Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
21-E/1997.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
MAIORIDADE
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 589, 1874, 1878, 2009, 2013 CC, 186 OTM
Sumário: 1. A titular do direito a alimentos fixado no âmbito da regulação do exercício do poder paternal é a menor e não a progenitora a quem ficou confiada.

2. Na execução especial por alimentos decorrente do incumprimento por parte do pai da menor, a mãe não é a credora das prestações em dívida, agindo em representação da filha, única titular do crédito exequendo.

3. Tendo a menor atingido a maioridade e, vindo declarar na execução por alimentos, já depois de ter completado 22 anos de idade, que recebeu do progenitor (executado) as quantias que lhe eram devidas a título de alimentos até ter atingido a maioridade, nada mais tendo a exigir, não enferma de ilegalidade o despacho que considera que a exequente (mãe da menor) deixou de ter legitimidade processual e remete os autos à conta.

4. Não sendo a exequente/agravante, credora das prestações que integram a dívida exequenda, a única figura legal que permitiria a sua legitimação substantiva (com eventuais reflexos processuais) seria a da sub-rogação: transmissão singular de créditos prevista nos artigos 589.º e seguintes do Código Civil.

5. No entanto, esta solução legal só poderia ser equacionada no caso de a filha, que entretanto atingiu a maioridade, se remeter a uma atitude passiva perante o incumprimento do progenitor em dívida, nunca na situação descrita, em que expressamente declara que recebeu as quantias cuja cobrança constitui o objecto da execução.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
AP (…) instaurou no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, execução contra CM (…) (proc. n.º 21-A/1997), para cobrança de alimentos devidos à menor AF (…), filha da exequente e do executado.
AF (…)  veio declarar que ter recebido do executado as quantias que lhe eram devidas por este a título de alimentos até ter atingido a maioridade, nada mais havendo a exigir ao executado.
Perante a referida declaração, a M.ª Juíza proferiu o despacho que se transcreve:

«AF (…) veio declarar ter recebido do executado as quantias que lhe eram devidas por este, a título de alimentos até esta ter atingido a maioridade, nada mais havendo a exigir ao executado.

AP (…), mãe de AF (…) pronunciou-se no sentido de o requerido ser indeferido.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido de a declaração de AF (…)ser atendida.

Cumpre apreciar e decidir.

Os presentes autos de execução de alimentos tiveram início em 11 de Fevereiro de 1998, por requerimento apresentado por AP (…), em representação da sua filha, então menor de idade, AF (…), em virtude de o pai desta, o aqui executado CM (…) não ter liquidado as prestações de alimentos a que se encontrava obrigado por sentença transitada em julgado.

Do compulso dos autos de regulação do poder paternal resulta que AF (…) nasceu no dia 12 de Junho de 1988, pelo que a mesma tem actualmente 22 anos, ou seja, é maior de idade.

Não obstante os presentes autos tenham continuado a ser impulsionados por AP (…) desde 12 de Junho de 2006 que a exequente dos presentes autos é AF (…) na medida em que a titular do direito de crédito a alimentos em causa na presente acção sempre foi a então menor (cfr. artigo 1878°, n.º 1 do Código Civil), tendo agido a sua mãe nos presentes autos em representação desta pela sua falta de capacidade em poder estar, de per si, nos presentes autos (cfr .artigos 9°, n.º 1 e 10.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil). A legitimidade para a respectiva execução, depois de os filhos atingirem a maioridade, compete a estes e não ao seu anterior representante legal (neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/03/1999, no Processo 9950141, disponível em www.dgsi.pt).

Sendo então AF (…) a exequente nos presentes autos desde 12 de Junho de 2006, atenta a qualidade das partes e o objecto do processo é válida a declaração apresentada pela mesma.

