquele ou à perda infundada do interesse na prestação. Atende-se, por conseguinte, ao valor objectivo da prestação, não ao valor da prestação determinado pelo credor, mas à valia da prestação medida (objectivamente) em função do sujeito”.

            Daí que para BAPTISTA MACHADO (“ Pressupostos da resolução por incumprimento “, Obra Dispersa, vol.1º, pág.159 e segs.), a disposição do art.808 nº2 do CC tenha um significado semelhante à do nº2 do art.793 do CC, sendo que a objectividade do critério há-de ser aferida em função do interesse subjectivo do credor afectado pelo incumprimento, embora apreciada objectivamente.

            Para tanto, impõe-se o apelo ao “critério da utilidade”, ou seja, a estrita relação entre a prestação e o particular emprego que o credor lhe pretende dar, referindo o mesmo autor, ser “susceptível de justificar o direito de resolução toda aquela inexecução ou inexactidão do cumprimento (quer sob a forma de atraso de cumprimento, quer sob a forma de inexactidão quantitativa ou qualitativa da prestação) que torne inviável um certo emprego do objecto da prestação ou que impossibilite o credor de o aplicar ao uso especial que ele tinha em mira “ ( loc.cit., pág.146). A nível jurisprudencial, cf., por ex., Ac STJ de 18/2/2003 ( proc. nº 03B3697 ), de 8/5/2007 ( proc. nº 07A932), Ac RC de 23/1/2001 ( proc. nº 3131/2000 ), disponíveis em www dgsi.pt ).

Pois bem, a valoração global dos factos não aponta para a perda objectiva de interesse por parte da Ré, pois sempre manifestou o interesse no negócio. Acresce que para a resolução de um contrato com fundamento na perda de interesse do credor (art.808 nº2 CC) só releva a perda que seja “consequência da mora” numa relação de causalidade adequada entre o desaparecimento do interesse do credor na prestação e a mora, o que também não sucede.

O incumprimento definitivo na modalidade da recusa antecipada:

Coloca-se, porém, a questão de saber se a comunicação da Autora em 21/1/2008, no sentido de manifestar o desinteresse pelo negócio em virtude da diferença da área e a não aceitação de qualquer das hipóteses apresentadas pelos membros da comissão de credores constituem uma situação de incumprimento definitivo, na modalidade de recusa antecipada de cumprimento.

O instituto da recusa antecipada, enquanto modalidade de incumprimento, inspirou-se na chamada teoria da “mitigação das perdas” ( “mitigation of losses”) e da construção jurisprudencial da “anticipatory breach of contract” ou “anticipatory repudiation” do direito anglo-saxónico, vindo a ter consagração positiva no art.1219 do Código Civil Italiano (1942), ao prever a constituição em mora quando o devedor haja declarado por escrito que não quer executar a obrigação, a partir do qual se erigiu a doutrina do “refuto ad adempiere”.
A lei civil portuguesa não regula a figura da recusa antecipada de cumprimento, pois não acolheu a proposta de VAZ SERRA (BMJ nº48, pág. 61 e segs.), sendo que a lacuna deve ser preenchida “dentro do espírito do sistema” (art.10 nº3 CC), muito embora não seja de excluir uma interpretação extensiva do art. 801 nº1 CC. Seja como for, esta modalidade de inadimplemento, integrada no chamado “incumprimento definitivo ipso facto”, é admitida tanto a nível doutrinário, como jurisprudencial (cf., por ex., BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 2011, pág.256 e segs, NUNO OLIVEIRA, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, pág.864 e segs.; Ac STJ de 10/1/2012, em www dgsi.pt ).
Tem-se entendido que a recusa de cumprimento deve ser “categórica, clara e definitiva”, pelo que a declaração terá de apresentar-se como “manifestação intencional, pessoal e unilateral”, devendo “ser suficientemente clara, unívoca e séria”, que revele “ a intenção categórica, o propósito claro de o devedor não cumprir”, sendo ainda indispensável a “natureza definitiva da declaração”, e pode ser expressa ou tácita.
E sobre a concludência do comportamento ou declaração, ela pode ser retirada de “factos significantes (a “repudiation by conduct” do direito anglo-saxónico) activos ou omissivos, de natureza material ou jurídica“, tornando-se, porém, necessário que “crie a convicção de que o devedor não realizará a prestação no prazo fixado ou no decurso de uma subsequente interpelação admonitória” ( cf. BRANDÃO PROENÇA, loc cit., pág.263).

