Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2753/06.3TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: JULGAMENTO
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
DOLO
INSTIGAÇÃO PÚBLICA AO CRIME
Data do Acordão: 03/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 26º, 297º CP, 340º DO CPP
Sumário: 1. O art.º 340º do CPP consagra, para a audiência, o princípio da investigação, isto é, que, em última instância, recai sobre o juiz o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento. Os meios de prova não estão limitados aos indicados pela acusação ou pela defesa.
2. O meio probatório por excelência a que se recorre na prática para determinar a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas, nem tão pouco a confissão auto inculpatória do sujeito activo mas a aplicação das regras da experiência – premissa maior – aos factos previamente provados e que constituem a premissa

3. O tipo do art.º 297º do CP configura um crime de perigo porque o que está em causa não é o dano, mas sim a possibilidade ou a probabilidade de lesão do bem jurídico tutelado; de perigo abstracto, porquanto, no que concerne ao preenchimento típico, não é necessária a demonstração de um nexo causal entre a acção e a situação perigosa que pode, provavelmente, levar à lesão do bem jurídico.

4. À verificação do crime em causa basta a presunção da perigosidade da acção - traduzida em actos de provocação ou de incitamento ao crime -, para o sentimento de paz que a ordem jurídica reclama ou, primacialmente, para os bens jurídicos ameaçados pela instigação, conforme a perspectiva que se tenha do bem jurídico protegido.

5. A provocação ou incitamento dirigida a uma pessoa determinada ou mesmo a um conjunto restrito e definido de pessoas não constitui conduta punida com este tipo legal de crime, podendo configurar, em abstracto, instigação enquanto comparticipação de um crime, em conformidade com o disposto no artigo 26.º do CP.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Z..., após julgamento em processo comum com intervenção de tribunal singular, o arguido F..., casado, natural do concelho de Z..., economista, condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de instigação pública a um crime, p. e p. no artigo 297.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 20 (vinte euros).


*

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1. O arguido recorrente foi julgado e condenado pela prática do crime p.p. pelo artigo 297.º, n.º 1, do Código Penal.

2. Não concordando com esta douta sentença condenatória o arguido interpôs o presente recurso, articulando a motivação que antecede.

3.1. A sentença recorrida não se pronunciou, em concreto, sobre os factos invocados na contestação, nomeadamente sobre o uso em sentido figurado da expressão “corram-nos à pedrada” e o exercício do direito de liberdade de expressão por parte do arguido, no contexto e circunstancialismo em que aconteceram.

3.2. Estes factos revelavam-se essenciais para a verificação dos pressupostos do tipo de crime, de tal modo que a sentença nem os deu como provados e sendo certo que quanto à demais, constante do respectivo relatório, não consta, sequer, qualquer parte respeitante a “factos não provados”.

3.3. Carecendo por isso de fundamentação, em violação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, do Cód. Processo Penal, e 205.º, n.º 1, da Constituição da República, sendo assim nula, ex vi do disposto no artigo 379.º, n.º 1, a), do Cód. Processo Penal, nulidade esta que, nos termos do disposto no n.º 2 desta norma, se invoca para os devidos e legais efeitos.

4. Salvo o devido respeito por outra opinião, a sentença recorrida omite inúmeros e múltiplos factos, inequivocamente provados em audiência de julgamento e inquestionáveis para qualquer sujeito processual, pois resultam de:

- dois documentos (a acta da sessão da XX... e a gravação áudio da mesma sessão) cujo valor probatório pleno foi por aquela enaltecido (acentuando a sua genuinidade e fidedignidade);

- das declarações do arguido; e

- da prova testemunhal (produzida, de acordo com a sentença, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada), todas gravadas.

4.1. A sentença recorrida, relativamente a todos estes meios probatórios, limitou-se a reproduções parciais, redutoras, fora do contexto factual em que aconteceram, quase sempre incoerentes e desconexas, o que teve como consequência a distorção, deturpação e falsa representação da realidade, com evidente prejuízo para o arguido ora recorrente.

4.2. Se a sentença recorrida tivesse considerado e valorado todos os factos resultantes de toda esta prova (real, verdadeira e não enfabulada ou produto da imaginação), teria facilmente concluído pela inexistência do crime imputado ao arguido, por não estarem preenchidos os respectivos pressupostos para o preenchimento do seu tipo legal (objectivo e subjectivo).

4.3. Em concreto, a sentença recorrida omitiu excertos da certidão da transcrição da acta da XX... nos quais o arguido, poucos minutos depois de proferir a expressão “corram-nos à pedrada”, se refere ao seu sentido figurado;

4.3.1. Omitiu qualquer referência ao facto de da gravação áudio resultar bem audível, em simultâneo com o uso da expressão “corram-nos à pedrada”, risos e gargalhadas de fundo, provenientes dos presentes na sessão daquela assembleia, para além, naturalmente, das palavras referidas no parágrafo anterior.

4.3.2. Omitiu partes importantes das declarações do arguido, onde este explicava com detalhe o significado verdadeiro da expressão e, por conseguinte, não se chegou a pronunciar sobre as mesmas, de modo crítico e fundamentado.

4.3.3. Omitiu partes importantes das declarações de várias testemunhas, o Sr. Dr. R..., o Sr. N..., o Sr. J... (de quem disse, aliás, que depuseram de forma clara, convicta, isente e desapaixonada) e o Sr. Eng. L... (cuja idoneidade não pôs em causa) e em consequência a totalidade dos factos que delas resultaram.

4.3.4. Como consequência do exposto neste ponto 4 das conclusões, dúvidas não restam que deve o Tribunal de 2.ª Instância modificar a decisão ora recorrida sobre a matéria de facto e, ponderados e interpretados que sejam, devida e correctamente os factos omitidos, revogar a douta sentença recorrida e proferir douto Acórdão, absolutório do arguido (aplicação conjugada dos artigos 412.º, n.º 3, a) e b) e 431.º, a) e b), ambos do Código de Processo Penal.

4.3.5. Na sequência do mencionado no parágrafo anterior a reapreciação da matéria de facto deve obedecer aos seguintes requisitos:

- Dos factos que o texto da douta sentença recorrida deu como provados deverão ser eliminados, pelo menos, os seguintes:

- No ponto II-5 da fundamentação, o segmento “…em tom sério”;

- No ponto II-6 da fundamentação, o segmento “…estava a apelar à intimidação e à agressão física à pedrada dos YY... que, dali em diante, no legítimo exercício das suas funções, se propusessem autuar as juntas de freguesia do concelho de Z... por infracções ambientais, tendo perfeita noção que a actuação a que apelava era adequada – e era isso que pretendia alcançar – a impedi-los de exercer tais funções”;

- No ponto II-7 da fundamentação, o segmento “…os factos a cuja prática assim incitava integravam ilícitos tipificados na lei penal como crimes – o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º/1 e 146.º do Código Penal e o crime de resistência e coacção sobre funcionários previsto e punido pelo artigo 347.º do Código Penal”;

- Todo o conteúdo do ponto II-8 da fundamentação;

- No ponto II-9 da fundamentação, o segmento “…bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Dos factos omitidos pela sentença recorrida mas que efectivamente resultam provados tendo em conta a totalidade da prova produzida, deverão ser inseridos, a título de “factos provados”, os seguintes:

- A intervenção do arguido na sessão da XX... em que foi proferida a expressão em causa nos autos, aconteceu depois de trinta intervenções de outros deputados presentes (cfr. fls. 19 v.º e 20 da acta da sessão, a fls. 62.º v.º e 63 dos autos – págs. 11 e 12 da motivação);

- No momento em que proferiu as palavras transcritas no ponto 5 da fundamentação (com a redacção resultante da eliminação atrás referida), a plateia presente soltou uma sonora gargalhada (cfr. gravação da sessão da assembleia, dos 10:45 min aos 17:33 minutos, do lado A da cassete 3, págs. 19 a 22 supra);

- Logo que, no decurso da Assembleia foi interpelado acerca das declarações transcritas no ponto 5 da fundamentação (com a redacção resultante da eliminação atrás referida), o arguido afirmou que “estava naturalmente a falar em sentido figurado” (cfr. fls. 19 v.º e 20 da acta da sessão, a fls. 62 v.º e 63 dos autos – págs. 11 e 12 da motivação e gravação da sessão da assembleia, dos 10:45 min aos 17:33 minutos, do lado A da cassete 3, págs. 19 a 22 supra);

- Na audiência de julgamento o arguido explicou o que no seu entender era o significado da expressão “corram-nos à pedrada” (cfr. gravação das declarações do arguido, dos 14:15 min aos 16:03 minutos e dos 28:00 aos 28:47 minutos – págs. 23 e 24, supra);

- O deputado municipal do Partido … Sr. Dr. R..., que no próprio acto ofereceu réplica à pronúncia do arguido constante do ponto 5 da fundamentação (depois de corrigido no sentido indicado) qualificou-a como um excesso de linguagem, característico do debate político próprio de uma XX... e interpretou essa intervenção do arguido como um ataque político à direcção dos serviços que dirigiam os YY... (cfr. gravação do seu depoimento, dos 3:41 min aos 10:26 minutos, fls. 27 a 31 desta motivação);

- O chefe dos serviços que à data dirigiam os YY... era membro do Partido …, Vereador da oposição no executivo camarário e estava presente naquela assembleia (cfr. gravação do depoimento de N..., dos 8:26 aos 9:43, dos 11:05 min aos 15:06 minutos e dos 18:00 aos 21:30 minutos, págs. 37 a 42, supra);

- Depois da intervenção do arguido naquela sessão da XX... não houve mudança no funcionamento daqueles serviços (cfr. gravação do depoimento de N..., dos 11:07 min aos 15:06 minutos, págs.38 e 39 supra);

- Também depois da mesma intervenção os YY... não pediram alteração quanto ao modo de exercício da actividade que desenvolviam, continuando por isso a processar-se como antes daquela intervenção (cfr. gravação do depoimento de N..., dos 18:00 aos 21:30 minutos, pág. 41 supra, e do depoimento de L..., dos 3:59 min aos 5:01 minutos, págs. 35 e 36, supra);

- Após esta mesma intervenção do arguido, por causa e utilizando a expressão “corram-nos à pedrada”, algumas pessoas dirigiam-se aos YY... em tom de gozo (cfr. gravação do depoimento de J..., dos 4:38 min aos 6:26 minutos, págs. 45 e 46 desta motivação);

- Os YY... não apresentaram qualquer queixa escrita aos serviços ou a qualquer entidade policial (cfr. gravação do depoimento de N..., dos 18:00 aos 21:30 minutos, pág. 41 supra, e do depoimento de L..., dos 3:59 aos 5:01 minutos, págs. 35 e 36, supra);

- Os YY... e em particular a testemunha N... teve a percepção de que nunca o arguido pretendeu ou desejou que no exercício das suas funções os YY... fossem molestados ou agredidos (cfr. gravação do depoimento de N..., dos 11:07 aos 15:06 minutos, pág. 39 supra);

5. Salvo o devido respeito por outra opinião, o texto da sentença recorrida contém vários fundamentos inconciliáveis e contraditórios entre si; essencialmente trata-se da incompatibilidade entre os factos que (apesar das omissões mencionadas no ponto 4 destas conclusões) resultam da prova documental e testemunhal constante da sentença (revelando a valoração que foi feita do depoimento das testemunhas – que depuseram de forma clara, convicta, isenta e desapaixonada) e a estatuição de que o arguido proferiu a expressão “corram-nos à pedrada”, desejando (com dolo directo) que os YY... fossem efectivamente agredidos com pedras.

5.1. O texto da sentença contém, também, outros factos (fundamentalmente os mesmos mencionados no parágrafo anterior) que, por sua vez, se encontram em oposição com a decisão final, de condenação do ora arguido.

5.2. Os mesmos factos, de resto, por estarem em contradição com a decisão final, não foram objecto de correcta análise, apreciação e interpretação por parte do Meritíssimo Juiz a quo, configurando por isso erro na apreciação da prova; resulta evidente que os mesmos não foram objecto de um processo de raciocínio lógico e coerente, antes sofreram uma interpretação redutora, desconexa, ilógica, incoerente e alheia às regras da experiência comum; pelo contrário, se a dita interpretação e valoração tivesse sido coerente, lógica e obedecido a um processo racional e respeitador das regras da experiência comum, a decisão final teria sido absolutória e não condenatória.

5.3. Ainda que se não entendesse do modo como se conclui no parágrafo anterior, deveria a sentença recorrida ter entendido que o conjunto de factos vertidos no seu texto concorreria, no pior dos casos para o recorrente, para a aplicação do princípio in dubio pro reo.

5.4. Está assim preenchida a previsão das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal,  que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos e, consequentemente, deve ser revogada a douta sentença recorrida, com os inerentes efeitos legais.

6. Como resultado do exposto nos pontos 4 e 5 destas conclusões, resulta evidente que perante tantas e tão graves omissões foram violados os princípios legais e constitucionais da legalidade e tipicidade (artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, n.º 1, do Código Penal, e 29.º, n.º 1, da Constituição da República).

6.1. A interpretação que a sentença faz do artigo 297.º, n.º 1, do Código Penal, tendo por referência os factos provados (considerem-se estes os referidos no texto da sentença ou todos eles, incluindo os omitidos pela sentença), é inconstitucional, por violação dos ora citados preceitos constitucionais.

7. O arguido, como referiu na contestação e em todos os anteriores actos processuais, actuou no âmbito de um debate político, num fórum democrático por excelência como é uma XX..., convocada nos termos da lei pelo seu Presidente e composta por deputados eleitos democraticamente; a expressão “corram-nos à pedrada” surgiu repentinamente e sem nada que o fizesse prever, até porque resultou do diálogo e debate democrático com os deputados intervenientes naquela assembleia (e depois de mais de trinta intervenções de deputados presentes).

7.1. Dúvidas não podem pois restar que, ao actuar e agir daquela maneira, o arguido, com inteira legitimidade (política e democrática) exerceu um direito que a Lei, a Constituição (artigo 37.º, n.ºs 1 e 2) e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 10.º, n.º 1) lhe conferem: a liberdade de expressão.

7.2. Trata-se do exercício de um direito nobre e fundamental, essencial para o livre, normal e transparente funcionamento de um Estado de Direito e de uma sociedade democrática, que a sentença recorrida pura e simplesmente ignorou.

