Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00121/04.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/28/2006
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Drº Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Descritores:PODER DISCIPLINAR. NATUREZA. PODERES PRONÚNCIA TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS. ART. 71º CPTA
Sumário:I. O exercício da acção disciplinar, mormente, a decisão de instaurar ou não procedimento, envolve e dota o detentor deste dum poder que, para além da observância de critérios de legalidade, comporta ainda juízos de apreciação sobre a conveniência e oportunidade no seu exercício à luz dos interesses do serviço, juízos esses que só o próprio serviço estará em condições de apreciar e ponderar, explicitando-os e fundamentando-os.
II. Em matéria do exercício da acção disciplinar não podemos de deixar de considerar como vinculada a actividade da Administração em matéria da competência da entidade para a instauração do processo, ou a actividade da mesma quando, no momento liminar, avalia da situação veiculada para apurar se houve ou não infracção disciplinarmente censurável e decide pelo arquivamento do auto, participação ou queixa, fundando-o em inexistência de infracção disciplinar por os factos não integrarem qualquer violação de deveres que impendam sobre o(s) agente(s) ou funcionário(s) visado(s), em existência de circunstância dirimente ou que exclua a responsabilidade disciplinar, em amnistia, em prescrição.
III. Sobre o auto, participação ou queixa disciplinar apresentados ou deduzidos recai sobre a Administração o dever de decidir, de emitir pronúncia sobre aquele registo que desencadeou procedimento administrativo [arts. 50.º, 27.º, n.º 1, al. a) do ED], não estando a Administração subtraída ao cumprimento do referido dever.
IV. As acções administrativas especiais de condenação à prática do acto devido têm por objecto sempre a pretensão do interessado e, nessa medida, mesmo em face dum acto de recusa (recusa de emissão de decisão favorável ou recusa de apreciação do requerimento) este meio contencioso dirige-se não à anulação contenciosa daquele acto de recusa mas, ao invés, à condenação da Administração na prolação dum acto que, substituindo aquele, emita pronúncia sobre o caso concreto ou que venha a dar satisfação à pretensão deduzida.
V. Não estamos aqui face a um “processo feito a um acto”, visto estarmos em presença dum processo de plena jurisdição cujo objecto diz respeito à pretensão material do interessado, à relação material controvertida que se constituiu e que remete para o tribunal o dever de analisar e decidir do mérito daquela pretensão.
VI. Nessa medida mostra-se desnecessária a dedução de pedido de anulação, de declaração de nulidade ou de inexistência do acto de indeferimento porquanto resulta directamente da pronúncia condenatória a eliminação da ordem jurídica daquele acto (art. 66.º, n.º 2 do CPTA).
VII. A dedução duma pretensão condenatória à prolação de acto devido não se reconduz unicamente àquelas situações em que o “acto devido” é um acto cujo conteúdo se mostra legalmente “pré-determinado” por exercido ao abrigo de poderes estritamente vinculados, mas também às situações em que a Administração age no âmbito de poderes discricionários.
VIII. Dado o exercício do poder de decisão de instaurar ou não o procedimento disciplinar não ser, nos termos legais, totalmente vinculado quanto a todo o seu possível conteúdo temos que sobre a Administração não impende um dever estrito de praticar um acto com um único/exclusivo e determinado conteúdo e, nessa medida, não assiste o direito a exigir a prática de acto a instaurar automaticamente com a queixa/participação o procedimento disciplinar contra o visado.
IX. Não integrando ou preenchendo minimamente os factos participados previsão normativa susceptível de constituir ilícito disciplinar a decisão de arquivar, não instaurando procedimento disciplinar, mostra-se a adequada e devida “in casu”, improcedendo, desta feita, a pretensão material deduzida.
X. Face à natureza deste tipo de processo temos que, salvo pretensão de condenação da Administração à prática de acto conforme a exigências formais previstas na lei, os vícios formais de que padeça o acto administrativo recusado/omitido tenderão a ser relevados quando substancialmente legal, até por efeito do próprio princípio do “aproveitamento” de actos administrativos formalmente ilegais.
Data de Entrada:02/17/2006
Recorrente:M.
Recorrido 1:Universidade do Porto
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
M…, devidamente identificada a fls. 02, inconformada veio interpor recurso jurisdicional do acórdão do TAF do Porto, datada de 08/07/2005, que julgou improcedente a acção administrativa especial pela mesma instaurada contra a UNIVERSIDADE DO PORTO e o contra-interessado A…, identificado igualmente nos autos a fls.02, na qual era peticionada a condenação à prática do acto de instauração de procedimento disciplinar ao referido contra-interessado pelas afirmações produzidas no documento que se anexou como n.º 1, “em prazo a fixar pelo Tribunal e sob a cominação da sanção pecuniária compulsória que o Tribunal entenda fixar”.
Formula, nas respectivas alegações (cfr. fls. 219 segs.), as seguintes conclusões:
“(…)
a) Ao decidir no sentido indicado, a sentença recorrida violou o princípio da legalidade contido nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e no artigo 3.º do CPA;
b) Violou também o disposto no artigo 25.º, n.º 1 e 26, n.º 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar, ao considerar insindicável a abstenção do exercício do poder disciplinar no caso do cometimento de infracções graves como aquelas de que se tratava e estão previstas naquelas normas;
c) Violou o disposto no artigo 100.º do CPA, ao admitir como insindicável acto violador da formalidade essencial de audiência prévia;
d) Violou o disposto no artigo 124.º do CPA, ao considerar inapreciável acto administrativo inteiramente infundamentado;
e) Violou o disposto no artigo 71.º, n.º 2, in fine, do CPTA, em virtude de se ter furtado à obrigação de explicitar à Administração as vinculações a observar na emissão do acto devido, embora o mesmo envolvesse a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa. (…).”
Conclui no sentido da revogação da decisão recorrida, com as legais consequências.
O contra-interessado, aqui ora recorrido, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 229 e segs.) nas quais conclui nos seguintes termos:
“(…)
A) Não merece qualquer censura a decisão judicial em recurso;
B) Nas suas conclusões de recurso, a Recorrente vem suscitar questões que não foram objecto de apreciação da douta sentença de que se recorre, persistindo na alegação de vícios que não foram apreciados na douta sentença em recurso, sendo que em boa verdade, nenhuma das conclusões do recurso, se dirige em concreto a censura da douta sentença proferida nos presentes autos. (…).”
Termina concluindo no sentido de que se deve ser rejeitado o recurso.
O ente recorrido, aqui igualmente recorrido, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 239 e segs.) nas quais conclui nos seguintes termos:
“(…)
I. A Sentença recorrida não se baseia em falsos e erróneos pressupostos, não violando, desta forma, o principio da legalidade vertida no artigo 266.º, n.º 2 da CRP, pelo supra referido.
II. Não viola, também, o disposto no artigo 100.º do CPA, face ao acima referido
III. Não viola, ainda, o disposto no artigo 124.º do CPA, conforme o já indicado. (…).”
Pugna pelo não provimento do recurso jurisdicional.
O Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA não emitiu qualquer pronúncia (cfr. fls. 279 e segs.).
Colhidos os vistos legais junto dos Exmos. Juízes-Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, sendo certo que, pese embora por um lado, o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 690.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” art. 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal de recurso em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a sentença recorrida, porquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito”, pelo que os recursos jurisdicionais são “recursos de ‘reexame’ e não meros recurso de ‘revisão’” (cfr. Prof. J. C. Vieira de Andrade in: “A Justiça Administrativa (Lições)”, 7ª edição, págs. 435 e segs.; Prof. M. Aroso de Almeida e Juiz Conselheiro C. A. Fernandes Cadilha in: “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, pág. 737, nota 1; Dr.ª Catarina Sarmento e Castro em “Organização e competência dos tribunais administrativos” - “Reforma da Justiça Administrativa” – in: “Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra - Stvdia ivridica 86”, págs. 69/71).
