Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
309/07.2TBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGOS SIMÕES
Descritores: COMPROPRIEDADE
USO DA COISA OU PARTE COMUM
OBRAS INOVADORAS NAS PARTES COMUNS
APROVAÇÃO PELA MAIORIA DOS CONDÓMINOS
RESTAURAÇÃO
CTIVIDADE INDUSTRIAL
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – LAMEGO – INST. LOCAL – SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1405º, 1406º E 1425º DO C. CIVIL.
Sumário: I – O regime das fracções autónomas é disciplinado pelas regras da propriedade sobre imóveis, ao passo que as partes comuns se encontram subordinadas ao regime estabelecido para a compropriedade, conforme resulta do preceituado, respectivamente, nos art.ºs 1405º e 1406º do C. Civil. II - Nos termos destes último preceito, a qualquer comproprietário é lícito servir-se da coisa comum, contanto que a não use para fim diverso daquele a que se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.

III - Resulta da disposição legal em análise que ao condómino é consentido o uso da coisa comum, mas não a sua ocupação, ainda que parcial, na medida em que dela sempre resultaria a privação do uso por banda dos demais comproprietários.

IV - O art.º 1425º do C. Civil, na redacção em vigor ao tempo, impunha, em relação às obras que constituíssem inovações, a sua aprovação pela maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio (vide nº 1).

V - A regra é, portanto, a de que ao condómino está vedada a realização de quaisquer inovações nas partes comuns, a menos que outra coisa tenha ficado consignada no título constitutivo, relativamente a parte cujo uso lhe seja afectado em exclusivo. Tais inovações referem-se a obra nova, no sentido de que deverão ser posteriores ao título constitutivo.

VI - A sanção natural para a execução de obras ilícitas é, conforme também vem sendo entendido, a sua demolição.

VII - Assente que é o título constitutivo da propriedade horizontal que estabelece o fim a que se destina a fracção, por maior latitude que se queira conferir ao conceito de actividade comercial, a verdade é que a restauração, sendo uma actividade transformadora, deve ser qualificada como industrial.

VIII - O instituto do abuso do direito visa obtemperar às situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que, objectivamente, atentas as específicas e concretas circunstâncias do caso, conduz a um resultado que repugna ao sentimento de justiça prevalecente.

Decisão Texto Integral:


I. Relatório

A..., na qualidade de administrador do prédio urbano em propriedade horizontal, com a entrada “C”, sito na Quinta ..., instaurou contra J... e mulher, M..., acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a condenação dos RR a:

“1. Procederem ao fechamento de todas as aberturas referidas na petição inicial, ou seja: a) Uma abertura tipo janela com as dimensões de 60cm x 60cm; b) Um buraco redondo, com 40cm de diâmetro, ambos na confinância da caixa (aqui dita de elevador) com a loja do r/c; c) O buraco na placa de cobertura do edifício; e c) A reporem todo o vigamento de suporte do telhado, tudo com materiais, consistência e segurança estrutural primitiva, sendo esta a que resulta do respectivo projecto de licenciamento da construção do edifício;

2. Procederem a estas obras no prazo de 15 dias e

3. Indemnizarem os condóminos aqui autores pelos prejuízos que resultarem para o edifício por motivo daquelas obras, os quais, quanto ao respectivo montante, haverão de ser liquidados em execução de sentença”.

Em fundamento alegou, em síntese, que os RR são os donos de uma fracção no prédio identificado, na qual estão a levar a cabo obras de adaptação para que nela passe a funcionar um restaurante. No decurso de tais obras de adaptação, o réu marido iniciou a instalação de um tubo de exaustão com as dimensões de 40x40 cm, tendo aproveitado para o efeito uma caixa existente no interior do prédio, a qual foi projectada para nela ser instalado um elevador, tendo estabelecido duas comunicações entre a loja e a caixa, sendo uma do tipo janela com 60x60cm, a outra um buraco redondo com 40cm de diâmetro. Para prosseguirem com a instalação, os operários a mando do réu marido rebentaram ainda as placas de cimento que constituem a cobertura do edifício e nela abriram um buraco, com o intuito de por ele fazerem passar o tubo de exaustão, tendo também dado início a obras de rompimento do telhado, para o que cortaram as respectivas vigas de suporte.

