Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
17/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 05/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA A VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 12.º, 24.º E 29.º DO C. E. E ART. 21.º DO REGULAMENTO DA SINALIZAÇÃO DE TRÂNSITO, APROVADO PELO DECRETO REGULAMENTAR N.º 22-A/98 DE 1/10
Sumário:

1) O sinal obriga o condutor a de STOP – O parar antes de entrar no cruzamento ou entroncamento e a ceder passagem aos veículos que transitem na via em que vai entrar sinal B-2 previsto no art. 21 do Regulamento da Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 22-A/98 de 1/10).
2) Assim, perante tal sinal, o condutor, após parar só deve retomar a marcha e avançar depois de se assegurar que tal manobra não põe em perigo a circulação rodoviária da via prioritária, como resulta da regra geral do art. 12 n.º1 do C. E.
3) A amplitude da obrigação de ceder a passagem apenas se reporta aos veículos que se apresentem na via prioritária, em relação ao cruzamento ou entroncamento, a uma distância que lhes não permita gozar da sua prioridade sem perigo de acidente e sem necessidade de diminuir a velocidade, como se extrai da norma do art. 29 do C.E.
Decisão Texto Integral:
APELAÇÃO nº17/04
( 3º Secção Cível )
Relator – Jorge Arcanjo
Adjuntos – Isaías Pádua
Cardoso Albuquerque


Acordam no Tribunal da Relação de COIMBRA

I – RELATÓRIO

1.1. - O Autor – BB – instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-a-Velha, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré – CC, SA.
Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia 7.960.834$00, acrescida de juros legais, desde a citação, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude de acidente de viação, cuja culpa imputou ao condutor do veículo segurado na Ré.
Contestou a Ré, por impugnação, atribuindo ao Autor a culpa exclusiva do acidente.
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que decidiu julgar a acção improcedente e absolver a Ré do pedido.

1.2. - Inconformado, o Autor dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1º) - A conjugação dos factores determinantes da eclosão do acidente, retratadas na matéria de facto tida por provada, conduzem, salvo o devido respeito, a conclusões diversas das constantes da Sentença quanto à culpa na produção do acidente.

2º) - De acordo com aquela factualidade, o Autor, conduzindo o seu veículo de matrícula KK (Facto Provado 9), na Rua Nossa Senhora do Socorro, e no sentido Nossa Senhora do Socorro — EN1 (Facto Provado 15), a velocidade não superior a 40 Kms/ Hora (Facto Provado 16), pela hemi-faixa de rodagem direita considerando o seu sentido (Facto Provado 17), ao chegar ao cruzamento daquela via com a EN1, o Autor, que pretendia atravessar a EN1 e seguir em direcção à Rua Primeiro de Dezembro (Factos Provados 19 e 21), aproximou-se da linha de intersecção com a EN1, onde se imobilizou por momentos em obediência ao sinal de STOP (Factos Provados 19 e 22), iniciou a travessia da EN1 em direcção ao ramal de acesso a Albergaria-a-Velha (Facto Provado 23), seguiu em frente, perpendicularmente ao eixo da EN1 (Facto Provado 24), atravessou toda a hemi-faixa de rodagem direita da EN1, sentido Coimbra — Porto (Facto Provado 25), entrou na hemi-faixa de rodagem esquerda da EN1, atento o mesmo sentido (Facto Provado 26), e foi já nessa hemi-faixa que o veículo JJ, conduzido pelo DD, que circulava no sentido Porto — Coimbra (Facto Provado 10), foi embater com a sua frente na parte lateral direita do veículo KK, sensivelmente do meio para a traseira (Facto Provado 27), projectando o KK por sobre o lancil central existente na embocadura daquela via (Facto Provado 28), vindo este a imobilizar-se junto à berma lateral esquerda da Rua Primeiro de Dezembro, atento o sentido EN 1— Centro da Vila (Facto Provado 29);