As questões suscitadas reconduzem-se, em suma, em determinar se ocorreu ou não violação dos normativos supra referidos por parte da decisão jurisdicional objecto de impugnação quando esta julgou improcedente a acção administrativa especial em presença [cfr. conclusões de recurso supra reproduzidas].
3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Da decisão recorrida resultaram provados os seguintes factos:
I) Em 07/05/2003 reuniu a Comissão Coordenadora do Conselho Científico do Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar – ICBAS – conforme acta que se encontra junta a fls. 13 e segs. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
II) Em 08/05/2003, o Prof. A…, na qualidade de Presidente ICBAS dirigiu à autora o ofício com a referência 481/CCI/A/D-03, do seguinte teor (cfr. doc. de fls. 10 dos autos):
Cara Prof. Doutora L… M…
Para os devidos efeitos, informo V. Ex.ª que em reunião da Comissão Coordenadora de 07.05.03, foi verificado que a área de Toxicologia da Licenciatura em Medicina Veterinária necessita de maior apoio docente no próximo ano lectivo.
Sendo, a Senhora Professora Catedrática da área da Ecotoxicologia, vimos requisitá-la para o ensino da cadeira de Toxicologia durante o próximo ano lectivo.
A regência desta disciplina está a cargo da Prof. Doutora L… G… com quem deve contactar no sentido de lhe ser atribuída tarefa docente para 2003/2004.
Tendo em conta a escassez em docentes do ICBAS, a que se junta um aumento continuado de alunos, não pode o Instituto suportar o elevado encargo financeiro de uma professora catedrática em exclusividade, sem que haja a sua contribuição significativa na docência.”
III) Em 01/07/2003 deu entrada na Universidade do Porto um requerimento apresentado pela autora dirigido ao respectivo Reitor, do seguinte teor (cfr. doc. de fls. 9 dos autos):
Venho dirigir a V. Ex.ª a seguinte participação disciplinar:
1. Em 9 de Maio passado, recebi do Prof. Doutor A…, na qualidade de Presidente do Conselho Científico do ICBAS, o ofício de referência 481/CCI/A/D – 03 (Documento n.º 1).
2. Em 23 de Maio requeri certidão do teor integral da acta da reunião da Comissão Coordenadora do Conselho Científico do ICBAS referida no ofício do Senhor Professor Doutor A… (Documento n.º 2).
3. Recebida a certidão (Documento n.º 3), verifiquei que da acta certificada nenhuma referência constava às circunstâncias invocadas por aquele Professor, ou outras que pudessem fundamentar o teor do ofício que me foi dirigido.
4. Constata-se, assim, que o Senhor Professor Doutor A…, agiu na qualidade de Presidente do Conselho Científico à revelia do referido Conselho, dirigindo-me uma comunicação ilegal, insultuosa e baseada em pressupostos falsos.
Ilegal, porque determina uma distribuição do serviço docente não emanada do Conselho e contrária ao ECDU, ao mandar-me como Professora Catedrática, coadjuvar uma Senhora Professora Associada.
Insultuosa, porque me colocaria na situação de servir de auxiliar na docência a uma Senhora Professora que tem na carreira docente uma categoria inferior à minha, foi até minha Assistente.
Insultuosa e baseada em pressupostos falsos, porque insinua que eu não cumpro o serviço docente a que estou legalmente obrigada, o que é rotundamente falso.
5. Esta actuação do Senhor Professor A… configura – para além da infracção grave de outros ordenamentos – procedimento gravemente atentatório da dignidade e do prestígio da função que exerce e deste modo, infracção disciplinar a que corresponde a pena de inactividade, nos termos do n.º 1 do art. 25.º do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Dec.-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro.
6. Dou, pois, dos factos conhecimento a V. Ex.ª, para que se digne desencadear a acção disciplinar respectiva contra aquele Professor.”
IV) Em 14/07/2003, o Reitor da Universidade do Porto dirigiu ao Prof. Doutor Á… o ofício com a referência SAR-41-05011, do seguinte teor (cfr. doc. de fls. 43 dos autos):
Na sequência da participação disciplinar junta, e no sentido de dar seguimento ao pedido, solicita-se a V. Ex.ª que alegue o que entender por conveniente.”
V) O Prof. Doutor A… respondeu ao ofício referido em IV), por ofício de 15/07/2003, junto a fls. 62 e segs. dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
VI) Por ofícios de 17/07/2003, o Reitor da Universidade do Porto informou o Prof. Doutor A… e a autora de que toda a documentação referente à participação disciplinar apresentada pela Prof. Doutora M… L… M…foi remetida à Secção Disciplinar do Senado (cfr. doc. de fls. 42 e 57 dos autos).
VII) Em 22/07/2003, o Prof. Doutor A… dirigiu novo ofício ao Reitor da Universidade do Porto, conforme documento junto a fls. 58 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
VIII) Em 27/10/2003 a Secção Disciplinar da Universidade do Porto tomou a seguinte deliberação (cfr. doc. de fls. 41 dos autos):
Participações disciplinares dos docentes do ICBAS, Prof. Doutora M… L… M… e Prof. Doutor A… um contra o outro:
A secção deliberou arquivar o processo.”
IX) Em 07/11/2003, o Reitor da Universidade do Porto dirigiu à autora o ofício com a referência DSPE – IND 07581, do seguinte teor (cfr. doc. de fls. 19 dos autos):
Em referência à carta de V. Ex.ª de 30.6.2003, em que solicita que seja desencadeada acção disciplinar contra o Prof. Doutor A…, informo de que a Secção Disciplinar do Senado, em reunião de 27.10.2003, deliberou arquivar o pedido.”
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3.2. DE DIREITO
Assente a factualidade apurada cumpre, agora, entrar na análise da questão suscitada para se concluir pela procedência ou improcedência da argumentação desenvolvida pela recorrente no recurso jurisdicional “sub judice”.
Argumenta a mesma, em suma, que a decisão judicial objecto de recurso ao entender insindicável a abstenção do exercício do poder disciplinar na sequência de participação fez errada aplicação e interpretação do princípio da legalidade, dos poderes decorrentes do art. 25.º do ED e de pronúncia dos tribunais administrativos conferidos pelo art. 71.º, n.º 2 do CPTA, bem como das regras decorrentes dos arts. 100.º e 124.º ambos do CPA.
Estribou-se a decisão impugnada na seguinte argumentação:
“(…) No caso em apreço, estamos perante uma situação em que a administração se move num quadro de poderes discricionários.
A questão nuclear que se coloca nos presentes autos é a de saber se perante a participação apresentada pela autora relativamente ao Prof. Doutor A… estava a entidade demandada obrigada a instaurar contra o mesmo procedimento disciplinar. E a resposta é, claramente, que não.
Prescreve o artigo 46.º, n.ºs 1 e 2 do Estatuto Disciplinar (…).
Resulta do disposto neste preceito legal que a lei confere aos cidadãos em geral o poder de denúncia de factos disciplinares praticados por agentes ou funcionários da Administração, sendo certo que este poder se acentua relativamente a estes, já que dimana do referido n.º 2 do artigo 46.º um dever-função. Aliás, a lei sanciona gravemente a falta de participação de infracção disciplinar quando a mesma seja cometida por dirigente ou equiparado. Assim é que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 27.º do Estatuto Disciplinar, “a pena de cessação da comissão de serviço será aplicada aos dirigentes e equiparados que não procedam disciplinarmente contra os funcionários e agentes seus subordinados pelas infracções de que tenham conhecimento”. Assim, o que resulta do referido preceito legal é a obrigatoriedade de participar a existência de uma infracção disciplinar e não, como parece fazer crer a autora, que sobre o pessoal dirigente impende o dever de instaurar o respectivo procedimento. E a diferença é significativa, já que uma coisa é dar conhecimento da infracção, e outra, bem diversa, é a decisão de instaurar o procedimento disciplinar.