As obras descritas foram executadas sem conhecimento nem consentimento dos condóminos, sendo violadoras dos direitos destes nos termos dos art.ºs 1420º e 1421º, nº 1, al.s a) e b) do CC, disposição legal que expressamente convocaram. Acrescentou que da sua execução resultou depreciação do valor do prédio que só posteriormente à reposição poderá ser avaliada, impondo-se assim a condenação dos RR no montante que a este título se vier a liquidar.

Citados os RR, contestaram nos termos da peça que consta de fls. 40 a 44 dos autos, na qual invocaram a excepção dilatória da ilegitimidade do autor, não lhe reconhecendo a arrogada qualidade de administrador do condomínio.

Em sede de impugnação, alegaram que tanto o projecto como o título constitutivo da propriedade horizontal previam já a afectação da fracção de que são proprietários, a par de outras, ao exercício de qualquer actividade comercial, afectação dada a conhecer aos restantes condóminos aquando da aquisição das respectivas fracções, encontrando-se igualmente prevista a execução das obras em causa, as quais obedeceram ao projecto de construção aprovado e licenciado pela CML. Deste modo, dizem, tais obras teriam de ser, como foram, levadas a cabo pelo réu marido na sua qualidade de construtor do edifício, sob pena do mesmo não ficar concluído, resultando inviabilizada a utilização das fracções para os fins a que se destinam.

Mais invocaram que a pretensão do autor, tendo como resultado impedir os adquirentes das fracções carecidas de exaustor de as afectarem ao exercício das actividades comerciais pretendidas, ao passo que da aplicação do tubo de exaustão numa parte comum do edifício não resulta prejuízo para ninguém, constitui verdadeiro abuso de direito. Acrescentaram que o vão onde foi implantado o tubo de exaustor percorre todo o edifício na vertical, desde a cave até ao telhado, tendo sido projectado, licenciado e construído precisamente com a finalidade de, após aspirados do exterior, serem por ali conduzidos fumos, gases e vapores emanados de todas as fracções do edifício. Estando deste modo em causa trabalhos que, ao invés de prejudicarem os restantes condóminos, antes contribuem para a higiene e salubridade do edifício, e comodidade de todos, é evidente o abuso no exercício do direito invocado.

O autor replicou, reafirmando a sua legitimidade e recusando qualquer abuso no exercício do direito que aqui pretendem fazer valer.

Dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção da ilegitimidade do autor, após o que foi seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, alterada na sequência de reclamação apresentada pelos AA e que obteve deferimento.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, em cujo decurso o Tribunal indeferiu a requerida realização da inspecção judicial ao local, vindo a final a ser proferida a decisão sobre a matéria de facto que consta de fls. 235 a 239 dos autos, após o que foi proferida sentença que, no decretamento da improcedência da acção, absolveu os RR dos pedidos formulados.

Inconformado com o indeferimento do meio de prova requerido e também com a sentença a final proferida, apelou o autor, na sequência do que veio a ser proferido douto acórdão que, na procedência da apelação, determinou a revogação daquele despacho, ordenando a realização da diligência e decretando a anulação do processado subsequente (fls. 341/342).

Em cumprimento do determinado, teve lugar a realização da diligência de inspecção, após o que foi lavrada decisão sobre a matéria de facto e proferida nova sentença que reeditou a absolvição antes decretada.

Ainda inconformado, apelou o A. e, tendo apresentado as suas alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:

“1.ª As obras efectuada pelos RR (e que foram: a) ocupação duma “caixa” comum existente dentro do prédio com a implantação dum tubo de exaustão de fumos e gases provenientes da sua loja na qual efectuam obras para sua adaptação a restaurante; b) posterior rompimento da placa de cobertura do prédio; e c) rompimento do telhado para a saída para o exterior do tubo de exaustão), são ilegais, porque não está provado que tenham sido autorizadas pelos demais condóminos e destroem partes comuns (placa de cobertura e o telhado) e, por isso, violam o disposto nos art.ºs 1425, nºs 1 e 2 e 1422º, nº 1, este com referência ao art.º 1305º, todos os preceitos do Código Civ.