7.3. Além do mais, a sentença recorrida condicionou muito acentuadamente, o futuro do exercício da acção política e democrática pelo arguido, bem como dos mais elementares direitos a elas associados, como o da liberdade de expressão.

7.4. No caso concreto nem se verificavam os pressupostos que pudessem fazer “accionar” a previsão do n.º 2 do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo Jurisprudência firmada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que as restrições ao exercício desse direito, contidas no n.º 2 daquele artigo 10.º têm de corresponder a uma necessidade social imperiosa.

7.5. Ao ignorar qualquer referência ao exercício desse direito por parte do arguido, a sentença recorrida não só incorreu em falta de fundamentação nos termos explicitados no ponto três destas conclusões como violou, frontal e gravemente, os já citados artigos 29.º, n.º 1, 32.º, n.º 1 e 37.º, n.º 1, da Constituição e 10.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e é, conforme acima invocado, nula, ilegal e inconstitucional.

8. Ao condenar o arguido sem que estivessem preenchidos os pressupostos exigidos pela previsão do n.º 1 do artigo 297.º do Código Penal, a sentença recorrida violou grosseiramente as suas garantias constitucionais de defesa, bem como os princípios legais e constitucionais da legalidade e da tipicidade (previstos e regulados nos artigos 32.º, n.º 1, e 29.º, n.º 1, da Constituição da República).

Por fim,

9. O arguido ora recorrente declara expressamente, nos termos e para os efeitos do n.º 5 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, que mantém interesse na subida dos dois recursos retidos nestes autos.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, consequentemente, declarar-se nula a sentença recorrida.

Se assim não se entender:

- Reapreciada que seja a matéria de facto, deve proceder-se à modificação da matéria provada nos termos acima indicados, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-a por Acórdão absolutório do arguido;

- Na hipótese académica de não ser reapreciada (com os termos e consequências) a matéria de facto no sentido indicado neste recurso, por estarem preenchidos os respectivos pressupostos de aplicação, deve, sempre e pelo menos, ser aplicado o princípio in dubio pro reo, com a consequente revogação da douta sentença recorrida.

- Tudo, com as inerentes consequências legais.


*

3. O arguido recorreu também dos despachos proferidos a fls. 928/929 e 942/943.

A) Rematou a motivação do recurso interposto do despacho de fls. 928/929 com as seguintes (transcritas) conclusões (fls. 959/970):

1. O douto despacho recorrido (assim como o requerimento que lhe deu origem) não se encontra fundamentado, pois dele não se alcançam quaisquer factos susceptíveis de integrar a previsão do artigo 340.º do Código de Processo Penal, limitando-se a mencionar um conceito legal – descoberta da verdade – e a utilizar uma expressão desprovida de factos – manutenção de uma mentira processual.

2. O artigo 340.º do CPP não pode ser utilizado como capa, como guarda-chuva para as falhas e lapsos ocorridos nas fases processuais anteriores ao julgamento.

3. As novas testemunhas arroladas pelo Ministério Público não visavam, como o próprio expressamente afirmou, o apuramento de factos que viessem preencher o tipo de crime imputado ao arguido, sendo por isso um “meio de prova” irrelevante e supérfluo, nos termos previstos na alínea a) do n.º 4 do artigo 340.º citado.

4. O artigo 340.º do CPP, para operar, exige que, em audiência de julgamento, se deparem a qualquer sujeito processual (no caso, ao Ministério Público) factos novos, ou factos até aí desconhecidos e que, além do mais, exigissem a produção de nova prova para o seu apuramento, o que manifestamente não foi o caso.

5. De tudo o antecedente, resulta terem sido violados os limites legais impostos por aquela disposição legal, assim como o princípio da necessidade nela implícito.

6. As testemunhas que o Ministério Público quis arrolar ao abrigo do artigo 340.º do CPP, desde o início do inquérito que eram do seu conhecimento, bem sabendo ele que tinham sido mencionadas nas palavras imputadas ao arguido.

7. Acresce que a testemunha invocada em julgamento, L..., já em fase de Instrução tinha proferido as mesmíssimas declarações e, não obstante, o Ministério Público não se preocupou ou não quis arrolar como testemunhas os ditos Vigilantes.

8. Sobre os factos invocados pelo arguido em oposição ao requerimento do Ministério Público, o despacho recorrido não contém uma só palavra, pelo que só na aparência se mostrou cumprido o princípio do contraditório, princípio legal e constitucional (art. 32.º, n.º 5, da CRP).

9. Na medida em que interpretou o artigo 340.º do CPP como o fez, sem fundamentação alguma, o despacho recorrido violou o disposto nos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição.

10. É pois evidente que o despacho recorrido, por ter violado a lei, deve ser revogado, com as inerentes consequências legais.

Termos em que:

- Deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, consequentemente;

- Deve ser revogado o despacho proferido na audiência de julgamento dos presentes autos, ocorrida no dia 21 de Maio de 2009, pelo qual, ao abrigo do artigo 340.º do CPP, foi deferida, a solicitação do Ministério Público, a inquirição de mais três testemunhas e, em consequência, substituído por decisão que indefira tal requerimento.


*

B) Conclui a motivação do recurso interposto do despacho de fls. 942/943 nestes termos (fls. 977/984):

1. O despacho recorrido padece da mais absoluta fundamentação, factual e/ou legal, sendo, além do mais, meramente conclusivo.

2. Na medida em que indeferiu um requerimento de produção de prova apresentado pelo arguido ao abrigo dos artigos 32.º, n.º 1, da Constituição, e 340.º do CPP, o despacho recorrido nem sequer cumpriu (violando-o, nessa medida) o previsto no n.º 4 do artigo 340.º do CPP.

3. É ao arguido, e a mais ninguém, que cabe preparar, organizar e apresentar a sua defesa.

4. Não se tendo, sequer, pronunciado pela substância do requerimento apresentado pelo recorrente, sendo em consequência meramente conclusivo, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 340.º, n.º 1, do CPP (por omissão) e nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4 e 32.º, n.ºs 1, 5 e 7, da Constituição.

5. As garantias constitucionais e legais de defesa do arguido, bem como o direito a intervir processualmente e o próprio princípio do contraditório (só na aparência respeitado) foram assim gravemente desrespeitados e violados.

6. Dúvidas não há, pois, que deve o mesmo ser revogado, com as inerentes consequências legais.

Termos em que:

- Deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, consequentemente;

- Deve ser revogado o despacho proferido na audiência de julgamento dos presentes autos, ocorrida no dia 28 de Maio de 2009, pelo qual foi indeferido o requerimento apresentado pelo arguido, solicitando a junção aos autos de uma gravação em CD e, em consequência, substituído por decisão que defira tal requerimento.


*

4. Depois de ter interposto recurso da sentença, o recorrente juntou aos autos Parecer elaborado, conjuntamente, pelo Senhor Professor J. Figueiredo Dias e Sr. Dr. Nuno Brandão (cfr. fls. 1281/1307).

*

5. O Ministério Público respondeu aos recursos intercalares nos termos de fls. 1027/1036 e 1037/1043.

Quanto ao primeiro recurso, expressou entendimento no sentido da irrecorribilidade do despacho em causa, em conformidade com o disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por a realização oficiosa de diligências probatórias em audiência de julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do referido diploma, consubstanciar decisão que ordena acto dependente da livre resolução do tribunal.

Para o caso de assim não ser entendido, conclui a final que o recurso não merece provimento, devendo mesmo ser rejeitado, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, alínea a) do CPP, por ser manifesta a sua improcedência.

Foi também esta a posição partilhada na resposta oferecida ao recurso intercalar interposto, a fls. 977/984, do despacho de fls. 942/943.

No que tange ao recurso interposto da decisão final, aduz o Ministério Público, de igual modo, que ele deve ser julgado, no seu todo, improcedente (cfr. fls. 1270/1278 dos autos).


*
6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto lavrou parecer (fls. 1323/1328) do seguinte teor (passagens mais relevantes):
- Recurso do despacho de fls. 929 e 959 a 970:
«Para além de ser discutível a recorribilidade da decisão em apreço, conforme refere o M.º P.º a fls. 1030 a 1032, afigura-se que as inquirições requeridas eram essenciais à descoberta da verdade, havendo que considerar ainda o princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP).
Acompanhando, globalmente, a posição assumida pelo Exm.º  Procurador da República, a fls. 1027 a 1036, somos de parecer que o recurso não merece provimento».
- Recurso de fls. 943 e 977 a 984:
«Concordando com a decisão recorrida, também se nos afigura que não existe falta de fundamentação, nem o cometimento de qualquer nulidade ou inconstitucionalidade, pelo que somos de parecer que deve ser negado provimento ao recuso (…)».
- Recurso da sentença:
«3. (…) Será de acolher, salvo melhor opinião, o quadro factual na forma como vem apurado e descrito, enquanto resultado da livre convicção formada sobre todas as provas produzidas em audiência, até porque teve também a suportá-lo factos objectivos e devidamente comprovados, relevando, portanto, como conclusão lógica e perfeitamente aceitável, face ao preceituado no art. 127.º do Cód. Proc. Penal.
4. Não se detecta no contexto factual decisório a existência de qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do Cód. Proc. Penal, sendo que o Tribunal “a quo”, em função da convicção alcançada, não se confrontou com qualquer estado de dúvida (princípio in dubio pro reo), que justificasse decisão diferente da condenatória, como, erradamente, defende o arguido.
5. Quanto à posição, junta aos autos pelo arguido, constante da consulta-parecer de fls. 1281 A 1307, reconhecendo, embora, a excelência de tão brilhante peça jurídica, que não discutiremos do ponto de vista da dogmática jurídico-penal, em abstracto, afigura-se-nos não corresponder, em concreto, a uma análise correcta do caso sub judice, com o devido respeito pela posição assumida.
Efectivamente, a matéria dada como provada não deixa dúvidas. O arguido, na intervenção pública efectuada na sessão da XX... de Z..., em 26/06/2006, perante 65 membros, dos quais 34 Presidentes de Junta, dirigindo-se a estes, referiu:
“…depois vêm os senhores YY... multar as Juntas de Freguesia.
Arranjem lá um grupo, corram-nos à pedrada. Sério. …Eu estou a medir muito bem aquilo que estou a dizer”.
Ora, perante a afirmação do arguido, de que falava de forma séria e que media muito bem o que estava a dizer, como pode afirmar-se que não havia aparência de seriedade na incitação à prática de crimes, consubstanciados em ofensas à integridade física qualificadas, resistência e coacção sobre funcionários (“corram os vigilantes-funcionários à pedrada…”)?
Ou que inexistia intenção de praticar o crime ou existia falta de consciência da ilicitude?
(…).
6. O art. 297.º, n.º 1, do Cód. Penal (instigação pública a um crime) preceitua:
(…).
a) Em anotação ao mesmo artigo, referem Simas Santos e Leal-Henriques, in Código Penal Anotado – 2.º volume – Editora Rei dos Livros, pág. 934:
«No caso do artigo em apreço “o objecto específico da tutela penal é… o interesse social de salvaguardar a ordem pública, por si mesmo considerada, contra aqueles factos que, instigando publicamente à delinquência… a prejudicam efectivamente, difundindo inquietação e alarme entre os cidadãos e fazendo diminuir a opinião e a sensação de segurança da convivência social”.
Como facilmente se intui, o perigo decorrente da acção criminosa não radica na publicidade.
E também se alcança que se trata de um crime de perigo abstracto.
Para a consumação do delito pode bastar uma simples insinuação, por palavras ou gestos, ainda que feita por forma incidental, desde que tenha virtualidade para poder desencadear a comissão de uma acção criminosa determinada».
b) Por sua vez, na Parte Especial – Tomo II, do Comentário Conimbricense do Código Penal (…), em anotação ao art. 297.º do mesmo Código (instigação pública a um crime), da autoria de Helena Moniz (págs. 1138 a 1147), refere-se, entre outras considerações:
«- Para que o tipo esteja preenchido, basta que o comportamento do agente provoque uma resolução de uma prática criminosa, sendo irrelevante que esta apenas venha a concretizar-se numa tentativa impossível.
- Não é necessário que o agente invoque expressamente o nomen iuris do facto criminoso, basta que a sua descrição corresponda a um tipo de crime previsto na lei (assim, ANTOLISEI II 223). Deve, no entanto, estar previsto na lei como crime, no momento da instigação (neste sentido, DELPINO, Diritto Penale – Parte Speciale 335).
Exige-se uma actuação dolosa do agente, bastando, no entanto, o dolo eventual. O dolo deve abranger não só as modalidades possíveis de conduta que a provocação pode originar como também a concretização destas, enquanto ilícito típico – sendo certo que a avaliação da ilicitude dever ser realizada segundo o critério de um leigo (neste sentido, S/S/Eser § 111 16)».
c) Tratando-se de um crime de perigo abstracto, o mesmo consuma-se independentemente de qualquer resolução ou acção, por parte daqueles a quem se dirige. Basta a conduta idónea a provocar uma reacção, de modo a poder ser afectada a paz pública ou os bens jurídicos que a norma pretende proteger.
7. A douta sentença recorrida, de fls. 1011 a 1021, observa todos os requisitos, no plano da fundamentação jurídico-penal, inexistindo motivo ou razão que justifique modificabilidade do seu conteúdo, quer quanto à apreciação da prova produzida, quer quanto à subsunção jurídica, fundamentação e correcção da aplicação da Lei, no tocante à medida da pena.
8. Finalmente, porque quanto às restantes questões suscitadas pelo arguido-recorrente, a resposta que o Exm.º Procurador da República, na 1.ª Instância, apresentou, a fls. 1270 a 1278, é correcta e elucidativa, no sentido de demonstrar a improcedência do recurso, nela definindo, portanto, posição que genericamente acompanhamos, de manutenção integral da douta sentença condenatória, somos de parecer que o recurso não merece provimento».
*
7. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, o recorrente exerceu o seu direito de resposta, reeditando, em síntese, os fundamentos da motivação dos recursos.
*
8. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

*

II. Fundamentação:

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto dos recursos:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, resumem-se ao seguinte quadro as questões de que cumpre conhecer:
A) Recurso intercalar interposto do despacho de fls. 928/929:

- Falta de fundamentação do despacho recorrido;

- Se o despacho recorrido violou os limites legais definidos no artigo 340.º do Código de Processo Penal, assim como o princípio da necessidade na mesma norma implícito;

- Se a interpretação conferida pelo julgador do tribunal de 1.ª instância ao artigo 340.º do CPP é violador do disposto nos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 32.º do Constituição da República Portuguesa.
B) Recurso intercalar interposto do despacho de fls. 942/943:

- Falta de fundamentação do despacho recorrido;

- Se o despacho recorrido violou o disposto artigo 20.º, n.ºs 1 a 4, bem como o disposto  no artigo 32.º, n.ºs 1, 5 e 7, ambos da Constituição da República Portuguesa, e o n.º 1 do artigo 340.º do CPP.
C) Recurso interposto da sentença:

- Nulidade da sentença [artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal], por violação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 do mesmo diploma, e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;

- Alterabilidade da matéria de facto;

- Contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova;

- Verificação do crime de instigação pública a um crime, p. e p. no artigo 297.º, n.º 1, do Código Penal;

- Violação, na sentença recorrida, dos princípios legais e constitucionais da legalidade e tipicidade (artigos 1.º, n.ºs 1 e 2.º, n.º 1, do Código Penal, e 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa);

- Se a sentença recorrida, para além do referido artigo 29.º, n.º 1, da CRP, violou também quer os artigos 32.º, n.ºs 1 e 37.º, n.º 1, do mesmo diploma, quer o artigo 10.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo, por conseguinte, ilegal e inconstitucional.