Mas quais os efeitos que resultam para a autoridade detentora da acção disciplinar do exercício do dito poder de denúncia exercido por um qualquer cidadão ou por um seu funcionário ou agente? A resposta não pode ser outra que não a de que, recebida uma denúncia, sobre a Administração impende apenas a obrigação de apreciar os factos participados, mas já não o dever de determinar a instauração de procedimento disciplinar. Ou seja, a autoridade detentora da acção disciplinar deve receber a denúncia e sobre ela proferir despacho liminar decidindo se instaura ou não o procedimento adequado, esgotando-se aí a sua actuação.
Este entendimento resulta expressamente do disposto no artigo 50.º do Estatuto Disciplinar (…).
Se assim não se entendesse, estar-se-ia a atribuir ao cidadão ou funcionário que apresenta a denúncia um verdadeiro poder de acção disciplinar, em clara violação do princípio da legalidade administrativa.
(…) Em suma, estando em causa uma actuação da Administração no âmbito de poderes discricionários, na qual assumem especial relevância critérios de oportunidade, está o tribunal vedado de intervir sob pena de invadir o espaço próprio da discricionariedade administrativa. (…).”
Vejamos.
O cerne da discussão “sub judice” prende-se, por um lado, com a caracterização do poder disciplinar, a sua natureza e controlo, e, por outro, com os poderes de pronúncia dos tribunais, mormente, seus poderes condenatórios e limites do mesmo.
Aprofundando cada uma das questões de “per si” importa, desde já, cuidar da caracterização do poder disciplinar, sua natureza e controlo, mormente, os limites da sua impugnabilidade jurisdicional.
O poder disciplinar enquanto poder que se afirma e se traduz, muito sumariamente, na possibilidade de aplicar sanções (penas) correctivas ou expulsivas aos agentes e funcionários em consequência da violação de deveres que sobre os mesmos impendam, visa, em última análise, assegurar a coesão, o prestígio e a confiança no e do serviço administrativo e, assim, potenciar a realização dos fins que o mesmo visa prosseguir.
Tal poder disciplinar desdobra-se em duas faculdades, sendo, uma, a denominada “acção disciplinar” (competência para promover a averiguação dos factos que possam ser qualificados como infracções e eventual ulterior punição) e, outra, a “competência para aplicar sanções”.
No caso em presença, face aos contornos apurados, situamo-nos claramente no âmbito da primeira.
Ora tem sido entendimento uniforme ao nível jurisprudencial o de que a decisão administrativa de instaurar ou não instaurar procedimento disciplinar, com vista à eventual punição dos seus autores, depende de critérios de conveniência ou/e de oportunidade, e não só de legalidade, exercendo a Administração, nesta matéria, um poder com margem de discricionariedade [cfr., a este propósito, Acs. do STA de 26/06/1990 - Proc. n.º 27494 in: Ap. DR de 31/05/1995, págs. 4447 e segs., de 19/10/1995 – Proc. n.º 32609 in: Ap. DR de 30/04/1998, págs. 7838 e segs., de 02/07/1996 - Proc. n.º 38948 in: Ap. DR de 15/03/1999, págs. 4989 e segs., de 25 de Fevereiro de 1999 - Proc. n.º 37235 in: Ap. DR de 12/07/2002, págs. 1367 e segs.; ].
A este propósito atente-se na fundamentação do citado acórdão de 02/07/1996 que se passa a citar “(…) o poder disciplinar que se revela através da instauração daquele procedimento, é um poder instrumental: permite viabilizar a recondução do agente faltoso a um comportamento susceptível de assegurar a realização do fim público a cuja satisfação presidiu a criação do serviço onde exerce funções.
Daí que nem a toda a falta tenha de corresponder necessariamente um procedimento, pois compete à Administração, caso a caso, perante as circunstâncias de cada um deles, averiguar se o exercício concreto do seu poder disciplinar, através da instauração do respectivo procedimento é ou não susceptível de causar dano à própria disciplina dos serviços do que o resultante de eventual decisão de sentido contrário.
Por consequência, a concreta escolha administrativa é deixada à autoridade decidente que, nesse domínio, é livre de escolher os elementos que para o efeito considerar relevantes, em função das particularidades de cada caso.
Trata-se, assim, de um poder discricionário legitimado, de certa forma, no disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 50.º do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16 de Janeiro, ao deixar ao critério da entidade competente para instaurar processo disciplinar decidir se há ou não lugar a procedimento disciplinar. (…)” (vide, no mesmo sentido, Ac. STA de 19/10/1995 – Proc. n.º 32609 in: Ap. DR de 30/04/1998, págs. 7838 e segs.) (sublinhados nossos).
Idêntico entendimento tem sido firmado quanto à opção pela decisão de punir ou não os autores de infracções disciplinares, sendo certo que, mesmo aqui, se a Administração opta pela punição esta está sujeita à verificação judicial da legalidade ou ilegalidade dessa punição, mormente, da legalidade ou ilegalidade da qualificação jurídica, da recolha e produção dos meios probatórios e da fixação dos factos nos quais se estriba a punição disciplinar visto nesse âmbito a Administração desenvolver uma actividade estritamente vinculada sem possibilidade de opção em função do que seria melhor para o interesse público (cfr., entre muitos outros, quanto ao âmbito das áreas vinculadas do exercício do poder disciplinar Acs. do STA de 08/11/2005 – Proc. n.º 0785/04, de 26/04/2006 – Proc. n.º 0556/04, de 12/07/2006 – Proc. n.º 01106/05 todos in: «www.dgsi.pt/jsta»).
Também tal entendimento tem sido defendido ao nível doutrinário [cfr., para além da referência feita na decisão recorrida ao texto da autoria do Prof. Afonso Queiró, vide Prof. Marcello Caetano in: “Manual de Direito Administrativo”, Tomo II, 10ª Ed., págs. 836 e 837; Dr. Victor Faveiro em “A infracção disciplinar – Esquema de uma teoria geral” in: "Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal" - págs. 97 a 100 e 105; Dr. Luís Vasconcelos Abreu in: “Para o estudo do procedimento disciplinar no direito administrativo português vigente: as relações com o processo penal”, págs. 51 e segs.].
Nas palavras do Dr. Victor Faveiro pode “(…) decidir-se que não deverá haver lugar a procedimento disciplinar mesmo que se verifiquem determinadas infracções, designadamente quando, atenta a sua exígua gravidade e a necessidade de acautelar outros interesses do serviço mais importantes do que o interesse do ofendido, se verifique que a punição disciplinar produz males maiores do que aqueles que, com a punição, devam ser defendidos.
(…) a entidade competente para punir as respectivas infracções pode, discricionariamente, julgar a conveniência e oportunidade do procedimento disciplinar em face do interesse do serviço, abstendo-se de levar a efeito a punição (…).
Detentora do poder de julgar e superintender sobre as conveniências do serviço, e não havendo disposição legal que o proíba, nada obriga a entidade competente para proferir o despacho liminar a usar unicamente o critério da realidade formal do cometimento da infracção sem atender a outros interesses que estão do domínio do seu foro. (…)” (in: ob. cit., págs. 99, 100 e 105).
Que dizer?
Cumpre precisar, desde já, que o conceito de poder discricionário não significa um poder caprichoso ou arbitrário mas antes tem de ser entendido como um poder de resolver, de decidir pelo discernimento sem vínculos estreitos.
A Administração Pública está subordinada à lei, nos termos do princípio da legalidade.
Contudo, a lei não regula sempre do mesmo modo os actos a praticar pela Administração Pública, pois umas vezes a regulamentação legal é precisa (vinculação) e noutras é imprecisa (discricionariedade).
