Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2257/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 09/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 428º E 1208º DO CC DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A excepção de não cumprimento do contrato ou de cumprimento defeituoso do contrato constitui uma excepção material dilatória, porque o demandado não recusa ao demandante o direito que alega, apenas pretendendo um efeito dilatório, isto é, realizar a sua prestação no momento em que o demandante realizar a prestação a que está obrigado;
2. O exercício da excepção de incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação só é legítimo se não contrariar os ditames da boa fé, sendo de arredar face a uma falta pouco significativa da contraparte, ou então conduzir a boa fé à redução de tal exercício em termos proporcionais à parte ainda não executada pelo contraente faltoso;

3. Tratando-se de uma excepção material dilatória, a sua procedência não deve obstar ao conhecimento do mérito da acção, devendo o demandado ser condenado a realizar a sua prestação contra o cumprimento simultâneo da contraprestação por parte do demandante ou seu cumprimento sem defeito.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)- RELATÓRIO

A... intentou, no Tribunal de Leiria, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B..., pedindo a condenação da Ré ao pagamento da quantia de € 5.000, acrescida de juros de mora vencidos, desde 31.12.2001 até 06.11.2003, no montante de €1.100, e vincendos até integral pagamento.
Para o efeito, a Autora alegou, em síntese, ter fornecido à Ré uma cobertura metálica e respectiva montagem, pelo preço global de € 42.602,33, ficando a obra concluída em finais de Dezembro de 2001. A Ré apenas pagou a quantia de € 37.614,34, estando, ainda, em dívida a quantia de € 5.000,00. Sem êxito foi a Ré interpelada várias vezes para o pagamento.

Citada, a Ré contestou, defendendo a improcedência da acção e absolvição do pedido. Alegou ter a obra sido executada pela Autora com atraso de um ano, com a aplicação de material avariado, concretamente, com a aplicação de uma telha dobrada e aplicação de telhas acrílicas perfuradas. A Ré comunicou à Autora que não dava a obra por concluída enquanto os ditos materiais não fossem substituídos e, por isso, reteve o pagamento da quantia de € 5.000,00 que pagará logo que esses materiais sejam substituídos.

A Autora não respondeu à matéria de excepção.

Prosseguindo os autos os seus regulares termos, com prolação do despacho saneador, selecção da factualidade relevante, instrução e julgamento, foi, por fim, proferida sentença a julgar a acção improcedente e não provada, absolvendo a Ré do pedido.

Inconformada com tal decisão, apelou a Autora, pugnando pelo total êxito da demanda, e extraindo da sua alegação de recurso as seguintes conclusões:
1ª- O Tribunal a quo não teve na devida atenção o disposto nos arts. 664º e 264º, n.º2, do CPC, ao servir-se de factos não articulados pelas partes, tendo fundado a sua decisão em conclusões que não foram suportadas por quaisquer factos (pois nem sequer foram alegados pelas partes);
2ª-A Ré não invocou quaisquer consequências resultantes da colocação das 4 telhas acrílicas perfuradas e de uma dobrada, de molde a justificar a invocada excepção de não cumprimento do contrato;
3ª-Pelo que ao julgar procedente tal excepção, o Tribunal a quo fez uma interpretação menos correcta do disposto no art. 428º do CC;
4ª-A Ré nunca demandou a Autora no sentido da eliminação dos defeitos, pois a obra cumpre cabalmente o fim a que se destina, estando já prescrito aquele direito (art. 1225, n.º3 do CC);
5ª-Estamos face a um manifesto abuso de direito e de uma clara violação do princípio da boa fé que deve presidir a todas as relações contratuais;
6ª-A Ré usufrui em pleno das instalações, retendo a quantia de € 5.000,00, reduzindo, assim e de forma unilateral, sem qualquer critério, o preço convencionado.

A Ré contra-alegou no sentido da manutenção do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS

A 1ª instância deu por assente a seguinte factualidade:
1- A Autora dedica-se à venda de coberturas e estruturas metálicas;
2-A Autora, no âmbito dessa sua actividade, forneceu à Ré, a pedido desta, uma cobertura metálica e respectiva montagem, pelo preço global de € 42.602,33;
3-A Ré pagou à Autora, por conta do preço assim convencionado, o montante de € 37.614,34;
4-Tendo a Ré, em finais de Dezembro de 2001, emitido e entregue à Autora o cheque n.º 43672403, sacado sobre o Montepio Geral, no montante de € 8.467.34);
5-Antes de tal data a Ré havia já pago à Autora a quantia de 1.000.000$00 em 10.11.2000, 1.708.200$00 em 02.06.2001, 2.135.250$00 em 06.06.2001 e 1.000.000$00 em 12.12.2001;
6-Na sequência da adjudicação da obra à Autora a Ré constatou sucessivos atrasos na efectivação dos trabalhos, tendo alertado a Autora para tal facto;
7-Devido à pressão efectuada pela Ré, a Autora acabou por colocar na obra uma telha dobrada;
8-E colocou, ainda, 4 telhas acrílicas perfuradas;
9-Acto imediato, a Ré anunciou à Autora que não dava a obra por concluída até que aqueles materiais fossem substituídos;
10-E que, em consequência, retinha o pagamento da quantia de € 5.000,00 até que tais materiais fossem substituídos.

III)- O DIREITO

Tendo em apreço as conclusões da alegação, a definir, em princípio, o objecto do recurso, a questão nuclear submetida a julgamento deste Tribunal consiste em saber se deve ou não proceder a excepção de não cumprimento do contrato invocada pela Ré.