2.ª Na douta sentença recorrida, a Meritíssima faz uma interpretação e aplicação incorrecta daquelas normas, sendo que as mesmas, se correctamente aplicadas e interpretadas, impõem a total procedência da presente acção”.

Com tais fundamentos pugnam pela revogação da sentença proferida e sua substituição por outra que condene os RR nos pedidos formulados

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão sujeita à apreciação deste Tribunal determinar se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento por errada interpretação dos art.ºs 1425º, n.ºs 1 e 2 e 1422º, n.º 1, ambos os preceitos do CC.

II. Fundamentação

Não tendo sido impugnada a matéria de facto, e não sendo caso de proceder à sua modificação oficiosa, são os seguintes os factos a atender:

1. O A., por deliberação de 17 de Fevereiro de 2007, foi eleito administrador do prédio sito na Urbanização Quinta ..., entrada “C” (respostas aos art.ºs 1º e 2º).

2. Os condóminos identificados e aqui representados pelo A. são proprietários de todas as fracções ("P" a "AC") que são servidas por aquela entrada "C" e todas estão sob a única administração do aqui A. (resposta ao art.º 3º).

3. Sob as fracções "P" a "AC", que são servidas pela entrada “C”, encontra-se uma loja propriedade dos RR (al. A).

4. O R. marido efectuou obras no aludido prédio, as quais romperam a parede que estabelece a separação entre aquela caixa e uma das fracções (al. B).

5. Na loja referida em 3. foram realizadas algumas obras para, na mesma fracção, funcionar um restaurante (resposta ao art.º 4.º).

6. Estas obras desenrolam-se sob a responsabilidade dos aqui RR e sob a direcção directa do Réu marido no exercício da sua actividade de industrial da construção civil (resposta ao art.º 5.º).

7. No decurso delas, e durante a semana que se iniciou em 19.02.07, começou a ser instalado um tubo, com a dimensão aproximada de 40cm x 40cm, para exaustação de fumos, vapores e semelhantes (resposta ao art.º 6.º).

8. O R. marido aproveitou uma caixa existente no interior daquele prédio e os operários às suas ordens estabeleceram duas comunicações entre a loja e a caixa, sendo uma do tipo janela (60 cm x 60 cm) e outra um buraco redondo com 40 cm de diâmetro (respostas aos art.ºs 7.º e 8.º).

9. Começaram a preparar a caixa para nela instalarem o tubo de exaustão e demais elementos e peças necessárias e adequadas àquele fim, e, de seguida, instalaram mesmo o dito tubo (resposta ao art.º 9.º).

10. No desenvolvimento destas obras, operários às ordens do R. marido e dirigidos por um senhor de nome Rogério rebentaram com a placa de cimento que constitui a cobertura do edifício, na qual abriram um buraco com o intuito de por ele fazerem passar o tubo de exaustão, o que consumaram (respostas aos art.ºs 10.º e 11.º).

11. Em determinadas secções foram cortadas duas vigotas da cobertura (resposta ao art.º 13.º).

12. Logo iniciaram obras de rompimento de igual abertura no telhado (resposta ao art.º 12.º).

13. O buraco aberto na cobertura do edifício foi feito para fazer passar para o exterior o tubo de exaustão (resposta ao art.º 14.º).

14. Tanto o projecto como o título de constituição da propriedade horizontal do prédio previam a afectação da fracção referida em 3. ao exercício de qualquer actividade comercial (resposta ao art.º 18.º).

15. As obras levadas a cabo pelo R. marido permitem a exaustão de fumos e cheiros das fracções em causa (resposta aos art.ºs 20.º e 21.º).

     16. Para a reposição do edifício no seu estado primitivo, fechando os buracos e rompimentos, serão necessários 28 dias (resposta ao art.º 25.º).

De Direito

Da (i)licitude das obras realizadas: o art.º 1425º do CC

Nos termos do art.º 1414º do Código Civil (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem), “As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal”, estabelecendo a lei que “Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício” (cf. art.º 1420º, nº 1).

