Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
521-A/1999.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
DÍVIDA
SEGURANÇA SOCIAL
HIPOTECA
Data do Acordão: 10/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÁGUEDA - 1ª JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 11º DO DL 103/80, DE 9/5 E 2º DL 512/76, DE 3/7, 686º E 751º DO CC E AC. Nº 363/2002 DE 16 DE OUT. DE 2002 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Sumário: Na graduação de créditos para pagamento pelo produto do imóvel penhorado o privilégio creditório por dívidas à segurança social não prevalece sobre a hipoteca.
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.
Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

Nos presentes autos de reclamação de créditos, que correm por apenso aos de execução ordinária que A... instaurou contra B... e mulher, C..., veio o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social reclamar créditos, no montante global de 3.890,10 Euros (sendo 2.994,28 Euros relativos a contribuições em dívida à Segurança Social pela executada C..., referentes aos meses de Abril de 1993 a Outubro de 1993 e Abril de 2000 a Dezembro de 2002) e 895,86 Euros de juros de mora vencidos até Maio de 2003), mais juros de mora vencidos e vincendos sobre o capital em divida, desde esta última data até pagamento.

O crédito reclamado não foi objecto de impugnação.

Passando à graduação o Sr. Juiz decidiu:

- Julgar verificado o crédito reclamado pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

- Graduar o referido crédito com o crédito exequendo para serem pagos pelo produto do imóvel penhorado a fls. 36 ss dos autos principais, pela seguinte forma:

1. Crédito reclamado pelo Instituto Financeiro de Segurança Social.

2. Crédito exequendo.

3. As custas saem precípuas do produto dos bens penhorados.

Daí o presente recurso de apelação interposto pela A... a qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença em análise graduando-se assim os créditos:

1. Crédito exequendo (Garantido por hipoteca).

2. Crédito reclamado pelo IGFSS.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) A interpretação do Tribunal a quo, no sentido de preterir o credor hipotecário (recorrente) face ao titular daquele privilégio imobiliário geral (Segurança Social) é materialmente inconstitucional por violar frontalmente o princípio da confiança ínsito no princípio do estado de direito e por violar os princípios dos artigos 2º e 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

2) Com efeito, ao que fundamenta a sentença em crise, não existe norma que contemple o valor preferencial do “privilégio imobiliário geral”, figura que de resto é expressamente rejeitada no Código Civil, face à Hipoteca.

3) Não existe qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia (hipoteca) e o facto que operou a dívida (no caso à segurança social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil.

4) Nos termos do disposto no artigo 686º do Código Civil – “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de coisas imóveis ou equiparadas pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.

5) Os privilégios imobiliários gerais, porque não incidem sobre bens determinados, não são qualificáveis como “direitos reais de garantia”, ou como verdadeiras e próprias “garantias reais das obrigações” razão por que, não lhes pode ser aplicável o disposto no artigo 751º do Código Civil.

6) Nos termos do disposto na letra do artigo 735º nº 3 do Código Civil – “os privilégios imobiliários são sempre especiais”, como aliás consta da sentença recorrida.

7) Os créditos do Estado e da Segurança Social gozam de privilégios imobiliário geral (sobre todos os bens imóveis existentes no património do devedor), e não especial, mas a sua alegada preferência sobre a Hipoteca contraria a matriz em que se inspirou o código que dispõe no artigo 686º que a “hipoteca cede perante os privilégios especiais e não perante os privilégios gerais”.

8) Ainda que assim não fosse, o que de todo não se concede, acresce ainda que tendo a recorrente adquirido o imóvel em venda judicial, livre de ónus ou encargos, poderia sempre opor o seu direito real de aquisição e de gozo ao credor Segurança Social, porquanto o privilégio imobiliário previsto no artigo 11º do DL 103/80 de 9/5, sendo geral, não goza do direito de sequela.