O âmbito da discricionariedade varia consoante aquilo que decorre da lei, bem como da própria natureza da actividade administrativa que é alvo de regulamentação legal.
Por mais vinculada que seja a actividade administrativa existe, no entanto, um mínimo de discricionariedade. Trata-se daquilo que os franceses, na esteira de Michoud, têm chamado de "le choix de l'heure".
Entende-se que a "discricionariedade" se define como "uma liberdade de decisão que a lei confere à Administração, a fim de que esta, dentro dos limites legalmente estabelecidos, escolha de entre várias soluções possíveis aquela que lhe parecer mais adequada ao interesse público". De forma mais sucinta a discricionariedade será a liberdade conferida à Administração de decidir no quadro das limitações fixadas por lei.
De notar que, na verdade, não existem poderes totalmente vinculados ou poderes totalmente discricionários já que os actos administrativos são quase sempre uma mistura ou combinação, em doses variadas, entre exercício de poderes vinculados e o exercício de poderes discricionários.
Daí que seria preferível falar-se antes que em certa zona existe vinculação e que noutra existe discricionariedade.
A discricionariedade na Administração está ou pode ser limitada de duas formas.
Uma primeira por intermédio de limites legais, nos quais se incluem: a) a adequabilidade subjectiva do comportamento escolhido à realização do fim legal (o interesse público como meta padrão da escolha discricionária) (cfr. art. 266.º, n.º 1 da CRP); b) o princípio da justiça que se traduz no dever da Administração harmonizar o interesse público específico que lhe cabe prosseguir com os direitos e interesses legítimos dos particulares eventualmente afectados (cfr. art. 266.º, n.º 2 da CRP); c) o princípio da imparcialidade (cfr. art. 266.º, n.º 2 da CRP).
Uma segunda por força dos limites decorrentes da auto-vinculação que a Administração, no âmbito estrito das suas competências, cria com a elaboração de regulamentos externos pelos quais limita a sua própria discricionariedade, sendo que, no entanto, tal auto-vinculação só é legítima e válida quando não impeça a Administração Pública da ponderação do caso concreto enquanto liberdade concedida pela lei para discricionariamente prosseguir o interesse público.
O poder disciplinar tem seu fundamento ou retira-o da necessidade de assegurar que os agentes administrativos se integrem nos serviços e prestem a colaboração que lhes compete nos termos mais convincentes e convenientes à realização dos objectivos desses serviços o que se consegue mediante a observância de certos deveres.
O mesmo visa, como qualquer poder administrativo, assegurar a realização e prossecução do interesse público como fim último e primacial da Administração, sendo que tal desiderato, enquanto última instância finalista, será atingido através doutro objectivo que é o fim de defesa do prestígio dos serviços e do bom funcionamento dos mesmos (cfr. Prof. Marcello Caetano in: ob. cit., vol. I, pág.510 e vol. II, págs. 815 e 816; Dr. Mário Esteves de Oliveira in: “"Direito Administrativo", vol. I, págs. 505 e 576) que é coisa bem diversa da simples intenção de dar satisfação à opinião pública alarmada com certos factos ocorridos.
Num Estado de Direito os agentes administrativos não podem ser alvo de medidas disciplinares determinadas por fins que os ultrapassem, pelo que a finalidade característica das medidas disciplinares é a prevenção especial ou correcção, motivando o agente administrativo que praticou a infracção disciplinar para o cumprimento, no futuro, dos seus deveres, sendo que as finalidades retributivas e de prevenção geral são realizadas secundariamente sobretudo através dos normativos legais que condicionam a aplicação de determinadas medidas disciplinares à prática de certas infracções.
Assim, quando a gravidade da infracção praticada torne impossível a subsistência da relação terá lugar a aplicação de uma pena expulsiva (aposentação compulsiva ou demissão), de forma a que o corpo administrativo fique liberto de um agente que não possuía condições para lhe pertencer dado não dar garantias de poder continuar a contribuir para assegurar o prestígio ou bom nome da Administração bem como a capacidade funcional da mesma.
O poder disciplinar é, pois, um poder discricionário, mas com aspectos vinculados.
Na verdade, analisado e concatenado, por um lado, o regime decorrente dos arts. 02.º, 27.º, n.º 1, al. a), 46.º, 47.º, 50.º e 57.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local - DL n.º 24/84, de 16/01 (doravante ED), e, por outro, tendo presente que a infracção disciplinar se traduz e caracteriza como uma violação da ordem jurídica interna do serviço, temos que o exercício da acção disciplinar envolve e dota o detentor deste dum poder que, para além da observância de critérios de legalidade, comporta ainda juízos de apreciação sobre a conveniência e oportunidade no seu exercício à luz dos interesses do serviço, juízos esses que só o próprio serviço estará em condições de apreciar e ponderar, explicitando-os e fundamentando-os como é óbvio.
Na verdade, à luz do regime legal vigente não cremos que do procedimento disciplinar hajam sido totalmente afastados juízos de oportunidade e de conveniência, de molde a que a toda a falta tenha necessariamente de corresponder um processo disciplinar, ou que a toda a falta neste apurada tenha de corresponder uma sanção disciplinar do seu agente.
Julgamos caber à autoridade administrativa, caso a caso, perante as particularidades circunstanciais de cada um deles, averiguar se o exercício concreto do seu poder disciplinar, num primeiro momento através da instauração do respectivo procedimento e, num segundo momento, com a punição dos agentes/funcionários prevaricadores, é ou não susceptível de causar maior dano à própria disciplina dos serviços do que o resultante duma eventual decisão inversa.
Daí que a concreta opção administrativa é deixada à autoridade decidente, que, nesse domínio é livre de escolher os elementos que para o efeito considerar relevante, tendo em conta as particularidades e especificidades de cada caso.
O reconhecimento desta margem de discricionariedade no exercício da acção disciplinar e que implica, como tal, que não podemos considerar estarmos face a um poder de exercício estritamente vinculado não importa, contudo, a ausência de submissão ao princípio da legalidade.
É que o exercício do poder disciplinar, e em particular a acção disciplinar, está subordinado, como não podia deixar de ser e já fomos aludindo supra, também, ao princípio da legalidade sendo que isso se reflecte em inúmeros aspectos.
Assim, em matéria do exercício da acção disciplinar não podemos de deixar de considerar como vinculada a actividade da Administração em matéria da competência da entidade para a instauração do processo, ou a actividade da mesma quando, no momento liminar, avalia da situação veiculada para apurar se houve ou não infracção disciplinarmente censurável e decide pelo arquivamento do auto, participação ou queixa, fundando-o em inexistência de infracção disciplinar por os factos não integrarem qualquer violação de deveres que impendam sobre o(s) agente(s) ou funcionário(s) visado(s), em existência de circunstância dirimente ou que exclua a responsabilidade disciplinar, em amnistia, em prescrição.
De igual modo temos de ter em linha de conta que sobre o auto, participação ou queixa disciplinar apresentados ou deduzidos (cfr. arts. 46.º e 47.º do ED), recai sobre a Administração o dever de decidir, de emitir pronúncia sobre aquele registo que desencadeou procedimento administrativo [cfr. arts. 50.º, 27.º, n.º 1, al. a) do ED], não estando a Administração subtraída ao cumprimento do referido dever, tanto para mais que, como aludimos, os actos desenvolvidos nesse momento serão, por regra, sindicáveis e susceptíveis de impugnação judicial fundada quer em ilegalidades formais quer substanciais.
Note-se que os reflexos do princípio da legalidade não se manifestam apenas na fase liminar do procedimento disciplinar, pois, aquele princípio perpassa inteira e transversalmente este tipo de procedimento.