*

2. Elementos relevantes ao conhecimento dos recursos intercalares:

A) Na sessão de julgamento de 21 de Maio de 2009, dada a palavra ao Sr. Procurador da República, pelo mesmo foi dito:

«(…) resulta de todo evidente para qualquer jurista que o crime que vem imputado ao arguido é um crime de perigo abstracto, que tutela a paz pública, aqui incluída a integridade física e o sentimento de segurança dos cidadãos visados.

Como crime de perigo abstracto que é a lei tutela aqui antecipadamente todos os bens jurídicos que sejam colocados com perigo com a conduta do agente, o que significa que o crime se verifica mesmo que o incitamento à violência não produza qualquer efeito, já que é a lei que presume o perigo decorrente desse incitamento.

Dito de outro modo, basta que objectivamente das palavras proferidas se extraia o sentido do incitamento à prática do crime para que o mesmo se tenha verificado.

Na anterior sessão de julgamento, todavia, a quase totalidade das testemunhas arroladas pelo arguido esforçou-se por demonstrar que as declarações pelo mesmo proferidas e aqui em causa não podiam ser, nem foram, idóneas a convencer à prática de crime quem quer que fosse que as tivesse ouvido.

Ora, para além de ser óbvio que esses depoimentos contrariam o próprio senso comum, foram nos últimos dias reproduzidos por alguns órgãos de comunicação social declarações de um funcionário da comissão de coordenação da região centro, N..., que assegura que na sequência das declarações do arguido os YY... se vieram a confrontar na sua actuação com diversos problemas com populações de freguesias dos concelhos de Z..., W....e K...., sendo até necessário solicitar o auxílio da GNR para os proteger.

Sem embargo do que ficou dito, os efeitos/consequências das declarações do arguido aqui em causa não deixam de poder/dever ser valorados, em caso de condenação, na escolha e determinação da medida da pena a ser-lhe aplicada.

Atento o exposto, requer-se:

a) a junção aos autos do recorte da página local do Jornal...., ed. de 18/05/2009, referenciando as declarações acima referidas;

b) que ao abrigo do disposto no art. 340.º, do C. P. Penal, vista a sua essencialidade para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, se requisite à comissão de coordenação da região centro a notificação para comparecerem neste Tribunal, a fim de prestarem declarações em próxima sessão de julgamento nestes autos, sobre a matéria acima referida, os seguintes funcionários:

- N…;

- C...;

- J....

Os dois últimos funcionários foram apontados na última sessão de julgamento pela testemunha L… como tendo sido os que autuaram a Junta de freguesia de S... na situação descrita na acusação e podem, portanto, também informar ou esclarecer o Tribunal do impacto resultante das declarações aqui em causa».

B) O arguido-recorrente opôs-se ao requerido nos seguintes termos:

«1) O arguido e o seu mandatário na resposta que vão oferecer procuraram ser objectivos, não formulando juízos de valor ou opinativos e tão pouco antecipar alegações.

2) O arguido e o seu mandatário, como não pode deixar de ser, entendem que a realização de uma qualquer audiência de julgamento não se pode nem deve (estamos num Estado de Direito Democrático) subordinar a notícia/recados elaborados a partir do órgão de comunicação social, que mais não visa do que criar à volta do presente caso uma “telenovela mediática”.

3) O requerimento acabado de formular carece, em absoluto, de qualquer espécie de fundamentação legal, o que até resulta de parte da “fundamentação invocada”.

Vejamos: é ao Ministério Público que, em fase de Inquérito (art. 262.º, do C. P. Penal) incumbe a investigação penal. Nesta fase processual, podendo tê-lo feito, o Ministério Público não cuidou de ouvir uma só pessoa que desempenhasse as funções de vigilante da natureza.

No requerimento de abertura de instrução o arguido refere-se expressamente a toda esta matéria, sendo que, no âmbito da prova testemunhal então produzida, as declarações prestadas pela testemunha L... foram idênticas/iguais às prestadas agora em audiência de julgamento; e, apesar de desde aí conhecer o conteúdo de tais declarações, o Ministério Público, podendo tê-lo feito, não arrolou qualquer Vigilante da Natureza como testemunha.

Do mesmo modo, na sessão inicial deste julgamento, após as declarações da mesma testemunha L..., o Ministério Público, podendo tê-lo formalmente feito, voltou a não pedir a inquirição de mais uma só testemunha.

Só agora, decorrido todo este tempo e todas as citadas fases processuais, vem o Ministério Público requerer a inquirição de novas testemunhas.

Note-se que, como demonstrado e documentado nos autos, o Ministério Público, em face das declarações da testemunha L..., não foi confrontado com “novos factos” ou com factos cuja existência desconhecia.

Bem pelo contrário.

Face a este circunstancialismo de facto, resulta evidente que o Ministério Público não pode invocar qualquer “necessidade de descoberta da verdade material”, pois a verdade é que no requerimento acabado de formular não constam verdadeiros factos que preencham a previsão do art. 340.º, do C. P. Penal.

Acresce que, como é do conhecimento de qualquer jurista, como muito bem o Exm.º Sr.º Procurador fez questão de frisar, o eventual depoimento de pessoas que se pretendam arrolar como novas testemunhas é absolutamente irrelevante e inócuo para a prova de factos integradores do tipo de crime pelo qual vem o arguido acusado, o qual, saliente-se e repita-se não é um “crime de resultado”.

A não se considerar assim estar-se-ia naturalmente a violar tanto o espírito e a letra do próprio art. 340.º, do C. P. Penal, sendo certo e inequívoco, além do mais, que tal interpretação deste artigo no sentido incíto no requerimento respondido viola o disposto no art. 32.º da Constituição da República.

Neste sentido, aliás, é abundante a jurisprudência: veja-se, a propósito o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/Março1997, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/Maio de 1998, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/Julho de 1993, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/Dezembro de 2008 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/Junho de 2002. Todos eles podem ser consultados nos locais próprios na Internet.

O que acabou de ser dito vale igualmente para a requerida junção do recorte jornalístico que, como é evidente, em circusntância alguma, poderá valer como meio de prova.

Não se infira do que acabou de ser dito que o arguido receia o que quer que seja, nomeadamente os hipotéticos depoimentos pretendidos pelo Ministério Público. O arguido sempre pugnou pela verdade, pela verdade material e processual e desde o início que nada escondeu ao Tribunal; o que o arguido contudo pretende, muito simplesmente, é o respeito pelas regras legais e constitucionais, materiais e processuais.

Em face do exposto, conclui o arguido pelo necessário indeferimento do acabado de requerer».

C) Foi então proferido o despacho recorrido, do seguinte teor:

«No que ao requerimento formulado pelo Exm.º Procurador da República diz respeito certo é que, como decorre dos documentos juntos, tal notícia foi publicada na imprensa em data posterior à ocorrência da última sessão de julgamento, ou seja, o Ministério Público só dela teve conhecimento já estando a decorrer a presente audiência de julgamento.

Não obstante o tipo legal de crime imputado ao arguido ser um crime de perigo abstracto, certo é que eventuais consequências das expressões eventualmente produzidas poderão e deverão ser tidas em conta pelo Tribunal em sede de escolha e determinação da medida da pena, tal como decorre de lição de doutrina sobre tal matéria. E porque o Tribunal entende que o fim último em processo penal é a descoberta da verdade material e não a manutenção de uma qualquer “mentira processual”, sempre entendeu facultar aos intervenientes processuais o direito de, ao abrigo do art. 340.º, do C. P. Penal, requererem as provas que se lhes afigurem necessárias à descoberta daquela verdade material, já que entendemos tal norma como norma que a isso impõe o próprio Tribunal.--

Assim, e uma vez que quer a junção do documentos, quer a requerida inquirição das testemunhas poderão vir a revelar interesse para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, o Tribunal entende deferir o requerido pelo Ministério Público admitindo a junção aos autos dos documentos em questão e proceder à audição dos indicados cidadãos no sentido de vir a averiguar da veracidade dos factos que em tal notícia se dá conta, pelo que se determina que tais cidadãos sejam requisitados ao organismo público em que prestam serviço, a fim de virem a ser ouvidos em próxima sessão de julgamento».

D) No decurso da sessão de julgamento do dia 28 de Maio de 2009, veio o arguido requerer o que, de seguida, na parte relevante, se passa a transcrever:

«No passado dia 21/05, aquando da segunda sessão deste julgamento [...], cerca das 11 horas, o Sr. Procurador ditou para a acta um requerimento solicitando a audição, como testemunhas, de pessoas que exercem as funções de YY... – requerimento que veio a ser deferido.

Foi a primeira vez, durante o julgamento, que o Sr. Procurador aludiu a tais inquirições, nada fazendo supor até então que o fizesse, uma vez que, manifestamente, as testemunhas em causa não têm conhecimento de qualquer facto relevante para o preenchimento – ou não preenchimento – do tipo de crime. Aliás sabendo necessariamente da sua existência, o Ministério Público não procedeu à inquirição dessas testemunhas a seu tempo no inquérito.

Pelo menos no noticiário das 09.30 horas e quase certamente também no noticiário das 8.30 horas de uma emissora de rádio local, a Rádio ......, foi  noticiado que “o Ministério Público também admitia poder chamar os YY...…” – ou seja, e como se alcança do teor da notícia, foi imputada a alguém do Ministério Público com intervenção - ou possibilidade de intervenção -, neste julgamento, a decisão de inquirir alguns YY..., antes mesmo de ao Tribunal ter sido dito o que quer que fosse.

(…)

Tendo em consideração os factos expostos, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 32.º, n.º 1, da Constituição, e 340.º do C.P.Penal:

a) Pela natureza das coisas, e desde logo, pela natureza das funções políticas exercidas pelo arguido, os actos que decorrem do presente julgamento são contra ele utilizados noutra sede e consequentemente aproveitados para fins que extravasam os do presente processo “designadamente fins políticos”;

- No caso concreto tal tem vindo a acontecer;

- Este aproveitamento político do processo prejudica a posição do exponente, enquanto pessoa que é arguido nestes autos. É portanto legítimo ao arguido levar ao conhecimento do Tribunal factos que, resultando do processo e do seu decurso, o prejudicam e fragilizam enquanto cidadão pelo simples facto de ser arguido;

- Por esses motivos requerer-se, no estrito cumprimento dos direitos de defesa do arguido, a junção de um CD contendo a gravação do referido noticiário produzido pela “Rádio ......” muito antes do início da sessão – e logo, antes do referenciado requerimento do Ministério Público».

E) Em resposta, o Sr. Procurador da República opôs-se ao requerido nos termos infra transcritos:

«Quanto à insinuação claramente implícita no requerimento do defensor do arguido de que o Ministério Público, na pessoa do Procurador da República aqui presente, prestou qualquer informação a qualquer órgão de comunicação social “admitindo” chamar a depor os YY..., é, obviamente, ao defensor do arguido que competirá provar a insinuação;

Aliás (…), aquando da inquirição do Engenheiro L…, o Ministério Público (…) solicitou a essa testemunha  identificação dos YY... que tiveram intervenção no caso da autuação da Junta de Freguesia de S....

(…) Alguma perspicácia faria perceber que ao fazer essa pergunta o Ministério Público admitia chamar a depor os ditos YY....

(…) Para o julgamento do presente caso é absolutamente irrelevante a notícia em causa, pelo que a junção desse CD não deve ser admitida».

F) Seguidamente, foi proferido o despacho sob recurso, que, no segmento pertinente, se reconduz ao seguinte:

«Relativamente ao demais requerido e no que toca à junção do CD, entendemos ser tal diligência de indeferir, já que a junção do mesmo e seu conteúdo são perfeitamente inócuos e inúteis à boa decisão da causa».