3º) - Para efectuar aquela manobra de travessia da EN1, o Autor, conduzindo o KK, teve de o fazer necessariamente em marcha lenta, pois arrancou depois de se haver imobilizado na linha de intersecção com a EN1, e percorreu nessa marcha a berma do lado direito (sentido Coimbra — Porto) com a largura de 1,50 metros, as duas pistas de trânsito de sentido Coimbra — Porto, com não menos de 7 metros de largura, e ainda parte da pista de trânsito de sentido Porto — Coimbra com a largura de cerca de 3,30 metros, sendo que para o KK ser apanhado, no embate, do meio para a traseira, teria já percorrido naquela hemi-faixa, até porque o condutor do JJ não foi obrigado a sair da sua mão de trânsito, não menos de 1,50 metros (Facto Provados 3 e 6) Isto é, o Autor, conduzindo o KK, na travessia da EN1, percorreu em toda aquela manobra, em marcha lenta, até ser colhido pelo KB, não menos de 10 metros.

4º) - Sendo verdade que o JJ circulava numa extensa recta de boa visibilidade, e que o cruzamento da Rua Senhora do Socorro e Rua Primeiro de Dezembro é também de boa visibilidade, como resulta da participação e croquis da G.N.R. de fls., da matéria tida por provada, e dos documentos juntos aos Autos (…), é manifesto que o DD, condutor do JJ, se seguisse a velocidade moderada, com atenção à sua condução, usando da diligência devida, não podia deixar de ter visto, a bastante distância, o KK, conduzido pelo Autor, a arrancar da Rua Senhora do Socorro e percorrer aqueles 10 metros em marcha lenta (…). E teria tempo mais que suficiente para travar o JJ, ou efectuar uma manobra que lhe permitisse evitar o embate.

5º) - O DD só trava, segundo os factos tidos por provados, quando está a bem menos de 46 metros do KK (Facto Provado 34), como resulta do croquis da G.N.R. Isto é, quando está já em cima do KK (…) e ao fazê-lo deixou marcados no pavimento (isto apesar do embate no KK, pelas leis da física amorteceu necessariamente, reduzindo-a, a velocidade do JJ ) um rasto de travagem de cerca de 46 m.

6º) - O que demonstra que o DD seguia distraído, desatento à sua condução, e aliás etilizado (1,13 g/l) conforme se colhe da Participação da G.N.R., apercebendo-se tardiamente da presença do KK conduzido pelo Autor, que seguia a velocidade excessiva para o local, até porque o embate foi tão violento que projectou o KK por cima do lancil central existente na Rua Primeiro de Dezembro, onde confina com a EN1, que galgou indo ainda imobilizar-se (o KK) junto à berma lateral esquerda da Rua Primeiro de Dezembro, sentido EN1 — Centro da Vila (Factos Provados 27, 28, 29, 34 e 35).

7º) - Sendo que, a um rasto de travagem de 46 metros (sem obstáculos que façam reduzir a velocidade como aconteceu no acidente dos Autos) corresponde uma velocidade não inferior a 90 Kms/ Hora, de acordo com a Tabela das Distâncias de Paragem constantes do estudo “Les Acidentes de la Circulation”, pág. 30, de Marguerite Mercier.

8º) - Perante esta factualidade é inequívoco que o DD, condutor do JJ, foi o único e exclusivo, senão o principal, culpado na produção do acidente, tendo violado o disposto nos arts. 3°, 24° nº 1, 25º nº1, f), 27º nº1, 135° e 137°, todos do Código da Estrada.

9º) - - Do depoimento das testemunhas, prestados em Audiência de Julgamento, resulta que: o DD, condutor do JJ, quando o Autor, conduzindo o KK, começou a atravessar a EN1, vinha na Ponte (Ponte sobre a Linha do Comboio), que dista do local onde se veio a dar o embate cerca de 150 metros, correspondendo toda esta distância a uma recta de boa visibilidade, a permitir que o DD tivesse tempo e espaço mais que suficiente para ver o Autor e para travar o veículo. O embate do JJ no KK deu-se quando este último tinha já a frente para lá da linha de intersecção da EN1 com a Rua Primeiro de Dezembro, apenas se encontrando sobre a EN1 a retaguarda do veículo, da porta traseira para trás. O JJ apareceu subitamente, a grande velocidade, travando quando já estava muito próximo do KK.