Pelo exposto, antes de mais, vão os autos à conta, com custas a cargo do executado, nos termos do disposto no artigo 447° do Código de Processo Civil.»
Não se conformando, a exequente interpôs recurso de agravo, apresentando alegações onde formula as seguintes conclusões:

1. A exequente/recorrente era e é parte legítima na execução de alimentos, apesar de a filha entretanto ter atingido a maioridade, porquanto as prestações em dívida se reportam à menoridade da filha.

2. De resto, é ela, exequente/recorrente, a credora das prestações devidas pelo executado, que se encontra condenado, por sentença transitada, a entregar à exequente/recorrente a pensão de 25.000$00 (hoje, contravalor em euros) por mês.

3. Quem prestou os alimentos, mormente no período em falta, à então menor foi a exequente/recorrente, que teve de desembolsar, por conta do executado, o valor correspondente às pensões devidas por este, que jamais as pagou fosse a quem fosse.

4. Violou, pois, o douto despacho, entre outras, as disposições legais insertas nos art°s. 26 do C.P.C., 1877, 1878, 1885, 2003 e 2006 do Código Civil.

5. Revogando o douto despacho recorrido, considerando a exequente/recorrente parte legitima para prosseguir a execução até final.
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se a exequente mantém a legitimidade para além da data em que a beneficiária da prestação alimentar atinge a maioridade.

2. Fundamentos de facto
A factualidade relevante, é a que se descreveu no relatório que antecede (resultante das peças processuais), a que acresce o facto de a beneficiária da prestação alimentar, AF (...) , filha da exequente e do executado, ter nascido no dia 12 de Junho de 1988, pelo que já tinha completado 22 anos de idade, quando subscreveu a declaração onde refere ter recebido do executado as quantias que lhe eram devidas por este, a título de alimentos até ter atingido a maioridade, nada mais havendo a exigir.

3. Fundamentos de direito
3.1. A titularidade do crédito de alimentos
A abrir a Secção III da OTM[1], com o título “Alimentos devidos a menores”, prescreve o artigo 186.º

1 - Podem requerer a fixação dos alimentos devidos ao menor, ou a alteração dos anteriormente fixados, o seu representante legal, o curador, a pessoa à guarda de quem aquele se encontre ou o director do estabelecimento de educação ou assistência a quem tenha sido confiado.

2 - A necessidade da fixação ou alteração de alimentos pode ser comunicada ao curador por qualquer pessoa.

3 - O requerimento deve ser acompanhado de certidões comprovativas do grau de parentesco ou afinidade existentes entre o menor e o requerido, de certidão da decisão que anteriormente tenha fixado os alimentos e do rol de testemunhas.

4 - As certidões podem ser requisitadas oficiosamente pelo tribunal às entidades competentes, que as passarão gratuitamente, quando o requerente, por falta de recursos, as não possa apresentar.
Sublinhamos a expressão legal “Alimentos devidos ao menor”, que encerra de forma inequívoca a definição da titularidade do direito em causa.
Trata-se, indubitavelmente, de um direito do menor[2].
De acordo com a norma que se transcreveu, o progenitor que vai a juízo requerer a fixação de alimentos (ou a sua cobrança coerciva), fá-lo-á sempre, não na qualidade de titular do direito, mas de representante legal desse titular.
Como refere João Paulo Remédio Marques[3], o progenitor “age em substituição processual, parcial, representativa do menor”[4].
Na tese defendida por Helena Boieiro e Paulo Guerra[5], desde que o filho se torne maior, só ele, como credor de alimentos (já que o progenitor ‘guardião’ cessou os seus deveres de representação) pode prosseguir na acção de RERP, exigindo a cobrança de alimentos vencidos e não pagos, podendo a acção prosseguir para fixação dessa quantia de alimentos até ao momento da maioridade.
A exequente tem à partida a mesma posição que o executado: estão ambos obrigados à prestação alimentar a favor da filha [artigos 1874.º, 1878.º e alínea c) do n.º 1 do art. 2009.º, todos do Código Civil], sendo tal obrigação conjunta e não solidária e assumindo o direito correspondente (na titularidade da filha der ambos), natureza pessoal, nos termos do art. 2013.º do Código Civil[6].
Na cobrança coerciva de alimentos que constitui o escopo da presente execução, de acordo com o n.º 1 do artigo 186.º da OTM, a exequente (ora agravante) agia como representante legal da menor, titular do direito e credora das prestações devidas pelo executado.
Com o devido respeito, ao contrário do que alega, a exequente/agravante não é “credora das prestações devidas pelo executado”.
Credora é a filha, que entretanto atingiu a maioridade.