*

3. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 26 de Junho de 2006, no ......, em Z..., realizou-se a terceira sessão ordinária da XX... de Z..., presidida pelo Senhor … e secretariada pelos Senhores…, como primeiro e segundo secretários, respectivamente;

2. Estas sessões são públicas, ou seja, são abertas ao público, podendo a elas assistir qualquer cidadão;

3. Encontravam-se presentes nesta Assembleia 65 dos seus 69 membros, entre os quais os 34 presidentes das juntas de freguesia do concelho de Z... e, ainda, o ora arguido, Presidente…, alguns munícipes e alguns jornalistas;

4. Entre outros, usou da palavra nessa Assembleia o presidente da Junta de Freguesia de S…,  que criticou a actuação dos “funcionários do Ministério do Ambiente (conhecidos por YY...)” que autuaram essa Junta em 27/05/2004 por contra-ordenação ambiental – porque nas margens e no leito do Ribeiro de ......, em zona afecta ao domínio público hídrico, e sem qualquer licença dos serviços da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do ......, a Junta efectuou trabalhos de colocação de manilhas no caminho, onde a linha de água passava à superfície -, contrapondo o “excesso de zelo e de celeridade” por eles demonstrado nesse caso à sua passividade noutros casos em que os infractores das regras de protecção ambiental eram particulares;

5. A dado momento, usando da palavra para dar resposta a algumas das questões até então colocadas, o arguido, dirigindo-se aos presentes, e, designadamente ao referido presidente da Junta de Freguesia de S…, disse, em voz alta e em tom sério, perante todos os presentes nessa Assembleia: «(…). Sobre a questão – é outro caso infeliz, temos que o relatar – que o Senhor Presidente da Junta de S… aqui trouxe, de facto não se percebe. Olhe, há-de fazer um inquérito na sua freguesia, podia devolver-me para eu fazer um inquérito no concelho, quantas pessoas é que conhecem estes YY...? E perguntar-lhes o que é que eles fazem. Para além de andarem a multar as Juntas por falta de manilhas – é o segundo ou terceiro caso – são as populações a reclamarem manilhas nas linhas de água, depois vêm os senhores YY... multar as Juntas de Freguesia. Arranjem lá um grupo, corram-nos à pedrada. Sério. Nós queremos gente que vá ajudar as freguesias, não queremos gente que obstaculize o desenvolvimento. Isto não é nada. Ou então que façam uma outra coisa, – eu estou a medir muito bem aquilo que estou a dizer – que tenham a dignidade de primeiro avisar o Senhor Presidente da Junta, porque na maioria dos casos aparecem a multar a Junta de Freguesia e nem sequer têm respeito por quem foi eleito. Isto é perfeitamente inacreditável e eu deixo aqui também o meu veemente desagrado por mais esta situação. Até porque não é a única, foi contado pelo Senhor Presidente, foi contado pelo Senhor D…, já tinha sido contado pelo Senhor Presidente de Junta de F…, já tinha sido contado pelo Senhor Presidente de Junta do C…, eu sei lá. Daqui a pouco são todos os de Junta multados. Isto é um árbitro pior do que ontem o que arbitrou a Holanda/Portugal. Portanto se é para cartões amarelos nós também os mostramos. (…)» [negrito na Acta da XX...];

6. O arguido bem sabia que se encontrava numa reunião pública, acessível a qualquer cidadão que quisesse assistir à mesma, e que ao proferir tais expressões estava a apelar à intimidação e à agressão física à pedrada dos YY... que, dali em diante, no legítimo exercício das suas funções, se propusessem autuar as juntas de freguesia do concelho de Z... por infracções ambientais, tendo perfeita noção que a actuação a que apelava era adequada – e era isso que pretendia alcançar – a impedi-los de exercer tais funções;

7. Sabia também que os YY... eram funcionários do Ministério das Cidades, Administração Local, Habitação e Desenvolvimento Regional e que os factos a cuja prática assim incitava integravam ilícitos tipificados pela lei penal como crimes – o crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo artigo 143.º/1 e 146.º do Código Penal e o crime de resistência e coacção sobre funcionário previsto e punido pelo artigo 347.º do Código Penal;

8. Tinha consciência que alguns dos presentes naquela reunião poderiam aderir ou levar à prática o seu incitamento, intimidando ou molestando fisicamente à pedrada os referidos YY... e dessa forma impedindo o cabal desempenho por estes das funções que legalmente lhes são cometidas;

9. Agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

10. O arguido é primário;

11. É economista;

12. É Presidente…, há vários mandados sucessivos;

13. É Presidente…;

14. É tido como pessoa íntegra e conceituada, a nível local, nacional e internacional;

15. É pessoa apaziguadora de divergências existentes;

16. Aufere mensalmente a quantia de € 1.000, na sua qualidade de Presidente …;

17. Aufere mensalmente a quantia de € 2.500, de pensão de aposentação;

18. É casado, a esposa é funcionária pública;

19. Tem encargos mensais na ordem dos € 1.600, referentes a prestações bancárias;

20. Tem um filho maior, de 27 anos, a cargo.


*

4. Não existindo factos não provados, relativamente à motivação da decisão de facto ficou consignado:

A convicção do Tribunal para considerar provados os factos acima referidos resultou:

a) Do teor do C.R.C. do arguido, junto aos autos a fls. 846, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;

b) Do teor da Certidão da Acta da Sessão Ordinária da XX... de Z..., realizada no dia 26 de Junho de 2006, junta a fls. 43 a 72 vs.º, na qual a intervenção do aqui arguido – na parte que diz respeito ao ilícito criminal – se encontra exarada a fls. 62 a 62 vs.º, bem como do “protesto” formulado pela testemunha Dr. R..., àquela parte da intervenção do aqui arguido, a fls. 62 vs.º, bem como da “resposta” do aqui arguido, a fls. 63, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa. De tal certidão resultam inequivocamente provadas as palavras e expressão proferidas e usadas pelo arguido, na sessão ordinária e pública daquele órgão autárquico, visando os “Fiscais da Natureza” que “acoimaram” várias juntas de freguesia, “(…)Arranjem lá um grupo, corram-nos à pedrada. Sério. Nós queremos gente que vá ajudar as freguesias, não queremos gente que obstaculize o desenvolvimento. Isto não é nada. Ou então que façam uma outra coisa, – eu estou a medir muito bem aquilo que estou a dizer (…)”, donde resulta que as mesmas foram proferidas em reunião pública, são as mesmas, por si próprias e no contexto em que foram proferidas, passíveis de provocar ou instigar a prática de crimes que integram ilícitos tipificados pela lei penal como crimes – o crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo artigo 143.º/1 e 146.º do Código Penal e o crime de resistência e coacção sobre funcionário previsto e punido pelo artigo 347.º do Código Penal, tendo o arguido agido dolosamente, a título de dolo directo “(…) eu estou a medir muito bem aquilo que estou a dizer (…)”;

c) Da audição, em audiência de julgamento, de uma das cassetes áudio, na qual se encontram gravadas todas as intervenções proferidas naquela sessão da XX... de Z..., solicitadas oficiosamente pelo Tribunal à XX... de Z... e por esta remetidas, a título devolutivo, a este Tribunal, mais exactamente das intervenções referidas em b), não tendo sido postas em causa as declarações aí gravadas, proferidas pelo aqui arguido e pela testemunha Dr. R...;

d) Das declarações do arguido, o qual confirmou ter efectivamente proferido as declarações transcritas na acta e, bem assim, nos despachos de acusação e pronúncia, referindo reconhecer que se fosse hoje não teria utilizado as palavras e expressão que então proferiu, embora entenda que com a sua prolação não cometeu qualquer ilícito criminal, justificando que proferiu aquelas palavras “em sentido figurado”, todavia, não logrou justificar qual o sentido figurado que pudesse ser atribuído a tais palavras e expressão. Fundou ainda o Tribunal a sua convicção nas declarações do arguido, relativamente à sua situação profissional, social, familiar e económica;

e) Do depoimento da testemunha Presidente da Junta de Freguesia de S…, o qual referiu que a sua intervenção naquela sessão da XX... tinha a ver com um problema que se vinha arrastando, na sua e em outras freguesias e que consistia no facto de as Juntas serem pressionadas pelas populações para fazerem determinadas obras necessárias ao bem estar das populações, designadamente limpeza de margens de linhas de água, serem sensíveis a tais argumentos e fazerem obras, sendo depois condenadas em multas por funcionários do Ministério do Ambiente, tendo abordado uma situação ligada à sua freguesia, que veio a ser condenada administrativamente, sendo tal decisão confirmada judicialmente, por decisão transitada em julgado, tendo acrescentado que os YY... do Ministério do Ambiente, na sua actuação com as Juntas de Freguesia, denotam excesso de zelo e celeridade, o que não sucede com os particulares. Referiu que entendeu as palavras do arguido e a expressão em questão como sendo proferida em “sentido figurado”, que para si significava “mandá-los (aos YY...) pregar para outra freguesia”, interpretação que não tem qualquer apoio na expressão proferida pelo arguido…;

f) Do depoimento da testemunha R..., Ilustre Advogado nesta cidade, líder do Grupo Parlamentar do Partido …na XX... de Z..., que confirmou o seu “protesto”, naquela sessão da XX... de Z..., na sequência das palavras e expressões proferidas pelo aqui arguido, na sua qualidade de Presidente da …, o qual referiu que então tais palavras suscitaram da sua parte um reparo, no sentido de que “não aceitamos aquele tipo de actuação e não nos solidarizamos com tais palavras”, as quais achou “despropositadas”, denotando “excesso de linguagem”, “que faz parte da luta política, mas excessivo”. Mais referiu que entendeu tais palavras como “um ataque aos serviços, mas não aos agentes no terreno”, tendo, todavia, admitido que “alguém pudesse tomar à letra” tais palavras. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;------

g) Dos depoimentos das testemunhas de defesa  …, jurista e Presidente da Câmara …, e …, Presidente da Câmara …, que conhecem o arguido das funções institucionais que o mesmo desempenha, como Presidente da …e como Presidente da …, com quem reúnem e mantêm contactos regulares. Realçaram as qualidades do arguido, referindo ser pessoa cordial no relacionamento com os seus pares, o Governo e os demais órgãos de soberania com quem se mantém relacionamento institucional. Mais referiam o seu “fino trato” e ser uma pessoa com capacidade “para estabelecer pontes” na resolução de divergências. É tido como um exemplo de autarca, pessoa íntegra na defesa dos interesses dos munícipes e das autarquias e com uma postura isenta. No que às palavras proferidas pelo arguido diz respeito, o 1.º referiu que as mesmas traduzem o seu “direito à indignação”, por uma actuação errada dos YY..., enquanto que o 2.º referiu que aquilo porque o arguido se encontra a responder em julgamento não é compaginável com a ideia que tem do arguido, entendendo que as palavras teriam sido proferidas num “momento de maior emoção”. Depuseram de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;

h) Do depoimento da testemunha …, engenheiro civil e Secretário-Geral …, há 23 anos, que conhece o arguido desde os seus tempos de autarca e agora de autarca e Presidente daquela associação, o qual referiu ter tido conhecimento das palavras pela comunicação social. Ficou espantado por as mesmas terem dado origem ao presente processo-crime contra o arguido, acrescentando que tais palavras e do género são utilizadas com frequência e que “ninguém as interpreta como um incentivo à violência”. Mais referiu que o arguido é conhecido no âmbito daquela associação como sendo uma pessoa com espírito conciliador natural, sendo que graças a esse seu espírito as deliberações daquela associação são sempre tomadas por unanimidade. Depôs de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;

i) Dos depoimentos das testemunhas …., todos Presidentes de Juntas de Freguesia deste concelho de Z..., os quais estiveram presentes na citada XX... de Z..., na qual foram proferidas pelo arguido as palavras e expressão em causa nestes autos, os quais as ouviram, justificando-as que foram proferidas em “sentido figurado”, sentido esse que não lograram esclarecer, por díspares, tendo um deles mesmo referido que o “sentido figurado” era um apelo ao diálogo…!?. Fundou ainda o tribunal a sua convicção nestes depoimentos, relativamente à boa abonação ao arguido;

j) Do depoimento da testemunha L…, funcionário da administração pública, exercendo funções na …., na dependência da qual actuam os YY..., que referiu que conhece o arguido há longos anos, tendo-o como uma “pessoa natural, amigo dos amigos e que tem feito muito por Z...”. Teve conhecimento das palavras pela comunicação social. Mais referiu que como responsável pelos YY... em 14 concelhos nada soube de anómalo que lhes tenha sucedido, na sequência das palavras do arguido, as quais não provocaram nenhuma preocupação aos vigilantes, tendo-se trabalhado normalmente. Sucede que esta versão não foi confirmada pelos vigilantes ouvidos a requerimento do Ministério Público, tal como infra se referirá;

k) Do depoimento da testemunha …, aposentado da função pública, colega de curso do arguido em Coimbra, o qual abonou o seu comportamento. Mais referiu entender as palavras do arguido “em sentido figurado”, querendo a mesma significar “sentar-se e conversar com eles”…!? Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;

l) Do depoimento da testemunha …, aposentado, amigo e jornalista, o qual abonou o seu comportamento. Mais referiu entender as palavras do arguido “em sentido figurado” e um “desabafo”. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;

m) Do depoimento da testemunha …, professor, e membro da XX..., amigo do arguido e colega na faculdade, o qual referiu entender as palavras do arguido “em sentido figurado e como figura de estilo”, mas cujo teor não esclareceu, proferida no “calor da assembleia”. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;

n) Do depoimento da testemunha …, vereador da Câmara Municipal de Z..., que conhece o arguido desde há 20 anos, referindo a obra do mesmo pelo concelho todo, que está à vista de todos. Referiu a grande honestidade intelectual do arguido, ter uma acção de grande frontalidade e de muito rigor, sendo um homem de princípios. Entendeu as palavras do arguido como uma “hipérbole ou parábola”, mas cujo conteúdo e alcance não esclareceu. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;

o) Dos depoimentos das testemunhas N…, C… e J…, os quais referiram que após o conhecimento das palavras proferidas pelo arguido ficaram preocupados com as consequências que para os mesmos pudessem advir, designadamente de poderem vir a ser alvo de agressões em acções inspectivas, tendo dessa preocupação dado conhecimento e feito pressão junto do Chefe de Secção,  …, bem como da testemunha L…, sendo que este mal era confrontado saía do local e dizia que “não queria ouvir nada”. Referiram que em acções inspectivas posteriores foram objecto de expressões dirigidas por populares, como “devíamos correr-vos à pedrada. Todavia, nunca colocaram a questão por escrito, embora o então Secretário de Estado tenha tomado uma posição pública sobre a questão. Depuseram de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada.


*

5. Questão prévia traduzida na invocada irrecorribilidade do despacho proferido a fls. 928/929:

Sufragando a posição assumida no Acórdão do STJ de 08/03/2007, no Acórdão da Relação do Porto de 02/07/2008[1] e na doutrina citada na resposta ao recurso[2], entende o Ministério Público que o despacho do Sr. Juiz do Tribunal de 1.ª Instância, proferido na sessão de julgamento do dia 21 de Maio de 2009, que determinou a inquirição em audiência das testemunhas, “YY...”, N…, C… e J…, constitui decisão ordenadora de acto dependente da livre resolução do tribunal, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, sendo, assim, insusceptível de recurso.

Não obstante as dificuldades que a questão suscita, não é esse o nosso entendimento.