10º) - Factualidade que determina que estejam incorrectamente julgados os pontos de facto dos art°s. 15°a 25º, 27° (que mereceram a resposta de “Não Provado”) e 30º (que recebeu resposta restritiva), todos da Base Instrutória.

11º) - Os depoimentos gravados que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto supra referida, e ainda dos factos provados nºs. 33, 34 e 35 da Sentença, diversa da recorrida, são os prestados pelas testemunhas: EE ( Acta de Audiência de 11/04/2003, de fls. 170 e 171, Cassete n°. 1- Lado A, rotações 000 a 917), FF ( Acta de Audiência de 11/04/2003, de fls. 171, Cassete nº1 1 — Lado A, rotações 917 a 1976 )e JERÓNIMO AMILCAR AFONSO ( Acta de Audiência de fls. 171, de 11/04/2003, Cassete n°. 11 — Lado A, rotações 1976 a 2552 e Lado B, rotações 000 a 054 ).

12º) - O Meritíssimo Juiz a quo omitiu na Sentença ora sob recurso, o exame crítico das provas que lhe serviram de base, e que deveriam servir de base, nomeadamente a prova testemunhal gravada em suporte magnético, para formar a sua convicção, em relação a factos que eram determinantes para a decisão da causa, o que determina a nulidade da Sentença nos termos dos art°s. 659° n° 3, 660 n° 2 e 668 nº 1 al.b), do Código de Processo Civil.

13º) - Atenta a prova produzida, gravada em suporte magnético, a factualidade tida por provada e assente, quer por acordo, quer pelos depoimentos prestados pelas testemunhas, quer ainda a prova documental, articulados entre si, é manifesta a insuficiência para a decisão da matéria de facto tida por provada e o erro notório na apreciação da prova – arts. 690°-A nº1 e 712º, ambos do Cód. de Processo Civil.

14º) - A factualidade supra exposta em II-2), que emerge da prova gravada em suporte magnético, nomeadamente dos depoimentos supra-mencionados em II-4), conjugados com a demais prova testemunhal e documental dos Autos, determinam a alteração das respostas aos quesitos 15 a 25, 27 e 30, e a correcção dos pontos de facto 33, 34 e 35 da Sentença, que foram incorrectamente julgados. Prova gravada essa da qual o Tribunal deverá proceder à respectiva audição, ou mesmo ordenar a sua transcrição por entidade externa, nos termos do art°. 690°- A, nº 5 do C. P. Civil.

15º) - Ao decidir nos termos da douta Sentença em recurso, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts.3, 24 nº1, 25, nº1 f), 27 nº1, 135 e 137 do Código da Estrada, arts. 659 nº3 e 660 nº2 do C. P. Civil, dos quais fez uma incorrecta interpretação e aplicação, sendo manifesto o erro na apreciação da prova (art. 690-A nº1 1 do CPC Civil), tudo a determinar os termos do art. 712 nº1 als. a) e b), nº2, 3, 4 e 5 do CPC.

Contra-alegou a Ré, preconizando a improcedência do recurso.

II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).

Considerando as conclusões que o Autor extraiu da respectiva motivação, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) - A nulidade da sentença;
b) - A impugnação da matéria de facto ( quesitos 15º a 27º e 30º, da base instrutória );
c) – A culpa na produção do acidente.

2.2. – 1ª QUESTÃO / a nulidade da sentença:

O apelante arguiu a nulidade da sentença, cominada no art.668 nº1 alínea b) do CPC, com fundamento na omissão do “ exame crítico das provas “ que lhe serviram de base, nomeadamente a prova testemunhal gravada em suporte magnético, para formar a sua convicção, em relação a factos que eram determinantes para a decisão da causa ( arts. 659 nº 3, e 660 nº 2 do CPC ).

