Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1744/06.9TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: INFRACÇÃO RODOVIÁRIA
Data do Acordão: 02/14/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 172º, N.º 5 E175º, N.º 4, DO C. DA ESTRADA
Sumário: I- Paga voluntariamente a coima, o arguido não pode questionar a verificação da infracção estradal, apenas podendo ser apreciada a sua gravidade e a sanção acessória aplicável.

II- Não padece de inconstitucionalidade o art.º 175º, n.º 4, do C. da Estrada

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

No recurso de contraordenação nº 1744/06.9TBGRD, do tribunal Judicial da Guarda, o arguido A.... viu confirmada a decisão que o condenou numa coima e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias ao abrigo do disposto nos arts. 24º n.1 do Dec. Reg. n.° 22-A/98 de 1 de Outubro e 138° e 145º n.1 alínea f) do Código da Estrada.

Inconformado com tal decisão interpôs recurso, em cuja motivação formulou as seguintes conclusões:

1° - Interpôs-se o presente recurso por discordarmos do douto despacho recorrido ao considerar totalmente irrelevantes, não os atendendo, o alegado pelo recorrente quanto aos factos integradores da contraordenação que lhe é imputada.

2° - O arguido põe em causa a validade do dito sinal na medida em que nada indica que àquele tenha sido atribuído um número de cadastro pela entidade gestora da via e responsável pela sinalização, que neste caso seria o Município da Guarda, o que implica uma eventual não homologação do sinal de trânsito.

3 ° - E requer, que se ordene aquela entidade, Município da Guarda, que esclareça se o dito sinal, designado pela entidade autuante de "C 11 b proibido virar à esquerda", está ou não conforme o artigo 6° do Código da Estrada e o respectivo regulamento, Decreto Regulamentar na 22-A/98 de 1 de Outubro, que especifica as formas, cores, inscrições e dimensões, bem como os respectivos significados e sistemas de colocação dos sinais de trânsito.

4° - Tal matéria é, aliás, de conhecimento oficioso e, em face da alegação, cumpria ao tribunal a quo ter verificado da validade do sinal, notificando o Município da Guarda para que juntasse aos autos o certificado de homologação do aludido sinal e respectivo documento comprovativo da inscrição em cadastro.

5º - Ou seja, em face do disposto no artigo 175, n.º 4 do Código da Estrada, o tribunal não está dispensado, ainda que o arguido tenha pago voluntariamente a coima, de aferir da regularidade e legalidade dos meios utilizados.

6º - Ao entender como entendeu, o tribunal omitiu uma diligência essencial para a descoberta da verdade material, incorrendo assim a sentença recorrida numa nulidade, que ora expressamente se argúi, nulidade essa constante da alínea d)do n. 2 do artigo 120 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41a do Decreto-Lei n. 433/82, de 27 de Outubro.

7° - Ao não proceder a estas diligências, o tribunal feriu de nulidade a sentença, porque, por um lado, violou os princípios da verdade material e da investigação plasmados no artigo 340 do Código de Processo Penal

8° - O que torna inválido o acto em que se verificar, no caso a decisão condenatória recorrida, pelo que se deve anular a dita decisão e ordenar-se o cumprimento da diligência requerida, que é, reitera-se, essencial para a descoberta da verdade material.

9° - O despacho recorrido viola os artigos 124º e 125º do Código do Processo Penal, pois impede o arguido de demonstrar os factos que pretende ver provados e que sustentariam a sua defesa.

10º - Nos termos do n. 1 artigo 32º da Constituição da República Portuguesa: "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. ", acrescentando-se no seu n. 10: "Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatários, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa. "

11º - Ou seja: é inconstitucional, o que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos, o entendimento do M.mo juiz assim como sempre seria inconstitucional, o que de igual forma se invoca para os devidos e legais efeitos, qualquer dispositivo legal que, a existir, ou atento um tipo de interpretação conduzisse à possibilidade de o M. mo Juiz, atento o seu poder discricionário, pudesse não diligenciar no sentido requerido, essencial para a defesa do arguido e para a descoberta da verdade material, ainda que por estarmos num processo de contraordenação.