Os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário, por oposição aos praticados no exercício de um poder vinculado, são aqueles relativamente aos quais a lei atribui à entidade competente a livre escolha quer da oportunidade da sua prática, quer da solução a dar a certo caso concreto.

Nas palavras de Simas Santos/Leal-Henriques[3], «o poder discricionário, e não jurisdicional, insere-se na permissão conferida pela lei ao juiz para seleccionar uma de duas ou mais alternativas de opção postas ao seu prudente arbítrio, tendo em atenção o fim geral do processo (v.g. despacho a requisitar documentos ou a mandar proceder a um exame)», sendo preciso que a lei reconheça expressamente ou tacitamente tal poder.

Por seu turno, refere, a propósito, Paulo Pinto de Albuquerque que as decisões judiciais discricionárias no processo são aquelas cujo critério de decisão é a “conveniência”, não sendo dessa índole, de um modo geral, as decisões determinadoras da realização oficiosa de quaisquer diligências probatórias[4].

Em anotação ao artigo 340.º da obra citada, concretizando a referida linha de raciocínio, escreve o mesmo autor:

«Havendo arguição tempestiva da nulidade ou irregularidade da omissão de produção de prova ou interposição tempestiva de recurso do despacho de deferimento ou indeferimento de requerimento de produção de prova, os tribunais de recurso, incluindo o STJ, têm o poder constitucional e o dever funcional de controlar a admissão, a rejeição e a omissão de produção de prova do primeiro tipo (meio de prova “essencial”) e do segundo tipo (meio de prova “necessário”) ….

O tribunal de recurso não tem o poder de controlar a prova do terceiro tipo, pois esta assenta num juízo discricionário (de “conveniência”) … . O legislador restringiu os casos de discricionariedade do tribunal a situações de modelação da produção da prova. Isto é, de definição de certos aspectos concretos do modo específico de produção do meio de prova. (…) A única situação de discricionariedade na admissibilidade do meio de prova, rectius, na produção oficiosa de um meio de prova, é a do artigo 145.º, n.º 1, 2.ª parte (…).

O despacho de apreciação  de requerimento de produção de prova (de prova “essencial” e de prova “necessária”) é recorrível (artigo 399.º) … .

O despacho que incida sobre os aspectos concretos do modo específico de produção do meio ou diligência de prova, especificados nos artigos 86.º, n.º 9, al. a), 138.º, n.º 4, 146.º, n.º 4, 152.º, n.º 1, 156.º, n.ºs 1 e 2, 160.º, n.º 2, 188.º, n.º 5, 345.º, n.º 3, e 354.º, não admite recurso, como o não admite o despacho que decida sobre a “conveniência” nos termos previstos nos artigos 30.º, n.º 1, al. d), 145.º, n.º 1, 2.ª parte, e 334.º, n.º 5».

Nesta ordem de ideias, onde genericamente nos revemos, o despacho recorrido de fls. 928/929, que acolheu, não obstante a oposição do arguido, requerimento do Ministério Público no sentido da prestação de depoimento, em audiência de julgamento, das testemunhas identificadas supra, com o fundamento nuclear de tais depoimentos poderem ser relevantes para a escolha e determinação da medida da pena, não configura, a nosso ver, uma decisão de “conveniência”, discricionária; antes comporta o exercício  vinculativo de um poder legal sobre a oportunidade, necessidade e relevância da prova requerida.

Como assim, a decisão em causa é recorrível, nos termos do artigo 399.º do Código de Processo Penal.


*

6. Do mérito dos recursos intercalares:

6.1. Recurso do despacho de fls. 928/929:
6.1.1. Em consonância com o norma do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, impõe o n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal, a fundamentação dos actos decisórios, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
A consagração do dever legal de fundamentação exige que o despacho ou sentença judicial (cfr. artigo 374.º daquele diploma) contenham o substrato factual e as razões de direito que conduziram a que a declaração decisória do tribunal se formasse em determinado sentido, permitindo, assim, que os sujeitos processuais visados e, no fundo, a própria comunidade, possam apreender o processo lógico ou racional que subjaz à decisão.
Como acentua Marques Ferreira, um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com razões que hão-de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhe subjaz[5].
Porém, no caso dos despachos judiciais, satisfaz a exigência da citada norma a indicação sucinta dos factos e da razão jurídica que serve de fundamento à decisão.
Analisando o despacho recorrido, não se pode dizer que seja prolixo no cumprimento dos referidos requisitos. Mas também temos como evidente que dá a conhecer com suficiência os motivos que conduziram à decisão.
Como pode ser constatado pela sua simples leitura, o despacho em causa menciona as razões determinantes do deferimento do requerido pelo Ministério Público, no sentido da audição das três testemunhas já referidas, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do CPP.
Nele se alude expressamente aos interesses predominantes a assegurar – descoberta da verdade material e boa decisão da causa –, na perspectiva assumida de os depoimentos a prestar pelas testemunhas poderem ser manifestamente relevantes para a determinação da sanção eventualmente a fixar ao arguido.  

*
6.1.2. Na sustentação da sua tese, em substância, argumenta o recorrente, em primeiro lugar, que o artigo 340.º não tem por finalidade permitir aos sujeitos processuais produzir provas não arroladas no momento oportuno ou suprir a inconcludência e eventual insuficiência daquelas; tal dispositivo visa, antes, permitir ao tribunal, quando emerge da discussão da causa (e por isso não pôde resultar logo da acusação) a existência de provas não arroladas na acusação mas relevantes para a decisão a tomar, que determine, oficiosamente ou a requerimento dos sujeitos processuais, a produção de tais provas que não puderam ser requeridas no momento oportuno mas agora se revelam pertinentes e adequada para contribuir, de forma relevante, para criterioso esclarecimento do caso ou do “recorte de vida” submetido à sua apreciação.
E acrescenta: desde o início deste processo e portanto ainda em fase de inquérito que o Ministério Público sabia da existência dos YY..., não se entendendo, deste modo, porque razão, ou razões, as testemunhas em causa não foram arroladas quer no inquérito quer na fase de julgamento. Tudo para concluir que, na fase de julgamento, não surgiu qualquer facto novo ou de que o Sr. Procurador não tivesse tido antes conhecimento e que motivasse, fundamentasse ou legitimasse a invocação do artigo 340.º do CPP (cfr. fls. 7/10 da motivação sricto sensu – fls. 965/968 dos autos).
Vejamos, pois, se é fundada a argumentação do recorrente.
Postula o referido artigo 340.º, no seu n.º 1: «O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa».
E acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo: «Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar em acta».
O citado normativo consagra, para a audiência, o princípio da investigação, isto é, que, em última instância, recai sobre o juiz o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento. Os meios de prova não estão limitados aos indicados pela acusação ou pela defesa.
«Este princípio não se opõe a uma estrutura basicamente acusatória do processo penal, pois que não impede ou limita a apresentação de prova pelo Ministério Público e o seu total aproveitamento pelo tribunal»[6]. «Só significa que – ao contrário do que sucede com o princípio da discussão – a actividade investigatória do tribunal não é limitada pelo material de facto aduzido pelos outros sujeitos processuais, antes se estende autonomamente a todas as circunstâncias que devam reputar-se relevantes»[7].
O referido princípio significa, pois, que o tribunal de julgamento tem o poder-dever de investigar por si o facto, isto é, fazer a sua própria “instrução” sobre o facto, em audiência, atendendo a todos os meios de prova relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, sem estar em absoluto vinculado pelos requerimentos e declarações das partes[8].
O preceito estabelece os critérios respeitantes à admissão da prova relativa, inter alia, à imputação dos factos da acusação e da contestação, à determinação das incriminações e das sanções eventualmente aplicáveis[9].
Em suma, o tribunal deve, oficiosamente ou a requerimento de sujeitos processuais, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Contudo, relativamente aos requerimentos de prova, o princípio tem os limites fixados no n.º 3 do artigo, onde se refere que aqueles são indeferidos se for notório que:
«a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa;
c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória».
No presente caso, o requerimento apresentado pelo Sr. Procurador da República, na sessão de julgamento do dia 21-05-2009, expõe claramente as razões do pedido, consubstanciadas no conhecimento relevado pela testemunha N... a órgãos de comunicação social, num passado recente, sobre a repercussão dos factos imputados ao arguido na actuação dos “YY...”, quando no exercício das suas funções, conhecimento esse extensível às testemunhas C... e J..., as quais, segundo informação obtida da testemunha L…, na sessão de julgamento de 14-05-2009, também poderiam esclarecer o tribunal do impacto na população de algumas juntas de freguesia das declarações prestadas na XX... de Z... do dia 26 de Junho de 2006.
Ponderando a eventualidade daquelas testemunhas conhecerem factos pertinentes à (eventual) escolha e determinação da pena que houvesse de ser imposta ao arguido, o tribunal a quo considerou como úteis e relevantes aqueles meios de prova e, em consequência, determinou a prestação de depoimento, em audiência de julgamento, das mesmas testemunhas.
Como decidiu o STJ, em acórdão (de 26-11-1998; processo n.º 504/98), citado por Maia Gonçalves[10], «o juízo de necessidade ou desnecessidade de diligências de prova não vinculada é tributário da livre apreciação crítica dos julgadores, na própria vivência e imediação do julgamento».
Nestes termos, a procedência do recurso pressupõe a demonstração de que tal juízo é infundado.
Porém, no caso em apreciação, não se evidencia a falta de fundamento do juízo de oportunidade e necessidade formulado pelo tribunal quando deferiu, nos termos expostos supra, o requerimento de produção de novas provas.
Aliás, os depoimentos a prestar pelas testemunhas acima identificadas poderiam revelar, efectivamente, no critério de escolha da pena, em função das necessidades de prevenção geral (cfr. artigo 70.º do CP), e na determinação da medida da pena, mais não seja, tendo em conta a circunstância (exemplificativa) prevista na alínea a) do artigo 71.º do mesmo Código (ponderação das consequências do facto ilícito).
*
 6.1.3. Invoca ainda o recorrente:
- As novas testemunhas cujos depoimentos foram requeridos pelo Sr. Procurador da República não visavam o apuramento de factos que viessem preencher o tipo de crime imputado ao arguido, sendo, por isso, um “meio de prova” irrelevante e supérfluo;
- O despacho recorrido tem implícito um juízo prévio de condenação antecipada do arguido.
Quanto à primeira objecção, citando de novo Paulo Pinto de Albuquerque, reafirma-se o que singelamente já ficou escrito. «O artigo 340.º do CPP vale não apenas para a decisão sobre a admissão da prova relativa ao objecto do processo, isto é, a prova para “a descoberta da verdade”, mas também para a decisão sobre a prova relativa às questões e incidentes que se suscitam na pendência do processo, isto é, a prova para a “boa decisão da causa». Em conformidade, a norma estabelece também os critérios relativos à admissibilidade da prova necessária, nomeadamente, à determinação das sanções.
Passando à segunda questão, de acordo com o disposto no artigo 339.º, n.º 4, do CPP, «Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369».
Assim, devem ser produzidas em julgamento, sob pena de proibição de valoração (cfr. artigo 355.º do CPP), toda e qualquer prova processualmente válida (artigo 125.º do CPP) tendo em vista o estabelecimento da culpabilidade (artigo 368.º) e a determinação da pena e sua medida (artigo 369.º).
Dito isto, nenhum juízo de culpabilidade está contido no despacho recorrido. O tribunal a quo se limitou ao cumprimento escrupuloso das normas processuais penais, tangentes ao apuramento da existência ou inexistência do crime, da punibilidade ou não punibilidade do arguido e, verificado o crime, à escolha e determinação da medida da pena.
*
6.1.4. Alega, por fim, o recorrente, que o despacho recorrido, na forma como interpretou o artigo 340.º do CPP, violou o disposto nos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição.
Também neste conspecto, não assiste razão ao recorrente.
Dispõe aquele normativo constitucional:
«1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
(…)
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».
Por sua vez, estatui o artigo 327.º do CPP:
«1. As questões incidentais sobrevindas no decurso da audiência são decididas pelo tribunal, ouvidos os sujeitos processuais que nelas forem interessados.
2. Os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal».
O princípio do contraditório constitui uma das garantias de defesa e consiste no direito que, quer a acusação, quer a defesa, têm de se pronunciar sobre os actos processuais da iniciativa de cada um deles, por forma a que a audiência e os actos instrutórios revistam a forma de debate ou discussão entre a acusação e a defesa, parificando o mais possível o respectivo posicionamento jurídico ao longo do processo, o qual deve ter uma estrutura basicamente acusatória mitigada pelo princípio da investigação[11].
Escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que o mesmo princípio implica: (a) o dever de “o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão”, (b) o “direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo”; (c) o “direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo”.
Como se tem enfatizado na doutrina e na jurisprudência, o direito a ser ouvido, enquanto direito a dispor de oportunidade processual efectiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões, traduz um dos aspectos fundamentais do direito de defesa.
No plano da prova, o contraditório representa, em termos subjectivos, o direito de o arguido contraditar todos os elementos carreados pela acusação.
À parcialidade objectiva do acusador, opõe-se a parcialidade objectiva do arguido, num diálogo que se desenvolve sob o controlo do juiz.
No caso dos autos, não se antevê, sob qualquer perspectiva, que o quadro decisório do tribunal a quo tenha sido obtido com provas não formadas no contraditório. Antes, o recorrente, bem como os demais sujeitos processuais, exerceu o direito constitucionalmente garantido de se pronunciar sobre todas as questões relevantes e contraditar todos os dados de facto e argumentos jurídicos trazidos ao processo, não havendo o mínimo indício de o tribunal ter privilegiado, sem fundamento, o libelo acusatório em detrimento da tese apresentada pela defesa.
Não existe, pois, violação do princípio do contraditório, tendo sido asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido.
Por outro lado, pelas razões que, em sede própria, ficaram anotadas, também não foi violado o princípio da presunção de inocência do arguido.
*
6.2. Recurso do despacho de fls. 942/943:
6.2.1. Relembrando os factos ocorridos, na sessão de julgamento do dia 28-05-2009, requereu o arguido a junção aos autos de um CD contendo, segundo referiu, a gravação de um noticiário, produzido por uma rádio local, com o seguinte conteúdo: «o Ministério Público também admitiu poder chamar os YY... …».
Na exegese do recorrente, na notícia foi imputada a “alguém do Ministério Público, com intervenção - ou possibilidade de intervenção - no julgamento em curso, a decisão de inquirir alguns YY..., antes mesmo de ao Tribunal ter sido dito o que quer que fosse.
A partir daqui, afirma o recorrente, em suma, que os actos decorrentes do presente julgamento são contra ele utilizados noutra sede e, consequentemente, aproveitados para fins que extravasam os do presente processo, “designadamente para fins políticos”. Esse aproveitamento político do processo prejudica a posição do recorrente, enquanto pessoa que é arguido nestes autos.
Como é bem de ver, outro objectivo não tem o requerimento do arguido senão a demonstração do afirmado, ou seja, que o Ministério Público teria revelado antecipadamente a um órgão de comunicação social a estratégia processual que iria utilizar na referida sessão de julgamento, traduzida na formulação de requerimento tendente à audição pelo tribunal, na qualidade de testemunhas, dos “YY...”.
Porém, há que dizê-lo, não vislumbramos o mínimo indício de que o Tribunal, no âmbito dos presentes autos, tenha actuado à margem de qualquer princípio jurídico e/ou regra de direito destinados a garantir que o objecto do processo possa ser decidida no estrito cumprimento das “formalidades do direito”, segundo uma intenção incondicionada à verdade e à justiça, com respeito pelos princípios norteadores do Estado de Direito Democrático.
E sendo assim, a pretensão do recorrente, no estrito domínio do processo, é manifestamente irrelevante.
Perante a irrelevância patente dessa pretensão, não era exigível maiores considerações no despacho recorrido, satisfazendo a teleologia quer da norma constitucional (artigo 205.º, n.º 1 da CRP) quer do preceito infra-constitucional (artigo 97.º, n.º 5, do CPP), a seca alusão «relativamente ao demais requerido e no que toca à junção do CD, entendemos ser tal diligência de indeferir já que a junção do mesmo e seu conteúdo são perfeitamente inócuos e inúteis à boa decisão da causa».
*
6.2.2. Em função do que se vem de dizer, tendo em conta a estrutura jurídica do artigo 340.º do CPP, em anterior momento já delineada, não existem dúvidas de que o despacho recorrido não violou aquele normativo.
*
6.2.3. Nas conclusões da motivação do recurso, está alegado: «Não se tendo, sequer, pronunciado pela substância do requerimento apresentado pelo recorrente, sendo em consequência meramente conclusivo, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1, 5 e 7, da Constituição».
Ora, como bem se refere na resposta ao recurso apresentada pelo Magistrado do Ministério Público, não são os despachos mas sim as normas ou interpretações normativas que, correspondendo à ratio decidendi da pronúncia judicial de que se recorre, hão-de ser impugnadas, por via da sua alegada desconformidade constitucional, pelo sujeito processual.
E, como já ficou escrito na decisão deste Tribunal da Relação de 04-03-2009, proferido no âmbito destes autos (apenso de recurso em separado), a arguição da inconstitucionalidade de uma norma, impõe ao arguente a indicação, em concreto, da dimensão normativa que foi ferida com a aplicação da norma em questão, ou seja, qual o sentido em que a norma foi interpretada e em que medida a norma interpretada no apontado sentido atinge a dimensão  normativa de um preceito constitucional rector. Não basta dizer, genericamente, que foi violada uma determinada norma constitucional. Exige-se que se indique qual o sentido em que a concreta norma ordinária devia ter sido aplicada para que não tivesse sido violada uma dimensão normativa contida no edifício jurídico-constitucional.
No vertente caso, o arguido apenas invoca violações genéricas destituídas de qualquer dimensão normativa concreta, deixando um espaço de vacuidade que não permite ao tribunal verificar a exacta dimensão normativa em que o arguido estima terem sido violadas as normas constitucionais que indica.
De qualquer modo, não vislumbramos a violação de qualquer um dos preceitos constitucionais postos em evidência pelo recorrente.
Efectivamente, não se vê, a nenhuma luz, que ao arguido tenha sido cerceado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 20.º, n.º 1 da CRP).
Por outro lado, nada permite dizer que esteja violado o direito do arguido a um processo equitativo, não só como processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais (artigo 20.º, n.º 4, da CRP)[12].
Noutra perspectiva ainda, não se reconhece, sob qualquer prisma, que o arguido tenha ficado diminuído nos seus direitos de defesa no âmbito do presente processo ou que lhe tenha sido negado, em qualquer fase processual, o direito ao exercício do contraditório (artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP).
Por fim, a invocação do n.º 7 do artigo 32.º da CRP é destituída de sentido, pois que o preceito se refere ao direito de intervenção do ofendido no processo.
*
7. Do mérito do recurso interposto da sentença:
7.1. Segundo o recorrente, a sentença é nula, nos termos conjugados dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, por nela terem sido omitidos os “factos” invocados na constestação.
Vejamos se assim é.