Com efeito, aspectos como o das garantias de defesa e da existência do próprio processo, o da competência para a emissão do acto punitivo, o da tipicidade das penas, o da recolha da prova e fixação dos factos que funcionam como pressuposto de aplicação de penas disciplinares, o da qualificação jurídica dos factos, o da verificação dos factos de que depende a aplicação do critério da medida e graduação das penas e da verificação dos requisitos e os limites destas, o da verificação dos requisitos e a duração da suspensão das penas disciplinares, são ou constituem áreas em que a actividade da Administração não se move, repete-se, no âmbito de poderes discricionários mas estritamente vinculados.
Para além disso importa ainda ter presente que mesmo quanto ao exercício de actividade caracterizada como discricionária ou como integrada na denominada “justiça administrativa” também aí a Administração não está subtraída ao domínio do Direito e da sindicabilidade judicial dos actos emitidos daquela actividade.
Aliás, o âmbito de vinculações legais que a jurisprudência e a doutrina vêem assinalando tem conduzido a uma maior abrangência e latitude da fiscalização contenciosa jurisdicional deste tipo de actividade da Administração. Disto são exemplos, para além do já tradicional fundamento no vício de desvio de poder, a admissão da impugnação fundada no erro de facto, ou na existência ou inexistência dos pressupostos de facto (erro sobre os pressupostos), ou na violação dos princípios gerais de direito (v.g., da justiça, da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade), ou na violação do dever de fundamentação, ou, ainda, na violação do direito de audiência/participação [cfr. entre outros e nos mais recentes, Acs. do STA de 18/01/2000 - Proc. n.º 038605, de 17/05/2001 (Pleno) - Proc. n.º 040528, de 07/02/2002 - Proc. n.º 048149, de 07/02/2004 - Proc. n.º 048149, de 12/10/2004 - Proc. n.º 0692/04, de 03/11/2004 - Proc. n.º 0329/04, de 31/05/2005 - Proc. n.º 02036/03, de 16/02/2006 - Proc. n.º 0412/05, de 21/03/2006 (Pleno) - Proc. n.º 020/03 in: «www.dgsi.pt/jsta» e «www.dre.pt/acordaos»].
Presentes estes considerandos e revertendo ao caso em análise temos que não nos parece de acolher a argumentação e fundamentação legal expendida pela recorrente ao abrigo da qual a mesma sustenta, reportando-se ao desencadeamento da acção disciplinar, que “(…) a discricionariedade (…) reside, não na instauração do procedimento disciplinar, mas apenas no uso do poder de punir, ou não punir, nas circunstâncias concretas de que se trata (…).”
Na tese avançada pela recorrente elaborado auto ou participação ou apresentada queixa contra determinado agente ou funcionário abrir-se-ia logo processo disciplinar contra o visado, abertura essa que seria automática.
Não nos parece que seja ou tenha sido esse o propósito do legislador quando consagrou ou fixou o regime decorrente dos arts. 27.º, n.º 1, al. a) e 50.º do ED.
Por um lado, temos que, desde logo, do texto dos n.ºs 1, 2 e 3 do art. 50.º resulta que, apresentada ou comunicada uma denúncia duma alegada infracção disciplinar, a entidade competente só “se entender que há lugar a procedimento disciplinar” é que determinará a abertura daquele tipo de procedimento, visto se o entendimento for diverso ou diferente, então, mandará determinar o arquivamento não instaurando aquele procedimento disciplinar. Tal análise cometida à entidade competente e julgamento decisor põem em causa, inquinam, o carácter automático que nos parece resultar da tese defendida pela recorrente.
Do art. 50.º do ED apenas se infere que terá de existir obrigatoriamente um despacho formal determinando se haverá ou não lugar a procedimento disciplinar, sem que do mesmo resulte um comando claro no sentido da existência ou do estabelecimento de um qualquer limite ou critério de ordem material quanto a tal decisão.
Certo e adquirido é que se trata claramente duma decisão susceptível de ser sindicada contenciosamente verificados os termos ou pressupostos/requisitos exigidos na nossa lei processual vigente, o CPTA.
Por outro lado, do dever que se retira implicitamente da al. a) do n.º 1 do art. 27.º (o dever de proceder disciplinarmente) e que impende sobre os dirigentes ou equiparados que é sancionado com a pena ali prevista de “cessação da comissão de serviço” não resulta a obrigatoriedade para aqueles de instaurar a todo o título, sempre ou com carácter automático, um procedimento disciplinar uma vez elaborado auto ou apresentada participação ou queixa contra seus agentes/funcionários subordinados, porquanto a aplicação e sancionamento com aquela pena disciplinar pressupõe que haja sido desenvolvida ou praticada conduta de arquivamento liminar (art. 50.º, n.º 2 do ED) ou subsequente (arts. 57.º, n.º 1 e 66.º ambos do ED) pelo dirigente ou equiparado que tenha sido qualificada como ilícita e ilegal, já que não se vislumbra como poderá ser possível sancionar disciplinarmente alguém fundando-se tal punição na prática de acto administrativo perfeitamente legal e devido, numa ausência absoluta de infracção disciplinar (cfr. arts. 02.º e 03.º do ED) na qual se pudesse legitimamente ancorar a efectivação da responsabilidade disciplinar.
O entendimento sufragado não significa ou implica, como já havíamos referido supra, que o exercício daquela opção por parte da autoridade administrativa de instaurar ou não processo disciplinar seja arbitrária e que a mesma seja insusceptível de impugnação judicial, estando, dessa forma, subtraída ao domínio da legalidade.
Repegando no atrás exposto temos que a liberdade de escolha, no domínio em apreço (prolação da decisão liminar aludida no art. 50.º do ED), mais conveniente ou oportuna, não é absoluta e insusceptível de controlo jurisdicional, já que a mesma está subordinada ao respeito pelo(s) fim(ns) da lei (controlo quanto ao vício de desvio de poder) e encontra-se limitada, para além dos seus aspectos vinculados, pela observância e cumprimento do dever de fundamentação, dos pressupostos de facto e de direito, e, bem assim, à observância dos princípios gerais do agir administrativo constitucionalmente garantidos (princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da adequação dos meios).
A qualificação como poder que comporta margem de discricionariedade com o âmbito aludido não afasta a sindicabilidade contenciosa do mesmo porquanto, como é hoje um dado adquirido, mesmo aquele momento de actividade subjacente à emissão do acto, e não apenas os seus momentos vinculados, estão sujeitos a verificação e controlo jurisdicional.
Não merece, pois e pelo atrás exposto, procedência a argumentação expendida pela recorrente quando ancora a sua pretensão numa pretensa violação pela decisão judicial recorrida dos arts. 266.º da CRP e 03.º do CPA, sendo que relativamente às pretensas violações do disposto nos arts. 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 2, al. a) do ED, 100.º e 124.º do CPA não se descortina a sua infracção quando, da economia da referida decisão judicial, os aludidos normativos não foram considerados, nem invocados ou utilizados para a sua fundamentação, constituindo, antes, alguns dos vícios que haviam sido assacados ao acto administrativo objecto de impugnação com os autos “sub judice”.
Presentes os considerandos supra expostos cumpre, ainda, aferir da observância por parte da decisão judicial em crise do disposto no art. 71.º, n.º 2 do CPTA, para o que importa, antes demais, efectuar um breve enquadramento jurídico dos poderes de pronúncia dos tribunais administrativos, mormente, seus poderes condenatórios e respectivos limites.
A criação da acção administrativa especial para condenação à prática de acto devido, como a “sub judice”, veio dar concretização no plano do direito ordinário àquilo que o legislador constitucional, na revisão de 1997, havia consagrado no n.º 4 do art. 268.º da CRP, prevendo-se com este meio contencioso uma pronúncia condenatória.
