Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1747/11.1TBACB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: ARROLAMENTO
ACÇÃO DE DIVÓRCIO
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 424.º E 427.º DO CPC
Sumário: Fazendo-se prova da existência de um bem, a circunstância de o requerente, por motivos a que é alheio, desconhecer onde ele se encontra não constitui fundamento para a improcedência do seu arrolamento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... instaurou, na comarca de Alcobaça, o presente arrolamento, prévio ao divórcio, contra B....

Esse seu pedido de arrolamento foi apreciado, tendo sido proferida decisão que o deferiu.

Posteriormente, a requerente veio, pelo requerimento das folhas 389 a 393 (de 8-11-2012), pedir que se procedesse ainda ao arrolamento de € 500 000,00 e de € 518 000,00, quantias essas que o requerido "guardou em lugar que a Requerente desconhece qual seja."

Alegou, então, que o requerido "ordenou o arrombamento de um cofre (o nº 7) que Requerente e Requerida mantinham alugado na Agência da Praça ..., nas Caldas da Rainha, do Banco ..., mas associado à conta de depósito à ordem nº ..., titulada por ambos, da Agência de São Martinho do Porto, do mesmo Banco, dele retirando € 500.000,00 em numerário." E também que aquele "apresentou a pagamento na Agência de Alcobaça do Banco C... o seu cheque nº ..., que havia preenchido no dia 22 de Junho, sacado sobre a conta (solidária com a Requerente) nº ..., pelo montante de € 518.000,00."

Apreciando esta pretensão, a Meritíssima Juíza a quo proferiu despacho em que decidiu que:

"No que tange ao arrolamento das quantias de € 500.000,00 em numerário e de € 518.000,00 é a própria Requerente a invocar que o Requerido retirou esse dinheiro das instituições bancárias, desconhecendo onde o mesmo terá guardado esse dinheiro.

Em face de tal alegação, impõe-se pois concluir pela inexistência dos pressupostos para que seja decretada o arrolamento de tais montantes, razão pela qual se decide pelo respectivo indeferimento."

Inconformada com tal decisão, a requerente dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

A. O douto despacho recorrido fez errada aplicação da lei ao confundir a possibilidade de execução de arrolamento com um pressuposto do procedimento,

B. Sem atender aos requisitos da lei, tal como os enumera o número 1 do artigo 427º do Código de Processo Civil, que, assim, deixou de ser considerado;

C. O douto despacho recorrido fez errada aplicação da lei ao desconsiderar o que preceitua o número 5 artigo 424º do Código de Processo Civil, que, assim, foi desconsiderado;

D. O conhecimento do lugar onde os bens cujo arrolamento se pediu, pela Recorrente ou pelo Tribunal, não constitui pressuposto ou requisito do arrolamento, correspondendo a evocação deste facto como condição da providência à violação do aludido número 1 do artigo 427º do Código de Processo Civil.

Termina pedindo que a revogação do "despacho recorrido e substituindo-o por outro que determine o arrolamento".

O requerido não contra-alegou.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se é admissível o arrolamento de um bem que está guardado "em lugar que a Requerente desconhece qual seja."


II

1.º


Na decisão recorrida a Meritíssima Juíza a quo, lamentavelmente, não fixou quais os factos que considerava estar indiciariamente provados.

Mas, tendo presente a (primeira) decisão das 214 a 217, o teor do requerimento apresentado pela requerente, os documentos das folhas 389 a 393 juntos com este e o que implicitamente está subjacente à decisão recorrida, devemos considerar estarem indiciariamente provados os seguintes factos:

a) a requerente e o requerido casaram um com o outro, sem convenção antenupcial, no dia 30 de Julho de 1977.

b) a requerente pretende intentar acção de divórcio contra o requerido.

c) a 23 de Maio de 2011 o requerido ordenou o arrombamento do cofre n.º 7 que com a requerente mantinha alugado numa agência, nas Caldas da Rainha, do Banco ..., associado à conta de depósito à ordem n.º ..., dele retirando € 500 000,00 em numerário, que guardou.

d) a 24 de Junho de 2011 o requerido apresentou a pagamento na agência de Alcobaça do Banco C... o cheque nº ..., que havia preenchido no dia 22 de Junho, sacado sobre a conta solidária com a requerente n.º ..., pelo montante de € 518 000,00, que guardou.

e) a requerente desconhece onde é que o requerido guardou os valores referidos em c) e d).