Ponderando-se a factualidade apurada, verifica-se que, apesar da diferença da área, considerou-se na sentença que o erro sobre o objecto (art.251 CC) não era essencial e daí a rejeição da anulação do contrato, pedida pela Autora, que transitou em julgado.

A Autora, não obstante a diminuição da área do prédio, manifestou interesse em cumprir o contrato, tanto mais que na sequência da comunicação da Ré, em 29/10/2006 não se recusou a fazer a escritura com fundamento na diferença da área, conforme se pode constar da resposta de 14/11/2006 em que chegou a pedir a indicação dos documentos, da data e local. Por outro lado, em 27/12/2006, ao apresentar as duas sugestões ( anulação do negócio ou a redução do valor da compra), dando a possibilidade de escolha à Ré, revela que quer cumprir.

Só em 21/1/2008 é que a Autora comunica que não tem interesse, havendo o liquidatário convocado uma reunião com a comissão de credores, em 26/2/2008, na qual o representante da Autora declarou não aceitar qualquer proposta (mesmo aquela que havia anteriormente proposto, a da redução do preço).

Neste contexto, uma vez assente que a diferença da área do prédio não configurou erro essencial sobre o objecto do negócio, tendo a Autora sugerido, como solução razoável, a redução do preço, que foi aceite pelo liquidatário, mas que depois aquela rejeitou (bem como qualquer hipótese de cumprimento), revela uma clara e categórica recusa de cumprimento do contrato promessa de compra e venda.

Note-se até que a Autora, ao rejeitar, na reunião da comissão de credores (26/2/2008 ) qualquer hipótese de cumprimento, assumiu uma atitude contraditória com a anterior comunicação de 27/12/2006, ao propor, como alternativa à anulação e quando já então sabia da diferença da área do prédio, a redução do valor do preço, o que parece configurar abuso de direito (art.334 CC), na modalidade de venire contra factum proprium.

Por conseguinte, comprovando-se a recusa de cumprimento, como modalidade de incumprimento definitivo, confere à Ré o direito potestativo de resolução do contrato, com a consequente perda do sinal entregue pela Autora ( art.442 nº2CC ).

2.4. – Síntese Conclusiva:

a) A exigência legal de documento particular no contrato promessa de compra e venda de bem imóvel não significa a imposição da unicidade material desse documento, pelo que não se torna indispensável a concentração das declarações negociais e das assinaturas das partes outorgantes num único documento material.

b) A resolução do contrato promessa e a consequente perda do sinal (art.442 CC) pressupõe o incumprimento definitivo.

c) Para a resolução de um contrato com fundamento na perda de interesse do credor (art.808 nº2 CC) só releva a perda que seja “consequência da mora” numa relação de causalidade adequada entre o desaparecimento do interesse do credor na prestação e a mora.

d) A recusa antecipada de cumprimento pelo devedor constitui uma modalidade de incumprimento definitivo, devendo ser categórica e inequívoca, e pode ser expressa ou tácita.


III - DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida.

2)

            Julgar procedente a reconvenção e declarar resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado entre Autora (promitente compradora) e a Ré (promitente vendedora), com a consequente perda do sinal, no valor de 25.800,00 € (vinte e cinco mil e oitocentos euros) a favor da Ré/Reconvinte.

3)

            Condenar a Autora nas custas da reconvenção e das Apelação.

*

           

( Jorge Arcanjo – Relator )

( Teles Pereira )

( Manuel Capelo )

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