Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
738/16.0T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
LISTA DE CRÉDITOS
IMPUGNAÇÃO
PLANO DE REVITALIZAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.17 D, 17 F, 130, 215 CIRE
Sumário: 1 - No âmbito do PER, e atenta, vg., o seu jaez de processado urgentíssimo, existe norma própria que fixa a consequência, final e inelutável, para a falta de impugnações da lista provisória de créditos, qual seja, o artº 17-D nº4 do CIRE, a saber: «Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva».

2.-Decorrentemente, inexiste, neste particular, lacuna, pelo que a lista não pode ser alterada, por aplicação analógica do artº 130º nº3, com alegação de existência de «erro manifesto», sem prejuízo de este ser constatado e corrigido pelos credores na fase das negociações.

3. - O erro «manifesto», a que alude o artº 130º nº3 do CIRE tem de ser apenas o erro que emirja da lista de créditos - ou de outra documentação que, perante os termos desta, seja exigível, razoável e sensatamente, ao juiz perscrutar -, de uma forma clara, notória, patente, ie., que não implique indagação exaustiva.

4. - A violação de regra procedimental não negligenciável e/ou de norma aplicável ao conteúdo do PER , obstaculizantes da sua homologação – artº 215º ex vi do artº 17º-F nº5 do CIRE –, é apenas a reportada ao processo (aquela), e que esteja refletida no próprio plano (esta).

5.- Assim, outras aventadas violações que, extra processo e extra plano, possam preencher a previsão legal – vg. alteração societária da devedora –, não relevam para obstar à sua homologação/implementação, mas apenas poderão colidir, no futuro, e se provadas nos processos próprios, com a sua execução.

Decisão Texto Integral:




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

E (…), S.A. apresentou-se a processo especial de revitalização.

Foi nomeado administrador judicial provisório  tendo aquele junto oportunamente uma lista provisória de créditos.

 A qual veio a ser convertida em lista definitiva a 2 de Maio de 2016.

O prazo de dois meses para conclusão das negociações foi prorrogado por um mês, mediante acordo prévio entre o administrador judicial provisório e a devedora  tendo as mesmas terminado no dia 2 de Agosto de 2016.

Concluídas as negociações deu entrada no processo, no dia 4 de Agosto de 2016 (fl. 1000), um auto de abertura de votos relativo ao plano de revitalização datado de 2 de Agosto de 2016, do qual resulta que o plano foi votado favoravelmente por 75,68% dos créditos incondicionais constantes da mencionada lista de credores, dos quais apenas 5,59% dos créditos são subordinados, registando-se abstenções representativas de 2.007.826,71 € (de um total de créditos na ordem de 21.331.984,09 €) e votaram contra o plano proposto 24,32% dos créditos reconhecidos.

No que para o caso releva, a credora A (…), S.A (n.º 23 da lista de credores) veio por antecipação requerer a não homologação do plano de revitalização (fls. 615 e ss 1221 e ss).

 Alegando, em suma, que o mesmo viola regras procedimentais não negligenciáveis.

Para tanto refere que o Sr. AJP reconheceu o credor F (…), n.º 46 da lista de credores, como sendo titular de créditos de natureza garantida e comuns quando deveria ter sido atribuído a estes últimos créditos a natureza de subordinados nos termos do art. 48.º al. a) e 49.º n.º 2, al a), do CIRE, por desde 24.07.2014 ser titular de 52,53% do capital social da devedora.

 Do que decorre que os seus créditos no valor de 8.424.527,34 € influam decisivamente no quórum de aprovação deliberativo (art.17-D n.º 3 e 4 do CIRE), pois que, se os votos tivessem sido corretamente calculados, nomeadamente quanto à sua natureza, não se teria verificado a maioria prevista no art. 17.º-F, n.º3, al. a) do CIRE.

Mais expendeu que o plano viola normas aplicáveis ao seu conteúdo, em especial o disposto no art. 25.º da Segunda Diretiva do Capital, na medida em que restringe o direito de preferência dos acionistas na realização de novas entradas em dinheiro no aumento do capital da sociedade em detrimento de um terceiro não identificado, à revelia da assembleia geral de acionistas da devedora, o que no seu entender constitui condição suspensiva da aprovação do plano, em violação do disposto no art. 198.º n.º 5, 201.º e 215.º do CIRE e art. 458.º do Código das Sociedades Comerciais.

Em resposta a devedora opôs-se invocando:

- (i) extemporaneidade da impugnação da natureza do crédito do credor n.º 46; (ii) a manutenção da aprovação do plano de revitalização e a falta de relevância da natureza atribuída aos créditos do credor n.º 46; (iii) o credor n.º 46 não é uma pessoa especialmente relacionada com a devedora para efeitos do art. 48.º al. a) e 49.º n.º 2 do CIRE; (iv) não aposição no plano de revitalização de nenhuma condição suspensiva que deva verificar-se antes da não homologação do plano de revitalização nos termos do art.201.º do CIRE; (v) que este consagre um aumento do capital social à revelia da assembleia geral da devedora e com supressão do direito de preferência dos seus atuais acionistas.

2.

A fls. 1799 foi proferida decisão  na qual:

I)Se julgou extemporânea a impugnação da lista provisória de credores que foi apresentada pela A (…), S.A.

II) Se considerou constituir verdadeira condição suspensiva do plano o aí previsto e aprovado aumento do capital social da devedora, por novas entradas em dinheiro e sua imediata subscrição no valor de €200.000,00, ordenando a convocação de uma assembleia geral de acionistas com vista a tal deliberação, a realizar no prazo máximo de 30 dias, sob pena de não homologação do plano.

Inconformada recorreu a requerente A (…) no que tange ao primeiro segmento decisório.

 Posteriormente, e dando cumprimento ao ordenado no segundo segmento, a devedora informou ter realizado o aumento do capital social previsto no plano de recuperação, juntando cópia da ata da assembleia geral de acionistas, realizada a 21/12/2016 para o efeito.

Tal assembleia geral de 21/12/2016 assumiu a modalidade de assembleia universal (artigo 54.º do Código das Sociedades Comerciais – que permite a reunião em assembleia geral, sem observância de formalidades prévias, desde que todos os sócios estejam presentes e todos manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto).