9) Ademais, num concurso de credores, o credor hipotecário só pode ser preterido por credor que goze de privilégio especial ou de prioridade de registo, pelo que, no confronto entre o “privilégio imobiliário geral” e a “Hipoteca”, não tem aplicação o disposto no artigo 751º do Código Civil, já que o privilégio imobiliário aí referenciado só pode ser o privilégio imobiliário especial, devendo sim aplicar-se, analogicamente o disposto no artigo 749º do mesmo código.

10) Impõe-se assim uma diferente graduação de créditos que respeitando as preferências associadas aos créditos concorrentes, gradue em lº lugar o credor hipotecário, como é e caso da recorrente, à frente do credor titular de “privilégio imobiliário geral”.

11) Em abono da tese ora perfilhada pela recorrente, verifica-se que a inconstitucionalidade suscitada foi tratada pelo tribunal constitucional que proferiu dois acórdãos, através dos quais declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral (com força de lei) das normas constantes do artigo 11º do DL nº 103/80 de 9 de Maio e do artigo 2º do DL nº 512/76 de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o “privilégio imobiliário geral” conferido à Segurança Social prefere à Hipoteca nos termos do disposto no artigo 751º do Código Civil (Cfr. Ac nº 362/2002 de 17.09.02, e 363/2002, publicados no Diário da República, II Série, de 16 de Outubro de 2002).

Segundo refere Maria Isabel Meneres Campos na sua tese de Mestrado in “Da Hipoteca Caracterização, constituição e efeitos”, Almeida, Maio de 2003 pág. 218ss,

cuja opinião subscrevemos – “O principal argumento acentuado pelo Tribunal Constitucional, foi o facto de os créditos privilegiados não terem qualquer conexão com a coisa objecto de garantia” e o facto do “princípio da confidencialidade tributária impossibilitar os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social”. E acrescenta-se que não estando tais créditos sujeitos a registo, o Banco Recorrente que executa a sua garantia pode ser confrontado com a existência de um crédito privilegiado que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece, que implica uma “lesão desproporcionada do comércio jurídico”.

12) Conclui-se assim que a sentença de verificação e graduação de créditos recorrida violou a lei, pelo que é materialmente inconstitucional por violar frontalmente o princípio da confiança ínsito no princípio do estado de direito e por violar os princípios dos artigos 2º e 18º nº 2 da Constituição da República portuguesa.

13) Houve por isso erro na graduação de créditos

(aplicação indevida do artigo 751º do cc), ou seja, erro de julgamento por omissão de indagação do direito aplicável ao caso, a saber: o artigo 686º do Código Civil, nos termos do qual que a “hipoteca cede perante os privilégios especiais e não perante os privilégios gerais; aplicação analógica do disposto no artigo 749º do mesmo código; os acórdãos do Tribunal Constitucional - ac nº 362/2002 de 17.09.02, e 363/2002, publicados no diário da república, II série, de 16 de Outubro de 2002 que declararam a inconstitucionalidade com força obrigatória geral (com força de lei) das normas constantes do artigo 11º do DL nº 103/8o de 9 de Maio e do artigo 2º do DL nº 512/76 de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o “privilégio imobiliário geral” conferido à segurança social prefere à hipoteca nos termos do disposto no artigo 751º do código civil, por violação frontal do princípio da confiança ínsito no princípio do estado de direito e dos princípios dos artigos 2º e 18º nº 2 da Constituição da república portuguesa. +

2. FUNDAMENTOS.

2.1. Factos.

Os factos que interessam à decisão da causa cons-tam a fls. 63 ss da sentença apelada.

Assim, não tendo sido impugnada a matéria de facto nem havendo tão pouco qualquer alteração a fazer-lhe, nos termos do preceituado no artº 713º nº 6 do Código de Processo Civil, dá-se aqui a mesma por reproduzida. +

2.2. O Direito.

Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- O privilégio creditório por dívidas à segurança social prevalece sobre a hipoteca?