As nulidades da sentença estão taxativamente previstas no art.668 nº1 do CPC, não constando do seu elenco a pretensa violação do art.659 nº3 do CPC.
Inscreve-a o apelante na alínea b) do nº1 do art.668 do CPC, mas sem qualquer consistência, visto que esta causa de nulidade pressupõe a falta absoluta de fundamentação, o que manifestamente não sucede.
O art.659 nº3 do CPC ao determinar que o juiz deve fazer “ o exame crítico das provas que lhe cumpre conhecer”, significa que na fundamentação devem ser atendidos além dos factos levados à base instrutória e provados ao abrigo do princípio da livre apreciação ( art.655 nº1 CPC ), os factos provados por documentos, desde que façam prova plena, os factos provados por confissão escrita, bem como os factos que por presunção judicial ( arts.349 a 351 do CPC ) é possível deduzir de outros devidamente comprovados ( cf. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil, Anotado, vol.2º, pág.643, AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág.22 ).
Acontece que o apelante para justificar essa omissão socorre-se do erro notório na apreciação da prova, cuja sindicância só pode ser feita pela via do recurso de facto, mesmo quando esteja em causa a alteração da matéria de facto com base nas presunções judiciais ( art.712 nº1 do CPC ), mas isto nada tem a ver com a nulidade da sentença.
Improcede, por isso, a arguida nulidade.