3.2. A inviabilidade da continuidade da execução após a declaração de extinção da dívida exequenda emitida pela titular do direito
Chegámos assim à questão essencial que se debate no presente recurso.
Tendo a menor AF (…), filha da exequente e do executado, atingido a maioridade e declarado, já depois de ter completado 22 anos de idade, que recebeu do executado as quantias que lhe eram devidas por este a título de alimentos até ter atingido a maioridade, nada mais havendo a exigir, poderá equacionar-se a continuidade da instância?
Será irrelevante, como defende a agravante, esta declaração da credora das prestações que constituem a quantia exequenda?
Pensamos que não só é relevante, como incontornável.
A única figura legal que permitiria a legitimação substantiva (com reflexos processuais) por parte da exequente seria a da sub-rogação: transmissão singular de créditos prevista nos artigos 589.º e seguintes do Código Civil.
Nesse sentido, refere o autor já anteriormente citado (João Paulo Remédio Marques, ob. cit.): “Admite-se que, embora as prestações caibam iure próprio ao filho (in casu maior) o progenitor convivente, que tenha custeado total ou parcialmente as despesa de sustento e a manutenção que ao outro obrigavam, possa subrogar-se nos direitos de crédito do filho”.
No entanto, esta solução legal só poderia ser equacionada no caso de o filho que entretanto atingiu a maioridade, se remeter a uma atitude passiva perante o incumprimento do progenitor em dívida.
In casu, a filha da exequente e do executado (titular do direito às prestações que constituem a quantia exequenda), já depois de ter completado 22 anos de idade, vem declarar expressamente que recebeu do executado as quantias que lhe eram devidas por este, a título de alimentos até ter atingido a maioridade, nada mais havendo a exigir
Ou seja, vem declarar que a dívida (obrigação) integradora da quantia exequenda se extinguiu pelo pagamento.
Perante tal declaração, emitida pela única titular do direito, não vemos fundamento que permita a continuidade da execução, porque, como já se referiu e ora se repete, a exequente/agravante não é “credora das prestações devidas pelo executado”.
Face ao exposto, entendemos que não merece provimento o recurso, nem censura a decisão recorrida.


III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.
Custas do recurso pela agravante.
                                                         *
Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins


[1] Aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro
[2] No mesmo sentido, veja-se o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 164/99 de 13 de Maio (diploma que regula a garantia de alimentos devidos a menores prevista na Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro), onde se define tal direito como direito individual: «A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69.º). Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24.º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas…»
[3] Algumas Notas sobre Alimentos (devidos a menores) ‘versus’ o dever de assistência dos pais para com os Filhos (em especial filhos menores)”, Coimbra Editora, 2000, págs. 311 e segs.

[4] Nesse sentido se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa, de 18.06.2009, proferido no Processo n.º 8578-B/1993.L1-6: «No caso dos autos, o incidente de incumprimento foi deduzido ainda durante a menoridade do credor de alimentos, pelo progenitor que o tinha à sua guarda. Logo, o direito de crédito cujo pagamento a aqui Recorrida pretende ver satisfeito é um direito a alimentos do filho, então menor. A Recorrida intervém, assim, enquanto substituta processual, e em representação do seu filho menor, titular do direito de crédito a alimentos.»
[5] A Criança e a Família – uma Questão de Direitos, Coimbra Editora, 2009, pág. 211
[6] Helena Boieiro e Paulo Guerra, in A Criança e a Família – uma Questão de Direitos, Coimbra Editora, 2009, pág. 208