E  tendo reunido com a presença de uma única acionista, representativa da totalidade do capital social.

Pois que em 15/12/2016 foi registada uma redução de capital, no montante de €73.413,00, por amortização de ações da  A (…). com base em deliberação de 12/12/2016.

A credora A (…), sócia da devedora à data da prolação do despacho de fls. 1799 e ss informou não ter tomado parte na assembleia geral de 21/12/2016, da qual não teve conhecimento e que foi irregularmente convocada.

E que, por isso, instaurou procedimento cautelar de suspensão de deliberações  sociais, a correr termos sob o n.º 32/17.0T8ACB pela 2.ª Secção do Juízo de Comércio de Alcobaça.

Mais disse que a amortização da totalidade das ações por si detidas na devedora traduz uma alteração subjetiva superveniente na própria estrutura societária que não é indiferente para os credores e com forte implicação no processo especial de revitalização, comprometendo o potencial de viabilidade do plano de recuperação proposto pela devedora e votado pelos credores.

Também com esse fundamento requereu seja recusada a homologação do plano de recuperação.

Em resposta, a devedora veio esclarecer que a assembleia geral do passado dia 12/12/2016 foi regularmente convocada, nos termos legais e estatutários aplicáveis, tendo deliberado a amortização das ações da acionista «A (…)» com base no disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea i) dos Estatutos da devedora em vigor à data de tal deliberação, aprovados pela «A (…), que permitia a amortização de ações, independentemente do consentimento dos respetivos titulares, nos casos de insolvência do titular.

Seguidamente foi proferida decisão que homologou o plano de recuperação.

3.

Mais uma vez inconformada  com esta decisão, recorreu  a credora A (…)

E não apenas da decisão de homologação, mas ainda, à  cautela, e  para o caso de se entender que o recurso da decisão de extemporaneidade de impugnação da natureza do crédito  do F (…) apenas poderia ser interposto a final com o recurso da decisão de homologação,  outrossim recorreu daquela decisão.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

- DO RECURDO DO DESPACHO DE 06.01.2017

 (…)

Contra alegou a devedora pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e  639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª - Alteração da natureza dos créditos do credor Fundo (…)  de garantidos e comuns, para subordinados, nos termos do artigo 48.º, alínea a), e 49.º, n.º 2, al. a), do CIRE.

2ª – Não homologação do plano por alteração da estrutura subjetiva societária da devedora.

5.

Os factos a considerar são os dimanantes do relatório supra.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

A ratio e teleologia do CIRE, na sua redação matricial, qual seja a liquidação imediata do seu património do devedor com a satisfação dos direitos e interesses dos credores, na mais ampla perspetiva, deu lugar, com a alteração ao processo de insolvência, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20/04, que aditou as normas reguladoras do PER, a que o fito primeiro e fulcral  do processo de insolvência, passasse a ser a recuperação do devedor.

Assim, o objetivo do legislador do CIRE, na sua redação inicial, de desjudicializar o processo e perspetivar este, essencialmente, como um processo em que aos  interessados é facultada a possibilidade de modelarem as suas pretensões,  parece ter-se acentuado.

Efetivamente, e como dimana dos seus preceitos atinentes – artº 17º A e segs -, todo o processo do PER, ainda que com intervenção, ativa e atual, do Sr. administrador judicial provisório e uma fiscalização, mais a posteriori, do Juiz, assume-se e consubstancia-se, na sua vertente material ou substancial, como uma negociação entre devedor e credores.

Por conseguinte, é evidente que os princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade assumem uma importância acrescida.

Ou, noutra perspetiva:

«Nesses normativos ( artigos 17º-A a 17º-I do CIRE) veio-se a consagrar dois processos especialíssimos, urgentes, antecipatórios do estado de insolvência do devedor, com vista à sua obstaculização: o primeiro, prevenido nos artigos 17º-A a 17º-H, destinado à obtenção de um acordo entre o devedor e os credores, com vista à sua conclusão para recuperação daquele; o segundo, prevenido no artigo 17º-I, é o processo que visa a homologação do acordo havido entre o devedor e os credores extrajudicialmente…

A estrutura destes dois processos é híbrida (hibrid procedures do direito inglês), porque fazendo apelo à autonomia privada do devedor e dos credores, deixa-lhes uma grande margem de manobra, com vista à composição dos respectivos interesses, embora sempre pautados pelos princípios orientadores, maxime, da boa fé, da cooperação, da igualdade e da transparência...- Ac. do STJ de 19.04.2016, p. 7543/14.7T8SNT.L1.S1.

(sublinhado nosso).

6.1.2.

Na verdade, toda a essência do normativo atinente ao PER demonstra a celeridade que se pretende ver incutida no seu processado.

Assim:

Artigo 17.º-C

Requerimento e formalidades

1 - O processo especial de revitalização inicia-se pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à revitalização daquele por meio da aprovação de um plano de recuperação.

2 - A declaração referida no número anterior deve ser assinada por todos os declarantes, da mesma constando a data da assinatura.

3 - Munido da declaração a que se referem os números anteriores, o devedor deve, de imediato, adotar os seguintes procedimentos:

a) Comunicar que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação ao juiz do tribunal competente para declarar a sua insolvência, devendo este nomear, de imediato, por despacho, administrador judicial provisório, aplicando-se o disposto nos artigos 32.º a 34.º, com as necessárias adaptações;

b) Remeter ao tribunal cópias dos documentos elencados no n.º 1 do artigo 24.º, as quais ficam patentes na secretaria para consulta dos credores durante todo o processo.

4 - O despacho a que se refere a alínea a) do número anterior é de imediato notificado ao devedor, sendo-lhe aplicável o disposto nos artigos 37.º e 38.º

 Artigo 17.º-D

Tramitação subsequente

1 - Logo que seja notificado do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo anterior, o devedor comunica, de imediato e por meio de carta registada, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração mencionada no n.º 1 do mesmo preceito, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º se encontra patente na secretaria do tribunal, para consulta.

2 - Qualquer credor dispõe de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo anterior para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, que, no prazo de cinco dias, elabora uma lista provisória de créditos.

3 - A lista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis e dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas.

4 - Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva.

5 - Findo o prazo para impugnações, os declarantes dispõem do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez e por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre o administrador judicial provisório nomeado e o devedor, devendo tal acordo ser junto aos autos e publicado no portal Citius.