2.3. – 2ª QUESTÃO / a impugnação da matéria de facto:
2.3.1. - A revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL 329-A/95 de 12/2, instituiu, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto.
Porém, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.690-A nº1 e 2 do CPC.
Por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar ( até pela própria natureza das coisas ) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte, por isso, o princípio da livre apreciação da prova ( art.655 do CPC ) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão ( cf. MICHEL TARUFFO, “La Prueba De Los Hechos”, Editorial Trotta, 2002, pág.435 e segs. ).
De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador ( art.653 nº2 do CPC ).
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.
Como se refere no Ac da RC de 3/10/2000 ( C.J. ano XXV, tomo IV, pág.27 ), “ o tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção ( que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova ), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova ( com os mais elementos existentes nos autos ) pode exibir perante si “.
2.3.2. - Considerando os princípios expostos sobre a reapreciação da prova em 2ª instância, passa-se a aquilatar do recurso de facto.
O tribunal julgou não provados os quesitos 15º a 27º e ao quesito 30º ( “ Após aquele embate no KK, o JJ seguiu em marcha desgovernada?” ) respondeu “ provado apenas que após aquele embate no KK, o JJ seguiu em marcha “.
Alegando erro notório na apreciação da prova, pretende o apelante que a Relação julgue provada tal factualidade, com fundamento nos depoimentos das testemunhas EE, FF e GG.
A matéria de facto que o apelante questiona corresponde à versão alegada na petição inicial quanto à dinâmica do acidente, que não logrou acolhimento na 1ª instância.
Segundo o Autor o embate ocorrido entre a frente do JJ e a parte de trás lateral direita do KK deu-se na Rua 1º de Dezembro, já fora da faixa de rodagem da EN1, em que seguia o JJ.
Tal aconteceu porque o condutor do JJ ( DD ) seguia distraído, com acelerações constantes e irregulares, a mais de 120 km/h, pelo que perdeu o controle e guinou subitamente para a direita, invadindo a berma do lado direito e a Rua 1º de Dezembro.
Pois bem, o apelante ao referir que os depoimentos destas testemunhas impõem decisão diversa da que foi proferida na 1ª instância, desvirtua claramente os seus depoimentos, pois nenhum delas corroborou tal versão, designadamente, situando o local de embate já na Rua 1º de Dezembro, por o condutor da carrinha JJ ter previamente guinado para a direita, em virtude da perda de controlo da viatura.
A EE presenciou o acidente, pois vinha de casa da filha e estava no local, preparando-se para atravessar a rua, enquanto a FF se encontrava no seu estabelecimento comercial ( café ), perto do cruzamento, vendo o acidente ( parte dele ) através de uma janela, tendo sido despertada pelo barulho da travagem do veículo JJ.
Com efeito, tanto a EE, como a FF, que presenciaram o acidente, e não obstante terem sido várias vezes questionadas sobre o facto, afirmaram que o embate se deu na faixa de rodagem em que seguia o veículo JJ, tendo, no entanto, parte da frente do KK ( Pólo ) já ultrapassado a linha de intercepção entre a EN1 e a Rua 1º de Dezembro.
