Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
352/22.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
ENCERRAMENTO
SUBSEQUENTE AÇÃO DE INSOLVÊNCIA
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 17.º-E, N.º 1, E 17.º-J, 20.º, N.º 1, AL. F), E 218.º, N.º 1, AL. B), DO CIRE
Sumário: I – O art. 17.º-E, n.º 1, do CIRE – regra própria do processo especial de revitalização (PER), que dispõe sobre os efeitos, durante a pendência deste processo, do despacho de nomeação do administrador judicial provisório sobre as ações para a cobrança de dívidas a instaurar ou instauradas contra a empresa – não é aplicável a uma subsequente ação de insolvência, intentada por credor, quando o PER da devedora já não estava pendente (este considera-se encerrado após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de recuperação).

II – Também não constitui impedimento a tal ação de insolvência o facto de o PER ter sido concluído com a aprovação de um plano de recuperação, homologado judicialmente, nem o facto de o pedido de insolvência ter sido deduzido dentro do período previsto no plano para a execução dele.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 352/22.1T8LRA.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

S... com sede a Avenida ..., ..., ... ..., requereu se declarasse a insolvência da sociedade comercial V..., SA., com sede na Urbanização ..., ... ....

Para o efeito alegou em síntese:
· Que é credora da requerida, no valor de 1 859,86 euros;
· Que a requerida não apresentou nem fez aprovar até à data da entrada da acção contas válidas relativas ao exercício económico de 2020;
· Que a requerida não pagada atempadamente aos seus fornecedores, prestadores de serviços, nem paga ao Estado as quotizações para a Segurança Social e que estas dívidas são posteriores à reclamação de créditos no âmbito do PER que a requerida viu homologado no âmbito do processo n.º 1081/15....;
· Que existem também dívidas vencidas e englobadas no âmbito do PER que também não estavam a ser pagas;
· Que o passivo da requerida era manifestamente superior ao seu activo.

A ré contestou. Na sua defesa alegou em síntese que a requerente não tinha legitimidade para pedir a declaração de insolvência, dela, ré, e que ela não se encontrava em situação de insolvência.  Termina a contestação pedindo:
a) Se reconhecesse à requerente um crédito de, tão-somente, 1.600,00 €;
b) Se julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa da Requerente, com a consequente absolvição da instância da Requerida, nos termos e para os efeitos do dos artigos 33.º, n.º 1, 576.º e 577.º, alínea e) do CPC; ou, caso assim não se entendesse,
c) Se julgasse improcedente, por não provado, o pedido de declaração de insolvência requerido pela Requerente.

Notificada para se pronunciar sobre a excepção de ilegitimidade, a requerente pediu se julgasse improcedente tal excepção.

Findos os articulados, a Meritíssima juíza do tribunal a quo julgou extinta a instância por impossibilidade originária da lide.

A autora não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse a sentença e se substituísse a mesma por acórdão que ordenasse o prosseguimento dos ulteriores termos do processo de insolvência.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A recorrente S... intentou acção de insolvência contra a V..., SA,