Artigo 17.º-F

Conclusão das negociações com a aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor

1 - Concluindo-se as negociações com a aprovação unânime de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, em que intervenham todos os seus credores, este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa da mesma pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal plano de recuperação, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos…

5 - O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º

6 - A decisão do juiz vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal, nos termos dos artigos 37.º e 38.º, que emite nota com as custas do processo de homologação.

Artigo 17.º-G

Conclusão do processo negocial sem a aprovação de plano de recuperação

1 - Caso o devedor ou a maioria dos credores prevista no n.º 3 do artigo anterior concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo, ou caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 17.º-D, o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto ao processo, se possível, por meios eletrónicos e publicá-lo no portal Citius.

 Na verdade:

« O PER é dominado pela autonomia dos credores e da devedora, pela desjudicialização e, sobretudo, pela celeridade

«…o plano de recuperação da devedora requerente deve ser apresentado no prazo das negociações previsto no art. 17.º-F, n.º 1, do ClRE, que é um prazo de caducidade.

 Ultrapassado tal prazo não deve ser homologado o plano, nos termos do art. 215.º do ClRE, por a sua homologação, nesse caso, constituir violação não negligenciável de norma imperativa.»  - Ac. do STJ de 08.09.2015, p. 570/13.3TBSRT.C1.S1.

Ou, por outras palavras e noutra nuance:

« O P.E.R. é um processo de natureza eminentemente urgente, de prazos procedimentais curtos, durante os quais os credores concedem ao devedor um período global de «tréguas», o chamado «standstill», auto-impedindo-se de instaurarem e/ou fazerem prosseguir quaisquer acções…em que o tempo para a sua finalização é categórico…

Esta posição decorre, inequívoca, do preceituado no artigo 17.º-G, n.º1 do C.I.R.E., o qual é claro ao predispor que o processo negocial é encerrado se não for possível conclui-lo no prazo aludido naquele supra citado nº.5 do artigo 17.º-D, do mesmo diploma: «caso seja ultrapassado o prazo», na letra da Lei.« - STJ de 19.04.2016, p. 7543/14.7T8SNT.L1.S1.

Neste sentido, cfr. ainda o Ac STJ de 17.11.2015, Ac. da RC de 15.09.2015, p.  817/14.9T8ACB.C1 e Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões, Código da insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 2013, 69/70 e Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE, Anotado, 2.ª Ed. 2013,  pág. 161.

Temos, assim, que o fito da celeridade emerge abundantemente dos normativos atinentes ao PER, do qual dimana que os atos e decisões a praticar e a proferir, o devem ser de imediato, ou seja, em continuidade, ou em prazos muito curtos e tendencialmente improrrogáveis e preclusivos.

 6.1.3.

A distinção entre interpretação, maxime extensiva, e integração de lacunas, assenta no facto de naquela existir, para a situação que se quer regulada, norma, cujo sentido e alcance importa determinar; enquanto  que nesta a norma inexiste pelo que a atividade exegética do aplicador do direito incide, não sobre a norma, mas antes sobre as fontes da mesma, os casos análogos ou o espírito do sistema – artº 10º do CC.

Assim, para se concluir que emerge uma lacuna de regulamentação tem de alcançar-se que: «existe uma incompleição do sistema normativo que contraria o plano deste»

Sendo que: «a…afirmação da existência de lacunas resulta de uma tarefa de valoração; só valorando nós podemos dizer se determinada não-regulamentação contraria, ou não, o plano ou a conceção do sistema jurídico» - Oliveira Ascensão in O Direito, Ed. Gulbenkian, 2ª ed. p.391.

6.1.4.

A recorrente, em abono da sua pretensão, defende que no caso vertente existe lacuna, pois que: «Considerando que as características e natureza dos créditos se repercutem no apuramento das maiorias necessárias para aprovação do plano de recuperação, determinando a composição e influência do quórum deliberativo, não se pode estagnar no tempo e momento previsto no art. 17.º-D do CIRE a oportunidade de reagir contra tais erros, pelo que deve ser aplicada analogicamente ao PER a norma constante do art. 130.º, n.º3, do CIRE, da qual resulta que, não sendo impugnada a lista de créditos elaborada pelo administrador da insolvência, é de imediato proferida sentença de verificação de créditos, homologando aquela lista, salvo se houver erro manifesto.

  A inexistência de impugnações não constitui garantia da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência, desde logo atentos os curtos prazos concedidos pela lei, quer ao administrador da insolvência para elaborar as listas, quer aos interessados, para as impugnar. »

Mas a lacuna inexiste.

Porque a natureza, a ratio e a finalidade do PER e da Insolvência não se confundem, antes são diferenciados, sendo que, nuclear e sinóticamente, este se dirige, determinantemente, à liquidação do património do devedor e à satisfação, o mais ampla possível, dos direitos dos credores, e aquele visa, primordialmente, a recuperação do devedor.

Destarte, e no que respeita à (im)possibilidade de alteração da lista de créditos após o decurso do prazo da sua impugnação existem, natural e coerentemente, normas diferenciadas.

Para o PER rege a norma do artº 17-D nº4: « Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva

Para a insolvência  estatui o artº 130º nº3: « Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista.»

São, pois,  duas regras que contêm uma estatuição diversa quanto,  à (im)possibilidade de, não obstante a inexistência de impugnações, a lista de créditos ainda poder ser alterada.

No PER, tal alteração está, de todo em todo, vedada.

Inexistindo impugnações a lista converte-se, «de imediato» i.e.  sem qualquer condicionamento, ou seja, inelutável e inexoravelmente, em definitiva.

Já na insolvência, tal conversão verifica-se, por via regra, salvo, porém, a verificação ulterior de uma facto excecional obstativo: a existência de «erro manifesto».

Tal distinção é compreensível e intuível: como se viu, o PER assume um jaez de maior desjudicialização e é imbuído de acrescida urgência; logo, o legislador exige maior auto responsabilização  para uma atuação prudente, responsável, competente e célere.

Até para a própria defesa do devedor e, quiçá, dos credores.