Produzida toda a prova em audiência de julgamento, na fase de deliberação, deve o tribunal valorar os factos descritos na acusação/pronúncia, juntamente com os que constam da contestação oferecida pelo arguido e daqueles que resultaram da discussão da causa (art. 368.º, n.º 2 do CPP).

E por isso a sentença, na sua fundamentação fáctica, deve conter a “enumeração dos factos provados e não provados” - art. 374.º, n.º 2 , ainda do referido Código -, os quais, em princípio, terão de compreender, a um ou outro título, todos os factos decorrentes daquela tríplice origem.

Essa exigência legal visa assegurar que todos os factos alegados, quer pela acusação, quer pela defesa, e aqueles que resultaram da discussão da causa foram objecto de investigação e apreciação pelo tribunal.

Contudo, a razão de ser do art. 374.º, n.º 2, na vertente que ora importa ter em conta, tem de ser conexionada com o fim do processo penal, ou seja, o julgamento de uma causa, só tendo sentido a aplicação da norma enquanto estiverem em causa factos relevantes para a decisão de mérito.

Assim, como reiteradamente vem acentuando o Supremo Tribunal de Justiça, o cumprimento do art. 374.º, n.º 2, do CPP, não impõe a enumeração dos factos provados e não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena[13], sendo certo que essa irrelevância deve ser vista com rigor, em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e bem assim aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto - seja quanto à imputabilidade, seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, designadamente quanto à espécie e medida da pena -, tendo em conta os termos das referidas posições assumidas pela acusação e pela defesa e os poderes de cognição oficiosa de direito que cabem ao tribunal.

Para além da indicação dos meios de prova, a contestação do arguido contém apenas a seguinte narrativa:

«Como é sabido e consabido o arguido proferiu as declarações que lhe são imputadas em sentido figurado, nem determinado contexto, explicado e demonstrado aquando da produção de prova em fase de instrução e no pleno exercício da sua liberdade de expressão no âmbito das funções políticas que desempenha».

Ou seja, o arguido não descreve factos, nas apenas simples generalizações e abstracções carecidas de conteúdo e sentido concreto.

Como assim, não foi violado o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do CPP, não se verificando, por conseguinte, a arguida nulidade.


*

7.2. Segundo o recorrente, da matéria de facto provada devem ser eliminados os seguintes factos:

- No ponto II-5 da fundamentação, o segmento “…em tom sério”;

- No ponto II-6 da fundamentação, o segmento “…estava a apelar à intimidação e agressão física à pedrada dos YY... que, dali em diante, no legítimo exercício das suas funções, se propusessem autuar as juntas de freguesia do concelho de Z... por infracções ambientais, tendo perfeita noção que a actuação a que apelava era adequada – e era isso que pretendia alcançar – a impedi-los de exercer tais funções”;

- No ponto II-7 da fundamentação, o segmento “…os factos a cuja prática assim incitava integravam ilícitos tipificados na lei penal como crimes – o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º/1 e 146.º do Código Penal e o crime de resistência e coacção sobre funcionários previsto e punido pelo artigo 347.º do Código Penal”;

- Todo o conteúdo do ponto II-8 da fundamentação;

- No ponto II-9 da fundamentação, o segmento “bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

As objecções contrapostas pelo recorrente à matéria de facto provada, prolixamente desenvolvidas na motivação do recurso propriamente dita, resumem-se ao seguinte quadro:

- A declaração descrita no ponto 5. do acervo factológico provado encerra uma declaração não séria, como tal, inapta a integrar o tipo de crime (objectivo e subjectivo) em causa;

- Efectivamente, a correcta apreciação e valoração da prova produzida em julgamento permite concluir, sem nenhuma dúvida, que aquela expressão não era idónea para desencadear em terceiros, quaisquer que fossem, a vontade ou intenção de agredir os YY...;

- A expressão produzida na XX... de Z... do dia 26 de Junho de 2006, do seguinte teor: “corram-nos à pedrada”, não revestiu qualquer vontade, qualquer intenção, por parte do arguido, em que alguém (quem quer que fosse) agredisse com pedras os citados YY.... Daí que as circunstâncias em que a mesma foi proferida permitam inferir não ter existido qualquer intenção e vontade dolosa tendente à concretização de qualquer espécie de acto ilícito sobre as pessoas dos YY....

A base impugnatória do recorrente tem como suporte probatório os seguintes elementos de prova:

- Acta e suporte de gravação da XX... de Z..., na parte em que põem em evidência a reacção dos presentes perante a expressão do arguido e a posterior intervenção do arguido nessa mesma Assembleia;

- Declarações prestadas, em julgamento, pelo arguido;

- Depoimentos, em audiência, das testemunhas R..., L…, N… e J… .

Passando à análise pormenorizada desses elementos probatórios, através da auscultação de uma cassete de gravação dos actos e intervenções ocorridos na sessão da XX... de Z... do dia 26 de Junho de 2006, logo após a prolação, pelo arguido, da expressão concretizada no ponto 5. da matéria de facto provada “arranjem lá um grupo, corram-nos à pedrada”, são audíveis gargalhadas e risos por parte de elementos presentes naquela mesma sessão da XX....

Como inequivocamente se colhe da acta da sessão da XX... de Z... (cópia certificada a fls. 44/72 dos autos) e do referido material magnetofónico, depois de proferidas as expressões objectivamente determinantes da imputação ao arguido do ilícito de incitamento à prática de crime, no uso da palavra, foi dito pelo Sr. Deputado R...:

«Em nome do Grupo Parlamentar do Partido …, gostava de lavrar o meu protesto pela proposta do Senhor Presidente da … de se correrem fiscais do governo à pedrada. Acho que é grave, nem a brincar. Gostava, de qualquer modo, de recordar a Vossa Excelência que a Instituição é dirigida por uma pessoa que é do seu Partido, Senhor Presidente».

Em nova intervenção, retorquiu então o arguido:

«(…) há um dirigente do meu Partido como diz, que não faço ideia quem é, muito mais se justifica esta afirmação, (…) naturalmente (…) de sentido figurado, de os correr à pedrada. Senhor Deputado, se não conhece estas expressões, está bem. Eu estava a dizer, para dar razão ao Senhor Deputado R..., para o Senhor Presidente da Junta arranjar lá uns indivíduos com umas pedras, com umas fisgas, para correrem mesmo as pessoas à pedrada. Senhor Deputado deixe-me agora dizer-lhe uma coisa: depois de não trazer aqui sumo nenhum, depois de não ter nada para pegar na Câmara, o Senhor, também em sentido figurado, foi ver se agarrava nas “pedradas”. É muito pouco, muito pouco. Vamos falar em coisas substantivas. Estava naturalmente a falar em sentido figurado (…)».

Cingindo-nos à prova oralmente prestada na audiência de julgamento, indicada supra, resumem-se ao seguinte quadro as declarações prestadas pelo arguido (sessão do dia 14-05-2009):

- Proferiu as declarações em causa na sequência de questão que lhe foi colocada pelo Sr. Presidente da Junta de Freguesia de S…;

- Na altura, quando deu conta do sentido equívoco das palavras que proferira, disse, logo de imediato, que estava a falar em sentido figurado, correspondendo as expressões utilizadas a uma forma de desagrado e de oposição à acção fiscalizadora dos “YY...” nalgumas freguesias do concelho de Z..., incluindo a de S…;

- As expressões em causa foram dirigidas ao Sr. Presidente da Junta de Freguesia de S….

Por sua vez, sobressaem das declarações da testemunha R... – à data deputado na XX... de Z..., presente na sessão do dia 26 de Junho de 2006 – os seguintes aspectos mais marcantes (sessão de julgamento do dia 14-05-2009):

- As palavras do arguido, referidas no ponto 5. da matéria de facto provada, suscitaram um reparo seu, na qualidade que então detinha de Presidente do Grupo Parlamentar do Partido … a nível Municipal, no sentido de não serem aceitáveis tais expressões, que achou, fundamentalmente, despropositadas e excessivas, admitindo, no entanto, que se tratou de um excesso de linguagem compreendido no labor e nos objectivos próprios da “luta política”;

- Na sua perspectiva, as expressões em causa visavam, politicamente, “quem mandava nos agentes” e não os próprios “YY...” ou, dito de outro modo, “a actuação dos serviços através dos Vigilantes”;

- Não obstante, admite que, numa terra onde há pessoas com diversos níveis de cultura, alguém pudesse “tomar à letra” as palavras proferidas pelo arguido.

Quanto à testemunha L…, as suas declarações correspondem, em geral, ao extracto contido na alínea j) da motivação da decisão de facto da sentença recorrida.

Como bem refere o recorrente, perante elas, o julgador de 1.ª instância não foi particularmente rigoroso na indicação dos motivos de convicção.

Ainda assim, vislumbra-se que, ao nível dos efeitos que as expressões do arguido assumiram nos “YY...”, no confronto das declarações da testemunha L..., de um lado, e das testemunhas N..., C... e J..., de outro, o tribunal a quo conferiu prevalência aos depoimentos das últimas.

Como é referido no quadro dos motivos de convicção expressos pelo juiz a quo, pelas ditas testemunhas (N..., C... e J...) foi dado a conhecer, de forma clara e isenta (assim se refere na sentença, sem que descortinemos o mínimo indício de falta de credibilidade nos depoimentos) -, que, conhecidas as expressões utilizadas pelo arguido, aquelas ficaram preocupadas, com receio de que algum facto negativo se viesse a verificar em futuras acções inspectivas, decorrente das reacções dos munícipes, embora não deixemos de anotar a perspectiva pessoal da testemunha N... perante as declarações do arguido, exposta deste modo: «eu percebo perfeitamente que o Sr. Presidente, quando disse aquilo, se calhar não era essa a intenção».


