Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
308/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 9.º, 236.º, 405.º, 406.º, 762.º, 805.º N.º 1 E 806.º DO C.C.
Sumário:

1. O princípio da liberdade contratual foi também adoptado pelo legislador em matéria de contrato de seguro, regulando-se o mesmo pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do CComercial.
2. Havendo, contudo, na lei um conjunto mínimo de preceitos de natureza imperativa, já que o contrato de seguro sempre motivou o legislador a adoptar uma atitude de protecção do segurado, de que é paradigma a interpretação mais favorável ao aderente;
3. Integrando a apólice condições gerais, especiais - se as houver - a particulares, o regime interpretativo das cláusulas contratuais gerais aplica-se às condições gerais e às especiais, ambas elaboradas sem prévia negociação individual, mas já não às particulares, a estas se aplicando as regras de interpretação típicas do negócio jurídico;
4. Quando as cláusulas contratuais gerais forem ambíguas, terão as mesmas o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real, prevalecendo na dúvida o sentido mais favorável a este.
5. Sendo os ocupantes de um veículo colhidos por outro, em plena via, quando aqueles haviam acabado de sair da viatura, após acidente de viação antes ocorrido que imobilizara a mesma, atravessada na estrada, tal não poderá deixar de significar, para efeito do seguro acordado, a existência de um acidente de viação verificado durante a saída dos referidos ocupantes, assim acontecendo em consequência exclusiva da sua circulação rodoviária.
6. Estando os riscos reclamados - morte e despesas de funeral - cobertos pelo contrato de seguro, deve a seguradora proceder ao pagamento das respectivas quantias antes acordadas.
Decisão Texto Integral:


Apelação nº 308/04

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


AA e BB vieram intentar acção que seguiu os termos do processo sumário contra CC. pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia global de 6.541.644$00, acrescida de juros de mora desde a data da propositura da acção e até integral pagamento.
Alegando, para o efeito, e em suma:
São filhos dos falecidos DD e EE;
No dia 16/9/95, cerca das 7H30, ocorreu um acidente de viação que envolveu o veículo automóvel, de matrícula PJ, conduzido pelo DD e no qual se fazia transportar a EE, nas condições de lugar e modo que melhor descritas são na p.i.;
Quando os mesmos se encontravam junto da porta direita da viatura PJ, que se encontrava atravessada na estrada, na faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, tendo o DD acabado da ajudar a sair do veículo a sua mulher EE, foram aí embatidos violentamente por outra viatura que naquela faixa de rodagem circulava, sofrendo graves lesões que lhes determinaram a morte;
O DD havia celebrado com a Ré um seguro do ramo acidentes pessoais-ocupantes, referentes á viatura PJ, o qual cobria todos os ocupantes e abrangia os riscos, nomeada-
mente, de morte e invalidez permanente até ao limite de 3.000.000$00 e despesas de funeral até ao limite de 150.000$00;
Participado o acidente à Ré tem-se a mesma escusado a cumprir o acordado.
Citada a Ré, veio contestar, alegando, também em síntese, que o seguro referenciado não abrange a situação em causa, pelo que não é responsável pelos danos verificados e peticionados.
Foi proferido o despacho saneador, sem recurso, tendo sido organizada a especificação e o questionário. Sem reclamação das partes.
Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto do questionário pela forma que do despacho junto aos autos consta. Também sem reclamação das partes.
Foi proferida a sentença, na qual foi julgada improcedente a acção, com a absolvição da Ré do pedido.
Inconformados, vieram os AA interpor o presente recurso de apelação, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - No dia 16/9/95, pelas 7H30, DD, acompanhado de sua mulher, EE, conduzia o veículo ligeiro de passageiros marca Toyota Corolla, matrícula PJ, na E.N. nº 2, no sentido Rojão Grande-Chamadouro, Santa Comba Dão;
2ª - Ao Km 217,5 dessa mesma estrada, naquele dia e hora, na localidade de Lameiras, ao descrever uma curva ligeira o DD perdeu o controlo da viatura, indo embater com a parte da frente lateral direita da mesma no rodado dianteiro do tractor agrícola, de matrícula BG-01-04, que naquela via se deslocava em sentido contrário;
3ª - Em resultado dessa colisão ambas as viaturas ficaram imobilizadas na faixa de rodagem, ocupando a do DD parte da faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha;
4ª - Como a sua mulher não conseguia sair do veículo devido aos ferimentos e ao estado da porta do seu lado, o DD, acto contínuo à referida colisão, saiu do seu veículo, contornou-o e auxiliou a sua mulher a sair do veículo;
5ª - Quando a mesma tinha acabado de sair do veículo e ainda ambos não tinham tido tempo para sair da estrada, surgiu o veículo Alfa Romeo que embateu violentamente no veículo do DD, atingindo este e a sua mulher, esmagando-os e entalando-os entre os dois veículos;
6ª - De tal colisão resultou a morte de ambos;
7ª - O falecido DD havia celebrado com a recorrida um contrato de seguro do ramo acidentes pessoais/ocupantes, titulado pela apólice nº 34/134.105, o qual cobria todos os ocupantes e abrangia os riscos de morte e invalidez permanente e despesas de funeral;
8ª - Nos termos do nº 4 do art. 1º da aludida apólice, acidente de viação é "todo o acontecimento ocorrido em consequência exclusiva da circulação rodoviária, quer o veículo se encontre ou não em movimento, durante o transporte automóvel, a entrada ou a saída do veículo e a participação activa, no decurso de uma viagem, em trabalhos de pequena reparação ou desempanagem do veículo designado nas Condições Particulares";
9ª - Por circulação rodoviária deve entender-se a circula-
ção automóvel em estradas e estes (os automóveis) tanto podem estar parados como em movimento (circulação);
10ª- Os familiares dos recorrentes estavam a sair do veículo automóvel que se encontrava parado por força de um acidente quando foram colhidos pelo veículo Alfa Romeo, o que lhes causou a morte;
11ª- A morte dos familiares dos recorrentes resultou da saída do veículo que estava em circulação automóvel, pelo que está abrangida pela apólice referida;
12ª- A interpretação do conceito de acidente de viação vertido na apólice deve ser feita considerando-se o mesmo como um todo e não por partes estanques e sem qualquer ligação entre si;
13ª- A apólice em referência cobria os riscos, nomeadamente de morte e invalidez permanente até ao limite de 3.000.000$00 e despesas de funeral até ao limite de 150.000$00;
14ª- Tendo o decesso dos falecidos ocorrido em consequência da saída do veículo que estava em circulação, incumbe à recorrida pagar o valor do capital contratado aos recorrentes, únicos e universais herdeiros daqueles, cumprindo assim a obrigação a que estava vinculada nos termos das condições gerais da apólice;
15ª- Ao não cumprir a sua obrigação, através do pagamento em numerário do capital contratado, constituiu-se em mora desde a data da interpelação para o cumprimento (27/9/95) até integral e efectivo pagamento;
16ª- A sentença recorrida, ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação e aplicação, os arts 9º, 236º, 405º, 406º, 762º, 805º, nº 1 e 806º do CC, 427º e 3º do C. Comercial e 1º, nº 3, 2º, 3º, al. a) e 11º, nºs 1 e 3 das condições gerais da apólice.
A apelada veio contra-alegar, pugnando pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

Quanto à matéria de facto dada como PROVADA, este Tribunal, ao abrigo do preceituado no art. 713º, nº 6 do CPC, remete para os termos da decisão da 1ª instância que a decidiu, explanando-se aqui, para facilidade de compreensão, aquela que diz respeito ao objecto da apelação.