alegando:
a) Que é credora da requerida no valor de Eur.1.859,86, dívida que ainda não foi paga;
b) Que a requerida não paga atempadamente as suas dívidas aos seus fornecedores, prestadores de serviços, nem paga ao Estado as quotizações para a Segurança Social, dívidas, essas, posteriores à reclamação de créditos no âmbito do PER que a Requerida viu ser homologado em 2015 no âmbito do processo 1081/15...., e que, portanto, estão fora do perímetro desse processo;
c) Que existem dívidas vencidas e englobadas no âmbito do PER que também não estão pagas;
d) Que a requerida apresentou mas não aprovou contas válidas relativas ao exercício de 2020;
e) Que de tais contas se retira que de 2019 para 2020 a dívida à Segurança Social se agravou de Eur.3.294.496,67 para Eur.3.787.115,24, pelo que só num ano a dívida a esta entidade pública cresceu Eur.492.418,57, segundo o anexo às contas de 2020;
f) Que de acordo com o mesmo documento, de 2019 para 2020 a dívida da Requerida a fornecedores se agravou de Eur.660.308,74 para Eur.1.543.992,42, ou seja crescimento de Eur.883.683,68;
g) Que entre 2018-2020, últimos números conhecidos, o cash flow real é inferior em Eur.-3.047 milhões ao previsto no PER, pelo que não só a requerida não conseguiu cumprir com o serviço de dívida, como continua actualmente a endividar-se ainda mais, sendo que as dívidas a terceiros, que em 2015 ascendiam a cerca de 8 milhões de euros, e que em 2020 era suposto terem sido reduzidas para cerca de 5 milhões de euros, cresceram para um valor de 10,7 milhões, mais 34% do que em 2015, aquando da aprovação do PER;
h) Que os últimos anos consecutivos de prejuízos e tesouraria negativa estão a ser financiados exclusivamente por terceiros, quer seja não pagando o serviço de dívida, quer seja criando dívida nova posterior a 2015, que a Requerida não tem com pagar, pois a actividade não é, nem é razoável esperar que seja suficientemente rentável para pagar aos credores (a todos eles, pré e pós 2015) o que lhes é devido;
i) Que a requerida perdeu qualquer capacidade para gerar fundos, mercê de más decisões estratégicas e actos de gestão danosa, gizados pela administração de facto, com cobertura da administração de direito, que devem merecer a qualificação da insolvência como culposa (alíneas a), b), d), e), f), g) e h) do nº 2 do art.º 196º do CIRE;
j) Que é clara a situação de insolvência da devedora, pois o que releva para a declaração de insolvência é a insusceptibilidade de a devedora satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo da devedora, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para a devedora, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos – art.º 3º nº 1 do CIRE;
k) Que o passivo da Requerida é manifestamente superior ao seu activo (art.º 3º n.º 2 do CIRE.
2. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo não julga a requerente como parte ilegítima, entendendo que o processo de insolvência não pode sequer iniciar-se porquanto o PER da Requerida terminou com a homologação de um plano em 2015, plano esse que “ainda está em execução, não tendo sido demonstrado ou sequer alegado o respectivo incumprimento”.
3. Tal versão não é exacta, já que uma leitura atenta da petição inicial de insolvência identifica inúmeros incumprimentos por parte da requerida, quer do PER, quer posteriores ao PER e que nada têm a ver com este, alguns dos quais reconhecidos pela requerida na sua oposição.
4. A decisão é, todavia, toda ela baseada n o artigo 17 – E nº 1 do CIRE, que, salvo melhor opinião, não tem aqui qualquer aplicação.
5. A sentença posta em crise esquece que, no processo de insolvência, o requerente não convoca um meio processual destinado ao pagamento do seu crédito, mas sim um meio processual destinado à tutela de todos aqueles que sejam susceptíveis de ser afectados pela insolvência do devedor;
6. Esquece que a situação material subjacente em discussão é a análise da concreta situação de insolvência, e nesse sentido trata-se de uma acção que não é destinada à cobrança de dívidas, e tem natureza declarativa. Não está em causa a relação jurídica obrigacional entre os sujeitos, ou entre requerente e requerido.
7. Autores como MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, NUNO SALAZAR CASANOVA e DAVID SEQUEIRA DINIS defendem que no artigo 17-E nº 1 estão abrangidas apenas as acções executivas, ou as diligências executivas e ainda as providências cautelares de natureza executiva, sendo que os últimos dois autores defendem que a apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa estão abrangidas pelo citado artigo.
8. Deve assim concluir-se que o artigo 17º E – n.º 1 é inaplicável ao caso dos autos, ao contrário do que decidiu a douta sentença recorrida, pelo que se verifica erro de julgamento, ao aplicar-se uma norma (artigo 17º E – nº 1 do CIRE) que não tem aplicação ao caso presente.
9. Também não tem aplicação o artigo 17º E- nº 6 do CIRE, que visa regular apenas os pedidos de insolvência que estejam pendentes à data da prolação do despacho que nomeia o administrador judicial provisório (in casu, em 2015, há 7 anos), em que não se tenha verificado declaração de insolvência, bem como qual o regime aplicável a essas acções de insolvência (já pendentes) quando seja homologado um plano no âmbito do PER. Nada diz quanto a acções que possam ser intentadas após esse período, e deve salientar-se que entre a aprovação do PER e a data actual já decorreram 7 anos de prejuízos acumulados e degradação irreversível da situação económica e financeira da Requerida, com prejuízo para todos os credores, que vêm as garantias do pagamento dos seus créditos cada vez mais diminuídos.
10. A lei insolvencial visa proteger, designadamente a defesa do crédito, da economia, do mercado, da justa concorrência, valores totalmente ausentes de ponderação na decisão sob recurso.
11. Basta pensar numa empresa que vê homologado um PER, por 12 anos, que incumpre esse plano sem que nenhum credor desencadeie o mecanismo previsto no artigo 219.º do CIRE.
12. A manutenção dessa empresa no mercado, aprofundando a sua actividade deficitária através de contracção de mais dívida, à custa de fornecedores, Estado, bancos e outros parceiros, durante anos, viola a defesa do mercado justo e concorrencial, da economia e do próprio crédito.
13. É totalmente injustificada e ilegal a blindagem de uma empresa como a Requerida durante mais de uma década contra a propositura de uma acção de insolvência (quando manifestamente está insolvente) enquanto não for declarado incumprido o PER, como pretende a decisão sob recurso, sem norma legal que o justifique
14. E não havendo norma, nenhuma razão há que justifique a manutenção destas empresas no circuito comercial, se é evidente, pelos sinais dos autos, que as mesmas não são viáveis.
15. Se atentarmos nas evidências trazidas aos autos no Requerimento Inicial e as confrontarmos com a Oposição apresentada pela requerida, facilmente se percebe que estamos em presença de uma empresa que se afunda económica e financeiramente nos últimos anos, e que essa degradação afecta irreversivelmente a possibilidade de os seus parceiros de negócio e o próprio Estado receberem o que lhes é devido, não só no PER, mas relativamente a dívida posterior ao PER, em dezenas de milhões de euros.
16. Não havendo nenhuma razão legal que impeça o prosseguimento dos autos de insolvência, bem pelo contrário, deve entender-se que nenhum obstáculo legal existe ao prosseguimento do processo de insolvência, pois não há lugar à aplicação do artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE que o Tribunal a quo erradamente aplicou, verificando-se, assim, erro de julgamento que urge corrigir, ordenando-se o prosseguimento dos autos para audiência de discussão e julgamento.

