Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1921/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: REGISTO CRIMINAL
NATUREZA JURÍDICA
Data do Acordão: 11/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI N.º 57/98, DE 18 DE AGOSTO
Sumário: O registo criminal reveste natureza mista ou complexa – substantiva e adjectiva – consoante o fim que preside à obtenção da informação nele colhida, a saber:
- Natureza de meio de prova;
- Natureza de medida de segurança;
- Natureza de instrumento subsidiário de outras figuras.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I - RELATÓRIO

A... veio interpor recurso da decisão que indeferiu o seu pedido de não transcrição da sentença em que foi condenado no presente processo (em noventa dias de multa e seis meses de proibição de conduzir veículos motorizados, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez p. e p. nos termos dos artigos 292º e 69º do Código Penal – pena que terá sido reduzida, por acórdão do TR de Coimbra, para 60 dias de multa e 4 meses de inibição, respectivamente). Tal pedido foi formulado nos temos do artigo 17º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto.
As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da motivação de recurso onde se refere que:
a) O arguido requereu a não transcrição da decisão para o registo criminal por considerar que das circunstâncias que acompanharam o crime não se induzir perigo da prática de novos crimes, atenta a sua idade e o interesse em concorrer em concursos públicos, portanto, exclusivamente para os fins dos artigos 11º e 12º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto,
b) Por despacho de 27.06.2003, indeferiu o juiz "a quo" o requerido por considerar, em suma, que das circunstâncias que acompanharam o crime não se pode concluir não se poder induzir perigo da prática de novos crimes,
c) Ora, "as circunstâncias que acompanharam o crime" não foram adequada e suficientemente ponderadas para concluir, no despacho ora recorrido, de que "não se pode concluir não se puder induzir perigo de prática de novos crimes".
d) Das circunstâncias que acompanharam o crime resulta, entre outras, que " O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo n.º l do artigo 292º revisto e na pena acessória do al. a) do n.º l do artigo 69º do C.P. em pena não privativa de liberdade, mais concretamente em 60 dias de multa e 4 meses de sanção acessória de inibição de conduzir. O arguido não tem antecedentes criminais" - É jovem, tem 22 anos de idade, e estudante do 2º ano de Engenharia Agropecuária, em Coimbra. - Ao arguido apenas é conhecida boa conduta conforme o Certificado de Registo Criminal (CRC) que atesta, como exposto, a inexistência de antecedentes criminais. A necessidade de reprovação e a correspondente a perigosidade do arguido" (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.12.2002, a fls. dos autos) que é diminuta".
e) São relevantes duas circunstâncias "a taxa de 1,42 gr-/l e o ser a primeira vez que terá prevaricado, sendo que "aquela (taxa) foi além do mínimo, mas não excessivamente" E a hora da prática dos factos (4,30 manhã), hora morta, diminuía o perigo da condução" E o arguido tem apenas 21 anos"
f) Circunstâncias que ponderadas determinaram a redução da pena e da sanção acessória de inibição de conduzir porquanto, tal como concluiu o Tribunal da Relação não foram "comprovadas grandes necessidades de prevenção especial, defendendo por isso, quanto à perigosidade do arguido, à adequação de uma sanção de inibição reduzida a 4 meses”
g) Acresce que, ao abrigo do disposto no artigo 274º do CPP são juntos aos autos certificados de registo criminal que se afigurem necessários ao inquérito, à instrução ou ao julgamento, com vista, entre outros, a facultar ao Juiz uma "pré compreensão" sobre os antecedentes criminais do arguido"
h) Todavia, conforme refere a jurisprudência, a falta de junção aos autos do certificado actualizado do registo criminal não constitui, por si, insuficiência da matéria de facto provada (al. a) do art. 410º do CPP), para o tribunal decidir.
i) Alias, muito outros documentos podem ser instruir os autos no tocante ao ilícito penal rodoviário como seja o registo de infracção do condutor (art. 145º do Código da Estrada).
j) Pode o arguido ver dispensada a transcrição da sentença verificadas que estejam as condições aí enunciadas (art. 17º do DL 57/98, de 18 de Agosto).
k) Pressupõe a realidade dos nossos dias, a essencialidade do registo para fins de emprego e para comprovação complementar da identidade civil das pessoas, designadamente, no tocante ao acesso a concursos de admissão a função pública.