+

2.2.1. O privilégio creditório por dívidas à segurança social prevalece sobre a hipoteca?

Na execução ordinária nº 521/99 do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda que a A.. com sede em Lisboa move contra B... e mulher C... residentes em Chãs, Macinhata do Vouga, Águeda, veio o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social reclamar créditos no montante global de € 3.890,10 (sendo 2.994,28 Euros relativos a contribuições em dívida à Segurança Social pela executada C..., referentes aos meses de Abril de 1993 a Outubro de 1993 e Abril de 2000 a Dezembro de 2002) e 895,86 Euros de juros de mora vencidos até Maio de 2003), mais juros de mora vencidos e vincendos sobre o capital em divida, desde esta última data até pagamento.

A sentença apelada graduou o crédito reclamado com o crédito exequendo para serem pagos pelo produto do prédio penhorado a fls. 36 ss dos autos colocando em primeiro lugar o crédito reclamado seguindo-se o crédito exequendo.

A exequente contrapõe ao aresto em crise a tese de que o seu crédito hipotecário sobre o bem penhorado deverá prevalecer sobre o privilégio creditório do Reclamante.

Vejamos: Estatui o artigo 604º do Código Civil - Diploma ao qual pertencerão os restantes normativos a citar sem menção de origem - que

“1. Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.

2. São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção”.

Cabe ocuparmo-nos da hipoteca e do privilégio creditório.

De harmonia com o preceituado no artigo 733º “Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”.

Os privilégios mobiliários – São de duas espécies os privilégios creditórios: mobiliários e imobiliários.

Os privilégios mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente; são especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens móveis.

Os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais.

Para além dos privilégios previstos nos artigos 737º ss foram criados posteriormente outros em leis avulsas. São disso exemplo os privilégios referentes aos créditos para a Segurança Social, a que se alude nos DL 103/80 de 9 de Maio e 512/76 de 3 de Julho. O artigo 11º do mencionado preceito legal estatui que “os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.

No que concerne à hipoteca a que alude o artigo 686º a mesma “confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.

Sucede porém que o privilégio creditório constitui um perigo para o comércio jurídico, já que o mesmo vale relativamente a terceiros independentemente de registo[ Cfr. A. Varela “Das Obrigações em Geral” II, Almedina, 4ª Edição, pags. 554. Isabel Meneres Campos “Da Hipoteca” 2003, pags. 214. ]. Por esse motivo culminando uma evolução jurisprudencial, veio o Ac. nº 363/2002 do Tribunal Constitucional de 16 de Outubro de 2002, declarar com força obrigatória geral por violação do princípio da confiança, a inconstitucionalidade do artigo 11º do DL 103/80 de 9 de Maio e do artigo 2º do DL 512/76 de 3 de Julho na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido à segurança social prefere à hipoteca nos termos do artigo 751º do Código Civil[ Cfr. também Ac. do S.T.A. de 29-11-2000 (R. 25 553) in Acs. Dout. do STA, 476-477, 1156; Ac. do Trib. Const. nº 160/2000, de 22-03-2000 (P. 843/98) Bol. do Min. da Just., 495, 45 22-Mar-2000 in Bol. do Min. da Just., 495, 45; do S.T.J. de 25-10-2005 (P. 2606/2005) in Col. de Jur., 2005, III, 86; do S.T.J. de 05-02-2002 (P. 3613/01) in Col. de Jur., 2002, 1, 71. Desta Relação 31-10-2000 in www.dgsi.pt/jtrc.].

Nesta conformidade e prescindindo porque desnecessárias de outras considerações, já se vê que não poderá ser mantida a sentença que graduou os créditos da segurança social com prevalência em relação ao crédito hipotecário.

Assim sendo a graduação de créditos terá que fazer-se colocando em primeiro lugar o crédito exequendo garantido por hipoteca, vindo seguidamente o crédito reclamado pelo IGFSS.

*

3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação procedente e revogando a sentença apelada graduam-se os créditos para serem pagos pelo valor do imóvel penhorado pela seguinte forma:

1º O crédito exequendo garantido por hipoteca.

2º O crédito reclamado pelo IGFSS.

As custas saem precípuas do produto dos bens penhorados

Custas pelo IGFSS que não as paga por delas estar isenta – artigo 2º nº 1 alínea a) do CCJ.