As mesmas testemunhas não souberam precisar a que velocidade circulava o JJ, embora referissem expressões como “ grande velocidade “, ( FF ) “ velocidade doida “ ( EE ), nem o local da recta em que o condutor Pedro iniciou a travagem.
Por seu turno, a testemunha GG, soldado da GNR, deslocou-se ao local e elaborou a participação, com o croqui e o aditamento posterior, documentos com os quais foi confrontado em audiência, para melhor explicitar o depoimento.
Também quanto ao local do embate situou-o na EN1, em pela faixa de rodagem em que circulava o JJ, se bem que tivesse sido indicado pelo respectivo condutor, embora mencionasse existirem vestígios.
Relativamente aos rastos de travagem, confirmou ter procedido à medição, exarada no croqui ( aditamento ), esclarecendo que os mesmos se apresentavam a direito e não de forma oblíqua.
Quanto à extensão da recta, as testemunhas também não precisaram a distância, dizendo a EE ter mais de 60 metros e o GG falou em 150 metros.
Não é de somenos importância ressaltar um pormenor do depoimento da EE, aquando da descrição do acidente, ao referir que se o Autor tivesse olhado ( após ter parado ao STOP ) é natural que visse o veículo JJ.
Não resultando da prova testemunhal a velocidade a que circulava o JJ, e nem seria exigível tal demonstração, a ela não se pode chegar pela simples percepção que cada uma das testemunhas revelou, de contornos muito subjectivos.
Tendo o tribunal considerado não provado o quesito 21º( “ O JJ circulava a mais de 120 Kms/hora? “ ), sustenta o apelante que os rastos de travagem ( 46 metros ) corresponde a uma velocidade não inferior a 90 Km/h, segundo determinada tabela.
Os rastos de travagem podem servir de indicação sobre a velocidade dos veículos, existindo várias tabelas nesse sentido, jogando-se com o tempo de reacção, a distância de paragem e a distância de travagem ( cf. EURICO CONSCIÊNCIA, Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel, pág.161 a 172 ).
No entanto, as várias tabelas não são concordantes e para os casos concretos releva o tipo de veículo, a natureza dos travões, o estado de conservação dos pneus e outras características técnicas.
Desconhecendo-se estes factores, não se poderá, em bom rigor, precisar a velocidade do JJ, sendo certo que parte dos rastos de travagem situa-se para lá do local de embate, como se depreende do depoimento da testemunha GG, soldado da GNR, e consta da resposta ao quesito 40º, que o apelante não impugnou.
Acresce que, segundo algumas tabelas, a distância de paragem ( distância percorrida entre o ponto em que condutor actua no travão e o ponto em que o veículo pára ), em pavimento seco, com reflexos de ¾ do segundo, a uma velocidade de 80 km/h é aproximadamente de 48 metros ( cf. tabela referida no Código da Estrada de OLIVEIRA MATOS, 1981, pág.49, segundo dados extraídos de MARGUERITE MERCIER, Les Acidents de la Circulation, pág.30 ).
Daí que, contrariamente ao preconizado pelo apelante, não haja elementos seguros que permitam, mesmo com recurso às presunções judiciais, alterar a resposta negativa ao quesito 21º.
Em face das considerações expostas sobre os critérios da valoração da prova e tendo o tribunal objectivado a sua convicção de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, com uma análise criteriosa, sem que se mostrem violadas as regras da experiência comum, a indicada pelo recorrente não impõe decisão diversa, pelo que improcede o recurso sobre a matéria de facto, mantendo-se intangível a descrita na sentença.

