Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ESTEVES MARQUES | ||
Descritores: | DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTE AQUISIÇÃO ILÍCITA DE ESTUPEFACIENTE | ||
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Data do Acordão: | 10/18/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE ANADIA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 25º, Nº 1, E 40º, Nº.2, DO DECRETO-LEI 15/93, DE 22/1, ARTIGOS 2º, Nº.1, E 28º DA LEI 30/2000, DE 29/11 | ||
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Sumário: | A detenção de produtos elencados nas tabelas I-B e I-C anexas ao Dec-Lei 15/93, exclusivamente destinados ao consumo próprio, ainda que em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, constitui contra-ordenação prevista no artigo 2º da Lei 30/2000. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: RELATÓRIO No processo comum colectivo nº 210/05 do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Anadia, por acórdão de 06.04.20, foi, para além do mais e no que para os presentes autos interessa, decidido condenar: - O arguido A..., como autor material de um crime de detenção para cultivo/consumo de estupefacientes (quanto às ditas sementes de “canabis”), p.º e p.º pelo art.º 40.º, n.º 2, do dito D. Lei n.º 15/93, de 22-01, com referência à Tabela I-C anexa a tal diploma legal, e art.º 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29-11, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 05,00 (cinco) euros, perfazendo o montante de 250,00 (duzentos e cinquenta) euros e, como autor material de um crime de detenção de munições proibidas (quanto às ditas munições que lhe foram apreendidas), p.º e p.º pelo art.º 275.º, n.º 4, do CPen., na redacção das Leis 65/98, de 02-09, e 98/01, de 25-08, com referência ao art.º 3.º, n.ºs 1, al. a), e 2, al. c), do DLei n.º 207-A/75, de 17-04, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, perfazendo o montante de 225,00 euros; Em cúmulo jurídico destas duas penas, na pena única de 70 dias de multa, à taxa diária aludida de 5,00 (cinco) euros, perfazendo o montante global de 350,00 (trezentos e cinquenta) euros. - Tendo, porém, os aludidos arguidos, B... e A..., incorrido, cada um deles, na prática de contra-ordenação de consumo de estupefacientes, prevista pela disposição do art.º 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29-11, ordenam se comunique a presente decisão, com certidão do acórdão, após trânsito, à comissão para dissuasão da toxicodependência territorialmente competente para processamento da infracção contra-ordenacional em questão (cfr. art.ºs 5.º e 8.º da dita Lei n.º 30/2000). Inconformado o Ministério Público interpôs recurso, concluindo na sua motivação: “… 4- Por outro lado, a detenção, para consumo próprio, de substância estupefaciente em quantidade superior a 10 doses médias individuais diárias, sempre integraria o crime do art. 25° al. a) do DL nº 15/93. 5- O acórdão recorrido padece, assim, de um vício estrutural de raciocínio já que não tem em conta que a mera detenção ilícita de produtos estupefacientes integra a prática de um crime de tráfico, desde que a "droga" detida exceda as dez doses médias individuais diárias. 6- É inócuo que se prove, em concreto, que o produto estupefaciente se destinava exclusivamente ao consumo do arguido, uma vez que os 3,376 gramas de cocaína e os 0,702 gramas de "canabis" resina que lhe foram apreendidos, excedem em sete doses o consumo médio individual diário. 7- Por sua vez, é de todo irrelevante que não se tenha logrado provar que o produto estupefaciente apreendido ao arguido superasse o consumo médio individual do arguido durante dez dias. 8- Pois é a própria lei que ao fixar os pressupostos do aludido crime faz apelo ao consumo médio individual diário e não ao consumo concreto de cada arguido em particular. 9. A aplicação, em abstracto, da Portaria nº 94/96, de 26/03 a todos os casos concretos, não acarreta qualquer situação de inconstitucionalidade material e / ou orgânica. 