1) O arguido é primário, consideravelmente jovem, estando aos 21 anos a frequentar o 2º ano do lº ciclo Curso Bietapico de Licenciatura em Engenharia Agro-Pecuária hoje no 3º ano -, portando sendo previsível que no termo deste ano lectivo, completado o bacharelato, possa ingressar, com carácter definitivo, na vida activa, sem prejuízo de continuar para o 2º ciclo do Curso para obtenção da licenciatura (cfr. certidão da Escola Superior Agrária, a fls. dos autos).
m) O cancelamento das decisões no registo criminal ocorre quando verificados os requisitos (de tempo, entre outros) do art. 15º, al. a) do DL 57/98 - no prazo mínimo, de 5 anos sobre a extinção da pena principal
n) O que determinara que o ora arguido esteja impossibilitado de requerer certificados para fins de emprego sem que neles esteja transcrita a decisão de condenação durante três anos - que correspondem ao início da sua vida profissional activa.
o) É consabido hoje que e após licenciamento/bacharelato que os jovens concorrem para o acesso ao 1º emprego e, preferencialmente, para empregos cujo exercício dependa de título público ou de uma autorização ou de homologação de autoridade pública.
p) A transcrição da sentença no registo criminal constitui, assim, uma hipoteca sobre as expectativas de actividade profissional do arguido, designadamente para efeitos de acesso ao 1º emprego para o qual estará apto a concorrer no fim do corrente ano lectivo, em virtude de se tratar de um curso superior bietapico, com o grau de "bacharelato "
q) Ao indeferir o requerido o despacho recorrido violou o art. 17º do DL 57/98 de 18 de Agosto e incorreu ainda na violação do dever de fundamentação ao limitar-se, de forma abstracta e genérica, a decidir que " das circunstâncias que acompanharam o crime não se pode concluir não se poder induzir perigo da prática de novos crimes
r) Daí que, a nosso ver, o despacho recorrido tenha mal interpretado e aplicado as normas legais, que assim, resultam violadas, devendo ser revogado, no seu dispositivo e substituído por outra que desagrave o "sancionamento" do arguido".

Respondeu o MºPº propondo a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância o ExºM Sr. Procurador Geral Adjunto pronuncia-se no sentido da inexistência de interesse em agir por parte do recorrente.
Os autos tiveram os vistos legais.
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II- FUNDAMENTAÇÃO

No que concerne à natureza jurídica do registo criminal importa precisar que, no seguimento da posição de Almeida e Costa (Polis V, pág. 312), são quatro as posições até hoje defendidas:
Num primeiro grupo inserem-se os autores que, tomando como referente o acesso dos particulares e da Administração Pública aos ficheiros - e colocando a tónica no anátema social daí resultante para os titulares dos cadastros - entendem a inscrição das condenações no R. C. como uma autêntica «pena» (maxime, «pena acessória» ou «efeito da pena»). Porém, tal ponto de vista revela-se, desde logo, demasiado restrito, circunstância que implica "a sua refutação in limine" Ao esquecer o acesso para fins «judiciais» e de «investigação científica» - não integráveis no conceito de «pena» ou de «efeito da pena» - não fornece qualquer critério seguro com vista à correspondente disciplina.
Num segundo grupo surgem aqueles que, embora continuem a eleger como referente o acesso dos particulares e da Administração ao registo, consideram, todavia, a inscrição nos ficheiros uma verdadeira «medida de segurança». Não entrando no confronto desta tese com a anterior cumpre rejeitar tal tese com base no mesmo argumento, uma vez que, também ela, não contempla as hipóteses de acesso para fins, quer judiciais quer de investigação científica.