O regime das fracções autónomas é disciplinado pelas regras da propriedade sobre imóveis, ao passo que as partes comuns se encontram subordinadas ao regime estabelecido para a compropriedade, conforme resulta do preceituado, respectivamente, nos art.ºs 1405º e 1406º. Nos termos destes último preceito, a qualquer comproprietário é lícito servir-se da coisa comum, contanto que a não use para fim diverso daquele a que se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. Resulta da disposição legal em análise que ao condómino é consentido o uso da coisa comum, mas não a sua ocupação, ainda que parcial, na medida em que dela sempre resultaria a privação do uso por banda dos demais comproprietários.

No caso em apreço, o autor, imputando aos RR a execução de obras de inovação em partes comuns, não consentidas, veio a juízo requerer a sua demolição e fixação de indemnização pelos danos. Defenderam-se os demandados, alegando que as obras realizadas pelo réu marido, na sua qualidade de construtor do prédio - que não naquela de proprietário de fracção autónoma do mesmo -, se encontravam previstas e projectadas desde o início, e destinando-se a melhorar as condições de higiene e salubridade do edifício traduzem-se em benefício para todos os condóminos.

Vem assente na decisão recorrida, nesta parte sem impugnação, que as obras levadas a cabo por ordem dos RR foram executadas em partes comuns do edifício, atendendo designadamente ao que vem disposto no art.º 1421º, nº 1, als. a) e b) e nº 2, al. e)[1]. E porque tal qualificação se afigura correcta, arredada fica a aplicação do art.º 1422º, já que, conforme vem sendo entendido, as restrições aqui impostas respeitam exclusivamente à fracção do condómino e suas componentes próprias, valendo para as inovações nas partes comuns o disposto no art.º 1425º[2].

O art.º 1425º, na redacção em vigor ao tempo[3], impunha, em relação às obras que constituíssem inovações, a sua aprovação pela maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio (vide nº 1).

A regra é, portanto, a de que ao condómino está vedada a realização de quaisquer inovações nas partes comuns, a menos que outra coisa tenha ficado consignada no título constitutivo, relativamente a parte cujo uso lhe seja afectado em exclusivo. Tais inovações referem-se a obra nova, no sentido de que deverão ser posteriores ao título constitutivo.[4]

Por outro lado, deve entender-se ter a lei adoptado “um conceito amplo de inovação, [que] tanto abrange alterações introduzidas na substância ou forma das coisas comuns, como modificações relativas ao seu destino ou afectação, sendo apenas as que trazem algo de novo, de criativo, em benefício das coisas comuns do edifício já existentes ou que criam outras benéficas coisas comuns, e ainda as que levam ao desaparecimento de coisas comuns existentes ou a modificação na sua afectação ou destino”.[5]

A sanção natural para a execução de obras ilícitas é, conforme também vem sendo entendido, a sua demolição[6]. E o pedido de demolição não constitui “abuso de direito porque é a própria lei que o determina e o condómino, requerendo-o, não está a exceder em nada o seu direito. Apenas reage contra o abuso do condómino que inovou, para que o edifício seja restituído ao seu estado anterior”[7]

Os RR defenderam-se intentando descaracterizar as obras efectuadas como inovadoras, alegando que as mesmas se encontravam contempladas no projecto aprovado. Não obstante, a verdade é que se, por um lado, o autor não logrou provar quanto alegara no sentido da caixa ocupada parcialmente com o tubo de exaustão - espaço reconhecidamente comum - se destinar à futura instalação de um elevador, não é menos certo, por outro, que também os RR não fizeram prova de que no projecto aprovado esse mesmo espaço se destinava precisamente a permitir a instalação futura de sistema de exaustão, servindo as fracções destinadas ao comércio que dele viessem eventualmente a precisar mercê da actividade nelas desenvolvida. Com efeito, apesar da testemunha ..., engenheiro responsável por vários projectos do edifício, ter declarado que a caixa fora projectada precisamente para servir de condutora, nomeadamente de tubos de exaustão em caso de necessidade, tal como a Mm.ª juíza fez consignar na decisão proferida sobre a matéria de facto, incontornável é que tal futura potencial afectação não ficou a constar do projecto aprovado nem do título constitutivo, conforme foi salientado pela também ali mencionada testemunha ..., arquitecto da Câmara Municipal que, apesar de não ter tido intervenção no projecto, esclareceu o seu teor em audiência.