No dia 16/9/95, cerca das 7H30, DD conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca Toyota, modelo Corolla, matrícula PJ, sua propriedade, pela EN nº 2, no sentido Rojão Grande-Chamadouro, em Santa Comba Dão, seguindo no banco dianteiro, a seu lado, EE - als A) e B) da especificação;
Ao Km 217,5 da EN nº 2, na localidade de Lameiras, ao descrever uma ligeira curva para a sua direita, o DD perdeu o controlo da viatura, entrando na faixa de rodagem contrária, indo colidir com a parte da frente lateral direita no rodado dianteiro esquerdo do tractor agrícola, de matrícula BG, que se deslocava no sentido Chamadouro-Rojão Grande, conduzido pelo seu proprietário GG- al. C);
Após a colisão, as referidas viaturas ficaram imobilizadas na faixa de rodagem, ficando a viatura do DD a ocupar a faixa de rodagem contrária, em sentido perpendicular ao que se deslocava, com a parte lateral direita virada para a localidade do Chamadouro - al. D);
Em determinado momento, surgiu no sentido Chamadouro-Rojão a viatura ligeira de passageiros de marca Alfa Romeo, matrícula OR-01-74, que foi embater com a sua parte da frente na parte lateral direita da viatura do DD - al. F);
Em consequência de tal embate o DD e a EE sofreram lesões graves que lhes determinaram, directa e necessariamente, as suas mortes - al. G);
A Ré celebrou com o DD um acidente de seguro do ramo acidentes pessoais-ocupantes, referente ao aludido veículo PJ, cobrindo o mesmo todos os ocupantes e abrangendo os riscos, nomeadamente de morte, até ao valor limite de 3.000.000$00 e despesas de funeral até ao limite de 150.000$00 - als M) e N);
Nos termos do art. 2º das condições gerais da apólice, a seguradora "(...) garante o pagamento das indemnizações a que o segurado ou pessoa segura tenham direito em consequência do acidente de viação quando transportados no veículo identificado nas condições particulares" - al. O);
E o nº 4 do art. 1º das mesmas condições gerais define acidente de viação como sendo "todo o acontecimento ocorrido em consequência exclusiva de circulação rodoviária, quer o veículo se encontre ou não em movimento, durante o transporte automóvel, a entrada ou saída do veículo e a participação activa, no decurso de uma viagem, em trabalhos de pequena reparação ou desempanagem do veículo designado nas condições particulares - al. P);
Os AA participaram, em 27/9/1995, o referenciado sinistro à Ré - al. Q);
Por carta registada datada de 19/12/95 a Ré informou os AA que declinava qualquer responsabilidade no referido sinistro - al. R);
Em resultado da colisão referida em C), EE não conseguia sair pelos seus próprios meios do lugar que ocupava na viatura - ao lado do condutor - pelo que o seu marido, DD, depois de sair pela porta da frente lateral esquerda, contornou a viatura e dirigiu-se à porta da frente lateral direita da mesma para auxiliar a sua esposa a sair, não tendo demorado mais do que um minuto nesse trajecto, durante o qual ainda falou com o GG - respostas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º;
Após a EE ter saído da viatura com o auxílio do seu marido, estando ainda ambos junto da mesma, sem que tivesse havido tempo para se retirarem da estrada, surgiu o veículo automóvel identificado em F) - resposta ao quesito 7º;
A viatura Alfa Romeo não efectuou qualquer travagem nem reduziu a sua velocidade, tendo embatido violentamente na viatura do DD - resposta ao quesito 8º;
O DD e a EE, estando no meio das referidas viaturas, foram por ela esmagados, em consequência do embate provocado pelo Alfa Romeo na viatura do DD - resposta ao quesito 9º.

Podendo, ainda, dar-se como assente, tendo em conta o teor dos docs de fls 9 e 10 (croquis elaborado pela GNR), 62 e 63 (certidões de óbito de DD e de EE, respectivamente) e o disposto no art. 659º, nº 3 do CPC.

A largura da estrada onde ocorreu o embate era de 6,80 m.
O DD, á data da sua morte, tinha 57 anos de idade.
A FF, à data da sua morte, tinha 54 anos de idade.

NÃO tendo ficado PROVADO:
Os pais dos AA dispuseram de tempo para se retirarem da estrada - resposta negativa ao quesito 16º;
Apenas não o tendo feito por estarem a avaliar os estragos sofridos pela sua viatura - resposta negativa ao quesito 17º.
Sendo a seguinte a redacção dos quesitos que 1º a 7º que sofreram resposta limitativa:
"1º
Em resultado da colisão referida em C) a porta da frente do lado direito da viatura do DD ficou presa por forma a que se tornava difícil a sua abertura?