Este meio processual mostra-se regulado e disciplinado nos arts. 66.º e segs. do CPTA, definindo-se logo nos nºs 1 e 2 do referido art. 66.º o respectivo objecto.
Assim, resulta do aludido preceito que:
1 - A acção administrativa especial pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado.
2 - Ainda que a prática do acto devido tenha sido expressamente recusada, o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória.
3 – (…).”
Por sua vez no artigo seguinte, sobre a epígrafe “Pressupostos”, estipula-se que:
1 - A condenação à prática de acto administrativo legalmente devido pode ser pedida quando:
a) Tendo sido apresentado requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir, não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido;
b) Tenha sido recusada a prática do acto devido; ou
c) Tenha sido recusada a apreciação de requerimento dirigido à prática do acto.
2 - Para os efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, a falta de resposta a requerimento dirigido a delegante ou subdelegante é imputada ao delegado ou subdelegado, mesmo que a este não tenha sido remetido o requerimento.
3 - Para os mesmos efeitos, quando, tendo sido o requerimento dirigido a órgão incompetente, este não o tenha remetido oficiosamente ao órgão competente nem o tenha devolvido ao requerente, a inércia daquele primeiro órgão é imputada ao segundo.”
Por fim, no art. 71.º do CPTA, com a epígrafe de “Poderes de pronúncia do tribunal”, prevê-se que:
1 - Ainda que o requerimento apresentado não tenha obtido resposta ou a sua apreciação tenha sido recusada, o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão administrativo competente, anulando ou declarando nulo ou inexistente o eventual acto de indeferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do acto devido.
2 - Quando a emissão do acto pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do acto a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido.”
Do cotejo dos normativos reproduzidos resulta que o objecto do processo neste tipo de acções se traduz na imposição à Administração do dever de praticar um determinado acto administrativo que o autor reputa ter sido legalmente omitido ou recusado, sendo que, por força do n.º 2 do art. 66.º e do n.º 1 do art. 71.º do CPTA, tal objecto é sempre a pretensão do interessado e, nessa medida, mesmo em face dum acto de recusa (recusa de emissão de decisão favorável ou recusa de apreciação do requerimento) temos que este meio contencioso se dirige não à anulação contenciosa daquele acto de recusa mas, ao invés, à condenação da Administração na prolação dum acto que, substituindo aquele, emita pronúncia sobre o caso concreto ou que venha a dar satisfação à pretensão deduzida.
Nessa medida, e tal como decorre da parte final do n.º 2 do aludido preceito mostra-se desnecessária a dedução de pedido de anulação, de declaração de nulidade ou de inexistência do acto de indeferimento porquanto resulta directamente da pronúncia condenatória a eliminação da ordem jurídica daquele acto.
Importa ter, todavia, presente que a dedução duma pretensão condenatória à prolação de acto devido não se reconduz unicamente àquelas situações em que o “acto devido” é um acto cujo conteúdo se mostra legalmente “pré-determinado” por exercido ao abrigo de poderes estritamente vinculados, mas também às situações em que a Administração age no âmbito de poderes discricionários.
Tal tem sido, aliás, entendimento doutrinal uniforme nesta sede.
Como referem Prof. Mário Aroso de Almeida e do Juiz Conselheiro C. A. Fernandes Cadilha, “(…) O acto devido corresponde ao acto que deve ser praticado no caso concreto. (…).
(…) a ‘condenação à prática de acto devido’ não é necessariamente condenação à prática de um acto cujo conteúdo esteja legalmente pré-determinado, resultando estritamente vinculado o quadro normativo aplicável. Também é possível a condenação da Administração à prática de actos administrativos de conteúdo discricionário, desde que a emissão desses actos seja devida. (…) Também quando a prática do acto administrativo ilegalmente recusado ou omitido envolva o exercício de poderes discricionários, o tribunal pode condenar a Administração a praticá-lo, traçando, em maior ou menor medida, o quadro, de facto e de direito, dentro do qual esses poderes discricionários deverão ser (re)exercidos.
A condenação tanto se poderá, pois, concretizar na imposição do dever de emanar um acto com um determinado conteúdo (um acto de conteúdo vinculado ou um acto que não reincida nas ilegalidades que um acto de indeferimento anterior tenha cometido), como na mera imposição do dever de praticar um acto que decida a questão colocada pelo interessado, independentemente de se tratar de um acto favorável ou desfavorável à sua pretensão (o que corresponde à mera condenação no dever de decidir). (…)” (in: ob. cit., págs. 335 e 336, nota 2).
Por outro lado, temos que, nos termos do art. 67.º do CPTA, este meio processual tem como pressupostos ou condições de admissibilidade as situações de:
1.ª - Falta de decisão expressa do requerimento no prazo legal [al. a)];
2.ª - Recusa da prática de acto com um certo conteúdo [al. b)];
3.ª - Recusa de apreciação de requerimento [al. c)].
No caso vertente, face aos contornos da factualidade e normativo em alusão mostram-se claramente afastadas as 1.ª e 3.ª situações, pelo que importa reconduzir a nossa análise à 2.ª situação, situação onde nos parece dever ser incluída a “sub judice”.
É que na situação prevista na al. b) do n.º 1 do art. 67.º e tal como é defendido pelo Prof. Mário Aroso de Almeida e pelo Juiz Conselheiro C. A. Fernandes Cadilha prevêem-se “(…) duas sub-hipóteses: a recusa de prática de acto expresso de conteúdo estritamente vinculado; a recusa da prática de acto que envolva o exercício de poderes discricionários (quando à escolha da solução a adoptar ou aos respectivos pressupostos de facto) ou o preenchimento de conceitos indeterminados. Em qualquer dos casos estamos perante um indeferimento de mérito (…)” (in: ob. cit., pág. 348, nota 4) (no mesmo sentido, Dr. M. Esteves de Oliveira e outro in: “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, vol. I, pág. 420, nota IV).
Ora a situação vertente inclui-se inequivocamente na previsão da al. b) do n.º 1 do art. 67.º já que estamos face a uma recusa expressa de acto que envolve exercício de poderes discricionários ou com margens de discricionariedade.
Chegados aqui importa, agora, entrar na análise dos poderes de pronúncia dos tribunais administrativos, em especial, quando em causa está a prática de actos administrativos no âmbito do exercício de poderes discricionários, o que nos remete para a análise do regime vertido no n.º 2 do art. 71.º do CPTA.
Com este preceito o legislador visou definir as linhas balizadoras da pronúncia do tribunal quando este, em cumprimento dos seus deveres e obrigações legais (obrigação de julgar e dever de obediência à lei - cfr. arts. 08.º do C Civil, 03.º, n.º 1, 264.º, 658.º e segs. do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA, 95.º do CPTA), tem de emitir decisão sobre pretensão de condenação da Administração à prática dum acto administrativo.
Assim, podem-se configurar vários tipos de situações com as quais os tribunais são ou poderão ser confrontados, tipos esses que vão desde a “improcedência da acção” à de “condenação à prática de um qualquer acto administrativo”, passando pela “condenação à prática dum acto com determinado conteúdo” e pela “condenação à prática dum acto com determinação dos parâmetros a observar na prática desse acto” (cfr. Prof. Mário Aroso de Almeida e pelo Juiz Conselheiro C. A. Fernandes Cadilha in: ob. cit., págs. 366 e segs. notas 3, 4, 5 e 6).
Temos para nós que, face às “participações” apresentadas pela aqui ora recorrente e pelo contra-interessado demandado e de harmonia com o atrás exposto e normativos aludidos, sobre a Administração impendia um dever de agir, de emitir pronúncia sobre a matéria veiculada naquelas “participações”, o que a mesma efectivamente fez através do acto praticado em 27/10/2003 (arquivamento liminar das participações).