2.4. – OS FACTOS PROVADOS:

1) - A 25 de Abril de 1999, pelas 18.45 horas, deu-se um acidente de viação em que foram intervenientes: o veiculo ligeiro de mercadorias de matricula JJ e o veiculo ligeiro de passageiros de matricula KK.
2) - O sinistro ocorreu ao km 248,300 da EN1, no concelho de Albergaria-a-Velha.
3) - A estrada no local é em ligeiro declive, desenhando-se numa descida, para quem circula no sentido Porto - Coimbra, tem pavimento asfaltado, em bom estado de conservação, com 10,30 metros de largura e bermas de ambos os lados da via, com a largura de cerca de 1,50 metros cada, desenvolvendo-se numa recta.
4) - Que forma com a Rua de Nossa Senhora do Socorro e a Rua Primeiro de Dezembro um cruzamento.
5) - A EN1 naquele local dispõe de duas faixas de rodagem, delimitadas por um traço contínuo ao eixo da via, que tem, na zona do cruzamento, e paralelo aos mesmos, dois traços descontínuos, de modo a permitir o acesso de e para as Ruas de Nossa Senhora do Socorro e Primeiro de Dezembro.
6) - A EN1, naquele local, na faixa de rodagem de sentido Coimbra – Porto, dispõe de duas pistas de trânsito e na de sentido Porto – Coimbra apenas de uma pista de trânsito.
7) - Quer a Rua de Nossa Senhora do Socorro, quer a Rua Primeiro de Dezembro, dispõem na embocadura do cruzamento com a EN1 de um lancil oval ao centro da via, de modo a delimitar os acessos de e para cada uma daquelas vias.
8) - E dispõem também, ambas aquelas ruas, a anteceder o cruzamento com a EN1, de sinais de paragem obrigatória (STOP), que obriga os condutores que ali circulem, em direcção a EN1, a parar na intersecção do cruzamento.
9) - O veículo ligeiro de passageiros de matrícula KK era propriedade do Autor.
10) - O JJ era conduzido por DD Martins Lobo e circulava no sentido Porto-Coimbra.
11) - O KK circulava na Rua Senhora do Socorro, e no sentido Senhora do Socorro – EN1.
12) - Seguia em marcha não superior a 40 kms/hora.
13) - Pela hemi-faixa de rodagem direita, atento o sentido Rua Nossa Senhora do Socorro – EN1.
14) - À sua frente, e também no sentido Rua de Nossa Senhora do Socorro – EN1, circulavam outros dois veículos.
15) - Ao chegar ao cruzamento da Rua Nossa Senhora do Socorro com a EN1, o Autor, conduzindo o KK e os veículos que seguiam à sua frente pararam na linha de intersecção, em obediência ao sinal de STOP, ali existente.
16) - Entretanto, os dois veículos que seguiam à frente do Autor arrancaram, atravessando a EN1.
17) - O A. pretendia atravessar a EN1 e seguir em direcção à Rua Primeiro de Dezembro.
18) - Para o efeito, aproximou-se da linha de intersecção com a EN1, onde se imobilizou por momentos.
19) - O veículo KK iniciava a travessia da EN 1, em direcção ao ramal de acesso a Albergaria-a-Velha.
20) - Seguiu em frente, perpendicularmente ao eixo da EN1.
21) - Atravessou toda a hemi-faixa de rodagem direita da EN1, sentido Coimbra-Porto.
22) - Entrou na hemi-faixa de rodagem esquerda da EN1, atento o mesmo sentido.
23) - O veículo JJ foi embater com a sua frente na parte lateral direita do veículo KK, sensivelmente do meio para a traseira.
24) - Projectando o KK sobre o lancil central existente na embocadura daquela via.
25) - Vindo este a imobilizar-se junto à berma lateral esquerda da Rua Primeiro de Dezembro, atento o sentido EN1 - centro da vila.
26) - Após aquele embate no KK, o JJ seguiu em marcha.
27) - Vindo a imobilizar-se mais à frente na valeta que margina a EN1 pelo lado direito, sentido Porto – Coimbra.
28) - O JJ seguia pela sua “mão” de trânsito.
29) - O tripulante do JJ travou, na tentativa de evitar o acidente.
30) - Deixando marcados no pavimento, dentro da sua hemi-faixa de rodagem e em linha recta, cerca de 46 metros de rasto de travagem, parte do qual antes e parte depois do local do embate.
31) - Em plena faixa de rodagem da E.N.1 destinada à circulação no sentido Porto/Coimbra.
32) - Mercê do acidente, o A. sofreu lesões, tais como: perda de 7 dentes do maxilar superior, feridas inciso-contusas na cabeça, escoriações e hematomas por todo o corpo.
33) - Em consequência dos ferimentos sofridos no acidente, o A. foi remetido para o Hospital Distrital de Aveiro.
34) - Aí lhe efectuaram diversos tratamentos, limpeza, desinfecção e medicação das feridas e escoriações sofridas.
35) - Aí lhe suturaram a ferida inciso-contusa na cabeça, submeteram-no a exames radiográficos, e trataram o maxilar.
36) - Após o que o remeteram para o domicilio, com a indicação de aí se manter em repouso absoluto.
37) - Após o acidente, o A. foi assistido por uma enfermeira, diariamente na primeira semana e dia sim/dia não na semana seguinte.
38) - Com as lesões sofridas e tratamentos a que foi submetido, o Autor sofreu dores.
39) - O A. submeteu-se a tratamentos de fisioterapia.
40) - Tratamentos esses que se prolongaram de 23/06/99 a 21/07/99, período durante o qual o A. se submeteu a 21 sessões de fisioterapia.
41) - Devido ao acidente o A. esteve totalmente incapacitado para o trabalho durante 60 dias.
42) - O A. deu uma gratificação de 30.000$00 à enfermeira que o tratou.
43) - O valor do KK antes do acidente era de cerca de 750.000$00.
44) - O KK era um Volkswagen polo Coup CL, com 59.000 kms.
45) - Mercê do acidente, o veiculo ligeiro de passageiros, matricula KK, sofreu danos, tendo vindo a concluir-se pela inviabilidade da sua reparação.
46) - O A. nasceu a 18.5.1930.
47) - A responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do JJ, encontrava-se transferida para a Ré Seguradora, por contrato de seguro através da apólice nº.401957.