Assente, pois, que as obras levadas a cabo pelos RR tendo em vista a instalação de um sistema de exaustão que serve apenas a fracção de que são proprietários se traduziram na ocupação parcial de uma caixa que constitui parte presuntivamente comum do prédio, implicando ainda intervenção em partes imperativamente comuns, conforme é o caso das vigas da cobertura e telhado, obras não previstas no projecto aprovado ou no título constitutivo, estamos perante inovações que careciam da prévia aprovação da maioria dos condóminos, conforme impunha o nº 1 do art.º 1425º.

Não divergindo desta conclusão, e constatando embora que os RR não diligenciaram pela obtenção da aprovação por banda dos demais condóminos, afastou a Mm.ª juíza a ilicitude das obras realizadas, tendo em atenção a utilização prevista para a fracção ou loja por elas servida.

Resultou efectivamente demonstrado nos autos que tanto o projecto como o título de constituição da propriedade horizontal do prédio previam a afectação da fracção referida em 3. ao exercício de qualquer actividade comercial, mais se tendo apurado que na mesma loja foram realizadas as obras para ali funcionar um restaurante (factos nºs 14 e 5). Partindo desse pressuposto, ponderou a Mm.ª juíza que “mesmo admitindo que nem todos aqueles que compraram os apartamentos habitacionais sabiam que a fracção se destinava ao exercício de qualquer actividade comercial, a verdade é que tanto o projecto como o título de constituição da propriedade horizontal do prédio previam essa afectação, pelo que qualquer desconhecimento dos compradores das diversas fracções apenas se poderá ficar a dever a negligência dos próprios que não quiseram inteirar-se do respectivo projecto.

Assim sendo, a abertura de um restaurante naquela fracção não pode causar estranheza a qualquer um dos moradores. E para o funcionamento normal de um qualquer estabelecimento de restauração ou outro onde confeccione comida, será sempre essencial a existência de, pelo menos, uma conduta suficientemente larga para extracção de fumos, vapores ou outros cheiros, sem a qual a abertura da loja estará comprometida.

É ainda de ter em consideração que caberia em tempo oportuno ao construtor do prédio diligenciar pela colocação do tubo de exaustão necessário ao funcionamento de um restaurante – se ali abrisse entretanto uma outra loja (para a qual o mencionado tubo não fosse necessário), ficaria o tubo inutilizado, mas sempre com a possibilidade de ser futuramente utilizado (sem que qualquer um dos moradores pudesse alegar que as condutas no edifício prejudicam a normal utilização da sua fracção ou o seu bem-estar e conforto).”

E assim tendo ponderado, fazendo relevar a circunstância de não ter ficado demonstrado quanto fora alegado pelo autor no sentido da caixa ocupada se destinar à instalação de um elevador, concluiu que o réu se limitou “a dar continuidade ao que tinha ficado atempadamente projectado”, não assistindo “razão aos moradores quando se insurgem contra as obras realizadas, que mais não fazem do que permitir o exercício da actividade comercial para a qual foi licenciada a fracção”.

Salvo o respeito devido, não podemos concordar com a argumentação expendida, desde logo porque não encontra suporte na matéria de facto apurada. E assim é porque, conforme se fez já menção, não ficou a constar do projecto aprovado que o espaço comum da “caixa” se destinasse a futura instalação de sistema de exaustão da fracção em causa ou de quaisquer outras que do mesmo viessem a carecer; depois, e decisivamente, porque o que consta do título constitutivo da propriedade horizontal é a afectação da fracção a qualquer actividade comercial (cf. o referido ponto 14.) e não à actividade de restauração, a qual não poderá, em nosso entender, considerar-se compreendida na destinação que ficou a constar do título. Vejamos:

Assente que é o título constitutivo da propriedade horizontal que estabelece o fim a que se destina a fracção, por maior latitude que se queira conferir ao conceito de actividade comercial, a verdade é que a restauração, sendo uma actividade transformadora, deve ser qualificada como industrial[8]. Conforme se fez notar no aresto da Relação de Lisboa n.º 7344/06-1 de 30/1/2007, no qual estava também em causa um estabelecimento de restauração, “Parece incontroverso que «a interpretação do título constitutivo deve seguir as regras de interpretação do negócio jurídico. Donde que, «nos termos do artigo 236º [do Cód. Civil], o título vale com o sentido que dele possa retirar um declaratário normal». Por outro lado, «sendo o título constitutivo um negócio formal, não pode ser feito valer um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no seu texto, ainda que esse sentido seja imperfeitamente expresso (cf. art.º. 238º, nº 1)».

Ora (…), a cláusula inserta no título constitutivo da propriedade horizontal que estipula que determinada fracção é “destinada a comércio”, na falta de outros elementos, só pode ter o sentido vulgar e corrente de mediação nas trocas, coincidente com o seu sentido económico, pelo que não abarca a actividade de produção e transformação de mercadorias. Efectivamente, é esse o significado corrente do vocábulo “comércio”, pelo que, como «o título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado de acordo com o significado corrente das expressões nele usadas» (…) é com esse sentido e segundo um critério económico que a cláusula de destinação duma fracção autónoma “a comércio” deve ser interpretada, à luz da teoria da impressão do destinatário consagrada no cit. art.º 236º - 1 do Código Civil.”

Faz-se finalmente notar, ainda a este respeito, que o eventual licenciamento administrativo para o exercício de determinada actividade não compreendida no fim previsto no título apenas significa que, do ponto de vista da entidade licenciadora, que se rege por critérios de prossecução de interesse público, nada obsta ao seu desenvolvimento, sem que, todavia, resultem derrogadas as disposições legais que visam a tutela dos direitos de propriedade em que repousa a propriedade horizontal.

Tudo em suma para concluir que, não estando embora aqui directamente em causa a afectação a dar à fracção, a verdade é que, tendo o fim sido invocado na sentença apelada como fundamento legitimador das obras executadas pelos RR, é o mesmo de afastar, subsistindo a ilicitude das inovações introduzidas sem a prévia autorização legalmente exigida. E sendo a sanção a reposição natural, nos termos do art.º 562º, implicando a destruição das obras e reposição do edifício no estado anterior[9], é de concluir pela razão do autor no que respeita ao pedido formulado em 1.

Já no que respeita à pretensão indemnizatória formulada, dado o fracasso na prova dos alegados prejuízos, é a mesma claramente insubsistente.

Do abuso de direito

Tendo em vista paralisar o direito do autor, na eventualidade, agora verificada, de o mesmo lhes vir a ser reconhecido, excepcionaram os RR com o instituto do abuso do direito. A excepção invocada não foi, enquanto tal, conhecida na sentença apelada, tendo de algum modo resultado o seu conhecimento prejudicado pela solução dada ao litígio na sentença apelada, dela cumprindo agora conhecer.

Nos termos do art.º 344.º, o exercício de um direito é ilegítimo quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico destes. O abuso, sendo um instituto puramente objectivo, não dependente da culpa do agente nem da verificação de qualquer elemento específico subjectivo, surgindo como concretização da boa-fé, apresenta-se afinal como uma “constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima”[10]. Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa (idem).

O instituto em causa visa obtemperar às situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que, objectivamente, atentas as específicas e concretas circunstâncias do caso, conduz a um resultado que repugna ao sentimento de justiça prevalecente.

Revertendo ao caso dos autos, cabe portanto indagar se, face à factualidade assente nos autos, é de considerar abusivo o exercício pelos autores do seu direito à restauração natural.

Estamos perante a ocupação parcial de uma “caixa” que, não obstante a sua natureza de espaço comum, não tinha - ou tanto não se apurou - uma afectação definida. Tal espaço foi ocupado com a instalação de um sistema de exaustão que visa servir a fracção pertencente aos RR, tendente à sua adaptação a estabelecimento de restauração. Mais se apurou que tal sistema, tal qual se encontra instalado, impede que os cheiros e ruídos se propaguem para o interior das fracções habitacionais, tendo ficado por demonstrar quanto fora alegado pelo autor no sentido das obras realizadas terem implicado perda de consistência estrutural do imóvel ou a sua depreciação (cf. respostas negativas que mereceram os artigos 16º e 17º).