 Pois que incidentes e atuações para lá dos prazos fixados, com maior probabilidade descambam na ultrapassagem do perentório prazo de três meses, com a inexorável consequência de o processo ser encerrado, assim obstando a um PER que poderia ser profícuo.

 Noutra perspetiva, e atenta uma postura exegética pautada pela adequada consideração dos elementos literal, sistemático e teleológico da hermenêutica jurídica, há que concluir que o   legislador do artº 17º-D nº 4 nada diz quanto à possibilidade de alteração da lista no pós impugnações da mesma porque não quis dizer.

Na verdade, cônscio da existência do segmento normativo do artº 130º nº3, o legislador do PER podia tomar uma de três opções:

 i) remetia para o disposto no artº 130º nº3;

ii) legislava, adrede, em sede de PER  -artº 17º-D nº4 – em termos idênticos aos de tal segmento normativo, ie., admitindo a alteração da lista de créditos, em prazo ulterior ao das impugnações, por erro manifesto;

iii)) Legislava em termos diferentes atenta a especialíssima natureza  e teleologia do PER.

Foi esta  última a opção tomada, pelo que, repete-se, não pode defender-se a existência de lacuna que implique a aplicação analógica do artº 130º nº3.

O que se compreende, não apenas pelo que ficou dito quanto ao cariz diferenciado da insolvência e do PER, como, outrossim, atentas as previsões, as situações fáctico-jurídicas sobre as quais as normas em causa estatuem.

O artº 130º nº3 prevê a necessária e obrigatória  intervenção do juiz sobre a verificação e graduação dos créditos, através de sentença final e tendencialmente preclusiva.

Faz, pois, sentido, a bem da verdade material e da justiça, que a ele seja exigível, razoavelmente, atividade  para detetar possível erro manifesto, retificando-o em conformidade.

Já a  estatuição do nº4 do artº 17º-B reporta-se a abarca apenas a  automática conversão em definitiva da lista provisória não impugnada, não prevendo e exigindo a intervenção do juiz.

Por outro lado, tal jaez definitivo da lista de créditos é mais aparente do que real, pois que à  sua elaboração se segue a fase das negociações no âmbito das quais os credores, por acordo, poderão, quasi soberanamente, estipular o que entenderem, designadamente corrigir erros manifestos que  nela detetem.

Naturalmente que, se o juiz, não obstante ele não intervir na passagem da lista de provisória a definitiva,  se aperceber, através da sua intervenção genérica nos autos, de tal erro, não lhe está quedo dele conhecer ou do mesmo dar conhecimento aos interessados.

Não podem é os credores, quiçá temerariamente, criarem incidentes que retardem o processo e possam levar à sua inelutável extinção por decurso do prazo de três meses, como constitui jurisprudência pacífica.

E o argumento da recorrente, de que «as características e natureza dos créditos se repercutem no apuramento das maiorias necessárias para aprovação do plano de recuperação, determinando a composição e influência do quórum deliberativo, não se pode estagnar no tempo e momento previsto no art. 17.º-D do CIRE a oportunidade de reagir contra tais erros…» não colhe.

A recorrente teve o prazo das impugnações à lista provisória – que precisamente por tal prazo ainda decorrer é que assume o cariz de provisória – para atacar a (in)existência, a natureza dos créditos e o mais que possa influir na mesma.

Se assim não atuou, ademais sem justificar tal inação ou desatenção, sibi imputet.

Certo é que, processualmente, lhe foi conferido tal direito.

E o “processo”, por definição, é exatamente isto: uma sequência ordenada de atos praticados em certos prazos, com vista à prolação de uma decisão, no mais curto lapso de tempo e com a maior economia de meios, possíveis.

O que chama à colação e exige, autorresponsabilidade, racionalidade e preclusão; mais a mais, reitera-se, numa tramitação processual de cariz urgentíssimo como é   do PER. 

Mostra-se, assim, acertado e curial o acervo argumentativo invocado pela 1ª instância, a saber:

«« Nas alterações ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que consagraram a figura do processo especial de revitalização, cuja regulamentação não é extensa não se previu expressamente qual o direito subsidiário aplicável.

Aplicando-se a regra geral contida no art. 549.º n.º 1 do Código de Processo Civil, como norma orientadora de eventuais ausências de regulamentação, resultará que ao processo especial de revitalização se aplicarão, em primeiro lugar, as regras que lhe são próprias, em segundo lugar as disposições gerais e comuns contidas no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, em último plano, caso se revele necessário, as regras contidas no Código de Processo Civil, sempre que a remissão feita pelo art. 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o consinta.

Ante uma ausência de regulamentação o intérprete indagará qual seja a «filosofia e a finalidade» do instituto próprio do processo especial de revitalização…

Qual o regime normativo próprio do processo especial de revitalização a respeito da publicação e exercício do direito de impugnação dos créditos!

Estatui o art. 17-D n.º 3 do CIRE que «a lista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis e dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas» e o normativo seguinte que «não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva.»

O legislador previu um prazo relativamente curto – 5 dias úteis após a publicação – para a impugnação de créditos, findo o qual a lista se considerava convertida em lista definitiva, o que quer  dizer que a mesma cristalizava em todas as suas dimensões (identificação do credor, valor dos créditos e sua natureza).

Inexiste ausência de regulamentação para que sejam convocados regimes subsidiários e muito menos justificada a oportunidade com que uma acionista de referência da devedora dá a conhecer todo um conjunto de transmissões de títulos representativos do capital social da devedora que eram, há muito, de acordo com os estatutos ou da sua intervenção em acordos parassociais do seu conhecimento.

No caso em apreço a lista provisória de credores foi publicitada no portal citius a 22.04.2016, facto esse facilmente consultável em www.citius.mj.pt/portal/consultas/ConsultasCire.aspx.

Nos termos do 17-D, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a lista provisória de credores poderia ser impugnada até ao 5 dia útil subsequente à publicação no portal citius.

O prazo de impugnação da lista terminou em 02.05.2016.

Não tendo sido apresentada oportunamente impugnação do crédito reconhecido ao credor n.º 46 da lista provisória de créditos, nomeadamente com fundamento que o seu crédito na parte comum tinha natureza subordinado, não poderá fazer entrar este seu pedido por via do pedido de não homologação do plano de revitalização sobre pena de manifesta perda de unidade sistemática.