Em consequência de tal colisão, a EE sofreu ferimentos vários, não se conseguindo levantar do banco dianteiro da viatura onde se deslocava?

O que aliado á situação em que ficou a porta da viatura, a impediu de sair pelos seus próprios meios e a levou a pedir socorro ao marido?

Pelo que o DD abriu a porta da frente lateral esquerda?

Contornou a viatura e, aproximando-se da porta da frente lateral direita da sua viatura forçou a sua abertura e auxiliou a sua esposa a sair da mesma?

No decurso de tal trajecto, no qual demorou cerca de um minuto, ainda dirigiu breves palavras ao sr. GG, indagando do seu estado de saúde?

Imediatamente após a referida EE ter saído da viatura com o auxílio do marido e, quando ambos se encontravam juntos da viatura e sem que tivessem tempo de se retirar da estrada ou de se afastar da viatura, surgiu o veículo automóvel identificado em F)?"

*

A regra geral do regime contratual português é a da autonomia da vontade, podendo, em princípio, as partes fixar livremente o conteúdo dos contratos, dentro dos limites da lei - arts 397º e 405º do CC.
Tendo sido este também o princípio adoptado pelo legislador em relação ao contrato de seguro, regulando-se o mesmo pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei e na sua falta ou insuficiência pelas disposições do C. Comercial - art. 427º deste mesmo diploma legal.
Havendo, contudo, na lei um conjunto mínimo de preceitos de natureza imperativa, já que o contrato de seguro sempre motivou o legislador a adoptar uma atitude de protecção do segurado, de que é paradigma a interpretação mais favorável ao aderente - art. 11º, nº 2 da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85, de 25 de Outubro, alterado pelo DL 220/95, de 31 de Agosto e pelo DL 249/99, de 7 de Julho) e José Vasques, Contrato de Seguro, p. 25.

Quanto á interpretação do contrato de seguro poder-se-á dizer - acompanhando, ainda, José Vasques, ob. cit., p. 347 e ss - que a mesma tem evoluído paralelamente ao alargamento da sua função social e ao desenvolvimento do direito do consumidor, tendo começado por se buscarem apenas as regras interpretativas nas normas gerais da interpretação dos contratos - art 236º e ss do CC.
Sendo tal procedimento perturbado, quer pelo facto de as cláusulas gerais de alguns contratos serem aprovadas por Norma Regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal, como tal sujeitas às regras da interpretação da lei (art. 9º do CC), quer por as cláusulas contratuais gerais, elaboradas sem prévia negociação individual, serem submetidas a regime interpretativo específico - arts 10º e 11º da aludida Lei.
E integrando a apólice, condições gerais, especiais - se as houver - e particulares, o regime interpretativo das cláusulas contratuais gerais aplica-se às condições gerais e às especiais, também elaboradas sem prévia negociação individual, mas já não às particulares, que não participam das cláusulas predispostas apenas por uma das partes, a elas se aplicando as regras de interpretação típicas do negócio jurídico.
Sendo que, em obediência ao princípio geral de interpretação e integração das cláusulas contratuais gerais, prescrito no citado art. 11º, são estas interpretadas da harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto da cada contrato singular em que se incluam.
E que, quando tais cláusulas forem ambíguas, terão as mesmas o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real, prevalecendo na dúvida o sentido mais favorável ao aderente - art. 12º da mesma Lei.

Devendo o autor, também no âmbito do contrato do seguro, provar os factos constitutivos do seu direito - arts 342º, nº 1 do CC e 21º, . da aludida Lei asd al. g) da aludida Lei das Cláusulas Contratuais
Gerais.

Constando no nº 4 do art. 1º das Condições Gerais do contrato de seguro de acidentes pessoais celebrado entre o falecido DD e a Ré Fidelidade o seguinte quanto á definição de
"Acidente de Viação - Todo o acontecimento ocorrido em consequência exclusiva da circulação rodoviária, quer o veículo se encontre ou não em movimento, durante o transporte automóvel, a entrada ou a saída do veículo e a participação activa, no decurso de uma viagem, em trabalho de pequena reparação ou desempanagem do veículo designado nas condições particulares".
Garantindo o seguro em apreço - sujeito aos termos, condições e limitações estabelecidas na apólice, o pagamento das indemnizações a que o segurado ou pessoa segura tenham direito em consequência de acidente de viação quando transportados no veículo identificado nas condições particulares - art. 2º das aludidas condições gerais.