Não obstante o descrito quadro factual, não é o mesmo, em nosso entender, suficiente, para que se considere estarmos perante um exercício abusivo do direito. E assim é porque da circunstância de se não ter apurado uma específica afectação do espaço, atenta a sua natureza comum, daqui não decorre que a assembleia não pudesse deliberar dar-lhe uma qualquer destinação que revertesse em benefício de todos ou parte dos condóminos. Depois, se a existência de um eficaz sistema de exaustão é indispensável ao funcionamento do restaurante, não está de modo nenhum demonstrado - tal factualidade nem sequer foi alegada - que a ocupação do espaço comum, com ruptura da cobertura e do telhado, fosse o único modo de garantir a sua instalação. Daí que não se vislumbre a ilegitimidade do exercício do direito pelo A invocado, impondo-se aos RR que reponham o edifício no seu estado original, para o que concede o prazo de 30 dias, que se apurou ser suficiente.

III – Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso interposto, alterando a sentença recorrida, em consequência do que vão os RR condenados a procederem ao fechamento de todas as aberturas executadas, a saber: a) uma abertura tipo janela com as dimensões de 60cm x 60cm; b) um buraco redondo, com 40cm de diâmetro, ambos na confinância da caixa (aqui dita de elevador) com a loja do r/c; c) o buraco na placa de cobertura do edifício; e c) A reporem todo o vigamento de suporte do telhado, tudo com materiais, consistência e segurança estrutural primitiva, sendo esta a que resulta do respectivo projecto de licenciamento da construção do edifício, no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado da decisão ora proferida.

Custas a cargo do A e dos RR na proporção de 1/5 para os primeiros e 4/5 para estes.

Relatora:

Maria Domingas Simões

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo

[1] Sob a epígrafe Partes comuns do prédio, dispõe o artigo 1421.º do Código Civil:

“1. São comuns as seguintes partes do edifício:

a) O solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio;

b) O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção;

c) As entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos;

d) As instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes.

2. Presumem-se ainda comuns:

a) Os pátios e jardins anexos ao edifício;

b) Os ascensores;

c) As dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro;

d) As garagens e outros lugares de estacionamento;

e) Em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.

3 - O título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns”.
[2] Cf. Aragão Seia, “Propriedade Horizontal”, 2.ª edição, págs. 101 e 137 e no mesmo sentido, Profs. P. Lima e A. Varela, CC anotado, Vol. III, pág. 425; na jurisprudência, a este propósito constante, v. Ac. do S. T. J., de 17/2/2011, Proc. n.º 881/09.2TVLSB.L1.S1 e Ac. T. R. Lisboa, de 20/1/2011, Proc. n.º 6484/04.4.0TVLSB.L1-2, ambos acessíveis no identificado sítio
[3] O preceito veio a ser alterado pela Lei n.º 32/2012, de 14 de Agosto.

[4] Assim, Aragão Seia, obra citada, pág. 143.
[5] Cf. autor e ob. citados, pág. 103.
[6] Cf. acórdãos do STJ de 19/2/2008, processo n.º 07 A4756, da Relação de Lisboa de 2/9/2012, processo n.º 3446/07-0 TVLSB.L1-2, e desta mesma Relação de Coimbra de 7/5/2005, processo n.º 1754/05, em www.dgssi.pt.
[7]  Cf. ainda o mesmo autor e obra, a págs. 144.

[8] Cf. acórdão do STJ de 13/2/2014, processo n.º 373/04.6 TBVFR.P2.S1, com recenseamento de outras decisões do mesmo STJ.
[9] Sem possibilidade da sua substituição por indemnização em dinheiro, conforme vem sendo defendido face “ao estatuto real do condomínio”, implicando “regras de interesse e ordem pública atinentes à organização da propriedade” – Aragão Seia, obra citada, pág. 143.
[10] Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectiva”, ROA 2005, ano 65, vol. II, acessível on-line”.