10..Pelo exposto, ao absolver o arguido do crime que lhe vinha imputado, violou o Tribunal a quo o disposto nos arts. 21 °, n. ° 1 e 25°, al. a), ambos do DL nº 15/93, de 22/01 e o art. 2°, nº 2 da Lei nº 30/2000, de 29/11, bem como a Portaria nº 94/96, de 26/03 e respectivo mapa anexo.”. Respondeu o arguido B... pugnando pela improcedência do recurso. O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, manifesta a sua concordância com a decisão objecto de recurso. Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir. FUNDAMENTAÇÃO É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância: “ 1.º - Aquando dos factos infra descritos o arguido B... era empregado, em regime de trabalho temporário, das sociedades, do grupo “NETT”, “NETT - Nova Empresa de Trabalho Temporário, Unipessoal, Lda.” e depois “RAIS - Empresa de Trabalho Temporário, Lda.”, como operário não especializado de limpeza industrial, auferindo o vencimento médio mensal de 200,00 euros. 2.º - Explorava ainda em nome individual o estabelecimento de café e snack-bar “O Albergue”, sito em Fogueira, Sangalhos, Anadia. 3.º - Apresentou ele ao Fisco a sua última declaração de IRS em 2003, na qual declarou auferir o rendimento bruto anual de 2.110,98 euros. 4.º - Embora sua mãe fosse a titular da respectiva licença de exploração, a mesma era alheia à gerência de facto de tal estabelecimento, apesar de quinhoar nos proventos, tanto assim que, tendo o arguido B...sido detido no âmbito destes autos a 28/05/2005 e ficado logo preso preventivamente, sua mãe, por contrato celebrado a 28/06/2005, cedeu a Francisco Silva Castro a exploração de tal café. 5.º - Esse café estava – e está – instalado no rés-do-chão de um prédio, em cujo 1.º andar o arguido B... residia antes de ter sido detido. 6.º - Pelo menos a partir de Janeiro de 2005 o referido café passou a ser visitado por várias dezenas de indivíduos, alguns deles jovens conhecidos como consumidores de estupefacientes, o que sucedia com mais frequência ao fim da tarde e à noite. 7.º - Tais pessoas eram ali atendidas pelo arguido B..., que utilizava nas sua deslocações, de e para o café, o veículo ligeiro de passageiros de matrícula “02-27-ZL”, marca “Volkswagen Caddy, 2.0 SDJ”, de cor branca, do qual é locatário desde 27/01/2005 e durante 06 anos, mediante a renda mensal de 201,15 euros a pagar ao “Finicrédito... – S. A.”. 8.º - No dia 28 de Maio de 2005, pelas 14,45 horas, a GNR - NIC de Anadia procedeu a uma busca ao referido café e anexos; ao piso superior do prédio onde está instalado e, bem assim, àquele veículo automóvel, na presença do arguido B..., vindo a localizar e a apreender, na sua posse, o seguinte: - 3,376 gramas de uma substância sólida e em pó de cor branca, a qual, examinada laboratorialmente, revelou ser cocaína (cloridrato) e que se encontrava no interior de um arrumo fechado à chave, em poder deste arguido, anexo à churrasqueira do café; - 16 (dezasseis) embalagens de plástico cortadas que se encontravam no interior de um contentor de lixo colocado junto à máquina de tirar cafés; - Uma balança digital, branca, com prato de vidro, marca “SOEHNLE”, própria para a pesagem e que estava numa prateleira junto da churrasqueira; - Dois Telemóveis marca “Nokia”, modelos 3410 e 5100, que estavam sobre o balcão e com os quais este arguido fazia contactos; - 0,702 gramas de um produto vegetal prensado que, examinado, revelou ser “canabis” (resina) e que estava no quarto deste arguido; e - 145,00 (cento e quarenta e cinco) euros, em notas, que se encontravam nos seus bolsos e no interior do veículo “... ZL”, sobre o banco dianteiro direito. 9.º - Por sua vez, o arguido A..., conhecido no meio por “Joca” e que se relacionava habitualmente com o arguido B..., passou a trabalhar desde 2003 no estabelecimento de café “Cids Bar”, sito na Rua do Comércio, Sangalhos, Anadia, como empregado de balcão, auferindo mensalmente e em média 200,00 (duzentos) euros, acrescidos da alimentação, não tendo outros rendimentos. 