A classificação da natureza do crédito em causa, quer pela exposição que é feita pela acionista da devedora como pelas respostas dadas pela própria sociedade está longe de ser passível de enquadramento (se procedente a alegação) na figura de erro manifesto (do Sr. AJP), facilmente suprível, nem a informação privilegiada que aquela possuirá sobre a detenção do capital social da devedora justificará a requerida intervenção excecional de conhecimento póstumo das matérias que traz à colação no processo.

Tendo a mencionada impugnação (encapotada) da natureza de parte do crédito n.º 46 da lista provisória de créditos sido enviada ao processo num momento em que há muito se encontrava convertida a lista em lista definitiva de credores é, assim, claramente extemporânea a posição que consigna no processo e o seu consequente e relacionado pedido, tendo-se extinto, pelo decurso do respetivo prazo, o direito de impugnar a lista provisória.

Por assim ser, indefere-se por extemporânea a impugnação da lista provisória de credores que foi apresentada pela A (…), S.A.»

(sublinhado nosso)

O Acordão da RP citado pela recorrente é contrariado por outra jurisprudência à qual aderimos e que até subscrevemos.

Assim, em sentido contrário, decidiu-se no Ac. da RL proferido no processo 7543/14.7T8SNT.L1, o qual esteve na origem do Ac. do STJ de 19.04.2016  sup cit.

E, bem assim, tal dimana do Ac. da RC de 17/6/2014, que este relator subscreveu como adjunto, e  no qual se expendeu:

«Confrontando este regime (PER) especificamente no que respeita às impugnações, como o previsto nos art.ºs 128 e segs. da Lei, para o processo de insolvência, detectamos diferenças essenciais.

No PER não há uma norma que faça uma remissão para aquele regime mais complexo e o art.º 17-D expressa uma tramitação própria.

E entende-se que assim seja, porque, no PER, entre as impugnações e a conclusão das negociações medeiam 2 meses, no máximo três, sendo certo que para a deliberação do plano deverão estar os credores interessados…

Para conferir a referida celeridade, o legislador reduziu garantias processuais. E esta redução, naturalmente, deverá implicar efeitos e âmbito reduzidos ao próprio PER, salvo pequenas exceções, como a do art.º 17.º -G, n.º 7.

Apenas haverá efeitos definitivos no PER no caso de créditos não impugnados (art.º 17.º -D, n.º 4, decorrente da admissão de acordo)…»

E neste sentido parecendo inclinar-se Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, 2ª edição, págs. 160/161,  quando escrevem:

«Com o sentido já acima explicitado, uma vez terminado o prazo das impugnações, sabe-se quem, desde logo, fica habilitado a intervir no processo negocial: todos os titulares de créditos que não tenham sido objecto de contestação, quer tenham sido subscritores da declaração inicial junta com o requerimento de instauração do processo – art. 17.°- C, n.°1 – quer não, carecendo neste caso de dar satisfação à exigência do nº7 do preceito em anotação»

(sublinhado nosso)

6.1.5.

Mas mesmo que se entendesse que  artº 130º nº3 era, formalmente, aplicável, ele, substancialmente,  não relevaria no caso sub judice.

Na verdade o legislador exige, como facto(r) obstaculizante da não homologação oficiosa da lista de credores, a existência de «erro manifesto».

Ora, por definição, um erro, para ser «manifesto» tem de ser certo, claro, evidente, notório, patente.

Não é, assim qualquer erro da lista que pode ser taxado de manifesto, mas apenas aquele que dela, ou de outros elementos do processo que, razoavelmente seja exigível ao julgador perscrutar, emergir como claro e quasi evidente.

E dizemos «razoavelmente» porque não comungamos certas posições de exigência, que temos por desmedida e desmesurada, ao juiz, no sentido de  se certificar, perante todos os elementos do processo, e de um modo minucioso e axaustivo, da, vg., existência e natureza dos créditos.

Valem aqui alguns dos argumentos já supra aduzidos no atinente ao cariz essencialmente desjudicializado do PER, da autonomia da vontade dos credores e da sua adstrição a uma atuação prudente, competente e responsável.

Ademais, a lista é elaborada pelo Administrador judicial provisório o qual é  suposto que possua conhecimentos técnico científicos bastantes para adequadamente desempenhar as suas atribuições e que paute a sua atuação com a diligência e imparcialidade devidas.

Acresce que a lista é elaborada outrossim a partir da iniciativa dos credores que reclamaram  os seus créditos, e que, posteriormente, tiveram prazo para os impugnar.

Nesta conformidade, tem aqui cabimento, mutatis mutandis,  o deliberado no Ac. da RC de  020.02.2010, p. 171/07.5TBOBR-C.C1, in dgsi.pt,  em que interveio o presente coletivo, a saber:

«Se o credor, notificado da lista do administrador da insolvência, que reconheceu e qualificou o seu crédito como comum, não impugna esta qualificação – artº 130º nº1 do CIRE - não pode posteriormente, após prolação da sentença que a manteve, insurgir-se contra ela, com base na existência de «erro manifesto» - nº3 - por falta de consideração de documentos dos apensos, porque anteriormente não se pronunciou e porque tal erro apenas deve ser ( diremos, agora, mais comedidamente «tendencialmente»)  apreciado pelo juiz com relação aquela lista.» -

Parecendo, outrossim, ser este o entendimento do decidido no Ac. RC, de 25-02-2014, 902/12.1TBACB-B.C1,  quando nele se sumaria:

 «em conformidade com o disposto no art. 130º, nº 3, do CIRE, não tendo sido deduzida qualquer impugnação à lista de credores reconhecidos apresentada pelo administrador de insolvência, não sendo detectável a existência de qualquer erro nessa lista (seja no que toca à existência e valor dos créditos, seja no que toca à sua qualificação) e inexistindo razões para suspeitar que tal erro tenha existido, o juiz limitar-se-á a proceder à sua homologação, sem que, nesse caso, lhe seja exigida qualquer actividade investigatória no sentido de confirmar a correcção dos elementos que constam da lista (seja em termos de facto, seja em termos de direito).»

Ora no caso vertente, o argumento  com o qual o recorrente pretende seja atribuído o cariz de crédito subordinado ao Fundo (…), n.º 46 da lista de credores, qual seja, que este credor é «pessoa especialmente relacionada com a Devedora, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 48.º, alínea a), e 49.º, n.º 2, alínea a), do CIRE» não é manifesto, ie,  a claro, notório ou quasi evidente.

