Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5911/17.1T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
PREVALÊNCIA
INTERESSE PREPONDERANTE
Data do Acordão: 10/17/2017
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: DISPENSA
Legislação Nacional: ARTº 135º, Nº 3 DO CPP; RGICSF (D.L. Nº 298/92, DE 31/12); 417º, NºS 1, 3 E 4 DO NCPC.
Sumário: I – Na verdade, não obstante a atenuação delimitada que o segredo bancário conheceu com a Lei n.º 36/2010, de 2/9 e o DL n.º 157/2014, de 24/10, ainda existem restrições impostas por tal segredo, mesmo no que concerne ao solicitado pelas autoridades judiciárias, excepcionados o foro penal (nº 2, d), do artº 79º) do citado DL n.º 298/92) e, em determinadas condições, noutras áreas da justiça, como, por exemplo, na acção executiva - nº 2, f), do citado artº 79º, artº 749, nº 6, do NCPC - e na Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais n.º 34/2004, de 29 de Julho - artº 8º-B.

II - Por outro lado, o art.º 417 do NCPC, embora prevendo no seu n.º 1, como princípio, a obrigatoriedade de todos (ainda que não sejam partes na causa) terem “o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”, excepciona no seu n.º 3, entre outras, as situações em que a obediência à cooperação solicitada importa violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado (alínea c)).

III – O segredo bancário não tem, assim, carácter absoluto, não prevalecendo sempre sobre qualquer outro dever conflituante.

IV - Destina-se, o dever de sigilo, a proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes.

O dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.

V - Reconhecida a legitimidade da escusa, será, pois, suscitada a intervenção do Tribunal Superior, para que este, de acordo com o disposto no citado artºs. 417º, nº 4, e no artº 135º, n.º 3, do CPP, procedendo à ponderação dos interesses em confronto, decida se a quebra do dever de sigilo é, no caso, mais importante do que a manutenção desse dever.

VI - Caberá “in casu” fazer uma tal ponderação e, concluindo-se ser caso disso, conceder à instituição bancária em causa a possibilidade de proceder à quebra desse segredo profissional, por se entender tal quebra como justificada, face às normas e aos princípios aplicáveis, designadamente, tendo presente o princípio da prevalência do interesse preponderante.

Decisão Texto Integral:  






Decisão sumária (Art.ºs 656º e 652º n.º 1, al c), ambos do novo Código de Processo Civil):[1]

I - 1) – E..., casada, residente na Rua ..., requereu, como preliminar da acção de divórcio que tenciona instaurar contra o seu marido A..., e sem prévia audição deste, o arrolamento dos bens comuns do casal, que indica no requerimento inicial.

Por decisão proferida em 04-08-2017, pelo Juízo de Família e Menores de Coimbra (Juiz 2), foi decretado o arrolamento, entre outros bens e direitos:

- Do “Saldo da conta bancária com o IBAN ... da C..., titulada pelo Requerido”;

Mais se determinou nessa decisão de 04-08-2017 que as instituições depositárias informassem o tribunal, no prazo de 10 dias, “...do montante dos saldos/valores arrolados, bem como da natureza das contas respectivas (ordem/prazo, etc).”.

2) – A C..., por oficío datado de 2017-08-14, veio prestar a seguinte informação: “...Os elementos solicitados estão sujeitos a segredo bancário, nos termos do art°. 78°. do Regime Gerai das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n°. 298/92, de 31 de Dezembro.

Não se verificando, face aos dados fornecidos, nenhuma das excepções estabelecidas no art°. 79°. do mencionado Regime, designadamente nas alíneas d) e e) do seu n°. 2, não podemos fornecer os elementos solicitados, sob pena de violarmos o dever de segredo a que estamos legalmente vinculados...”.

3) – Em face dessa posição assumida pela C... veio a Requerente da providência solicitar que se processe ao levantamento do sigilo/segredo bancário da C..;

4) – No Tribunal de 1ª Instância, em face da posição assumida pela C... e pela Requerente da providência, suscitou-se, mediante o despacho de 02/10/2017, a intervenção deste Tribunal da Relação, com vista à quebra do dever de segredo invocado pela C..., nos termos do disposto no artigo 135º, nº 3 do Código de Processo Penal, considerando-se, para o efeito, entre o mais, o seguinte:

“(...) importa suscitar o incidente de quebra de segredo bancário junto do Tribunal da Relação de Coimbra, pois considero que, no caso em apreço, o segredo bancário deve ceder perante o interesse na administração da justiça, que é o interesse preponderante, tendo em consideração que a informação bancária pretendida se reporta a uma altura da vida em comum dos cônjuges que já terá entrado em ruptura (a requerente pretende instaurar acção de divórcio contra o requerido) e será relevante para efeitos da partilha subsequente à eventual extinção da comunhão conjugal, pelo que as informações em falta são imprescindíveis ao apuramento total e real dos bens comuns do casal. (...)”.

II- O Tribunal é o competente, inexistindo nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito.