*

Da globalidade da prova produzida em julgamento, assume relevância decisiva a acta da XX... de Z... do dia 26 de Junho de 2006 e, nela, as declarações do arguido, no contexto, modo e termos em que foram proferidas.

Na sua objectividade, o conteúdo das declarações evidencia, por si só, o tom de seriedade que lhes foi conferido.

Na realidade, não vislumbramos nas mesmas quaisquer resquícios de sarcasmo ou ironia.

O próprio declarante, perante reacções da Assembleia às palavras iniciais (cfr. gravação áudio junta aos autos), logo desfez qualquer dúvida a esse respeito, tendo acrescentado que falava “sério”, medindo muito bem aquilo que estava a dizer.

  A reacção de riso, até em gargalhadas, na Assembleia, não assume, não pode assumir, o significado pretendido pelo recorrente, no sentido de as declarações serem não sérias e inaptas no plano jurídico-criminal, pelas simples razão de não se saber de quem concretamente provieram e, de todo o modo, não ser visível o seu significado.

Certo é que o arguido, depois de ter proferido as expressões em causa, logo de seguida, acabou por referir que as mesmas correspondiam a figuras de retórica, ou, como expressamente ficou dito: o termo “correr à pedrada” deveria ser entendido em “sentido figurado”.

Contudo, esse “esclarecimento”, curiosamente, só surgiu depois da interpelação do Sr. Deputado R..., o qual, falando em nome do Grupo Parlamentar do Partido  … lavrou protesto em relação às expressões que antes tinham sido utilizadas pelo arguido.

E, de todo o modo, sem que este se preocupasse em concretizar o real significado das expressões, se limitando à vaga e imprecisa consideração, destituída de sentido real: “estava naturalmente a falar em sentido figurado”.

Aliás, em audiência de julgamento, não logrou o arguido explicitar convincentemente o verdadeiro sentido que pretendeu emprestar à conjugação das expressões: “arranjem lá um grupo” e “corram-nos à pedrada”, sendo de todo inverosímil, perante a natureza e força intrínseca das palavras, que visasse apenas, como disse, uma tomada de posição dos munícipes junto das autoridades tutelares da acção e fiscalização ambiental.


*

  Vejamos, por fim, as objecções contrapostas pelo recorrente aos factos provados que se prendem com o quadro de intenção do arguido, ou seja, aos segmentos concretizados dos pontos 6., 7. e 9. e à totalidade do ponto 8.º.

Como é sobejamente conhecido, o dolo desdobra-se nos chamados elementos intelectual (representação, previsão ou consciência dos elementos do tipo de crime) e volitivo (vontade dirigida à realização daqueles elementos do tipo – intenção de realizar o facto típico, aceitação como consequência necessária da conduta, conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível, nas 3 modalidades previstas no art. 14.º do Código Penal – directo, necessário e eventual).

A que acresce um elemento emocional que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude[14]. «Elemento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo; uma qualquer posição de atitude ou contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas (…) quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal»[15].

O meio probatório por excelência a que se recorre na prática para determinar a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas, nem tão pouco a confissão auto inculpatória do sujeito activo. As enormes dúvidas que suscita a primeira e a escassa incidência prática da segunda, levam a que a maioria das situações acabe por se resolver através de um terceiro meio de prova: a chamada prova indiciária, ou circunstancial, plasmada nos juízos de inferência. A conclusão é então imposta pela aplicação das regras da experiência – premissa maior – aos factos previamente provados e que constituem a premissa menor[16].

Ou seja, o processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do agente, sé se revela através de um acertado juízo de inferência por parte do juiz, a partir dos elementos objectos que os factos revelam.

Importam, então, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.

As presunções naturais são meios lógicos de apreciação das provas. São simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. São, afinal, o produto das regras da experiência.

«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)»[17].

Contudo, a ilação decorrente de uma presunção natural não pode formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.

Volvendo ao caso concreto, a análise da decisão recorrida permite ver claramente o processo lógico que foi seguido para considerar provados os factos impugnados, ou seja, quais os factos em que a mesma se baseia e as inferências que permitem a respectiva conclusão.

Genericamente, não oferece qualquer reparo o raciocínio que, partindo «Do teor da certidão da acta da sessão ordinária da XX... de Z..., realizada no dia 26 de Junho de 2006, junta a fls. 43 e 72.º v.º», mais concretamente das «palavras e expressões proferidas e usadas pelo arguido, visando os “Fiscais da Natureza” que “acoimaram” várias Juntas de Freguesia», concluiu que tais expressões «foram proferidas em reunião pública», sendo «passíveis de provocar ou instigar a prática de crimes que integram ilícitos tipificados pela lei penal como crimes – o crime de ofensa à integridade física (...) e o crime de resistência e coacção sobre funcionário (…), tendo o arguido agido dolosamente, a título de dolo directo (…)».

Sucintamente, diremos nesta fase (em posterior momento procederemos a maior desenvolvimento dogmático sobre a referida matéria) que o tipo objectivo do crime de instigação pública a um crime, como decorre com clareza do texto-norma do artigo 297.º, n.º 1, do Código Penal, fica preenchido com a instigação (provocação ou incitamento) à prática de um crime determinado em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação de escrito ou outro meio de reprodução técnica, enquanto o tipo subjectivo de ilícito admite qualquer uma das três modalidades de dolo (directo, necessário ou eventual), devendo abranger todos os elementos objectivos do tipo, supra descritos, ou seja, não só as modalidades possíveis de conduta que a provocação pode originar como também a concretização destas enquanto ilícito típico[18].

Vistas de novo as declarações em causa, desta vez no domínio específico do tipo subjectivo de ilícito, a natureza, seriedade e intensidade das expressões, no contexto em que foram proferidas, à luz das regras da experiência comum, são fortemente persuasivas de que o arguido, como está descrito nos pontos 6. 7. e 8., sabia que:

«(…) ao proferir tais expressões estava a apelar à intimidação e à agressão física à pedrada dos YY... que, dali em diante, no legítimo exercício das suas funções, se propusessem autuar as juntas de freguesia do concelho de Z... por infracções ambientais, tendo perfeita noção que a actuação a que apelava era adequada – e era isso que pretendia alcançar – a impedi-los de exercer tais funções;

- (…) os factos a cuja prática assim incitava integravam ilícitos tipificados pela lei penal como crimes – o crime de ofensa à integridade física qualificada (…) e o crime de resistência e coacção sobre funcionário (…);

- Tinha consciência que alguns dos presentes naquela reunião poderiam aderir ou levar à prática o seu incitamento, intimidando ou molestando fisicamente à pedrada os referidos YY... e dessa forma impedindo o cabal desempenho por estes das funções que legalmente lhe são cometidas».


*

Remanesce o segmento final do ponto 9., que levaremos aos factos não provados, por ser nosso entendimento, como adiante e em sede própria explicitaremos, que, no caso concreto, não estão preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de ilícito imputado ao arguido.

*

Há que sindicar agora os factos que o recorrente pretende sejam aditados à matéria de facto provada.

Relativamente ao primeiro ponto («A intervenção do arguido na XX... em que foi proferida a expressão em causa nos autos aconteceu depois de trinta intervenções de outros deputados presentes»), está plenamente demonstrado (cfr. acta da XX..., com cópia certificada a fls. 43/72 do autos)  e afigura-se-nos de alguma relevância para a boa decisão da causa, para melhor se poder contextualizar a parte inicial do ponto 5 do acervo factológico provado.

Quanto ao ponto seguinte (por imperativos de sistematização, seguindo a ordem estabelecida pelo recorrente, este ponto é rotulado como segundo e os demais com o número que sucessivamente lhes couber), valem aqui as considerações já acima feitas, no sentido de não estar minimamente demonstrado por quem e com que finalidade foram dadas as aludidas gargalhadas.

A matéria do 3.º ponto, além de conclusiva, é irrelevante, pelas razões acima enunciadas.

No ponto 4.º («Na audiência o arguido explicou o que no seu entender era o significado da expressão “corram-nos à pedrada»), a afirmada posição subjectiva é de todo em todo inócua, prevalecendo também aqui o juízo de valoração que presidiu a que se tivessem por inconsistentes, no referido domínio, as declarações do arguido.

Cabe ao tribunal proceder à avaliação, objectiva, crítica e ponderada, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, tendo como finalidade a definição da matéria provada e não provada. Daí que, no caso concreto, por si mesmas, sejam impertinentes, para o referido efeito, as qualificações, interpretações e valorações sobre as declarações do arguido efectuadas pelo deputado municipal do Partido  … Sr. Dr. R... (ponto n.º 5).

Irrelevante de todo é também o ponto n.º 6, nada importando saber «se o chefe dos serviços que à data dirigiam os YY... era membro do Partido …, Vereador da oposição no executivo camarário e estava naquela assembleia».

Vista a natureza do crime imputado ao arguido, de perigo abstracto, porquanto à sua consumação basta a probabilidade presumida, juris et de jure, da lesão do bem jurídico tutelado pelo artigo 297.º, n.º 1 do CPP, são destituídos de qualquer relevância os pontos 7.º, 8.º, 9.º e 10.º.

Não deixa, porém, de se registar que, quanto ao ponto 9.º, o recorrente apenas tem em conta o depoimento da testemunha J…, fazendo “letra morta” do depoimento das testemunhas N... e C..., quando referiram a existência de “pressões psicológicas”, mediante a utilização, perante os próprios, de termos de munícipes (“vocês é que deviam ser corridos todos à pedrada”; “devíamos correr-vos à pedrada”) com conteúdo idêntico às expressões proferidas pelo arguido.

Por último, a percepção que a testemunha N... teve sobre o sentido e alcance das palavras do arguido é, em função dos considerandos que já tivemos oportunidade de assinalar, de nenhum valor.

A bem da verdade, sempre se dirá, todavia, que o depoimento da testemunha N... não permite a ilação plasmada no ponto n.º 11. Para tanto, mais não é preciso do que atentar nas concretas palavras da testemunha, em jeito de palpite: «Eu percebo perfeitamente que o Sr. Presidente quando disso aquilo se calhar não era essa a intenção (…)».


*

7.4. Invoca o recorrente, em várias vertentes da motivação da decisão de facto, a verificação dos vícios previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

Há que apreciar se efectivamente assim é.

Dispõe aquele normativo:

«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova».

Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”[19].

Ou seja, qualquer um dos vícios elencados na norma citada tem de existir internamente, dentro da própria sentença ou acórdão.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.

Por seu turno, o erro notório na apreciação da prova é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, devendo também considerar-se verificado o referido vício caso ocorra violação do princípio in dubio pro reo, se for de concluir que o tribunal, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido.

I. Quanto ao vício da al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, invoca o recorrente:

A) Na fundamentação da sentença, no que tange ao preenchimento do tipo subjectivo (dolo) do crime imputado, concretamente na alínea b) [fls. 6 da dita peça processual] valoram-se no mesmo plano duas situações antagónicas e inconciliáveis: a expressão concreta proferida pelo arguido [fls. 62 e 62.º v.º dos autos] e a explicação que para ela o mesmo forneceu [fls. 63 dos autos]. Para efeitos da citada questão, a sentença teria de clarificar o que deveria ser juridicamente relevante: ou a frase proferida, na sua literalidade, ou a expressão que para a mesma se forneceu, pois ambas não se compadecem entre si, uma afasta a outra;

B) Na alínea c) [fls. 7 da sentença] volta-se a valorar, no mesmo plano, todas as afirmações proferidas pelo arguido e já contidas na acta que reduz a escrito as intervenções ocorridas naquela sessão da XX...; no entanto, nesta alínea reforça-se e acentua-se a contradição antes assinalada, pois da gravação áudio (valorada como prova plena) resulta bem audível (em simultâneo com a expressão atribuída ao arguido) uma gargalhada de fundo por parte dos deputados presentes. “Esta gargalhada geral”, simultânea com a frase “corram-nos à pedrada”, só pode significar não ter havido uma só pessoa, naquela assembleia, a “levar a sério” o seu conteúdo estrito, a interpretar aquela frase no seu sentido literal;

C) Nas alíneas d) e e) [fls. 7 e 8 da sentença]: existe uma contradição insanável entre o realçar do facto de o arguido [segundo a sentença] não ter explicado o que entendia por sentido figurado e de seguida dizer-se que a explicação de tal expressão, dada pela testemunha  …“…não tem qualquer apoio na expressão proferida pelo arguido”.

D) Entre as alíneas b), c) e a alínea f) [fls. 6 e 8 da sentença] existe contradição insanável entre a valoração da expressão atribuída ao arguido e a valoração que da mesma expressão fez o Sr. Dr. R... (sendo que, quanto a esta testemunha, a sentença considerou ter deposto com “conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada”. Ora, a referida testemunha considerou tal expressão despropositada e excessiva).

Assim, os factos dados como provados nos pontos 6, 7 e 8 são também inconciliáveis e contraditórios com o depoimento da referida testemunha;

E) Da citada alínea b), alcança-se ter a sentença considerado que a frase proferida pelo arguido visava que fossem atingidos os próprios YY...; do depoimento do Sr. Dr. R... resulta exactamente o contrário, porquanto por este foi declarado, referindo as expressões do arguido: «…faz parte da luta política, embora excessivo. Entendeu tais palavras com “um ataque aos serviços, mas não aos agentes no terreno”»;

F) As testemunhas mencionadas nas alíneas g) e h), diz a sentença: «Depuseram de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada». No entanto, visando o arguido e as expressões em causa, pelas testemunhas foi dito: “pessoa de fino trato”; “pessoa com capacidade para estabelecer pontes”, na resolução de divergências; “pessoa íntegra na defesa dos interesses dos seus munícipes e das autarquias, com uma postura isenta”. “Manifestação do direito à indignação”, foi a explicação dada pela testemunha …. “Aquilo porque o arguido se encontra a responder em julgamento não é compaginável com a ideia que tem do arguido”, foi o mencionado pela testemunha …. “Ficou espantado por” as expressões “terem dado origem ao presente processo crime (…); “ninguém as interpreta como um incentivo à violência”; “o arguido é conhecido (…) como sendo uma pessoa com espírito conciliador natural (…)”.