2.º

É pacífico que no caso dos autos estamos no âmbito de um arrolamento preliminar da acção de divórcio (que entretanto foi instaurada[2]), a que se refere o artigo 427.º.

Apesar da Meritíssima Juíza não o dizer de forma tão clara quanto era desejável, parece não haver dúvidas de que o pedido de arrolamento dos bens indicados no requerimento das folhas 389 a 393 foi indeferido unicamente por a requerente (confessar) desconhecer onde o requerido "terá guardado esse dinheiro", ou seja por aquela não saber onde se encontra a coisa que quer ver arrolada, entendendo-se, assim, que a indicação do lugar onde se encontra o bem é um "dos pressupostos para que seja decretada o arrolamento." Ou seja, se bem se interpreta o despacho recorrido, se por hipótese tivesse sido indicado o sítio onde está o bem que se pretende arrolar, teria sido decretado o arrolamento requerido nas folhas 389 a 393.

A requerente ataca a decisão do tribunal a quo sustentando que "o conhecimento do lugar onde os bens cujo arrolamento se pediu (…) não constitui pressuposto ou requisito do arrolamento"[3], pois o mesmo não figura como tal no artigo 427.º. E mais afirma que o "despacho recorrido fez errada aplicação da lei ao desconsiderar o que preceitua o número 5 artigo 424.º do Código de Processo Civil".[4]

Ora, o n.º 1 do artigo 424.º estabelece que "o arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens", acrescentado o seu n.º 2 que "será lavrado auto em que se descrevam os bens, (…) se certifique a entrega ao depositário ou o diverso destino que tiveram", sendo esse auto "assinado pelo (…) depositário e pelo possuidor dos bens, se assistir". E no seu n.º 5 afirma-se que "são aplicáveis ao arrolamento as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrarie o estabelecido nesta subsecção ou a diversa natureza das providências."

Como é sabido, "o arrolamento funciona como meio de conservação dos bens (…), para evitar o [seu] extravio ou dissipação,"[5] e "destina-se à apreensão de bens móveis ou imóveis, ou de documentos (art. 421.º, n.º 1) que, naturalmente, devem ser indicados pelo interessado"[6], sendo então "identificados os bens e entregues a um depositário".[7]

Salvo melhor juízo, há aqui dois momentos a considerar: o primeiro é o do decretamento do arrolamento e o segundo é o da sua concretização.

No que toca àquele, o juiz terá que averiguar se nessa ocasião se verificam os requisitos impostos para que ordene o arrolamento, entre os quais, como salienta a requerente, de facto, não figura expressamente o da indicação do sítio onde se encontra a coisa móvel a arrolar. Nessa altura é essencial, sim, que, para além do mais, se indicie que o bem existe.

Uma vez ordenado o arrolamento, no que diz respeito aos bens móveis, é evidente que ele só se poderá concretizar se, depois, se alcançar o bem, se se chegar até ele, o mesmo é dizer que nunca se conseguirá efectivamente arrolar uma coisa que não foi possível encontrar, não obstante ter sido, previamente, proferida decisão a ordenar o seu arrolamento.[8]

Cabe, assim, ao "requerente relacionar os bens a apreender, com todas as indicações necessárias à realização da diligência, não se admitindo o simples pedido genérico de apreensão de bens" e quanto aos bens móveis é "relevante a indicação do lugar em que se encontram."[9]  Naturalmente que o requerente tem todo o interesse em que o arrolamento se realize, pelo que é-lhe de todo conveniente que, para atingir tal fim, diga onde está o bem cujo arrolamento solicita. Mas, a verdade é que nem sempre consegue ter conhecimento desse facto, por não ter forma de saber onde ele se encontra, não lhe sendo, por isso, imputável tal desconhecimento. Sabe que existe certo bem, uma cómoda, um anel ou um quadro, mas desconhece onde é que o requerido tem essa coisa guardada.