Antes pelo contrário.

Basta atentar na argumentação aduzida pela recorrente,  vg., nas suas, seguintes conclusões:

DD. Com efeito, o credor n.º 46 foi accionista da Devedora, por ter adquirido, por “Contrato de Compra e Venda de Acções”, celebrado em 24 de Julho de 2014, entre o referido Credor e (…) na qualidade de Vendedores, acções representativas de 52,53% do capital social da Devedora.

EE. As relações entre o credor n.º 46 e a Devedora não tiveram a sua génese na data da celebração do “Contrato de Compra e Venda de Acções”, tendo sido precedidas e enquadradas no âmbito de uma relação obrigacional muito mais complexa, que teve a sua origem no âmbito de um plano de reestruturação da Devedora.

 FF. Este plano passou, nomeadamente, pela negociação e celebração, entre as referidas partes, de um Acordo Parassocial em 11 de Agosto de 2014, que, como é uma verdade de La Palisse, é precisamente o acordo que regula as relações entre accionistas de uma determinada sociedade, bem como a celebração, em 29 de Setembro de 2014, de um contrato de cessão de créditos que pressupunha, precisamente, a qualidade de accionista do credor n.º 46.

 GG. O intuito que moveu o Fundo foi pois, desde um primeiro momento, o de fiscalizar e supervisionar a gestão e actividade da sociedade Devedora, potencializando a sua produtividade, rentabilidade e, consequentemente, a possibilidade de ver satisfeito o reembolso do seu investimento e juros a este associados, bem como minimizar o seu risco contratual.

HH. Assim, o credor n.º 46 pretendeu, desde logo, adquirir a posição de accionista na Devedora, com os concomitantes direitos sociais e patrimoniais, nomeadamente, o direito de votar na sua Assembleia Geral e de nomear pessoas da sua confiança para o Conselho de Administração.

II. O credor n.º 46, após ter realizado um avultado investimento financeiro na sociedade Devedora, adquiriu de imediato, em 24 de Julho de 2014, participações representativas do seu capital social, através do dito “Contrato de Compra e Venda de Acções”, tendo-se, no entanto, reservado o direito de, se verificadas certas condições, resolver o contrato, pondo assim termo aos efeitos jurídicos do mesmo.

JJ. Assim, desde essa data, o negócio jurídico produziu todos os seus efeitos normais, mas sobre a sua eficácia esteve suspensa a possibilidade da verificação de um evento condicionante, como, por exemplo, o proferimento de uma decisão pela Autoridade da Concorrência que se opusesse à transmissão.

KK. Assim, o que na realidade sucedeu foi que o credor n.º 46, após ter validamente adquirido um direito, que se consolidou na sua esfera jurídica em virtude do “Contrato de Compra e Venda de Acções”, e invocando precisamente os termos previstos no dito contrato, cedeu os seus direitos e obrigações ao credor n.º 62, já após ter adquirido os créditos que aqui são reclamados.

 LL. Por conseguinte, o credor n.º 46, quando adquiriu os créditos reclamados e reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, era pessoa especialmente relacionada com a Devedora.

MM.E ainda que tivesse vindo a ceder tal posição contratual e os direitos que lhe advieram do “Contrato de Compra e Venda de Acções”, nomeadamente as participações sociais da Devedora, ao credor n.º 62, tal cessão terá sempre ocorrido nos dois anos que precederam a insolvência da Devedora.

(sublinhado nosso).

Ou seja, nas próprias palavras da recorrente, para se concluir pela especial relação da credora 46 com a devedora, teria de se atentar em vários  contratos  –  de aquisição de ações, de cessão de créditos, de cessão de posição contratual –, bem como de acordos parassociais, e, ainda, de uma vasta e complexa relação, como seja de financiamento, entre a credora e a devedora.

O que, tudo, implicava a análise cuidadosa e exaustiva de uma plêiade de documentos, alguns dos quais nem sequer se alega estarem nos autos.

Por conseguinte, não se enxerga como -ademais não tendo a lista sido atempadamente impugnada pela ora recorrente  aquando da apresentação da lista ao juiz -, o ora invocado erro na qualificação do crédito do credor nº 46,  assumia o jaez de manifesto, e, assim, sendo exigível ao julgador  que dele tomasse conhecimento e o corrigisse.

Pois se nem para tal erro foi anteriormente alertado pela recorrente, quando, no prazo para as impugnações, ela tal podia e devia operar!

6.2.

Segunda questão.

6.2.1.

Expressis verbis – artº 17º-F nº5 do CIRE - é aplicado  à homologação, ou recusa de homologação, do plano de recuperação, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º, com as necessárias adaptações.

Se o plano de insolvência for rejeitado por iniciativa do juiz, oficiosamente, os fundamentos da rejeição estão, mais amplamente, estatuídos no artº 215º:

«O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.»

Se a não homologação for requerida pelos interessados, vg. algum credor, ela apenas pode ter lugar nas duas situações previstas no nº1 do artº 216º:

1 - O juiz recusa ainda a homologação do plano de insolvência se tal lhe for solicitado …por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:

a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas.

b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante  nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva suportar.

Em primeiro lugar, parece resultar de tais normativos, que o artº 215º rege apenas para o juiz, e  que o artº 216º apenas estipula para o devedor e os credores.

Assim, se o juiz homologar o plano, porque, no âmbito da previsão do artº 215º, não vislumbra vício, instrumental ou substancial, que tal impeça, parece que ao devedor, ou a qualquer credor, falha a legitimidade para, no âmbito deste preceito, contra a homologação se insurgir.

O que apenas poderá efetivar nos estritos termos do artº 216º.

Em segundo lugar, e como é intuitivo,  considerando a  natureza e finalidade do PER, supra referidas – maxime  a larga margem de conformação do conteúdo do plano que deve conceder-se aos credores -, não é uma qualquer e minudente afetação que queda inadmissível, mas apenas a afetação ilegal ou «indevida» - cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda CIRE, Anotado, II vol.,  2006, p.40.

Acresce que este preceito está gizado para uma situação de insolvência e posterior liquidação, que não para uma situação de recuperação.