Nessa medida, não estando demonstrada a ausência, no caso, de um qualquer dever jurídico de decidir por parte do ente demandado, quer em abstracto quer em concreto, por imperarem puros e exclusivos motivos de oportunidade, não poderá avançar-se desde logo para a improcedência da acção com base em tal fundamento como nos parece ter-se concluído na decisão judicial em recurso quando sustentou a improcedência da acção “sub judice” por referência ao princípio da separação de poderes e ao exercício de poderes discricionários por parte da Administração insindicáveis contenciosamente.
Com efeito, como na e para a emissão da decisão prevista no art. 50.º do ED existem, em simultâneo, por um lado, aspectos de oportunidade e, por outro, aspectos vinculados, temos que a administração decidente não actua aqui no uso de puros motivos e juízos de oportunidade à margem de qualquer dever de decisão, sendo certo que a existência de poderes discricionários não implica a impossibilidade do seu controlo jurisdicional.
Atente-se que a decisão de arquivar as “participações” em presença permite diversos entendimentos já que pode ter-se estribado em fundamentações diferentes, visto poder ter sido motivado ou por a entidade decidente haver considerado não haver fundamento legal para instaurar procedimento disciplinar (v.g., ausência dos pressupostos normativos para instaurar tal procedimento contra cada um dos visados) ou por inconveniência ou inoportunidade daquele procedimento em face dos superiores interesses do serviço público em causa.
Todavia, com qualquer das fundamentações estamos perante acto que se impunha ser emitido e susceptível de impugnação judicial.
É que mesmo na situação em que a administração decidente entenda determinar o arquivamento (não instaurando processo disciplinar) com fundamento na inconveniência e inoportunidade do procedimento disciplinar em face dos interesses do serviço tal decisão teria de ser proferida porque a mesma estava obrigada legalmente a fazê-lo, sendo a mesma impugnável contenciosamente nos termos e com os pressupostos já aludidos.
Por outro lado no caso vertente o exercício do poder de decisão em questão não é, nos termos legais, totalmente vinculado quanto a todo o seu possível conteúdo, pelo que sobre a Administração não impende um dever estrito de praticar um acto com um único e exclusivo conteúdo determinado e, nessa medida, não assiste à A. o direito a exigir a prática desse acto com aquele concreto/determinado e exclusivo conteúdo (instaurar automaticamente com a queixa/participação o procedimento disciplinar contra o visado).
Explicitando o nosso entendimento e na sequência do atrás já exposto temos que em sede de decisão liminar a Administração quando determina o arquivamento não instaurando qualquer procedimento disciplinar poderá fazê-lo com motivação de dois tipos. Por um lado, pode arquivar por entender que os factos participados ou denunciados não integram ou podem ser qualificados como ilícito disciplinar e, nessa medida, não existe fundamento para a abertura daquele procedimento. Pode, por outro lado, arquivar por considerar que, pese embora os mesmos factos constituam ilícito disciplinar, necessidades e interesses superiores do serviço aconselham todavia decisão naquele sentido.
Ora na primeira das situações a Administração desenvolve actividade que se nos afigura estar perfeitamente balizada e aferida segundo juízos de estrita legalidade, sem que aí exista margem para actividade e juízos de discricionariedade. Já na segunda a Administração emite decisão segundo juízos de oportunidade, de discricionariedade (“justiça administrativa”), mas que pressupõem um primeiro momento que se consubstancia num juízo de legalidade e que se prende com o facto de se considerar que a realidade denunciada ou participada constitui ilícito disciplinar.
Explicitado o nosso posicionamento importa, então, aferir e definir “in casu” os contornos do “acto devido” na presente acção tendo em conta a pretensão material à mesma subjacente.
Frise-se que neste meio contencioso o objecto do processo não se reconduz ou se traduz na averiguação da(s) ilegalidade(s) assacadas ao acto ou conduta da Administração.
Tal como tem vindo a ser defendido não estamos aqui face a um “processo feito a um acto”, visto estarmos em presença dum meio ou processo de plena jurisdição cujo objecto diz respeito à pretensão material do interessado, à relação material controvertida que se constituiu e que remete para o tribunal o dever de analisar e decidir do mérito daquela pretensão.
Como vimos a possibilidade de condenação à prática de um acto devido não se restringe apenas aos casos de estrita vinculação legal porquanto tal condenação pode igualmente ter lugar nas situações em que a lei confira à Administração poderes discricionários.
No caso “sub judice” a Administração tinha e tem o dever de praticar o acto administrativo (decisão liminar nos termos previstos no art. 50.º do ED), sendo que o conteúdo deste acto se terá de considerar como estritamente vinculado quando arquiva liminarmente por ausência de factualidade integradora de ilícito disciplinar (actividade que se prende com a qualificação jurídica dos factos participados) e com natureza discricionária o arquivamento na parte em que se remete para juízos de utilidade, de oportunidade, de conveniência, para os interesses dos serviço.
Dado esta segunda motivação para o arquivamento ter como pressuposto lógico um “julgamento” liminar sobre a existência de violação de deveres gerais e especiais decorrentes da função por parte do funcionário ou agente visado importa, então, realizar ou aferir da primeira motivação para o arquivamento liminar do procedimento disciplinar (inexistência de infracção disciplinar). Com efeito, se se apurar “ab initio” que os factos comunicados ou denunciados não integram qualquer infracção disciplinar então não faz sentido, nem se mostra conforme com a lei, arquivar com motivação à luz de juízos de oportunidade para os interesses do serviço.
Tal remete-nos para a apreciação da “participação disciplinar” apresentada pela A., aqui ora recorrente, na medida em que nos situamos em área de estrita legalidade e se impõe ao tribunal no julgamento da causa em presença a apreciação da pretensão daquela interessada.
Estipula-se no art. 03.º do ED, sob a epígrafe de “Infracção disciplinar”, que:
1 - Considera-se infracção disciplinar o facto, ainda que meramente culposo, praticado pelo funcionário ou agente com violação de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce.
2 - Os funcionários e agentes no exercício das suas funções estão exclusivamente ao serviço do interesse público, tal como é definido, nos termos da lei, pelos órgãos competentes da Administração.
(...).
4 - Consideram-se ainda deveres gerais:
(...)
f) O dever de correcção;
(...)
10 - O dever de correcção consiste em tratar com respeito quer os utentes dos serviços públicos, quer os próprios colegas quer ainda os superiores hierárquicos. (...)”.
Preceitua-se no art. 25.º do ED que:
1 - A pena de inactividade será aplicável nos casos de procedimento que atente gravemente contra a dignidade e prestígio do funcionário ou agente ou da função.
2 – A pena referida neste artigo será aplicável aos funcionários ou agentes que, designadamente:
a) Agredirem, injuriarem ou desrespeitarem gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, fora do serviço, por motivos relacionados com o exercício das suas funções; (...).”
E no art. 26.º do mesmo Estatuto prevê-se que:
1 – As penas de aposentação compulsiva e de demissão serão aplicáveis em geral às infracções que inviabilizarem a manutenção da relação funcional.
2 – As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos funcionários e agentes que, nomeadamente:
a) Agredirem, injuriarem ou desrespeitarem gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, nos locais de serviço ou em serviço público; (…).”
Vistos os normativos a considerar importa, então, tecer algumas considerações sobre os mesmos e aferir da verificação ou não de infracção disciplinar que constitua fundamento para a instauração de procedimento disciplinar.
Como refere o Dr. Manuel Leal-Henriques (in: “Procedimento Disciplinar”, 3ª edição, p. 41) no dever de correcção “(...) o servidor deve exercer as suas funções com total respeito pelos utentes do serviço, pelos colegas e pelos superiores hierárquicos (...)”.
Trata-se dum dever que se prende e encontra seu fundamento nas necessidades da própria vida social, porquanto esta reclama de cada um o cumprimento das chamadas normas de “cortesia” ou de “boa educação” consagradas nos usos e costumes.