10.º - A partir de Janeiro de 2005, sobretudo à tarde e à noite, tal estabelecimento começou a registar afluência de indivíduos jovens conotados como consumidores de estupefacientes, que ali demandavam tal arguido. 11.º - Assim, a 21 de Julho de 2005, pelas 14,45 horas, a GNR-NIC de Anadia efectuou uma busca à residência desse arguido, sita na Rua S. João da Azenha, Sangalhos, Anadia. 12.º - Aí localizou e apreendeu o seguinte, pertença do arguido A...: - 1,990 gramas de um produto vegetal prensado, o qual, examinado, revelou ser “canabis” (resina), que estava num cesto no interior da sala; - 8,737 gramas de sementes que, examinadas, revelaram serem de “canabis” e que estavam no quarto deste arguido; - uma munição de pistola de calibre de 9 mm, destinada a uso militar exclusivo; e - cinco munições de pistola de calibre 7,62 mm, utilizadas normalmente em exercícios militares. 13º - O arguido A... prestou serviço militar em território nacional, de onde trouxe as ditas munições, sem estar autorizado a possui-las consigo, pois que se reportam a pistolas de calibre superior a 6,35 mm, cuja detenção é vedada a particulares por se tratar de material de guerra. 14.º - Ambos os arguidos conheciam a natureza e composição de tais substâncias estupefacientes. 15.º - Haviam-nas adquirido a indivíduos não identificados, o que sabiam ser ilícito, destinando-as, cada um deles, ao respectivo consumo pessoal, sendo que o arguido A... pretendia plantar as sementes apreendidas. 16.º - Outrossim, o arguido A... conhecia as características específicas de tais munições, sabendo ser-lhe vedada a sua detenção. 17.º - Ambos actuaram de modo livre e consciente, sabendo proibidas as suas condutas e que incorriam em responsabilidade criminal. 18.º - Qualquer dos arguidos era consumidor reiterado de estupefacientes; 19.º - Consumindo o arguido B... “cocaína” em quantidade diária que não foi possível apurar, mas não inferior a 0,2 gramas; 20.º - E consumindo o arguido A... “canabis” (resinidade diária que não foi possível apurar, mas não inferior a 0,5 gramas; … 33.º - Ainda é consumidor de “haxixe”. 34.º - Pretendia plantar as aludidas sementes de “canabis”. … C) – Fundamentação Da Convicção … * Da análise da motivação resulta serem as seguintes as questões colocadas pelo recorrente:- Nulidade do acórdão. … C) Da qualificação jurídica dos factos Na perspectiva do recorrente a detenção para consumo próprio, de substância estupefaciente ( produtos compreendidos nas tabelas I-B e I-C, anexas ao Dec. Lei 15/93), em quantidade superior a 10 doses médias individuais diárias integra o crime do artº 25º a) do Dec. Lei 15/93 e não a contra-ordenação a que alude o artº 2º da Lei 30/2000, de 29/11. Quanto a esta matéria várias orientações têm vindo a ser sufragadas. Sucede que ultimamente tem sido orientação predominante nesta Relação, de que não vemos razão para divergir, a que defende o entendimento de que a detenção para consumo de estupefacientes em quantidade superior a 10 doses médias individuais diárias integra a contra-ordenação acima referida. Na verdade dispunha o artº 40º da Lei 15/93, nos seus nºs 1 e 2, sob a epígrafe “ Consumo”: “ 1. Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV é punido com ... 2. Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações, cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de ...........”