Tudo estando em saber - já que, nem no recurso, nem mesmo na acção, são colocadas objecções, quer quanto às pessoas seguras, quer quanto aos riscos cobertos (com excepção dos juros pedidos) - se o nefasto acontecimento ocorrido e que levou à morte do condutor segurado e do seu cônjuge se pode ou não incluir no conceito de acidente de viação definido nas aludidas condições gerais do seguro em apreço.
Como tal - se assim suceder - se incluindo no objecto do mesmo contrato de seguro.

Ora bem:
Dúvidas não restarão que o veículo que era conduzido pelo segurado e que estava abrangido pelo contrato em causa não se encontrava em movimento, estando, ao invés, já imobilizado na via, na faixa esquerda de rodagem tendo em conta o seu antecedente sentido de marcha, em virtude se ter antes despistado e aí colidido com o veículo tractor que nessa estrada e sentido de trânsito também circulava, em posição perpendicular àquela em que seguia e com a parte lateral direita virada para a localidade do Chamadouro.
Dúvidas também não restando, tendo em conta o ora referido e o demais dado como provado, que o veículo PJ, na apólice visado, era conduzido pelo segurado e que, antes de tal imobilização, circulava na estrada, tal como também melhor explicitado está na matéria de facto apurada.
E que - pelo menos tal não ficou provado - quer o segurado, quer o seu conjugue - infelizes vítimas mortais - não participavam em quaisquer trabalhos de pequena reparação ou desempanagem do veículo.
Pelo que, a única situação que poderá ter ocorrido de forma a caber no objecto do seguro, é a da saída dos sinistrados do veículo no momento em que foram colhidos - esmagados - pelo veículo que neles colidiu.

O senhor Juiz a quo entendeu que o relevante é que o dano ocorra apenas por causa da circulação do veículo em que a vítima se faz transportar.
Estando-se, in casu, perante um acontecimento (atropelamento) ocorrido durante a saída de ocupante do veículo auxiliada pelo condutor, mas "mais do que porque o veículo se encontrava em circulação (esse é o seu fim), em consequência de o condutor e ocupante estarem a sair da viatura em plena via porque antes houve o embate do veículo em que seguiam com outro veículo, donde estarem a sair dele em plena faixa de rodagem.
Ou seja, o acontecimento não ocorreu apenas por causa da circulação do veículo, mas por causa de ter havido um anterior acidente:"
E, assim, por não se poder dizer que se está perante um acontecimento ocorrido em consequência exclusiva da circulação normal do veículo, não está a situação em apreço coberta pelo contrato de seguro.

Cremos que a Ré seguradora, na sua contestação, não vai tão longe.
Defendendo antes que o acidente não está coberto pelo seguro, pois na altura em que o mesmo se verificou os falecidos não eram transportados no veículo PJ, não entravam nem saíam dele, nem participavam activamente em qualquer pequena reparação ou desempanagem da viatura.
Pois, na sua tese, após a colisão do PJ com o tractor, quer o DD, quer a sua esposa EE, saíram do veículo e colocaram-se ao lado deste, em plena faixa de rodagem a fim de examinarem os danos sofridos e tomarem as necessárias providências relativas à regularização do sinistro com o outro interveniente, o condutor do tractor.
Já os mesmos infelizes sinistrados se encontrando junto a veículo PJ há dois ou três minutos quando a viatura OR surgiu.
Tese esta, que, no essencial, não ficou apurada (respostas negativas aos quesitos 16º e 17º).