Se o requerente do arrolamento disser que o bem está em certo sítio e, depois, ao pretender-se arrolá-lo, ele não se encontrar aí cessa a decisão de arrolamento? Deixa de se procurar o bem?

Se, no caso dos autos, a requerente tivesse afirmado que o dinheiro em questão estava na casa do requerido, a Meritíssima Juíza tinha ordenado o arrolamento? E em caso afirmativo, se, afinal, ele aí não se encontrasse deixava-se de diligenciar no sentido de apurar onde é que ele, realmente, está?

Há que salientar que, como já se disse, não se encontra nos artigos 421.º a 427.º a exigência de o requerente indicar o lugar onde se encontra o bem móvel a arrolar. Mas, aplicando-se subsidiariamente "ao arrolamento as disposições relativas à penhora", não poderá deixar de se ter presente o disposto nos artigos 810.º n.º 5 b) e 833.º-A n.º 2, onde se diz, respectivamente, que "na indicação dos bens a penhorar, deve o exequente, tanto quanto possível[10], quanto aos móveis, designar o lugar em que se encontram" e que "a realização da penhora é precedida de diligências prévias que o agente de execução considere úteis à (…) localização de bens penhoráveis".

Perante este quadro terá que se concluir que, fazendo-se prova da existência de um bem, a circunstância de o requerente, por motivos a que é alheio, desconhecer onde ele se encontra não constitui fundamento para a improcedência do seu arrolamento, pese embora, nesse cenário, se possa, desde logo, admitir como provável que, nomeadamente pelas características da coisa, não será fácil vir concretizá-lo, leia-se a encontrar o bem a arrolar. Mas, não é por isso que se deixará de ordenar o respectivo arrolamento, de modo a, por essa via, se tentar "evitar o [seu] extravio ou dissipação". E no caso dos autos, não é exigível que a requerente saiba ou tenha que saber onde é que o requerido colocou os € 500 000,00 e os € 518 000,00 que, respectivamente, retirou do cofre que com aquela mantinha alugado numa agência do BCP e que sacou de uma conta de ambos no BES.


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se procedente o recurso, pelo que se revoga a decisão recorrida e se ordena o arrolamento das quantias em numerário de € 500 000,00 e de € 518 000,00.

Custas pelo requerido.

Depositário: a nomear pelo tribunal a quo.

Atendendo aos elevados montantes em causa e à circunstância de terem sido retirados em numerário de € 500 000,00 de um cofre, extraia certidão do presente acórdão e das folhas 389 a 396 e remeta ao Ministério Público para que, se assim entender, possa tomar alguma iniciativa no âmbito do disposto na Lei n.º 25/2008 de 5 de Junho.

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                               Nunes Ribeiro

                                                             Hélder Almeida


[1] São deste código todas as disposições adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
[2] Cfr. despacho da folha 406.
[3] Cfr. conclusão D.
[4] Cfr. conclusão C.
[5] Batista Lopes, Dos Procedimentos Cautelares, 1965, pág. 160. Neste sentido veja-se Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., 3.ª edição, pág. 268 e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição, 1949, pág. 104.
[6] Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 275.
[7] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. II, pág. 163.
[8] O mesmo se passa com o arresto e com a penhora. Nem sempre se consegue arrestar ou penhorar um bem que foi objecto de uma decisão de arresto ou de penhora.
[9] Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 202, tendo-se presente a remissão que, nesta parte, o autor faz na pág. 275.
[10] Sublinhado nosso.