. Sucede que a Lei 30/2000, de 29/11, veio no seu artº 28º estabelecer que: “ São revogados o artigo 40º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime”. E no artº 2º dispor que: “1 - O consumo, a aquisição e a detenção para con-sumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação. 2 - Para efeitos da presente lei, a aquisição e a deten-ção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade -necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”. Significa isto que com a entrada em vigor desse diploma, o consumo, a aquisição e a detenção para con-sumo próprio de estupefacientes em quantidade médio individual durante o período de 10 dias, passou a constituir contra-ordenação. A dúvida só surgiu relativamente a quantidades superiores ao consumo médio de 10 dias. É que a norma do artº 28º da Lei 30/2000, não deixou margem para dúvidas relativamente ao artº 40º do Dec. Lei 15/93, revogando expressamente, no que se refere ao cultivo de plantas, o consumo privado de estupefacientes. Assim parece-nos que nunca se poderá fazer apelo a esta norma para punir os consumidores que detenham estupefacientes em quantidades superiores ao consumo para dez dias. Contudo recorrente entende que a conduta do arguido integra o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. no artº 25º a) do DL 15/93. Só que para que tal fosse possível seria necessário que se provasse que a detenção da droga não se destinava a consumo pessoal. E como vimos, ficou provado que o estupefaciente em causa se destinava ao consumo do arguido. Ora sabendo nós que o legislador com a Lei 30/2000, pretendeu dar um sinal de que importava aumentar a repressão ao tráfico de estupefacientes e dar um tratamento mais generoso aos consumidores de droga, parece-nos que tal interpretação surgiria ao arrepio desse objectivo. Daí que se concorde com o Conselheiro Henriques Gaspar, quando no Ac.STJ 05.09.28[ CJSTJ 3/05, pág. 172.], refere: “ A coordenação normativa das disposições dos arts. 2°, nos 1 e 2 e 28° da Lei n° 30/2000, de 29 de Novembro (entre o - aparente - limite da contra-ordenação e a clara e intensa intenção revogatória da criminalização do consu-mo) pode sugerir a existência de uma disfunção normativa ("esquecimento", "lacuna", "deficiência") ou um "vazio sancionatório" (como se exprime, p. ex., Rui Pereira, "A Descriminalização do consumo de droga", in "Líber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias", pág. 1.159 e segs., desig. pág. 1.171, onde refere ser «óbvio que esta "lacuna sancionatória" resultou de um "erro" do legislador de 2000»). Mas se fosse assim, então não seria função da interpre-tação em direito penal manipular instrumentos hermenêuti-cos para, ou "deixar bem" o legislador, ou, não melhor, para sustentar uma razão (subjectiva) do que seria (deveria ser ou mereceria) o sentimento de justiça do intérprete. Há, por isso, que fazer intervir os princípios fundamen-tais de direito penal como chave da solução. E os princípios - da legalidade e da consequente proibição da analogia, e da interpretação ideologicamente comandada - apontam, logo e decisivamente, para a impos-sibilidade estrutural e dogmática de fazer apelo à disciplina típica dos arts. 21° ou 25° do Dec.-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, como defende o magistrado recorrente. Na verdade, e uma vez que anteriormente à Lei n° 30/2000 nunca o consumo fora punido nos termos das restan-tes actividades de largo espectro da tipicidade do art. 21°(ou do art. 25°) do Dec.-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, a superação por tal modo de um hipotético "vazio legislativo", isto é, «a punição de quem detenha droga para consumo em quantidade superior à referida no n° 2 do art. 2° da Lei n° 30/2000 só pode resultar de uma aplicação analógica de, normas incriminadoras, expressamente proibida pelo art. 29°, nºs 1 e 3, da Constituição (e pelo art. 1 °, nºs 1 e 3, do Cód. Penal»>. (cfr. Rui Pereira, op. cit., pág. 1.172).” Daí que se conclua que, provado que o arguido destine a droga detida ao seu exclusivo consumo, ainda que essa quantidade ultrapasse o necessário para o consumo médio individual durante 10 dias, comete a contra-ordenação ao artº 2º da Lei 30/2000[ Cfr. neste sentido AcRG 03.03.10, CJ 2/03, pág. 287; AcRG 04.03.08, CJ 2/04, pág. 290.; AcRC 06.07.2, Rec. nº 1965/06.]. Deste modo é de concluir que o recurso não pode proceder. DECISÃO Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto, confirmando-se inteiramente a douta decisão recorrida. |