O veículo PJ, no qual seguiam os falecidos pais dos AA, teve um acidente de viação quando circulava na aludida estrada.
Tendo-se despistado e entrado na faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, ficando a ocupar esta, em posição perpendicular, com a sua parte lateral direita virada para a localidade do Chamadouro.
Em resultado de tal colisão, a ocupante do veículo PJ, mulher do condutor, não conseguiu sair pelos seus próprios meios do lugar onde se fazia transportar - ao lado do condutor - pelo que o seu marido depois de sair pela porta da frente lateral esquerda, contornou a viatura e dirigiu-se à porta da frente lateral direita para auxiliar a sua mulher a sair, não tendo demorado mais do um minuto nesse trajecto, durante o qual ainda falou com o condutor do tractor onde havia embatido.
Após a EE ter saído do veículo com o auxílio do marido, estando ambos ainda juntos do mesmo, sem que tivesse havido tempo para se retirarem da estrada, surgiu o veículo OR que neles acabou por embater violentamente, esmagando-os contra o PJ - respostas aos quesitos 1º a 9º.

Assim, embora se possa considerar de alguma ambiguidade a alegação e prova de que o casal não havia tido tempo para se retirar da estrada - considera-se aqui apenas a faixa de rodagem onde o PJ estava imobilizado ou a via em toda a sua largura? - e de não ter ficado provado que a FF em resultado da colisão anterior sofreu ferimentos vários, não se conseguindo levantar do banco onde se sentava, nem que o OR tivesse surgido imediatamente após a referida senhora ter saído da viatura com o auxílio do marido, sem que ambos tivessem tempo de se afastar da viatura (respostas restritivas dadas aos quesitos 1º, 2º, 5º e 7º) a verdade é que provado ficou que a mesma FF não conseguiu sair do veículo pelos seus próprios meios, pelo que o seu marido, contornando a viatura - sem demorar no trajecto mais do que um minuto - a foi auxiliar a sair. E quando estão ambos - após a Rosa ter saído do veículo PJ com o auxílio do marido - junto da viatura, sem que tivessem tido tempo para se retirar da estrada, é que surge o OR que os haverá de embater e de gravemente ferir, causando-lhes a morte.

A situação apurada, mesmo que provocada, na sua génese, por um acidente anterior ocorrido com o veículo PJ, não poderá deixar de significar a existência de um acidente de viação ocorrido durante a saída daquela viatura, assim acontecendo em consequência exclusiva da circulação rodoviária da mesma.
Pois, estando a mesma imobilizada na via e em situação bem perigosa - temos que presumir que dali não poderia sair pelos seus próprios meios - os seus ocupantes, entre eles o condutor, haveriam que sair do veículo o mais depressa possível. E não podendo a passageira sair, por si mesma, do lugar que ocupava era obrigação de seu marido ir auxiliá-la a sair da viatura. Sendo então que ambos são colhidos e que se dá o nefasto desenlace.

Os riscos ocorridos - morte e despesas de funeral - com os limites aludidos - encontram-se, pois, cobertos pelo seguro em apreço.
Devendo a seguradora proceder ao pagamento das respectivas quantias - 3.000.000$00 pelo risco morte e 150.000$00 pelas despesa do funeral - aos sucessores habilitados das vítimas, que são os ora AA.

Provado ficou que os AA participaram o sinistro à Ré em 27/9/95.
Desconhecendo-se, porem, por cópia de tal participação não se encontrar junta aos autos, se tal consubstanciou uma verdadeira interpelação extrajudicial para cumprimento.
Contudo, por carta registada de 19/12/95 a Ré informou os AA que declinava qualquer responsabilidade no sinistro ocorrido.
Assim, tendo o devedor comunicado ao credor, de forma categórica, a sua intenção de não cumprir, a obrigação vence-se de imediato, sem necessidade de interpelação - Galvão Telles, Obrigações, p. 195 e Pessoa Jorge, Obrigações, p. 296.
Ficando, pois, a devedora seguradora em mora, pelo menos - e seguramente - desde 19/12/95.

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, em se revogar a sentença recorrida, condenando-se a Ré a pagar aos autores a quantia global de 31.424,27 euros (trinta e um mil quatrocentos e vinte e quatro euros e vinte e sete cêntimos), correspondente a 6.300.000$00 (seis milhões e trezentos mil escudos), acrescida de juros de mora, às taxas legais, desde 19/12/95 e até integral pagamento.
Custas nesta Relação e na 1ª instância por ora apelantes e ora apelada na proporção dos respectivos decaimentos (os AA e apelantes pedem juros de mora desde 27/9/95)