Ora perante esta, a afetação ou constrangimento, absoluta e comparativamente equilibrada e equitativa, dos direitos dos credores é, acrescidamente, de conceder, atento o fito recuperatório pretendido e os benefícios que a salvação/recuperação da empresa acarreta para o tecido económico-social. – cfr. Acs. do STJ, de 10/04/2014, p. 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 e de 25/03/14 p. 6148/12.1TBBRG.G1.S1.

Tanto assim que, num caso muito invocado para a não homologação, como seja a violação do princípio da igualdade entre credores, se tem entendido que este princípio, deve ser atomística a plásticamente interpretado, pois que:

 «Ponderando que o PER tem como fim primordial a recuperação da empresa, a derrogação do princípio da igualdade dos credores é legítima num quadro de ponderação de interesses – o interesse individual por contraposição ao colectivo – se este se situar num patamar material e fundadamente superior em função dos direitos que devem ser salvaguardados, atendendo a sua relevância pública.». Ac. do STJ 25/03/14 sup.cit.

Assim sendo:

 «esta primazia (mesmo a satisfação dos créditos) não funciona apenas em detrimento da empresa: ela exige, também, o sacrifício de terceiros que tenham contratado com a entidade insolvente» - Menezes Cordeiro, in “Perspetivas Evolutivas do Direito da Insolvência”, Thémis, nºs 22/23, 2012, ps 40 a 42.

Na verdade:

«parece aceitável que um credor que seja fornecedor do devedor tenha um tratamento diferenciado relativamente a outro credor da mesma classe pela importância que detém para a recuperação do devedor, consequentemente, para o sucesso do acordo de recuperação eventualmente alcançado no âmbito do PER» - Filipa Gonçalves  in “Estudos de Direito da Insolvência”, Coordenação de Maria do Rosário Epifânio, Almedina, 2015, p. 84.

Nesta conformidade, a conclusão pela violação, ou não, do princípio da igualdade, mais do que decorrente de uma apreciação apriorística e meramente contabilística, deve emergir de uma ponderação global e concatenada, de sorte a alcançar-se  se a vinculação do credor pelos termos do plano se apresenta, atentos certos elementos objetivos - montante, natureza, origem, finalidade, etc., do crédito -  como justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspetiva, se ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável – cfr. Jorge Reis Novais in Princípios Estruturantes da República Portuguesa, pág. 171,  apud Ac. do STJ de 25/03/14 .

Em terceiro lugar, «last but not the least,» passe o anglicismo, os vícios procedimentais ou substanciais que podem obviar à homologação do plano são apenas aqueles que se praticam no processo e os que estão refletidos no próprio plano.

Tal resulta, claramente, da letra da lei e, ainda, dos elementos lógico e teleológico da hermenêutica jurídica.

É que adotando-se um conceito lato de tais vícios, de tal sorte que se alargassem a outros quids que, extra processualmente e, indireta e/ou mediatamente, pudessem, eventualmente, bulir com os interesses ou afetar os direitos dos credores, estar-se-ia a abrir caminho – qual caixa de pandora-  para, quiçá a esmo e temerariamente, se impedir a entrada em vigor do plano ou para acarretar a sua irrelevância/ineficácia.

Tudo com violação da vontade da maioria dos credores e da possível reabilitação da devedora, a qual, repete-se, passou, com a reforma de 2012, a ser um dos objetivos fulcrais do legislador.

6.2.2.

No caso vertente a 1ª instância assim entendeu quando plasmou:

«A credora A (…) (sócia da devedora à data da prolação do despacho de fls. 1799 e ss e cujas acções terão sido posteriormente amortizadas) veio dar conta de não ter tomado parte na assembleia geral de 21/12/2016, da qual não teve conhecimento e que foi irregularmente convocada, razão pela qual diz já ter instaurado procedimento cautelar de suspensão de deliberações  sociais, a correr termos sob o n.º 32/17.0T8ACB pela 2.ª Secção do Juízo de Comércio de Alcobaça.

Por outro lado, aduz que a amortização da totalidade das acções por si detidas na devedora traduz uma alteração subjectiva superveniente na própria estrutura societária que não é indiferente para os credores e com forte implicação no processo especial de revitalização, comprometendo o potencial de viabilidade do plano de recuperação proposto pela devedora e votado pelos credores.

Também com esse fundamento requer seja recusada a homologação do plano de recuperação.

Em resposta, a devedora veio esclarecer que a assembleia geral do passado dia 12/12/2016 foi regularmente convocada, nos termos legais e estatutários aplicáveis, tendo deliberado a amortização das acções da accionista «A (…)» com base no disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea (i) dos Estatutos da devedora em vigor à data de tal deliberação, aprovados pela A (…)», que permitia a amortização de acções, independentemente do consentimento dos respectivos titulares, nos casos de insolvência do titular.

Termina pedindo seja proferida sentença de homologação do plano de recuperação aprovado.

Apreciando.

No aludido despacho de fls. 1799 e ss já foi afirmado que, segundo os elementos transmitidos pelo Exmo. Administrador Judicial Provisório a fls. 760 e ss (original a fls. 997 e ss), o plano de recuperação considera-se aprovado, por ter sido votado favoravelmente por 75,68% dos créditos constantes da lista de credores, dos quais apenas 5,59% são créditos subordinados, tendo-se registado abstenções representativas de €2.007.826,71 de um total de créditos de €21.331.984,09 – artigo 17.º-F, n.º 3 do CIRE.

Também aí foram julgados improcedentes os pedidos de não homologação do plano deduzidos pelos credores «B (…).» e «A (…).» e pela interveniente «B (…).».

A identificada condição suspensiva do plano – aumento do capital social da devedora, por novas entradas em dinheiro e sua imediata subscrição no valor de €200.000,00 – está verificada, no prazo estabelecido para o efeito, tendo sido realizada  assembleia geral de accionistas, na qual foi aprovado o aumento do capital social previsto no plano de recuperação, o qual foi subscrito e realizado.

Os vícios que a credora «A (…).» assaca a tal deliberação, bem como à antecedente que terá amortizado a totalidade das acções por si detidas na devedora, não têm a virtualidade de obstar à homologação do plano, por não integrarem o condicionalismo previsto no artigo 215.º do CIRE.