Assim, estando os funcionários ou agentes integrados num serviço, entendido como unidade de trabalho, não é de todo indiferente para o utente e para aqueles que ali prestam funções o tipo de relações que ali são estabelecidas interna e externamente.
Nessa medida, o dever em referência traduz-se na obrigação dos funcionários e agentes actuarem, tanto entre si (por relação a superiores, inferiores e colegas) como em relação ao público utente, com bom trato, com correcção normalmente exigida.
Como refere a este respeito o Prof. Marcello Caetano “(…) este dever não impõe ao funcionário que mantenha relações de intimidade, amizade ou cordialidade, sequer com outros funcionários superiores ou não. Apenas exige que, em serviço, ponha de banda ressentimentos, inimizades ou rivalidades, tendo em mente que não estão em causa as pessoas mas o exercício de funções, cujo desempenho regular e harmónico é indispensável ao regular funcionamento da Administração e, por conseguinte, à satisfação dos interesses públicos. As rixas ou divergências pessoais não devem reflectir-se na marcha dos serviços ou na sua disciplina (…)” e reportando-se ao dever por referência com os utentes do serviço refere “(…) o dever de urbanidade para com o público implica a diligência em escutar e receber as pretensões e reclamações apresentadas e, bem assim, a prestação solícita das informações que não contendam com o dever de sigilo profissional (…).”
Para além disso, temos que se o funcionário ou agente deve tratar com correcção os demais funcionários e utentes dos serviços públicos, por maioria de razão, deve abster-se de ofendê-los, ferindo a sua honra, consideração e dignidade, traduzindo-se a infracção a estes valores na violação do dever de respeito.
Regressando, de novo, ao caso em presença e passando a entrar na apreciação e pronúncia do tribunal quanto à pretensão da A. na acção “sub judice” temos que, analisados os factos apurados, mormente, ponderados os factos objecto da “participação disciplinar” da A., com o ofício subscrito pelo contra-interessado no qual se estriba aquela participação e acta da reunião da Comissão Coordenadora do Conselho Científico do ICBAS realizada em 07/05/2003 (cfr. documentos insertos nos autos a fls. 09 a 18 e 40 a 74), não se vislumbra que do teor da comunicação subscrita pelo contra-interessado, datada de 08/05/2003 e que motivou a “participação disciplinar” da A., resulte a infracção aos deveres de correcção e de respeito a que aquele estava obrigado e que foram invocados como fundamento para a instauração de procedimento disciplinar. Não se vislumbra minimamente da aludida comunicação e da sua análise estrita, já que outros contornos não foram trazidos quer em termos de participação quer em termos de acção judicial, que o contra-interessado tenha faltado em algum momento ao dever de urbanidade e correcção devida à A. ou que haja falta de respeito à honra e consideração da mesma, não se descortinando em que medida a distribuição de trabalho de docência em coadjuvação de “uma Senhora Professora Associada”, que até havia sido sua “Assistente”, possa constituir um insulto, uma desonra por menorização face ao seu estatuto de “Professora Catedrática”. De igual modo não se encontra base de sustentação no teor daquela comunicação de 08/05/2003 duma pretensa imputação insultuosa à A. e/ou com a gravidade aludida decorrente duma alegada insinuação de incumprimento dos respectivos deveres funcionais.
Para que ocorresse tal violação e constituição em responsabilidade disciplinar por violação dos deveres de correcção e de respeito era necessário que o escrito em questão se traduzisse em falta de respeito e de consideração pelas qualidades intelectuais, morais ou profissionais da A., o que, efectivamente, não descortinamos.
Nessa medida, analisada a “participação disciplinar” em crise e ponderada a mesma à luz do ED, em especial dos seus arts. 03.º, 22.º e segs., entende-se que os factos ali relatados não constituem, não integram ou preenchem a previsão de violação dos deveres de correcção e de respeito devidos pelo Presidente do Conselho Científico do ICBAS à Professora Catedrática do ICBAS, não estando, pois, verificada a previsão normativa decorrente dos arts. 03.º, n.ºs 1, 4, al. f) e 10, 25.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 26.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do ED.
É que, na realidade, os factos participados não integram ou preenchem minimamente a previsão destes normativos e como tal a decisão de arquivar, não instaurando procedimento disciplinar, mostra-se a adequada e devida “in casu”, improcedendo, desta feita, a pretensão material deduzida pela A..
Do que ora se conclui deriva que se mostra inviabilizada a consideração ou ponderação quanto ao arquivamento liminar motivado por juízos de oportunidade porquanto este, tal como se referiu anteriormente, só poderia ter lugar com o pressuposto dum juízo de existência de infracção disciplinar.
Note-se, contudo, que ao julgamento da improcedência da pretensão material formulada pela A. não obstam os eventuais vícios formais invocados pela A. e que afectariam a legalidade do acto administrativo proferido pelo ente demandado, em especial, o vício de forma por falta de fundamentação.
Na verdade, face à natureza e concepção desta forma de contencioso, que supra apontámos, temos que, salvo pretensão de condenação da Administração à prática de acto conforme a exigências formais previstas na lei, os vícios formais de que padeça o acto administrativo recusado/omitido tenderão a ser relevados, até por efeito do próprio princípio do “aproveitamento” de actos administrativos formalmente ilegais.
Aliás este entendimento foi defendido na doutrina pelos Drs. M. e R. Esteves de Oliveira quando sustentam que a “(…) nova concepção do objecto do processo prende-se, (…), com a relativa desvalorização dos vícios formais (em sentido lato) e com a consequente subsistência ou «aproveitamento» mesmo que implícito, de actos administrativos formalmente ilegais (…).
Na verdade, um processo que esteja virado para ajuizar do bem fundado da pretensão do interessado na prática de um certo acto administrativo (em determinado sentido e com um determinado conteúdo) tende a relevar as ilegalidades formais dos indeferimentos (incluindo dos liminares) que a Administração haja proferido, se e quando aquela pretensão não for procedente.
Por outras palavras, pode dar-se o caso de haver (uma recusa ou) um indeferimento ilegal por parte da Administração – nomeadamente no que respeita ao seu procedimento de fundamentação -, mas de a pretensão do autor dirigida à prática de um certo acto administrativo também não ser procedente por não se referir à ilegalidade desse procedimento ou fundamentação, mas a uma outra que não existe, e, portanto, como o acto que se dizia preterido não é devido, o indeferimento ilegal, na falta de sentença condenatória, fica a subsistir no ordenamento jurídico (…)” (in: ob. cit., pág. 416, nota VII) (sublinhados nossos).
Ressuma do ora exposto e do que interessa para a economia da presente decisão que os alegados vícios formais assacados ao acto administrativo de recusa e que o inquinariam na sua legalidade, a ocorrerem o que não se concede quanto ao pretenso vício de preterição do direito de audiência, não relevam porquanto a pretensão material da A. não procede minimamente e o operar do princípio do aproveitamento dos actos aponta igualmente no sentido da desvalorização “in casu” de tal tipo de vícios.
Improcede, por conseguinte, a pretensão da A. aqui ora recorrente.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso jurisdicional, mantendo-se o julgamento de total improcedência da presente acção de condenação à prática do acto devido mas com a fundamentação que antecede.
Custas, nesta instância, a cargo da A., ora recorrente, com redução a metade da taxa de justiça [cfr. arts. 73.º-A, n.º 1, 73.º-E, al. a), 18.º, n.º 2 todos do CCJ e 189.º do CPTA].
Notifique-se. D.N..
Restituam-se aos ilustres representantes judiciários das partes os suportes informáticos gentilmente disponibilizados.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator (cfr. art. 138.º, n.º 5 do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA).
Porto, 28 de Setembro de 2006