A requerida não respondeu ao recurso.


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Síntese da questão suscitada pelo recurso:

Saber se, ao julgar que o artigo 17.º-E, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas impedia a autora de requerer a declaração de insolvência da ré, a decisão recorrida incorreu em erro e, em caso de resposta afirmativa, se a mesma é de substituir por decisão que ordene o prosseguimento dos autos para a audiência de discussão e julgamento.


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Na decisão tomar-se-á em conta o que foi alegado pela autora na petição inicial e ainda os seguintes factos discriminados na decisão recorrida:
1. Por requerimento apresentado em juízo a 25.03.2015, a aqui requerida requereu processo especial de revitalização que correu termos sob o n.º 1081/15...., no Juízo de Comércio do tribunal judicial da comarca ....
2. Pelo despacho proferido a 27.03.2015 foi nomeado administrador judicial provisório.
3. Na proposta de plano de recuperação apresentada, no âmbito do referido PER, e homologada por sentença proferida a 2/10/2015, transitada em julgado, foi previsto um plano de amortização para os credores comuns por um período de 12 anos, com um período de carência de 12 meses (melhor descriminados no plano de revitalização cuja cópia se encontra junta aos autos).
4. Ainda no âmbito do referido plano, para os credores subordinados, foi previsto o seguinte: “No que concerne aos créditos subordinados referentes às entidades relacionadas, o valor em dívida poderá ser alvo de compensação de saldos entre a Devedora e as mesmas, sendo que, com a elaboração e movimentação destes elementos contabilísticos, levar-nos-á a diminuir substancialmente o Passivo da Value, assim como torna todas as contas em consonância com a realidade actual da Empresa, passando pelo perdão da totalidade dos juros reclamados, vencidos e vincendos, bem como de eventuais indemnizações, despesas e custas solicitadas. Os pagamentos de créditos subordinados só serão eventualmente iniciados depois do integral pagamento dos créditos de todos os credores não subordinados. No caso dos suprimentos e outros empréstimos de accionistas admitimos que os mesmos passem a integrar o Capital Próprio da sociedade”.