Na verdade, tais deliberações são para já plenamente eficazes.

Nem tão pouco se nos afigura razoável que os presentes autos de PER, atento o seu avançado estado, fiquem a aguardar decisão, com trânsito em julgado, a proferir no procedimento cautelar cuja propositura foi anunciada.

Justamente por tal não servir o interesse colectivo dos credores, cuja maioria optou por aprovar o plano de recuperação apresentado nos autos.

De resto, porque o plano de recuperação proposto pela devedora já foi votado e aprovado pelos credores, saber se a alteração subjectiva superveniente na estrutura societária da devedora compromete o potencial de viabilidade do plano é matéria que eventualmente se projectará em sede de (in)cumprimento do plano, mas que não contende com a sua homologação.».

(sublinhado nosso)

Já a recorrente diz que:

«requereu a não homologação do plano de revitalização, pugnando pela violação não negligenciável de regras procedimentais e, bem assim, pela violação negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação, advogando, em suma e naquilo que releva para o presente recurso, pela existência de uma restrição ao direito de preferência dos accionistas na realização de novas entradas em dinheiro no aumento do capital da sociedade, em detrimento de um terceiro não identificado, e à revelia da assembleia geral de accionistas da ENP, o que constitui condição suspensiva da aprovação do plano, em violação do disposto nos artigos 198.º, n.º 5, 201.º e 215.º do CIRE; no artigo 458.º do Código das Sociedades Comercias (“CSC”); e no artigo 25.º da Segunda Directiva do Capital.»

Já se antolha, em função do supra referido,  que este tribunal ad quem não pode censurar o decidido.

Primus, e como se disse, é duvidoso que a recorrente possa invocar o disposto no artº 215º.

Secundus porque, bem vistas as coisas, a recorrente não aduz factos bastantes dos quais se possa concluir como e em que medida, bastante para que o plano não tivesse sido ou não possa ser aprovado, é prejudicada pela alteração da estrutura societária da devedora e, principalmente, que  os restantes credores  que aprovaram o plano considerassem essa alteração impeditiva da sua aprovação.

Tertius, e determinantemente, porque os argumentos apresentados, pelo menos na sua essencialidade relevante, são extrínsecos ao processo de insolvência e ao próprio plano.

Ademais, assumem uma complexidade  e incerteza quanto à razão da recorrente tais, que, de todo em todo,  impedem que sejam atendíveis.

Sob pena de se frustrarem, quiçá inglória e injustamente, os fitos do processo, pois que, repete-se, a razão da recorrente  nos aspetos que invoca está  longe de ser evidente ou até razoavelmente provável.

Destarte, a razão, ou sem razão, tem de ser apreciada nos processos que ela já instaurou: providência cautelar de suspensão das deliberações sociais e ação de anulação e declaração de nulidade de deliberações sociais.

Podendo, eventualmente, contender, como bem se menciona na decisão, com  a execução do plano.

Mas não obstando, pelo menos por ora, à sua homologação/implementação.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

7.

Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.

I - No âmbito do PER, e atenta, vg., o seu jaez de processado urgentíssimo, existe norma própria que fixa a consequência,  final e inelutável, para a falta de impugnações da lista provisória de créditos, qual seja, o artº 17-D nº4 do CIRE, a saber: «Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva».

Decorrentemente, inexiste, neste particular, lacuna, pelo que a lista não pode ser alterada, por aplicação analógica do artº 130º nº3, com alegação de existência de «erro manifesto»,  sem prejuízo de este ser constatado e corrigido pelos credores na fase das negociações.

II -  O erro «manifesto», a que alude o artº 130º nº3 do CIRE tem de ser  apenas o erro que emirja da lista de créditos - ou de outra documentação que,  perante os termos desta, seja exigível, razoável e sensatamente, ao juiz perscrutar -, de uma forma clara, notória, patente, ie., que não implique indagação exaustiva.

III - A violação de regra procedimental não negligenciável e/ou de norma aplicável ao conteúdo  do PER , obstaculizantes da sua homologação – artº 215º ex vi do artº 17º-F nº5 do CIRE –, é apenas a reportada ao processo (aquela), e que esteja refletida no próprio plano (esta).

Assim, outras aventadas violações que, extra processo e extra plano, possam preencher a previsão legal – vg. alteração societária da devedora –, não relevam para obstar à sua homologação/implementação, mas apenas poderão colidir, no futuro, e se provadas nos processos próprios, com a sua execução.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar as decisões.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2017.04.04.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo ( com declaração )

Fonte Ramos

Concordo com o decidido.

E também concordo que no caso não existe erro manifesto.

Mas não sigo a tese da rejeição , logo a priori, do disposto no art.130 nº3 do CIRE, ao PER, como se concluiu na fundamentação ( ponto 6.1.4) e no Sumário ( Parre I, 2º parágrafo).

Se houver um erro manifesto entendo que pode e deve ser corrigido, na linha do Ac Rel Porto de 12.5.2014, Proc. 91/13.4TBVNH, referido no presente aresto.

  O como, por quem e quando, no silêncio da lei, não são difíceis de ultrapassar. Tendo em consideração que se trata de um erro manifesto, bastará, então, um simples requerimento a corrigir em 1ª mão pelo administrador quando a questão lhe é posta ou, posteriormente, pelo juiz quando, no momento da homologação do plano, for confrontado com o requerimento de rectificação.

Certo é que um erro manifesto não pode manter-se na lista definitiva de créditos, pois pode influenciar decisivamente as maiorias necessárias à aprovação ( ou não ) do plano de recuperação. Por ex. caso dos créditos serem subordinados ou não, votos de credores impedidos de votar que tivessem votado, etc. ).

Aliás, o acórdão acaba por admitir que os credores na fase seguinte ao apuramento da lista definitiva de créditos poderão rectificar o erro – se houver vontade e conveniência para isso, o que na esmagadora maioria dos casos não acontecerá – então, sendo assim, é por que reconhece que o erro manifesto pode ser corrigido.

A terminar diremos que se até as decisões judiciais podem ser reformadas por erro/lapso manifesto, era o que faltava que um erro manifesto do administrador judicial na lista provisória de créditos não pudesse ser corrigido!.

Moreira do Carmo