Sem qualquer discrepância a esse respeito, foi correctamente qualificado como empreitada o contrato celebrado entre a Autora e Ré, tendo em conta a definição desse tipo contratual emergente do art. 1207º do CC.
E, nos termos do art. 1208º do mesmo diploma, o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.
Sobre o dono da obra recai, como obrigação principal, a prestação do preço convencionado, como flui da noção legal do mencionado contrato.
Tratando-se de um contrato bilateral, em que ocorre interdependência, nexo de causalidade e correspectividade entre as obrigações que resultam para ambos os contraentes, pode um deles excepcionar o não cumprimento nos termos do n.º1 do art. 428º do CC. Ou seja, “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação, enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”. A excepção de não cumprimento é a faculdade que, nos contratos bilaterais, tem por objectivo sancionar o dever de cumprimento simultâneo das obrigações compreendidas no sinalagma funcional, limitando-se um dos contraentes a retardar a sua prestação até que a outra seja cumprida Cfr. “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português”, p. 51. de José João Abrantes, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, p. 329, de Calvão da Silva e acórdãos do STJ publicados na CJ 1999, 2º, p. 163, . Constitui uma excepção material dilatória, porque o demandado não recusa ao demandante o direito que alega, mas apenas pretende um efeito dilatório, isto é, realizar a sua prestação no momento em demandante realize a prestação a que está obrigado.

Ao invocar, na contestação, a excepção de cumprimento defeituoso (“exceptio non rite adimpleti contrctus”), a Ré alegou, a propósito, ter a Autora aplicado na obra material avariado, concretamente, a aplicação de uma telha dobrada e telhas acrílicas perfuradas. Como acima se relatou, a Ré sequer respondeu à matéria de excepção, logo aceitando a execução defeituosa da obra.

Mas o exercício da excepção de incumprimento ou de cumprimento defeituoso só é legítimo se não contrariar os ditames da boa fé, sendo de arredar face a uma falta pouco significativa do contraparte ou do demandante. É que a boa fé constitui um limite à alegação de tal excepção face ao cumprimento inexacto do contrato Cfr. “Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, p. 329, de Romano Martinez. , podendo levar inclusivamente à sua negação, ou pelo menos, à sua redução em determinadas circunstâncias. Como a parte da prestação recusada pelo excipiente deve ser proporcional à parte ainda não executada pelo contraente faltoso Neste sentido José João Abrantes, obra citada, p. 107 e 110; “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, p. 125, João Cura Mariano, e acórdão do STJ publicado na CJ 2000, 3º, p. 150 a 154. .
E sobre o autor recai o ónus de alegar e provar que a recusa do pagamento por parte do réu não é causa justificativa, dado o cumprimento defeituoso ser insignificante e até desproporcionado relativamente à prestação que reclama Neste sentido, veja-se o acórdão do STJ citado na nota anterior. . Extemporaneamente veio, porém, a Apelante, no recurso, alegar que a obra cumpre cabalmente o fim a que se destina, tendo caducado o direito de eliminação dos defeitos ou que é insignificante o cumprimento defeituoso face ao crédito ao preço ainda em dívida.
E a matéria de facto apurada não permite concluir que os defeitos da obra sejam insignificantes ou de valor desproporcionado relativamente ao preço em dívida (€ 5000,00), pois mal se compreende que a Autora, apesar da imediata denúncia dos defeitos pela Ré, não os tenha eliminado. E a colocação na obra de uma telha dobrada e 4 telhas acrílicas perfuradas constitui vício que reduz o valor da obra e a aptidão do telhado para o fim a que é destinado, no caso, a cobertura de um pavilhão.

Na sentença impugnada foi a Ré absolvida do pedido, mas tratando-se, no caso, de uma excepção material dilatória, a sua procedência não deve obstar ao conhecimento do mérito da acção. O demandado deve ser condenado a realizar a prestação pedida contra o cumprimento simultâneo da contraprestação Cfr. obra citada de Calvão da Silva, p. 335 e acórdão da Relação de Guimarães, publicado na CJ 2003, 2º, p. 281. . Como efeito principal da excepção de não cumprimento decorre para o excipiente apenas o direito à suspensão da exigibilidade da sua obrigação, direito que se manterá actuante enquanto se verificar o estado de recusa de cumprimento da parte contrária, sem com isso incorrer em mora Cfr. citada obra de José João Abrantes, p. 129. . Por outro lado, e tal é imperioso para invocar tal excepção, ficou assente ter Ré denunciado os defeitos da obra e reclamado a sua eliminação ou substituição dos materiais, logo após a conclusão da obra.


Diga-se, finalmente, em resposta à conclusão 1ª, que não excede a matéria de facto alegada pela Ré, considerar-se provado que foram colocadas pela Autora 4 telhas acrílicas perfuradas, quando a Ré não alegara, na contestação, a quantidade das mesmas telhas. Face à indeterminação alegada, a 1ª instância limitou-se apenas a concretizar o número.

Em suma, não merece qualquer censura a sentença impugnada ao reconhecer a procedência da invocada excepção de cumprimento defeituoso da prestação por banda da Autora (empreiteira). Todavia, como se assinalou, a procedência de tal excepção não obsta ao conhecimento do mérito da acção, ou seja, a Ré não deve ser absolvida, sem mais, do pedido, como foi. Diversamente, deve ser condenada a pagar o preço em falta (€ 5.000,00), sem juros de mora, contra o cumprimento simultâneo, e sem vício, da prestação por parte da Autora ou da eliminação dos defeitos ou substituição da telha dobrada e das 4 telhas acrílicas perfuradas.



IV)- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mas indo a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de € 5.000,00 contra a simultânea eliminação dos defeitos acima identificados por parte da Autora.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo da Autora.
COIMBRA, 27-10-2005