2.4. – 3ª QUESTÃO / a culpa:

A sentença recorrida julgou a acção improcedente com fundamento na culpa exclusiva do Autor, porquanto, apesar de haver parado ao sinal de STOP, retomou a marcha sem adoptar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente, com manifesta violação do art.12 nº1 do CE.

Por seu turno, o condutor do JJ não praticou qualquer conduta contra-ordenacional, nem violou o dever geral de cuidado inerente à circulação rodoviária.

O Apelante pretende a revogação da sentença, sustentando a culpa exclusiva do acidente por parte do condutor do JJ, ou subsidiariamente a concorrência de culpas.

Fê-lo, porém, no pressuposto da requerida alteração dos factos impugnados, na qual assentou essencialmente a pretensão recursal, mas como esta sucumbiu, resta aquilatar se, perante os elementos factuais disponíveis, houve erro de direito.

Cabendo ao Autor a prova dos factos constitutivos do seu direito, designadamente da ilicitude e da culpa ( arts.342 nº1 e 487 do CC ), mesmo através da chamada “ prova da primeira aparência “, a verdade é que não demonstrou, contrariamente ao alegado, que o condutor do JJ circulasse com velocidade superior a 120 km/h.

Importa, então, indagar se houve violação da norma do art.24 nº1 do CE, por circular com velocidade excessiva, ou seja, se não parou no espaço livre e visível à sua frente, desrespeitando a “ distância de segurança”.

A regra de que o condutor deve adequar a velocidade de modo a permitir parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente pressupõe que não surjam condições anormais ou obstáculos inesperados, já que um condutor não é obrigado a contar com a imprudência alheia, dado o princípio da confiança.

O Autor, circulando na Rua Nossa Senhora do Socorro, parou ao sinal de STOP e atravessou a EN1, dirigindo-se para a Rua 1º de Dezembro, tendo sido embatido pelo JJ, em pela faixa de rodagem deste, que seguia na EN1 ( sentido Porto/Coimbra ).
O sinal de STOP obriga o condutor a parar antes de entrar no cruzamento ou entroncamento e a ceder passagem aos veículos que transitem na via em que vai entrar ( sinal B-2 previsto no art.21 do Regulamento da Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº22-A/98 de 1/10 ).
Porém, o sinal de STOP impõe não só a paragem, como a cedência da passagem aos veículos que circulem pela via prioritária, ou seja, para o seu rigoroso cumprimento não basta o mero formalismo de parar e arrancar de seguida, sem deixar passar o veículo, cujo condutor tem direito de prioridade.
Assim, perante tal sinal, o condutor, após parar só deve retomar a marcha e avançar depois de se assegurar que tal manobra não põe em perigo a circulação rodoviária da via prioritária, como resulta da regra geral do art.12 nº1 do CE.
A amplitude da obrigação de ceder a passagem apenas se reporta aos veículos que se apresentem na via prioritária, em relação ao cruzamento ou entroncamento, a uma distância que lhes não permita gozar da sua prioridade sem perigo de acidente e sem necessidade de diminuir a velocidade, como se extrai da norma do art.29 do CE.
No caso concreto, não se sabe a que distância se encontrava o JJ quando o KK retomou a marcha, e muito menos a velocidade instantânea daquele.
Mas em todo o caso, sabido que no local a EN1 tinha a configuração de uma recta, o embate ocorreu logo que o KK atravessou a hemi-faixa ( sentido Coimbra /Porto ), o local do embate situou-se na hemi-faixa de rodagem em que seguia o JJ ( Porto/Coimbra ), cujo condutor procurou ainda evitar a colisão, tendo travado, deixando rastos de travagem de 46 metros, mas parte dos quais já depois do embate, entre a frente do JJ e parte lateral traseira do KK, a conjugação de todos estes factores permite inferir que o Autor postergou o dever legal de cedência de passagem e o dever geral de cuidado ao retomar a marcha, violando, assim, as normas dos arts.21 B-2 do RST, 12 nº1 e 29 nº1 do CE.
De resto, a circunstância do condutor do JJ ter travado, e mesmo assim não conseguiu evitar o embate, revela que a distância não era tão grande que permitisse ao Autor efectuar a manobra sem risco de acidente, ou que aquele não fosse avistável, no momento em que iniciou a travessia.
Nesta perspectiva, mesmo que se configurasse velocidade excessiva por parte do condutor do JJ, o que não está demonstrado, tal contra-ordenação não seria causal do embate.
Para imputar a culpa do acidente ao condutor do JJ, alegou ainda o apelante que o DD ( condutor do JJ ) seguia desatento, em virtude de se encontrar etilizado, com 1,13 g/l, conforme resulta da participação.
Porém, tal como objectou a apelada, trata-se de questão nova, não submetida à apreciação da 1ª instância, sendo certo que tal facto nem sequer foi alegado na petição inicial, com vista à garantia do contraditório.
Em resumo, o acidente é imputável à culpa exclusiva do Autor, ficando afastada a responsabilidade civil da Ré ( art.505 do CC ), tal como se decidiu na 1ª instância, e porque a sentença recorrida não violou as normas jurídicas invocadas no recurso, improcede a apelação.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar o apelante nas custas.
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COIMBRA, 25 de Maio de 2004.