Em terceiro lugar, refira-se a concepção que vê no R. C. um mero «instrumento», puro «expediente técnico» sem qualquer autonomia sob o prisma material. De acordo com esta perspectiva, todo o regime do R C. dependeria de exigências que lhe são estranhas, postas por outros institutos a que ele serve de veículo de actuação (v.g., reincidência, penas acessórias, efeitos das penas). Porventura válida no tocante ao acesso para fins de investigação científica, ou quando intervenham interdições cominadas na lei ou decretadas pelo juiz na sentença, a presente concepção deixa de fora as restantes hipóteses de acesso para fins particulares, administrativos e judiciais.
De acordo com o posicionamento do mesmo Autor que ora se segue (posição que obtém o aval do Professor Figueiredo Dias, em Direito Penal Português, pág. 612) nenhuma das posições indicadas logra envolver cabalmente o registo criminal, na sua multifacetada configuração. Ao invés, todas enfermam do vício da unilateralidade. A inscrição dos antecedentes penais dos delinquentes nos ficheiros, em si mesma, não reveste qualquer significado político-criminal. Tal problema só se coloca a respeito da utilização daqueles elementos.
O que equivale a dizer que a pergunta sobre a natureza do R. C. só se coloca a propósito do acesso ao seu conteúdo. Neste contexto, afiguram-se de isolar três grandes áreas:
Por um lado, o acesso dos magistrados judiciais, do Ministério Público e das Polícias, com vista à instrução de processos criminais, tendo por objectivo demonstrar a existência de anteriores condenações na pessoa do réu, em ordem à aplicação das disposições respeitantes à medida concreta da pena, à reincidência, à pena relativamente indeterminada ou às medidas de segurança, a informação do registo funciona como um autêntico meio de prova.
Daqui resulta, não só que os preceitos reguladores do registo se tenham de considerar, neste domínio, normas de processo penal, mas também que todos os casos de cancelamento dos cadastros para fins judiciais passem a constituir verdadeiras proibições de prova.
Por outro lado, os casos em que o acesso visa, apenas, detectar a existência de incapacidades ou interdições profissionais decorrentes automaticamente da lei ou decretadas pelo juiz na sentença. Na presente órbita o registo assume uma natureza instrumental, sem qualquer autonomia substancial, tendo de afeiçoar-se às exigências - postas pelo funcionamento das aludidas interdições, v.g. quanto ao conteúdo de informação facultado e aos prazos de cancelamento. O mesmo se diga do acesso para fim estatístico e de investigação científica. Também aqui o registo surge despido de qualquer autonomia intencional.
Refira-se, em terceiro lugar, o acesso para fins particulares e administrativos. Como se assinalou, tendo em atenção o anátema social que resulta, para o condenado, da publicidade em torno dos seus antecedentes criminais, o problema reconduz-se a saber se o funcionamento do registo deve, na presente área, assimilar-se ao conceito de «pena» ou de «medida de segurança». Todas as considerações apontam no sentido deste último enquadramento.
Com efeito, entender a publicidade decorrente do acesso para fins particulares e administrativos como uma «pena», equivale a admitir que o legislador, ao consagrar tal acesso, visa um fim repressivo - ou, dito de forma mais explícita, que a intenção repressiva, sempre ínsita à aplicação de «penas» (mesmo quando se negam as perspectivas ético-retributivas), é aí prosseguida através de uma «estigmatização» ou «infamação», social dos condenados». Numa palavra, a falar-se no domínio em apreço de «pena», ela terá de qualificar-se como uma «pena infamante».