O recurso foi admitido

Na contra-motivação apresentada o Procurador - Adjunto considera que o recurso interposto não merece provimento.

Igual posição assumiu nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

Começando por delimitar o âmbito e o objecto do recurso que o mesmo apenas visa o reexame de direito, colocando neste âmbito o problema de saber se paga a coima o arguido pode questionar a verificação da infracção estradal ou apenas pode prosseguir a sua defesa sobre a aplicação da sanção inibitória de condução

Estão provados os seguintes factos:

1.- No dia 11/11/2005, pelas 11h e 20m, no local 232/S. Gab. Manteigas, o recorrente conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, matrícula 46-07-Xl.

2.- Nessas circunstâncias de tempo e lugar o recorrente não deu cumprimento à indicação dada pelo sinal de proibição C11B- proibição de voltar à esquerda.

3.- O recorrente efectuou o pagamento voluntário da coima.

4.- O recorrente tem averbado no seu registo individual de condutor duas contra-ordenações graves cometidas há menos de cinco anos, mais concretamente 27/11/01 e 13/07/04.

Apreciando:

Como resulta dos presentes autos, do teor da decisão recorrida e do próprio requerimento de interposição de recurso apresentado, o requerente procedeu ao pagamento voluntário do montante da coima aplicada.

De acordo com o artigo 172°, n°1 do Código da Estrada, nos casos de contra-ordenações estradais é admissível o pagamento voluntário da coima respectiva, pelo mínimo.

Tal pagamento voluntário da coima, como se disse, efectuado pelo mínimo, determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma — artigo 172º n°5 do Código da Estrada.

O pagamento voluntário, que implicava a aplicação automática da sanção de inibição de conduzir pelo mínimo, caso a infracção fosse punida com essa sanção, não produz agora qualquer efeito em relação a essa mesma sanção, prosseguindo o processo apenas para esse efeito. O pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável – art. 175º n.4 do Código da Estrada.

No caso dos autos, o arguido recorrente pagou voluntariamente a coima (pelo mínimo legal) correspondente à contra-ordenação praticada, pelo que o processo prosseguiu para apreciação da matéria relativa à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.

Concluiu o Srº Juiz recorrido que não pode o tribunal, nestas circunstâncias, aferir da prática ou não da contra-ordenação, pois que o arguido/recorrente, ao pagar a coima pelo mínimo, assume a referida prática. No nosso entender segundo a orientação expressa consagrada na lei.

Como se refere na sentença recorrida é totalmente irrelevante e não pode ser, neste momento, atendido pelo tribunal o alegado pelo recorrente quanto aos factos integradores da contra-ordenação que lhe é imputada.

Se tal fosse admissível, estava encontrada a forma dos infractores pagarem sempre as coimas pelo mínimo legal, bastando para tal que efectuassem o respectivo pagamento voluntário, impugnando depois judicialmente a decisão da autoridade administrativa, pois que mesmo não sendo procedente tal impugnação, o tribunal não poderia alterar o montante da coima por força da proibição da “reformatio in pejus”, plasmada no artigo 72°-A, do RGCO.

Conforme Acórdão da Relação do Porto de 11.03.98, in www.dgsi.pt.jtrp “tendo o arguido pago voluntariamente o mínimo da coima prevista para a contra-ordenação que lhe era imputada, isso significa que se conformou com os factos relativos a tal contra-ordenação. Prosseguindo o processo apenas para aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, o tribunal apenas tinha que enumerar os factos atinentes a essa sanção e já não apreciar a matéria de facto relativa à contra-ordenação.”

Alega o recorrente que qualquer dispositivo legal que atento um tipo de interpretação conduzisse à possibilidade de o M. mo Juiz, atento o seu poder discricionário, pudesse não diligenciar no sentido requerido, essencial para a defesa do arguido e para a descoberta da verdade material, ainda que por estarmos num processo de contraordenação, é inconstitucional.

Será que o preceito, com a leitura sufragada na decisão recorrida e agora acolhida, padece de inconstitucionalidade?