Estas afirmações têm um significado oposto ao constante das alíneas b) e c); são afirmações de conteúdo não compaginável entre si;

G) São inconciliáveis e contraditórios os facto dos pontos 6, 7 e 8 do acervo factológico provado em relação aos pontos 14 e 15 também dados como provados;

Evidentemente, nenhuma contradição se verifica. A alargada síntese, adrede efectuada, evidencia bem que assim é.

Na aliena b) da motivação da decisão de facto, o julgador do tribunal de 1.ª instância, apesar de referir, nesse contexto, quer as declarações iniciais quer as declarações posteriores do arguido, não deixa porém de explicitar, embora sucintamente, que os motivos da sua convicção, relativamente aos factos demonstrativos do tipo subjectivo de ilícito, radicaram no contexto específico das declarações iniciais e na objectividade e impressividade dos próprios termos utilizados pelo arguido.

Como tal, entendeu o Sr. Juiz, em concordância com essa apreciação valorativa, que a interpretação manifestada pela testemunha  … não tinha o mínimo apoio nas expressões concretas do arguido, em causa neste processo.

Cingindo-nos às declarações da testemunha R..., não obstante terem sido prestadas de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada, revelam, na parte a ter em conta, tão só uma posição subjectivada da própria testemunha, ou seja, um juízo de valor sobre os factos inconsiderados pelo tribunal, em razão das motivos de convicção afirmados na parte inicial da fundamentação.

O mesmo cabe dizer, mutatis mutandis, relativamente ao inconformismo do recorrente expresso na alínea F), onde, de igual modo, só se vislumbra uma apreciação de cariz subjectiva das testemunhas, alicerçada nas qualidades de carácter reconhecidas pelas mesmas ao arguido, qualidades essas que o tribunal teve como demonstradas, como se vê dos pontos 14. e 15. da factualidade provada.

Aliás, em rigor, também neste preciso domínio o recorrente mais não manifesta do que uma acentuada discordância perante a fudamentação da sentença e, no fundo, sobre o acervo factológico dado como provado pelo tribunal a quo. Dito por outras palavras, o que verdadeiramente está posto em causa é apenas o juízo valorativo a que procedeu o tribunal de 1.ª instância quanto aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, que este entende estarem indevidamente julgados.

Dito de outro modo, mediante a inadequada invocação do vício em questão, o verdadeiro desiderato do recorrente é o de fazer prevalecer, perante a prova produzida em audiência, a sua perspectiva pessoal em detrimento da base de convicção assumida pelo julgador.


*

II. À invocação do vício de erro notório está, em suma, subjacente a seguinte argumentação:

A) Violação do princípio in dubio pro reo;

B) Quando as testemunhas caracterizam e definem o arguido e a expressão “corram-nos à pedrada” nos temos supra referidos, e quando a sentença diz que essas testemunhas depuseram de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada, fica-se com a convicção de que as afirmações proferidas pelo arguido e os factos que encerram não foram submetidos a um processo interpretativo baseado numa operação intelectual ou numa qualquer espécie de processo lógico e racional. Antes sofreram e foram objecto de um processo ilógico, arbitrário e contraditório, violador das regras da experiência comum na apreciação da prova.

A violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o tribunal, na dúvida optou por decidir contra o arguido.

O referido princípio é um corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. artigo 18.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14.º, n.º 2, d o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).

Colocado o tribunal de julgamento perante dúvida insanável em matéria de prova, deve aplicar o dito princípio.

Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que o referenciado princípio se afirma.

No caso dos autos, contudo, não existe o mínimo indício de o tribunal a quo ter ficado na dúvida em relação aos pontos de facto postos em destaque pelo recorrente, reapreciados por este tribunal ad quem nos termos supra indicados.

Como assim, não existe non liquet no caso vertente: mostrando-se o tribunal a quo convicto da prova dos factos que deu como provados, não poderia aplicar o princípio in dubio pro reo.

No mais, reafirma-se o que ficou dito a propósito do alegado vício de contradição insanável.

Embora sucintamente, o tribunal explicitou o raciocínio lógico e racional determinante da análise crítica a que procedeu, sem que se vislumbre ofensa das regras da experiência comum.

Também aqui o recorrente questiona sobretudo, não o texto da decisão recorrida, mas sim o modo como o tribunal procedeu à apreciação da prova que foi produzida em audiência de julgamento.

Não se verifica, pois, o alegado vício.


*
7.5. Procedendo-se à modificação da matéria de facto, nos pontos que ficaram expressamente referidos, os factos provados e não provados passam a ser os seguintes:
Factos provados:
- Mantêm-se os factos dos pontos 1. a 8. e 10. a 20.;
- É aditado um novo ponto, sob o n.º 5-A, com a seguinte redacção:
«A intervenção do arguido na XX... em que foram proferidas as expressões descritas (a bold) no ponto n.º 5.  aconteceu depois de trinta intervenções de deputados presentes»
- O ponto n.º 9. fica circunscrito ao seguinte texto:
«Agiu voluntária, livre e conscientemente».

Factos não provados:

«O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei».


*

Na alteração da matéria de facto, nos pontos assinalados, foram determinantes os fundamentos que, casuisticamente, em sede própria, ficaram expostos.

*

7.6. É chegado o momento de indagar se os factos provados consubstanciam a prática pelo arguido do crime p. e p. pelo artigo 297.º, n.º 1, do Código Penal, o que implica a análise prévia dos respectivos tipos objectivo e subjectivo.

Dispõe aquele normativo:

«Quem, em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação de escrito ou outro meio de reprodução técnica, provocar ou incitar à prática de um crime determinado é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».

O texto da citada norma resultou da revisão do Código operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.

Corresponde, com alterações, ao artigo 285.º da versão originária do Código, que por sua vez correspondia, com ligeira diferença, ao artigo 341.º do Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, aprovado por unanimidade na 18.ª sessão da Comissão Revisora, em 27 de Maio do mesmo ano, e inspirado no artigo 483.º do CP de 1886[20].

Concretizando melhor o que já foi referido, não existe consenso sobre o interesse eminentemente tutelado pelo tipo de crime de instigação pública a um crime.

Para a doutrina tradicional, com apoio na integração sistemática do crime na secção do Código Penal relativa aos “crimes contra a paz jurídica”, o tipo em causa visa tutelar a paz interna da comunidade, por si mesmo considerada, através da proibição de actos de incitamento público ao crime potenciadores de um especial perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas[21].

Diversamente, segundo Helena Moniz, «mais que o simples interesse de assegurar a paz pública o que se pretende é assegurar uma tutela antecipada de todos os bens jurídicos que sejam colocados em perigo com a conduta do agente que, publicamente, provoca ou incita à prática de um crime»[22].

Com posição idêntica, refere Pinto de Albuquerque: «Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são os bens jurídicos ameaçados pelo acto de instigação e, acessoriamente, a paz pública»[23].

Como já tivemos oportunidade de frisar, o tipo do artigo 297.º do CP configura um crime de perigo porque o que está em causa não é o dano, mas sim a possibilidade ou a probabilidade de lesão do bem jurídico tutelado; de perigo abstracto, porquanto, no que concerne ao preenchimento típico, não é necessária a demonstração de um nexo causal entre a acção e a situação perigosa que pode, provavelmente, levar à lesão do bem jurídico. À verificação do crime em causa basta a presunção da perigosidade da acção - traduzida em actos de provocação ou de incitamento ao crime -, para o sentimento de paz que a ordem jurídica reclama ou, primacialmente, para os bens jurídicos ameaçados pela instigação, conforme a perspectiva que se tenha do bem jurídico protegido, como ficou referido.

A estrutura normativa do crime do artigo 297.º do CP, ao nível dos seus pressupostos típicos objectivos, exige uma particular instigação (provocação ou incitamento), no sentido de alguém cometer um crime, no âmbito de uma reunião pública (no caso concreto, apenas este meio é relevante), tendo como destinatário pessoa indeterminada.

A provocação ou incitamento dirigida a uma pessoa determinada ou mesmo a um conjunto restrito e definido de pessoas não constitui conduta punida com este tipo legal de crime, podendo configurar, em abstracto, instigação enquanto comparticipação de um crime, em conformidade com o disposto no artigo 26.º do CP. Efectivamente, a instigação enquanto autoria deve ser directa no sentido de o instigador se dirigir a pessoa(s) determinada(s). A actuação do instigador deve determinar de modo expresso a prática de um facto penalmente ilícito preciso e concreto[24].

Na verdade, segundo o disposto no artigo 26.º do CP, à punição da instigação é indispensável a prática de um facto ilícito típico, ou o seu início; nas palavras da lei, é  instigador quem dolosamente determina outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.

Em absoluta concordância com o parecer a fls. 1281/1327 dos autos, elaborado pelo Sr. Professor Figueiredo Dias e pelo Sr. Dr. Nuno Brandão, «o simples facto de o apelo ao crime ter ocorrido num lugar público e perante uma vasta audiência (…) não significa, sem mais, que o tipo de crime de instigação pública a um crime se deva dar como preenchido. Pois uma coisa é o cenário ambiente em que a provocação ou o incitamento ocorrem – v. g., uma reunião pública, para usar a terminologia legal – e coisa, bem diferente, é a pessoa ou o círculo determinado de pessoas a quem a mensagem é efectivamente dirigida. Na realidade, pode bem suceder que, não obstante o incentivo ao crime ter lugar num reunião pública, o seu directo destinatário seja apenas uma de entre muitas pessoas que nesse local se encontrem e escutem as palavras para esse efeito proferidas. Ora, quando assim seja não é realizado o tipo objectivo de ilícito do crime de instigação pública a um crime, mesmo que outras pessoas, que não apenas o seu concreto destinatário, se sintam sugestionadas à prática do crime em causa».

Em sintonia com a definição de Pinto de Albuquerque, «reunião pública é o agrupamento, convocado ou espontâneo, de pelo menos três pessoas, com uma finalidade comum e em lugar público ou privado, mas em qualquer caso aberto a terceiros»[25].

Na situação concreta evidenciada pelos factos provados, as expressões utilizadas pelo arguido ocorrerem no âmbito de uma sessão ordinária da XX... de Z... e, assim, em reunião pública.

Afigura-se-nos, porém, não se poder concluir da matéria de facto provada, mais concretamente do ponto 5. (com diferenças de pormenor, reprodução do ponto 5. da acusação, para a qual a pronúncia remete), que tais expressões foram dirigidas a destinatário(s) indeterminado(s). O cotejo dos diversos pontos de facto e a análise do ponto 5 do acervo factológico provado impõem, a nosso ver, ilação diversa, no sentido de as palavras proferidas pelo arguido se dirigirem concretamente ao Presidente da Junta de Freguesia de S....

Efectivamente, a intervenção do arguido nessa assembleia surgiu na sequência de trinta intervenções de deputados, dando resposta a cada uma das questões pontualmente apresentadas. Daí que a correcta interpretação da primeira do ponto 5., onde é referido “A dado momento, usando da palavra para dar resposta a algumas das questões então colocadas, o arguido, dirigindo-se aos presentes, designadamente ao referido presidente da Junta de Freguesia de S…”, deva ser articulada quer com o concreto tema em causa quer com o próprio conteúdo da intervenção do arguido.

Se se proceder deste modo, aquela intervenção, no segmento relativo à concreta problemática determinante das expressões em causa, correlacionada com o teor específico das palavras proferidas pelo arguido: «Olhe, há-de fazer (…)»; «podia devolver-me»; «Arranjem um grupo e corram-nos à pedrada», em rigor analítico, tem de ser entendida como dirigida a uma pessoa determinada: precisamente o Sr. Presidente da Junta de Freguesia de S….

Em razão de todo o exposto, por não estar preenchido o tipo objectivo do crime de instigação pública impõe-se a absolvição do arguido.


*

8. Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das demais questões que constituem o objecto do recurso interposto da sentença.

*

9. Responsabilidade pelas custas:
Perante a improcedência (total) dos recursos intercalares incumbe ao arguido/recorrente o pagamento das custas (arts. 513.º e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 82.º, n.º 1, e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais).
Tendo em conta a complexidade dos recursos e a condição económica do recorrente, fixa-se em 3 UC a taxa de justiça.

*

III. Dispositivo:
Posto o que precede, os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra acordam em:
A) Negar provimento aos dois recursos intercalares;
B) Conceder provimento ao recurso interposto da decisão final e, revogando a decisão recorrida, absolver o arguido F... da prática do crime de instigação pública a um crime, p. e p. pelo artigo 297.º do Código Penal, que lhe está imputado.
Custas pelo arguido, com 4 UC´s de taxa de justiça.
*
 


[1] Ambos publicados, em texto integral, in www.dgsi.pt.
[2] Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, págs. 791-792, e Venício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 854.
[3] Recursos em Processo Penal, 6.ª Edição, 2007, pág. 37, e Código de Processo Penal Anotado, II volume, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 671.
[4] Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pág. 1001.
[5] In Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 203.
[6] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, Editorial Verbo, 1999, pág. 109.
[7] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª Ed. 1974 reimpressão, Coimbra Editora 2004, pág. 192.
[8] Cfr. acórdão da Relação de Guimarães de 27-04-2009, in www.dgsi.pt.
[9] Paulo Pinto de Albuquerque, idem, pág. 837.
[10] Código de Processo Penal Anotado, 13.ª ed., em anotação ao artigo 340.º.
[11] Cfr. Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra, 2008, pág. 678.
[12] Cfr., v.g., J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, pág. 415.
[13] Por todos, cfr. o Ac. de 07-01-1999, Proc. n.º 1216/98, publicado no Boletim Interno, elaborado pelos Srs. Juízes Assessores, n.º 27.
[14] Cfr. Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 71-72, e Rev. De Ciência Criminal, Ano 2, 1.º, p. 18-19.
[15] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 333.
[16] Ragués i Vallés, El Dolo e su Prueba en Processo Penal, pág. 237.
[17] Cfr., v.g., Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ n.º 112, pág. 190.
[18] Cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 1143.
[19] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 2000, Vol. III, pág. 338/339.
[20] Cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português, anotado e comentado, Livraria Almedina, 1995, pág. 889.
[21] Neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pág. 419.
[22] Idem, pág. 1140/1.
[23] Ibidem, pág. 747.
[24] Neste sentido, salientamos de novo Helena Moniz e Pinto de Albuquerque, obras citadas.
[25] Mesma obra, pág. 648.