Ora, contra essa concepção concorrem vários argumentos. De uma parte, a tendência legislativa que actualmente se observa, no sentido de reduzir ao mínimo publicidade em torno dos cadastros, impede que, ao nível do direito constituído, se possa dizer que ao registo subjaz urna intenção infamante. De outra parte, a prossecução de um tal objectivo, para além de contrariar as mais modernas orientações de política criminal, apresentar-se-ia como inadmissível na ordem jurídica portuguesa: não só porque contestaria o espírito imanente à nossa legislação penal mas ainda porque violaria frontalmente a Constituição da República Portuguesa. Por fim, considerar o fornecimento da informação do registo a particulares e à Administração como uma «pena», com a correspondente subordinação ao princípio da culpa, não contemplaria os casos de acesso a cadastros de inimputáveis - categoria de delinquentes a que não é aplicável aquele princípio.
Assim, afastadas do R. C. todas as ideias de índole repressiva, o acesso para os fins em causa funda-se, apenas, em motivos de prevenção especial «negativa» - ou seja, numa exigência de defesa da sociedade contra o risco de futuras «repetições criminosas» dos ex-condenados, deduzido da verificação de altas taxas de reincidência. Baseando-se, assim, na eventual «perigosidade» dos delinquentes, o acesso dos particulares e da Administração envolve uma problemática em tudo análoga à das medidas de segurança, devendo a sua disciplina subordinar-se aos mesmos princípios que regem aquelas últimas, i.é, não ao princípio da culpa, que regula a aplicação e medida das penas, mas aos princípios da «necessidade», da «proporcionalidade» e da «menor intervenção possível», que superintendem na esfera das medidas de segurança.
Sintetizando, e sempre de acordo com o mesmo Autor, o R. C. reveste uma natureza «mista» ou «complexa», a um tempo substantiva e adjectiva. Consoante o fim que preside à obtenção da informação nele contida, assume o carácter de meio de prova (sujeito aos princípios gerais do direito processual penal), de mero instrumento subsidiário de outras figuras (em tudo subordinado aos seus requisitos e disciplina) ou de medida de segurança. Em cada um destes estratos, sob um designativo comum, funcionam três institutos independentes, adstritos a diferentes regimes e, até, enquadrando-se em ramos jurídicos diversos. Esta uma nota característica, que tem de estar sempre presente ao estudo das múltiplas facetas da sua disciplina.

Face à posição subscrita, dúvidas não temos de que a decisão de não transcrição implicaria a subsunção a alguns dos princípios referidos como é o caso da proporcionalidade e subsidiariedade.
Porém, a montante da questão de tal aplicação, situa-se uma outra, bem mais singela, e que vai confluir com o objecto do presente recurso. Na verdade, o recorrente pretende a não transcrição no registo criminal da presente condenação nas hipóteses previstas nos artigos 11º e 12º da Lei 57/98. Sucede que aquela primeira disposição - relativa aos certificados requeridos para fim de emprego - expressamente afastam, no seu número 1, alíneas a) e b), a possibilidade de a presente condenação constar do respectivo certificado. No que respeita aos certificados requeridos para outros fins - artigo 12º da referida Lei - o n.º 2 alínea e) expressamente afasta a possibilidade de o mesmo conter condenações de delinquentes primários em pena não superior a seis meses de prisão ou equivalente. Essa é a condição do requerente.
Assim, se é certo que o artigo 17º da mesma Lei, ao abrigo do qual foi proferido o despacho recorrido, consagra um poder dever a ser exercitado de acordo com determinados pressupostos legais o certo é que, nos termos dos artigos 11º e 12º da mesma Lei a não transcrição, em hipótese como a vertente é automática resultando da própria letra da lei.
Se é certo que o requerimento do recorrente pedindo a não transcrição configura um acto inútil, pois a tutela do respectivo objecto já se encontrava assegurada legalmente, igualmente é exacto que sobre o requerido recaiu uma decisão que não tem suporte legal. Não se pode indeferir aquilo que resulta directamente da lei.
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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Revogar o despacho recorrido, considerando que a não transcrição da decisão condenatória nos termos e para os efeitos dos artigos 11º e 12º da Lei 57/98 resulta já da própria lei.
Sem custas.



Coimbra,