No âmbito dos direitos e deveres fundamentais dispõe o art. 32º n.10 da Constituição que nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Por sua vez em relação ao processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso – art. 32º n.1.

Só pela simples leitura, verificamos que há diferenças sensíveis entre o processo crime e regime geral de contra-ordenações, sobre o primeiro fala-se em todas as garantias e para o segundo assegura-se o direito de audiência e defesa.

O n.1 constitui uma cláusula geral que inclui não só todas as garantias explicitadas nos números seguintes mas também as demais que decorressem da necessidade de efectiva defesa do arguido em processo penal. É esse o seu significado actual, a que acresce a explicitação do direito ao recurso, acrescentada na revisão de 1997.

Todas as garantias de defesa não são as garantias que a lei formalmente concede, mas, no quadro dessas garantias e dos princípios estabelecidos pela constituição e pelas leis, todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é movida.

O arguido é tomado como sujeito processual a quem devem ser asseguradas todas as possibilidades de contrariar a acusação, a independência e imparcialidade do juiz ou tribunal e a lealdade do procedimento.

O n. 10 do art. 32º da Constituição, garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra - ordenacional, administrativa, fiscal, laboral disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação. A constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a possibilidade de se defender. O direito de se defender é por muitos considerado um princípio natural de qualquer tipo de processo, uma exigência fundamental do Estado de Direito material [ Veja-se neste sentido, segundo texto que reproduzimos, as anotações do Profº Jorge Miranda ao art. 32º da Constituição, na edição de 2005.]

Do exposto resulta que as diferenças entre o processo penal e processo contra –ordenacional são de monta.

Ao primeiro são garantidas todas as defesas, sem excepção das que estão contempladas no preceito constitucional, como seja presunção de inocência, defesa oficiosa, instrução, audiência de julgamento necessária, presença do arguido, critérios apertados de obtenção de prova, intervenção necessária de um tribunal, etc.

Ao segundo apenas a necessária audição e possibilidade de defesa.

Porventura ciente deste dever constitucional, o Dec. Lei nº 244/95 de 14 de Setembro que alterou regime geral das contra-ordenações reforçou os direitos e garantias dos arguidos, destacando a fixação de regras sobre a atenuação especial da coima e a previsão de tal atenuação nos casos de tentativa e cumplicidade, bem como a revisão do regime das sanções acessórias, estabelecendo com rigor os respectivos pressupostos e, em especial, fazendo depender a sua aplicação de uma ligação relevante com a prática da contra-ordenação.

A constitucionalidade do regime de contra-ordenações, está desde logo assegurada pelo art. 50º ao estabelecer que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.

E em perfeita sintonia com o disposto no art. 50-A do regime geral das contra- ordenações sobre o pagamento voluntário da coima, com certeza de absoluta constitucionalidade, surge o art. 175º n.4 do Código da Estrada a garantir a defesa restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável.
No regime geral das contra-ordenações, porque não jogam necessariamente todos os direitos constitucionais do art. 32, o arguido pode aceitar que cometeu a infracção e por isso ser condenado. Ao aceitar passivamente a comissão da infracção não perde o direito de defesa sobre a sanção acessória.
Do exposto resulta que o arguido quando procedeu ao pagamento voluntário da coima, aceitou a comissão da infracção e a partir desta fase podia e devia defender-se da medida da aplicação da sanção acessória, como efectivamente o fez. Simplesmente como não podia beneficiar da medida excepcional de suspensão desta, oportunamente apreciada pela entidade administrativa e em recurso por autoridade judicial, viu aplicada a medida acessória na medida proporcional à gravidade da infracção.
Foram-lhe garantidos o direito de audiência e de defesa em estrito cumprimento do art. 32º n.10 da Constituição.
Pelo exposto concluímos que o art. 175º n.4 do Código da Estrada não padece de qualquer inconstitucionalidade com o leitura que mereceu na sentença recorrida e como tal o recorrente depois de paga voluntariamente a coima apenas pode apresentar defesa restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável, sem discutir a verificação da infracção a qual está necessariamente assumida como tendo ocorrido.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente – 6 UC de taxa de justiça.