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Passemos à resolução da questão acima enunciada.

A decisão recorrida julgou extinta a instância por impossibilidade originária da lide. Invocou, para tanto, o n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE que, segundo ela, impedia a autora, ora recorrente, de requerer a declaração de insolvência da requerida.  Laborou com base nas seguintes premissas:
· A requerida recorreu a um processo especial de revitalização [PER];
·  No âmbito de tal processo foi homologado, por sentença transitada em julgado, um plano de recuperação;
· O plano ainda estava em execução, não tendo sido demonstrado ou sequer alegado o respectivo incumprimento;
· O crédito que a autora invocou estava abrangido pelo plano de recuperação.

A recorrente contesta a decisão alegando, no essencial, que o artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE não era aplicável ao caso.

Assiste razão à recorrente.

O artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE é uma regra própria do processo especial de revitalização, que dispõe sobre os efeitos, durante a pendência deste processo, do despacho de nomeação do administrador judicial provisório sobre as acções para a cobrança de dívidas a instaurar ou instauradas contra a empresa. De acordo com o preceito, tal decisão obsta à instauração de tais acções e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.

Ainda que se interprete este preceito no sentido de que, entre as acções visadas por ele, estão as acções de insolvência, o mesmo não é aplicável à presente acção de insolvência porque esta aplicação pressupunha que o processo especial de revitalização a que recorreu a ré, ora recorrida, estivesse pendente quando a autora, ora recorrente, pediu a declaração de insolvência da sociedade V..., SA, quando tal não acontecia. Com efeito, segundo a alínea a) do artigo 17.º-J do CIRE o processo especial de revitalização considera-se encerrado após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de recuperação e a decisão que homologou o plano de recuperação da requerida já havia transitado em julgado há vários anos quando foi proposta a presente acção.

Segue-se do exposto que o n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE não impedia a autora, ora recorrente, de pedir a declaração de insolvência da ré.

Também não constituía impedimento a tal pedido o facto de o processo especial de revitalização ter sido concluído com a aprovação de um plano de recuperação, homologado judicialmente, nem o facto de o pedido ter sido deduzido dentro do período previsto no plano para a execução dele. Vejamos.

Em primeiro lugar, resulta da alínea f) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE que qualquer credor pode requerer a declaração de insolvência de um devedor verificando-se o incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º, do CIRE. Apesar de o preceito se referir apenas ao incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, ele é aplicável também ao incumprimento das obrigações previstas em plano de recuperação aprovado em sede de processo especial de revitalização. Depõe neste sentido o facto de ser aplicável ao plano de recuperação o disposto no n.º 1 do artigo 218.º, por remissão n.º 12 do artigo 17.º-F do CIRE.  

Em segundo lugar, ao dizer que, salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso (leia-se no caso plano de recuperação), a moratória ou o perdão previstos no plano fiam sem efeito quanto a todos os créditos se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado em situação de insolvência em novo processo, a alínea b) do n.º 1 do artigo 218.º aponta claramente no sentido de que o devedor pode ser declarado em situação de insolvência dentro do período previsto no plano para a sua execução.

Por todo o exposto é de responder à questão suscitada pelo recurso no sentido de que a decisão recorrida incorreu em erro ao decidir que o artigo 17.º-E, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas impedia a autora de pedir a declaração de insolvência da ré.

Em consequência, há fundamento para revogar a decisão recorrida e substitui-la por outra a determinar o prosseguimento do processo.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão que julgou extinta a instância por impossibilidade originária da lide, e em consequência, determina-se o prosseguimento do processo.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrida ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Coimbra, 28 de Novembro de 2022