III - a) O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I - supra.

b) - Em face da factualidade acima descrita, a questão que se coloca é a de saber se deve ou não ser determinada a quebra do sigilo bancário invocado pela identificada instituição bancária para não fornecer os elementos e/ou as informações solicitadas.

c) - Salvo o devido respeito, parece não haver dúvida de que o solicitado à C..., nas condições em que o foi, se encontra abrangido pelo “dever de segredo” contemplado no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro (cfr. v.g., os artºs 78º, 80º, 81-A, nº 4 “a contrario” e 84º). 

Na verdade, não obstante a atenuação delimitada que o segredo bancário conheceu com a Lei n.º 36/2010, de 2/9 e o DL n.º 157/2014, de 24/10, ainda existem restrições impostas por tal segredo, mesmo no que concerne ao solicitado pelas autoridades judiciárias, excepcionados o foro penal (nº 2, d), do artº 79º) do citado DL n.º 298/92) e, em determinadas condições, noutras áreas da justiça, como, por exemplo, na acção executiva - nº 2, f), do citado artº 79º, artº 749, nº 6, do NCPC - e na Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais n.º 34/2004, de 29 de Julho - artº 8º-B.

É o nº 1 do aludido artº 78º que estabelece a regra de que “Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.” esclarecendo-se, exemplificativamente, no nº 2 destes artigo, estarem, designadamente, “…sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.”. 

Importa também ter presente o disposto nos art.ºs. 80º, n.º 2 e 84.º do mesmo RGICSF, sendo que, no primeiro deles se preceitua que “Os fatos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.”.

Embora se estabeleça - citado art.º 84º - que “...Sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal.”, haverá que considerar não ser ilícito “…o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.” (art.º 36º, nº 1, do CP).

Por outro lado, o art.º 417 do NCPC, embora prevendo no seu n.º 1, como princípio, a obrigatoriedade de todos (ainda que não sejam partes na causa) terem “o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”, excepciona no seu n.º 3, entre outras, as situações em que a obediência à cooperação solicitada importa violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado (alínea c)).

Isto, porém, sem prejuízo do disposto no n.º 4, que refere: “Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”.

O segredo bancário não tem, assim, carácter absoluto, não prevalecendo sempre sobre qualquer outro dever conflituante.

Destina-se, o dever de sigilo, a proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes.

O dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.

Assim, deduzida que seja a escusa, v.g., com fundamento na previsão do aludido 417º, n.º 3, al. c), será aplicável, “ex vi” do referido n.º 4, desse artigo, com as adaptações que a natureza dos interesses em causa impõe, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da recusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

Reconhecida a legitimidade da escusa, será, pois, suscitada a intervenção do Tribunal Superior, para que este, de acordo com o disposto no citado artºs. 417º, nº 4, e no artº 135º, n.º 3, do CPP, procedendo à ponderação dos interesses em confronto, decida se a quebra do dever de sigilo é, no caso, mais importante do que a manutenção desse dever.

Caberá “in casu” fazer uma tal ponderação e, concluindo-se ser caso disso, conceder à instituição bancária em causa a possibilidade de proceder à quebra desse segredo profissional, por se entender tal quebra como justificada, face às normas e aos princípios aplicáveis, designadamente, tendo presente o princípio da prevalência do interesse preponderante.

Ora, como resulta do despacho do Tribunal da 1ª Instância “as informações em falta são imprescindíveis ao apuramento total e real dos bens comuns do casal”, o que será relevante “para efeitos da partilha subsequente à eventual extinção da comunhão conjugal”, pelo que, o direito de a Requerente da providência vir a beneficiar de uma partilha justa, que se baseie na real composição do património comum do casal formado por ela e pelo Requerido, impõe que se ponham à disposição do Tribunal tais informações.
Contrapondo os dois interesses aqui em jogo - o da tutela do dever de segredo invocado pela CGD e o do dever de colaboração com a administração da justiça - ponderados os mesmos, no caso “sub judice”, de harmonia com princípio da prevalência do interesse preponderante e com um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, (18º, n.º 2 da CRP), a conclusão a que se chega é a de que, a não satisfazer o solicitado pelo Tribunal, sob o impulso da Requerente, poderão ficar gravemente prejudicados os legítimos interesses que o processo em causa visa satisfazer, sendo certo que não se pretende, manifestamente, com tal solicitação, devassar a vida económica e financeira de quem quer que seja.

Resulta, assim, do exposto, ser de concluir pela prevalência do interesse público da administração da justiça, como justificação para a quebra do dever de segredo invocado pela C...

IV - Nestes termos, ao abrigo das disposições legais citadas, decide-se dispensar a C... do cumprimento desse dever de segredo que invocou e, consequentemente, determina-se que esta Instituição preste, no âmbito do processo em causa, as informações que lhe foram solicitados pelo Tribunal de 1ª Instância.

Sem custas.

Coimbra, 17/10/2017

O Relator: Luiz José Falcão de Magalhães


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[1] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, doravante designado com a sigla NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC.