Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01183/23.7BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:VENDA; HABITAÇÃO PRÓPRIA E PERMANENTE;
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA, PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE;
VALOR PATRIMONIAL TRIBUTÁRIO, VALOR DE MERCADO;
Sumário:
I – A proibição de venda de imóvel prevista no citado artigo 244.º, do CPPT, na redacção da Lei n.º 13/2016, de 23/05, depende do preenchimento dos seguintes pressupostos:
- O imóvel estar exclusivamente destinado a habitação própria e permanente do devedor/executado ou do seu agregado familiar (cfr. artigo 244.º, n.º 2 do CPPT);
- O valor tributável do imóvel, no momento da penhora, não se enquadrar na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (cfr. artigo 244.º, n.º 3 do CPPT).

II - O intérprete e aplicador da lei deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, como também que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Pelo que, na exegese da norma não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Portanto, o limite da interpretação encontra-se na letra ou no texto da norma, o qual condiciona todos os vectores de interpretação reconhecidos pela doutrina, como sejam os elementos histórico, sistemático ou teleológico (cfr. artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil).

III - A proibição de venda reporta-se a um concreto bem presente na esfera patrimonial do devedor/executado. Fora da proibição de venda introduzida pela Lei n.º 13/2016, de 23/05, ficam, desde logo, os imóveis que, apesar de serem propriedade do executado, não são utilizados pelo mesmo, ou pelo seu agregado familiar, como habitação própria e permanente.

IV - -Da conjugação dos normativos 248.º e 250.º, ambos do CPPT, resulta que, regra geral, a venda de bens penhorados é concretizada mediante leilão electrónico, correspondendo o valor base de venda a 70 % do valor patrimonial tributário, ressalvada a situação em que se mostre evidente que o valor de mercado dos bens é manifestamente superior ao valor patrimonial tributário.

V – Nessa situação, deverá lançar-se mão de um procedimento específico, estritamente vinculado, que apenas permite o afastamento do regime regra em situações perfeitamente definidas, ou seja, utilizando-se a formulação constante do artigo 250.º, n.º 2 do CPPT, em situações “evidentes” das quais resulte que o valor de mercado é “manifestamente” superior ao valor patrimonial tributário.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

[SCom01...], S.A., pessoa colectiva n.º ...46, com sede no Lugar ..., ..., em ..., interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, proferida em 13/11/2023, que julgou improcedente a reclamação dos actos do órgão de execução fiscal, datados de 12/05/2023, que determinaram a venda n.º .........3.2, do prédio urbano inscrito na matriz ...11, e a venda n.º .........3.3, do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...38.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
“A. foi apresentada pela reclamante, supra identificada, representada pelo seu administrador, reclamação nos termos do 276° e seguintes, do despacho que determinou a venda do prédio inscrito na matriz predial urbana na União de Freguesias ..., ... e ..., no concelho ..., ...11 descrito na Conservatória Predial ... sob o n.° ..76/19940516, datado de 12 de Maio de 2023, Venda n.° n.º .........3.2 e o despacho que determinou a venda do prédio inscrito na matriz predial urbana na União de Freguesias ..., ... e ..., no concelho ..., sob o artigo ...38 descrito na Conservatória Predial ... sob o n.° ..17/19930503, datado de 12 de Maio, Venda n.° n.º .........3.2
B. A sentença proferida pelo Mmo. Tribunal a quo, julgou improcedente a referida reclamação.
C. Não obstante, o caso concreto merece uma análise de direito nomeadamente de certas normas de direito nas quais se subsumem os factos, que obrigam à aplicação de uma decisão, em nosso entender diversa.
D. Quanto à ilegalidade da determinação da venda, do artigo ...38, atento o disposto no artigo 244.°, n.º 2 CPPT somos a salientar,
E. Como emerge do DOC 3 junto com a reclamação, o prédio correspondente à matriz predial urbana com o artigo ...38 foi adquirido pelo administrador da sociedade em 1976 por escritura pública, prédio esse constituído por um terreno, no qual o administrador da sociedade edificou uma moradia, a qual seria desde a data de finalização da obra em março de 1981, a casa de morada de família.
F. O administrador da sociedade, assim aconselhado, por motivos atinentes ao acesso a crédito bancário, e consolidação no mercado da referida sociedade, fez constar o dito prédio como propriedade da sociedade executada (Cf. DOC 4 e 5 juntos com a reclamação).
G. Porém, o prédio urbano (artigo matricial ...38) sempre constituiu habitação própria do administrador da sociedade e do seu agregado familiar. (CF. DOC 7 a 9 juntos com a Reclamação).
H. Ademais, tal facto é considerado provado no ponto 5 da douta sentença.
I. Tal como decorre do artigo 244.º, n.º 2, do CPPT "não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim."
J. Pretende-se proteger a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado, conforme resulta do artigo 1° da Lei n.º 13/2016.
K. Estamos no caso dos presentes autos, mediante uma evidente confusão entre o património da sociedade executada e o património do seu administrador, o que é manifesto no que tange à casa de morada de família do mesmo.
L. Impõe-se não ignorar o primado da justiça material, pois, a Justiça deve prevalecer sobre todas as atuações do Estado, conforme se preceitua no n.º 2 do artigo 5.º da LGT, que estabelece expressamente como limite à tributação o respeito pelo princípio da justiça material, encontrando-se ainda expresso tal princípio no artigo 55° da LGT
M. Fundamentando ainda o princípio da investigação, traduzindo este o poder/dever que o Tribunal tem de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições das partes, os factos sujeitos a julgamento, criando, assim, as bases para decidir, princípio este vigente no processo judicial tributário (cfr. Art.º 99, n.º 1, da L.G. Tributária; art°,13, n°.1, do C.P.P. Tributário.
N. De salientar que ao julgador será de exigir, nestas circunstâncias, um esforço de interpretação que não se pode ater apenas à letra da lei, mas outrossim que se compagine com a «unidade do sistema», nos termos do n.º 2 do art.º 9.º do Código Civil (CC).
O. Terá que ser considerado ainda o (elemento teleológico) e o (elemento sistemático).
P. O escopo das alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, é o de conferir proteção ao direito à habitação do devedor e de quem integra a família do devedor.
Q. A aqui executada enquanto construção jurídica não tem casa de morada de família, mas, e como vimos de explanar tal prédio urbano constitui e sempre constituiu casa de morada de família do administrador e da sua família, inexistindo por parte da sociedade qualquer posse sobre tal imóvel.
R. Verifica-se, pois, uma confusão de patrimónios que justifica a aplicação deste regime ao caso em apreço.
S. Porquanto, é o direito fundamental à habitação do devedor e da sua família que a Lei pretende assegurar, que o administrador da sociedade executada vê ser preterido em clara violação do artigo 244°, n.ºs 2 e 3 do CPPT.
T. A realidade fáctica, não pode ser pura e simplesmente abolida e preterida a favor de meras construções jurídicas violando quer o artigo 55° da LGT, artigo 9° do CC, quer o próprio artigo 244° do CPPT.
U. Consubstanciando a venda do imóvel em questão uma nulidade porque celebrada contra disposição legal de carácter imperativo, nos termos do n.º 4 do artigo 244.º do CPPT.
V. No que concerne à ilegalidade e violação da proporcionalidade atento o valor fixado para a venda do artigo 2011.
W. Considerando a matéria provada no ponto 2 e 3 da aliás douta sentença e ainda o ponto 6 da mesma, resulta claramente que valor constante do despacho de venda contende com os direitos patrimoniais da Reclamante aqui Recorrente.
X. Pois, resulta a propósito da proposta de dação em cumprimento, que tal imóvel teria um valor patrimonial de €755.000,00, valor este superior ao da dívida exequenda e acrescidos Cf. Ponto 6 da matéria provada.
Y. À justiça tributária não lhe poderá ser alheio a exponencial valorização do mercado imobiliário que originou um aumento substancial do valor dos prédios urbanos.
Z. Aferindo-se um total desfasamento entre o valor considerado para a venda do prédio vertido no despacho de venda e o valor de mercado do imóvel, que consubstancia uma intolerável violação do princípio da proporcionalidade.
AA. Facto este, que a Autoridade Tributária, conhece e não pode ignorar em face da avaliação realizada pela mesma aquando da proposta de dação em cumprimento por parte da reclamante/recorrente.
BB. Este Princípio é estruturante e transversal a todo o ordenamento jurídico e irradia não só do artigo 18° da CRP, como se encontra expressamente previsto no artigo 55° da LGT.
CC. Todavia, não pode haver proporcionalidade quando o valor pelo qual o executado se vê despojado do seu património, não tem qualquer correspondência com o valor real do bem, eternizando na realidade a dívida, que após esgotado o património da sociedade executada se repercutirá na esfera jurídica e patrimonial do seu administrador através do Instituto da Reversão.
DD. Atendendo aos considerandos tecidos na sentença a propósito do artigo 250° do CPPT, concatenado com os factos vertidos no 6 da matéria de facto dada como provada, é absolutamente inquestionável que o valor de venda dos bens é manifestamente superior ao VPT.
EE. Desta forma, e ao desconsiderar o valor real do bem, violou a douta sentença os artigos 18.º da CRP, 55.º da LGT e ainda o artigo 250.º do CPPT.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão deverá ser revogada aliás Douta Sentença considerando-se a reclamação procedente por provada e em consequência serem anulados os despachos de venda do chefe do serviço de finanças com todas as legais consequências.
Fazendo-se assim inteira e sã justiça.”
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Não houve contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
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Dada a natureza urgente do processo, há dispensa de vistos prévios (artigo 36.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ex vi artigo 2.º, n.º 2, alínea c) do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa apreciar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao manter na ordem jurídica os actos de determinação de venda dos imóveis em apreço, por não se verificar, respectivamente, a violação do disposto no artigo 244.º, n.º 2 do CPPT (casa de morada de família) e a ilegalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, atento o valor fixado para a venda.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
II.1 – De facto
Com relevância para a decisão a proferir resultam provados os seguintes factos:
1. Nos processos ...84 e apensos (...89, ...19 e ...05), é executada a sociedade [SCom01...] SA, com número de identificação de pessoa coletiva (NIPC) ...46 e sede no Lugar ..., ... ..., pela quantia exequenda de € 378.184,25, relativa a dívidas de IRC e IVA e juros de mora € 277.674,53, no total de € 655.858, 78.
[cfr. certidões de dívida e ofício de citação – fls. 102-165 SITAF]
2. Em 12.05.2023 foi, nos processos identificados em 1, proferido despacho de designação da data para venda n.º .........3.2, relativo ao prédio inscrito, na titularidade de [SCom01...] SA, NIPC ...46, na matriz predial urbana da União das freguesias ..., ... e ..., do concelho ..., ...11, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.° ..76/19940516, que fixou o valor base para venda em € 72.065,24, referindo ser o valor patrimonial tributário do mesmo bem de € 102.950,49.
[cfr. documentos fls., 165-167, 169-171, 185-187, 189-190 SITAF]
3. O artigo 2011 encontra-se inscrito na matriz, como terreno para construção com o valor patrimonial tributário de € 102.950,49 e a seguinte observação: “VPT ACTUALIZADO COM BASE NA FICHA DE AVALIAÇÃO N°. ...18, COM EFEITOS À DATA DA AVALIAÇÃO (NOTIFICAÇÃO MANUAL DO VALOR COM BENFEITORIA EFECTUADA PELO OFÍCIO N°. ..16, DE 2014.10.27)”.
4. Em 12.05.2023 foi, nos processos identificados em 1, proferido despacho de designação da data para venda n.º .........3.2, relativo ao prédio em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, inscrito na titularidade de [SCom01...] SA, NIPC ...46, na matriz predial urbana da União das freguesias ..., ... e ..., do concelho ..., sob o artigo ...38, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03, correspondente a uma habitação com dois pisos, sito na Rua ..., ..., que fixou o valor base para venda em € 111.790,64, referindo ser o valor patrimonial tributário do mesmo bem de € 159.701,34.
[cfr. documentos fls. 167-169, 178-180, 183-185, 185-187, 187-189 SITAF]
5. Consta da informação que precedeu o despacho que antecede o seguinte teor: “(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)”
[cfr. documentos fls. 183-185 SITAF]
Mais resultou demonstrado que,
6. Em 08.04.2011 foi indeferido um pedido de dação em pagamento, com base em informação que integra o seguinte teor: “(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)”
[cfr. documentos fls. 171-177 SITAF]
Com relevo para a decisão a proferir não resultam provados ou não provados outros factos.
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Motivação da decisão de facto
Os factos assentes como provados e não provados assentam na convicção formada em razão da alegação das partes, com base na livre apreciação da prova documental, efetuada à luz das regras da experiência comum. Considerando-se provados e não provados os factos com relevo para a decisão a proferir que, tendo sido alegados pelo Reclamante ou FP, ou sendo destes instrumentais, foram corroborados pela apreciação crítica, contextual e conjugada do teor de documentos que se encontram integrados nos autos e se referenciaram concretamente junto a cada um dos factos assentes.”
*
2. O Direito

A Recorrente não se conforma com o julgamento “a quo”, que manteve na ordem jurídica os actos de venda dos imóveis em apreço, insistindo na violação do disposto no artigo 244.º, n.º 2 do CPPT (casa de morada de família) e na ilegalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, atento o valor fixado para a venda, quanto a um segundo prédio.
Para melhor compreensão, vejamos o julgamento do tribunal recorrido quanto ao primeiro acto de determinação de venda reclamado (imóvel identificado com o artigo ...38):
(…) (i) Da ilegalidade da determinação da venda, do artigo ...38, atento o disposto no artigo 244.º, n.º 2 CPPT.
A alegação da Reclamante assenta a este respeito, na circunstância de a venda ser incidente sobre prédio que constitui a habitação própria e permanente do administrador da Reclamante e seu agregado familiar, em violação do disposto no referido preceito legal.
Referiu, em síntese, que em 1993 no contrato de sociedade da [SCom01...], Lda., o prédio foi transferido para a sociedade, por «AA». E, em 1994, por escritura de transformação de sociedade, o prédio urbano passou a integrar o acervo patrimonial da sociedade executada. No entanto, o mesmo prédio sempre constituiu e constitui a habitação própria e permanente do administrador da sociedade e do seu agregado familiar.
Devendo a realidade fática ser considerada em detrimento de meras construções jurídicas e ser atendida a proteção da casa de morada de família, fazendo-se raciocínio análogo ao que resulta da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, ante o objetivo do legislador com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016.
Está em causa o direito fundamental à habitação do devedor e da sua família que, com o despacho impugnado, o administrador da sociedade executada vê ser preterido, em violação do artigo 244.º, n.º 2 e 3 do CPPT.
A Fazenda Pública referiu que o artigo 244.º, n.º 2 estabelece a impossibilidade da venda de imóveis que sejam destinados exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor/executado ou do seu agregado familiar. E o imóvel em causa é propriedade da sociedade executada. Não sendo o administrador da sociedade executada o “executado” no processo executivo no âmbito do qual houve lugar à marcação da venda. O mesmo administrador não faz parte do “agregado familiar” da executada. Tendo a sociedade executada sede na morada correspondente ao referido imóvel. E sendo irrelevante que o administrador da Reclamante tenha fixado no imóvel a sua habitação permanente. Citou, entre outros, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 2018.12.06, proferido no processo 471/18.9BEALM.
Acrescentou que, as entradas em espécie, devem assegurar de forma direta ou indireta a sociedade e os seus credores, sem quaisquer limitações, já que o regime previsto pelo legislador para as entradas em espécie tem por fim de garantir a efetiva realização do capital social e, consequentemente, a proteção da sociedade e dos credores.
Pelo que, a impossibilidade da penhora e consequente venda de um bem transmitido à sociedade a título de entrada em espécie, lhe retiraria a sua função de garantia dos credores, em clara oposição ao pensamento do legislador.
Acrescentou a referência a um conjunto de circunstâncias das quais resulta ser possível concluir que o administrador da sociedade Reclamante e a filha «BB» não têm habitação própria e permanente no prédio objeto de marcação de venda, ao contrário do que foi alegado.
A DMMP secundou o que ficou dito pela IRFP.
Vejamos.
Decorre da alegação expendida pela própria Reclamante, que o prédio inscrito sob o artigo ...38 se encontra inscrito na titularidade jurídica da sociedade desde 1993 [[SCom01...], Lda. primeiro e depois [SCom01...], S.A.]. Em função de entrada em espécie para a então ainda sociedade por quotas, do sócio [«AA». Atual administrador, após a transformação em sociedade anónima.
Também não é controvertido, ante a mesma alegação, ser a sociedade [SCom01...], S.A. a devedora/executada, no âmbito dos Processos de Execução Fiscal nº ...84 e aps., em que foi determinada a marcação da venda.
Ora, é princípio geral da garantia das obrigações o de que “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios” [artigo 601.º do C.CIV]. Princípio que, no âmbito da legislação tributária, foi transposto para o artigo 50.º da LGT em que se estabelece: “O património do devedor constitui a garantia geral dos créditos tributários.
Mais, os bens inscritos na titularidade de pessoa coletiva, neste caso pessoa jurídica sob a forma de sociedade anónima, integram o seu património. E, como o património dessa pessoa coletiva integra garantia das suas obrigações. Os bens que o compõem respondem pelas obrigações/dívidas dessa mesma sociedade. Podendo ser penhorados e vendidos em sede dos processos executivos instaurados com vista à cobrança coerciva dessas dívidas [tudo cfr. artigos 15.º, 16.º, 22.º, n.º 1, 31.º, n.º 1 36.º, n.º 2 e 50.º LGT; artigo 3.º, 78.º, 84.º e 88.º, 148.º CPPT].
A realização da penhora e venda, no âmbito do processo de execução fiscal é, por sua vez, regulada especificamente pelo CPPT, nas subsecção e secção intituladas “Da Penhora” e “Da venda dos bens penhorados”, aplicando-se as normas no mesmo diploma estabelecidas e apenas subsidiariamente o disposto no CPC.
Nos termos do disposto no artigo 217.º do CPPT, em princípio, quanto à “extensão da penhora”, a mesma “é feita nos bens previsivelmente suficientes para o pagamento da dívida exequenda e do acrescido”.
E, nos termos do artigo 219.º do mesmo código, que dispõe sobre os “bens prioritariamente a penhorar”: “sem prejuízo do disposto nos n.os 4 e 5, a penhora começa pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostre adequado ao montante do crédito do exequente (...) 5 - A penhora sobre bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições previstas no artigo 244.º”.
Portanto, no âmbito do CPPT, os limites que incidem sobre a penhora de imóvel “com finalidade de habitação própria e permanente”, são os que estão estabelecidos no artigo 244.º do CPPT, nos seguintes termos: “(...) 2 - Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim. (...) 5 - A penhora do bem imóvel referido no n.º 2 não releva para efeitos do disposto no artigo 217.º, enquanto se mantiver o impedimento à realização da venda previsto no número anterior, e não impede a prossecução da penhora e venda dos demais bens do executado. 6 - O impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente previsto no n.º 2 pode cessar a qualquer momento, a requerimento do executado. (...)”.
Daqui resulta que o CPPT integra preceitos legais que estabelecem sobre a extensão da penhora (217.º), os bens penhoráveis (218.º) e a ordem da penhora, incluindo-se aqui a menção às condições a que se encontra sujeita a penhora de bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente (219.º), no âmbito do processo de execução fiscal. E, no artigo 244.º, concomitantemente, estatui não poder haver lugar à realização da venda, em determinadas circunstâncias. Ou seja, no CPPT é diretamente regulada a questão.
Mais decorre da análise destas disposições legais conjugadas, ter sido intenção do legislador salvaguardar, poder ser sem outros constrangimentos constituído o ónus que a penhora sobre bem com aquela afetação passa a integrar.
Assegurando assim que, sem prejuízo de outros ónus que sobre o mesmo incidam com precedência ou prevalência, o mesmo bem fica adstrito a servir de garantia da dívida tributária, em execução fiscal.
Mas, impedindo que a sua venda judicial, no âmbito do mesmo processo tributário, possa ser concretizada desde que “destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim”.
Assim, são estas as condições a que a penhora e venda deste tipo de bens, se efetuada no âmbito de execução fiscal, como aquela que integra o ato reclamado está sujeita [reguladas direta e especificamente no CPPT]. E não a outras.
Mais, a este respeito, a limitação legalmente estabelecida apenas se pode ter como aplicável quando o prédio em causa esteja efetivamente afeto exclusivamente à habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar.
Sucede, no caso dos autos, não ser controvertido, como se disse, ante a alegação da própria Reclamante, que o prédio em causa está inscrito na titularidade da sociedade comercial desde 1993. E que é a sociedade a devedora/executada. Não sendo o administrador da sociedade executada o devedor/executado no PEF, nem estando o prédio inscrito na sua titularidade.
Pelo que, integrando a sociedade anónima executada, aqui Reclamante, uma pessoa jurídica distinta e autónoma em relação ao seu administrador, não se configura a possibilidade de interpretação do artigo 244.º, n.º 2 do CPPT, no sentido da aplicação dos conceitos de habitação própria e permanente e agregado familiar à Reclamante – pessoa jurídica que integra uma sociedade anónima – tendo por referência a pessoa singular que integra o seu administrador.
Ainda que o administrador possa ter habitação própria e permanente no prédio, não se entende ser de aplicar a limitação à venda estabelecida no artigo 244.º, n.º 2 do CPPT. Por não se considerar que aquela limitação à venda tenha sido estabelecida visando abarcar situações com esse recorte. Ou seja, com vista a salvaguardar que por dívidas ao fisco de pessoa coletiva, neste caso uma sociedade anónima, não possa ser vendido prédio integrante do património da sociedade, para satisfação das dívidas tributárias [de IRC e IVA]. Isto, por estar afeto à habitação própria e permanente do seu administrador e seu agregado.
Considerando-se que a limitação à venda executiva no processo tributário apenas foi estabelecida para os prédios efetivamente afetos habitação própria e permanente do devedor/executado – pressupondo que o prédio é pertença de pessoa singular, que essa pessoa singular é o executado, e que é essa pessoa singular ou alguém do seu agregado que nele tem a sua habitação própria e permanente.
Em relação à parte da alegação da Reclamante em que a mesma se refere à necessidade de aplicação à situação sob apreciação, para efeito de se considerar aplicável o disposto à situação fática supra especificada, do disposto no artigo 244.º, n.º 2 do CPPT, de raciocínio análogo ao do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, esta também não pode conduzir à procedência da presente Reclamação.
Na verdade, integra princípio a atender para este efeito, como resulta do já acima exposto, o da separação e autonomia de patrimónios entre os sócios e pessoa coletiva [artigos 5.º e 30.º CSC]. Sendo que, a desconsideração da personalidade jurídica, também designada levantamento da personalidade coletiva, das sociedades comerciais ou “disregard of legal entity”, é um instituto que tem na sua base o abuso do direito da personalidade coletiva.
É convocável quando, a coberto do manto ou véu da personalidade coletiva, a sociedade ou os sócios excederem, ou utilizarem a autonomia societária em relação a terceiros, para exercerem direitos de forma que contraria os fins para que a personalidade coletiva foi atribuída, haja em vista o princípio da especialidade.
Assim, o referido instituto tem como finalidade permitir a responsabilização pessoal dos sócios ou dos administradores, por atos lesivos praticados a coberto da autonomia societária, ou seja, permitir que os sócios e administradores respondam por determinados atos com o seu património pessoal.
Não se compaginando, por isso, sem necessidade de aqui proceder a outras considerações, possibilidade de aplicação de raciocínio análogo para efeito de determinar a ilegalidade do despacho de marcação da venda do prédio inscrito na titularidade da sociedade executada, aqui Reclamante, ao abrigo do disposto no artigo 244.º, n.º 2 do CPPT.
Prosseguindo, quanto ao mais alegado, refira-se que sendo certo que se encontram em causa limites, fixados na lei ao direito à propriedade privada, que é um direito constitucionalmente garantido [artigo 62.º CRP]. Em função da proteção do direito à habitação, igualmente, constitucionalmente protegido [artigo 62.º CRP].
Não menos certo é que a propriedade privada nestes autos posta em causa se encontra inscrita na esfera jurídica da sociedade executada, ora Reclamante.
E que, os limites impostos pelo artigo 244.º, n.º 2 do CPPT incidem sobre a garantia do credor à satisfação do seu crédito através do património do devedor/executado.
Pelo que, entendimento que alargasse aqueles limites a situação que não se considera ter sido visada abarcar pelo legislador através do seu estabelecimento, postergaria elementares princípios do processo executivo. Então sim, afrontando o direito de propriedade privada constitucionalmente garantido [da sociedade executada, art.º 62º, n.º 1 da CRP] e a garantia do credor à satisfação do seu crédito través do património do devedor. Em situação em que não estava em causa a salvaguarda do direito à habitação do executado no processo executivo em que foi determinada a venda, visada abarcar pelo artigo 244.º, n.º 2 CPPT.
Concluindo, a presente Reclamação não pode ser julgada procedente com base na violação do disposto no artigo 244.º, n.º 2 do CPPT, ante a alegação da circunstância de o prédio, inscrito na titularidade de sociedade comercial anónima, que é a devedora/executada no PEF em que a venda foi determinada, estar afeto exclusivamente à habitação própria e permanente do administrador dessa sociedade e seu agregado familiar. (…)”
Apesar de não vislumbrarmos qualquer erro neste julgamento realizado pelo tribunal de primeiro conhecimento, atentemos nas alegações do recurso, que se reconduzem, grosso modo, na recuperação dos argumentos que já haviam sido apontados na petição de reclamação.
Sustenta a Recorrente que se denota no caso em apreço uma clara confusão entre o património da sociedade devedora executada e o património do seu administrador, encontrando aqui justificação para a aplicabilidade do disposto no artigo 244.º, n.º 2 do CPPT.
Contudo, não podemos olvidar que a proibição de venda de imóvel prevista no artigo 244.º do CPPT, na redacção da Lei n.º 13/2016, de 23/05, depende do preenchimento dos seguintes pressupostos:
- O imóvel estar exclusivamente destinado a habitação própria e permanente do devedor/executado ou do seu agregado familiar (cfr. artigo 244.º, n.º 2, do CPPT);
- O valor tributável do imóvel, no momento da penhora, não se enquadrar na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (cfr. artigo 244.º, n.º 3, do CPPT).
O referido n.º 2 do artigo 244.º do CPPT teve a sua actual redacção por força da alteração introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º 13/2006, de 23 de Maio [que alterou o Código de Procedimento e de Processo Tributário e a Lei Geral Tributária] que visou proteger a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, “…, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado”.
Apesar de já termos adiantado os requisitos, por ter interesse para a decisão a proferir, para aqui extraímos o artigo 244.º do CPPT, como segue:
«Artigo 244.º
1 - A venda realiza-se após o termo do prazo de reclamação de créditos. (Anterior corpo do artigo; redação da Lei n.º 13/2016, de 23 de maio)
2 - Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efectivamente afecto a esse fim. (Redação da Lei n.º 13/2016, de 23 de maio) - Sublinhado da nossa autoria.
3 - O disposto no número anterior não é aplicável aos imóveis cujo valor tributável se enquadre, no momento da penhora, na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano ou de fracção autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis. (Redação da Lei n.º 13/2016, de 23 de maio)
4 - Nos casos previstos no número anterior, a venda só pode ocorrer um ano após o termo do prazo de pagamento voluntário da dívida mais antiga. (Redação da Lei n.º 13/2016, de 23 de maio)
5 - A penhora do bem imóvel referido no n.º 2 não releva para efeitos do disposto no artigo 217.º, enquanto se mantiver o impedimento à realização da venda previsto no número anterior, e não impede a prossecução da penhora e venda dos demais bens do executado. (Redação da Lei n.º 13/2016, de 23 de maio)
6 - O impedimento legal à realização da venda de imóvel afecto a habitação própria e permanente previsto no n.º 2 pode cessar a qualquer momento, a requerimento do executado.” (Redação da Lei nº 13/2016, de 23 de maio)»
Portanto, insistimos, a venda de imóvel em processo de execução movida pelo Estado contra um cidadão/devedor não pode realizar-se, se o mesmo estiver destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do cidadão/devedor, ou destinado a habitação do seu agregado familiar.
Ora, o n.º 2 do artigo 244.º do CPPT, comporta duas previsões normativas, alternativas, sendo certo que o imóvel é propriedade da sociedade Reclamante, ora Recorrente, e quem reside no mesmo é o seu administrador e a sua família (sua mulher e filha). Logo, estando em causa uma sociedade comercial na qualidade de executada, jamais será possível equacionar o conceito de “habitação” e de “agregado familiar”, próprio das pessoas singulares. Quando muito, como é do conhecimento empírico, aí terá a sua sede, como aliás parece decorrer dos pontos 1 e 4 do probatório.
Assim, é notório não se verificar o primeiro dos pressupostos de aplicação do regime previsto no artigo 244.º do CPPT, dado não podermos aceitar a alegada confusão de patrimónios, pois dos documentos ínsitos nos autos resulta uma evidente intenção de afectar o imóvel em análise ao património social da devedora, integrando o seu capital social.
De seguida, a Recorrente alude ao primado da justiça material sobre a justiça formal, que impõe ao julgador a efectiva resolução de mérito das questões que são submetidas à sua apreciação, em detrimento das soluções meramente processuais.
Porém, não atingimos o alcance desta alegação, dado que o tribunal recorrido analisou, de facto, a situação concreta, subsumindo-a ao direito, apreciando o mérito das questões colocadas na reclamação em apreço, como resulta da transcrição supra, sendo, portanto, destituída de sentido a alusão aos artigos 5.º e 55.º, ambos da LGT.
Por outro lado, também a Recorrente não explica, nem concretiza, em que circunstâncias não terá sido acautelado o princípio do inquisitório, o que inviabiliza tomar conhecimento do alegado na conclusão M) do recurso.
Defende a Recorrente que o tribunal recorrido se ateve apenas à letra da lei, abstraindo-se dos restantes elementos interpretativos das normas e da realidade fáctica, mas sem razão.
No fundo, a Recorrente parece apoiar a ideia de que merece a protecção de tal regime legal o imóvel que seja “destinado exclusivamente a habitação própria e permanente” e “esteja efectivamente afecto a esse fim”, sendo irrelevante, para efeitos da sua aplicação, saber se constitui casa de morada de família da devedora, aqui Recorrente (executada).
Antes de mais, se dirá que é hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr. artigo 9.º, do Código Civil; artigo 11.º, da Lei Geral Tributária; José de Oliveira Ascensão, in O Direito, Introdução e Teoria Geral, Editorial Verbo, 4ª. edição, 1987, pág.335 e seg.; J. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, pág.181 e seg.).
Com efeito, o intérprete e aplicador da lei deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Pelo que, na exegese da norma não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Portanto, o limite da interpretação encontra-se na letra ou no texto da norma, o qual condiciona todos os vectores de interpretação reconhecidos pela doutrina, como sejam os elementos histórico, sistemático ou teleológico (cfr. artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil).
Ponderando o caso dos autos, não pode este Tribunal concordar com a visão da Recorrente, ao estender a aplicação do regime previsto no citado artigo 244.º, do CPPT, na redacção da Lei n.º 13/2016, de 23/05, aos imóveis que são propriedade do devedor/executado, mas não são utilizados pelo mesmo, ou pelo seu agregado familiar, como habitação própria e permanente, assim contrariando o texto da lei.
Como referimos, o imóvel é “propriedade” de uma sociedade comercial, integra o capital social da Recorrente, sendo utilizado pelo administrador e pela sua família, que são pessoas jurídicas e físicas diversas.
Além do mais, tudo indica, como referimos, que nesse mesmo imóvel funcionaria a sua sede social, revelando que o prédio não estaria exclusivamente afecto a habitação própria e permanente, mas, pelo contrário, que também estaria a ser utilizado para a prossecução dos fins sociais da sociedade comercial, ora Recorrente. Logo, nunca poderia dar-se por verificado o requisito previsto no artigo 244.º, n.º 2 do CPPT.
Em conclusão, não se verifica o primeiro dos pressupostos de aplicação do regime previsto no artigo 244.º do CPPT, assim não padecendo o acto objecto do presente processo, nesta parte, de vício de violação de lei, por infracção ao disposto nesse artigo 244.º, n.º 2, do mesmo diploma.

Vejamos, agora, como o tribunal recorrido apreciou os vícios imputados ao acto de determinação da venda do imóvel identificado pelo artigo 2011 e que com tal julgamento não se conforma a Recorrente:
«(…) (ii) Da ilegalidade e violação do princípio da proporcionalidade, atento o valor fixado para a venda do artigo 2011
A este respeito a Reclamante alega que apesar de na descrição constante da matriz constar terreno para construção, se encontra no mesmo prédio edificada uma moradia, o que interfere com o valor correspondente. Que é muito superior ao fixado para venda. Sendo que o desfasamento entre o valor fixado como base para a venda e o valor do prédio põe em causa o princípio da proporcionalidade e os interesses patrimoniais da executada.
Refere ter apresentado em 2010 um pedido de dação em pagamento que foi indeferido pela sua extemporaneidade, mas dele resultando que o valor do referido bem era superior ao da dívida. E que, dessa recusa decorreu o avolumar da dívida.
Que, apesar de a Reclamante possuir património imobiliário não possui liquidez financeira imediata para proceder ao pagamento da dívida. Tendo o seu património penhorado, em 2011 apresentou um pedido de redução da penhora. E lançou mão de vários pedidos durante todos estes anos, através de vários processos os quais quase sempre resultaram indeferidos. Sendo que, apesar de todas estas intervenções terem efeito suspensivo, o SF de ... continuou termos nos processos, efetuando diversas vendas. Cujo valor não permite o pagamento da dívida. E sucessivas marcações de venda, tal como estas agora em Reclamação.
A Fazenda Pública a este respeito referiu terem sido realizadas penhoras e vendas na execução. E que as mesmas em relação ao valor obedecem ao estipulado no n.º 2 do art.º 248, conjugado com o disposto no nº 1 e 5 do art.º 250, ambos do CPPT. Tendo sido arrecadado valor não suficiente para pagamento da totalidade da dívida. Não se verificando violação do princípio da proporcionalidade, porque as vendas seguiram os termos estabelecidos no CPPT. Sendo que, conforme o ali disposto, só pode ser afastado o VPT quando se mostre evidente que o valor de mercado dos bens é manifestamente superior àquele, mediante procedimento de avaliação, com densidade vinculativa, e materializado por entidade devidamente credenciada para o efeito- que o valor de mercado dos bens é manifestamente superior ao VPT. E a Reclamante poderia lançar mão, do disposto no nº 2 do artigo 250º do CPPT, requerendo a determinação do valor do bem para venda com recurso a parecer técnico de um perito especializado. E, não lançou mão daquela prerrogativa, limitando-se a invocar neste particular a violação do principio da proporcionalidade.
Acrescentou que, em função das circunstâncias a que se referiu, não se verifica a violação do princípio da proporcionalidade.
A DMMP secundou o referido pela IRFP.
Vejamos.
Atentas as questões a apreciar e decidir supra delimitadas – no âmbito da definição do objeto da Reclamação – não se impõe aqui apreciar e decidir senão acerca da (i)legalidade do despacho que determinou a marcação da venda, em relação ao artigo 2011, em razão de vícios que lhe foram assacados no requerimento inicial desta Reclamação.
Outros atos, sejam vendas executivas, ou indeferimentos de pedidos ou requerimentos, ou outros, a que se reporta a alegação da Reclamante não integram objeto desta Reclamação e, em consequência, não cumpre aqui proceder a considerações acerca de alegação que lhes respeite.
Isto dito, estabelece o artigo 248.º do CPPT, sobre a “regra geral” aplicável à “venda dos bens penhorados”, nos seguintes termos:
“1 - A venda é feita preferencialmente por meio de leilão electrónico ou, na sua impossibilidade, de propostas em carta fechada, nos termos dos números seguintes, salvo quando o presente Código disponha de forma contrária.
2 - A venda é realizada por leilão electrónico, que decorre durante 15 dias, sendo o valor base o correspondente a 70 /prct. do determinado nos termos do Artigo 250.º”.
Por sua vez, o artigo 250.º do CPPT dispõe assim sobre o “valor dos bens para venda”:
1- O valor base para venda é determinado da seguinte forma: a) Os imóveis urbanos, inscritos ou omissos na matriz, pelo valor patrimonial tributário apurado nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI); (...)
2 - Sem prejuízo da determinação do valor dos bens imóveis para venda nos termos do número anterior, quando se mostre evidente que o valor de mercado dos bens é manifestamente superior ao apurado por aquelas regras, a requerimento do executado ou por iniciativa do órgão de execução fiscal pode ainda recorrer-se à determinação do valor com recurso a parecer técnico de um perito especializado e registado na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, seguindo-se a demais tramitação do processo.
3 - O órgão da execução fiscal promove oficiosamente a avaliação dos prédios urbanos ainda não avaliados nos termos do CIMI, que estará concluída no prazo máximo de 20 dias e será efectuada por verificação directa, sem necessidade dos documentos previstos no artigo 37.º do respectivo Código.
4 - A avaliação efectuada nos termos do número anterior produz efeitos imediatos em sede do IMI.
5 - O valor base a anunciar para venda é igual a 70 /prct. do determinado nos termos do n.º 1.
Em função da alegação expendida pela Reclamante relativa à ilegalidade do despacho, em razão do valor patrimonial tributário do imóvel, cumpre referir que atentos os pontos 2 e 3 dos factos provados, que o prédio cuja venda foi marcada se encontra inscrito na matriz predial urbana, na titularidade da sociedade Reclamante, como terreno para construção, com o valor patrimonial tributário atribuído (VPT) de € 102.059,49 e a observação: “VPT ACTUALIZADO COM BASE NA FICHA DE AVALIAÇÃO Nº. ...18, COM EFEITOS À DATA DA AVALIAÇÃO (NOTIFICAÇÃO MANUAL DO VALOR COM BENFEITORIA EFECTUADA PELO OFÍCIO Nº. ...16, ...7)”. E o despacho de marcação de venda fixou o valor base da venda em € 72.065,24, atento o referido VPT.
Ora, apesar de não resultar certo que o lote de terreno a que se refere o teor do ponto 6 dos factos provados seja exatamente o correspondente ao artigo 2011 cuja venda executiva foi marcada. Para o que ora importa apreciar e decidir, é certo que, em 2011, foi indeferido um pedido de dação em pagamento, sendo referidas além das circunstâncias a que se referiu a Reclamante, também as constantes no ponto 3 e alíneas c) e d) – conforme ponto 6 factos provados – para cujo teor se remete.
Mais, sendo a avaliação e inscrição na matriz da observação acima transcrita (2014), quanto ao referido prédio posterior às circunstâncias a que se referiu a Reclamante, conforme ponto 6 dos factos provados (2011). E, inexistindo menção por parte da Reclamante a ter sido efetuada, em concreto, impugnação da referida avaliação e VPT atribuído a este prédio – artigo 2011. Ou a qualquer pedido atinente à correção dos dados constantes da matriz, quanto ao referido prédio composição e valor, ou outro.
Sendo, de acordo com os factos integrados nos pontos 2 e 3, aquele o valor do terreno para construção tido em consideração e estando o mesmo “VPT ACTUALIZADO COM BASE NA FICHA DE AVALIAÇÃO Nº. ...18, COM EFEITOS À DATA DA AVALIAÇÃO (NOTIFICAÇÃO MANUAL DO VALOR COM BENFEITORIA EFECTUADA PELO OFÍCIO Nº. ...16, ...7)”.
Não se descortinam razões atinentes ao alegado pela Reclamante justificativas de que para que os efeitos da marcação da venda não devesse ser atendida esta última e mais recente avaliação e inscrição de valor patrimonial tributário na matriz, por parte da AT, na ausência de alegação e demonstração de que a Reclamante tenha apresentado requerimento com vista ao procedimento a que se refere o artigo 250.º, n.º 3 do CPPT.
Em suma, da conjugação do disposto nos artigos 248.º e 250.º, ambos do CPPT, resulta que, regra geral, a venda de bens penhorados é concretizada mediante leilão eletrónico, correspondendo o valor base de venda a 70 % do VPT, ressalvada a situação em que se mostre evidente que o valor de mercado dos bens é manifestamente superior ao VPT.
E, nas supra referidas circunstâncias, ante a ausência de requerimento pela Reclamante, a consideração pela AT, no despacho reclamado dos efeitos e termos e valor da mais recente avaliação e inscrição de valor patrimonial tributário na matriz do terreno para construção, não merece censura, para o propósito aqui sob apreciação.
Visto que se prevê um procedimento específico, estritamente vinculado, e sem qualquer margem de discricionariedade, que apenas permite a ab-rogação do regime regra em situações perfeitamente patenteadas, ou seja, utilizando-se a formulação constante na lei, em situações “evidentes” da qual resulta que o valor de mercado é “manifestamente” superior ao VPT. Não cumpre considerar que da regra geral do VPT resulte preterido o princípio da proporcionalidade, porquanto o mesmo apresenta-se como uma medida adequada e necessária [cfr. neste sentido o ac do Venerando TCAS de 06.12.2022, no processo 70/22.0 BEPDL]. E, como aduzido, no aresto do STA, prolatado no processo nº 0563/16, datado de 13 de julho de 2016, não se afigura “d]e todo, o recurso ao VPT do imóvel como um critério irrazoável, antes um critério, por norma, adequado”.(…)»
Também neste segmento da decisão, a Recorrente se limita a insistir nos argumentos já usados na petição de reclamação, esquecendo que o julgamento “a quo” se refere a um procedimento específico (não utilizado pela Recorrente) para afastar o “regime regra” assente no valor patrimonial tributário.
Sustenta a Recorrente que, atendendo aos considerandos tecidos na sentença a propósito do artigo 250.º do CPPT, concatenado com os factos vertidos no ponto 6 da matéria de facto dada como provada, é absolutamente inquestionável que o valor de venda dos bens é manifestamente superior ao valor patrimonial tributário.
No entanto, como bem se explicou na sentença recorrida, os aspectos plasmados no ponto 6 do probatório são anteriores (2011) à avaliação realizada em 2014, que já teve em consideração a moradia edificada no terreno em apreço (não havendo notícia que tal avaliação tenha sido questionada por qualquer meio).
A verdade é que perante este valor mais actualizado, a Recorrente não deu impulso ao procedimento previsto no n.º 2 do artigo 250.º do CPPT, alertando para um eventual valor de mercado manifestamente superior ao valor patrimonial tributário apurado nos termos do Código do IMI.
Logo, não se vislumbra qualquer motivo para considerar violado o princípio da proporcionalidade, na medida em que não se mostra apurado qualquer valor diferente do patrimonial tributário na data em que foi determinada a venda, que pudesse servir para uma análise, em concreto, por parte deste tribunal na ponderação dos vectores desse princípio constitucional.
Cabia à Recorrente trazer ao conhecimento da Administração Tributária circunstâncias especiais actuais (momento da venda) que, a verificarem-se, através do procedimento previsto no n.º 2 do artigo 250.º do CPPT, justificassem, eventualmente, que na venda do imóvel se devesse atender a valor diverso do valor patrimonial tributário deste.
Com efeito, não existe qualquer alegação ou prova de que em 12/05/2023 (data de determinação da venda) o valor de mercado do imóvel fosse manifestamente superior ao valor patrimonial tributário mais recente (avaliação de 2014), apurado nos termos do Código do IMI, pelo que se afigura impossível detectar qualquer violação do disposto nos artigos 18.º da CRP, 55.º da LGT ou artigo 250.º do CPPT, nesta parte do acto reclamado.
Pelo exposto, impõe-se manter a sentença recorrida, devendo ser negado provimento ao recurso.

Conclusões/Sumário

I – A proibição de venda de imóvel prevista no citado artigo 244.º, do CPPT, na redacção da Lei n.º 13/2016, de 23/05, depende do preenchimento dos seguintes pressupostos:
- O imóvel estar exclusivamente destinado a habitação própria e permanente do devedor/executado ou do seu agregado familiar (cfr. artigo 244.º, n.º 2 do CPPT);
- O valor tributável do imóvel, no momento da penhora, não se enquadrar na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (cfr. artigo 244.º, n.º 3 do CPPT).
II - O intérprete e aplicador da lei deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, como também que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Pelo que, na exegese da norma não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Portanto, o limite da interpretação encontra-se na letra ou no texto da norma, o qual condiciona todos os vectores de interpretação reconhecidos pela doutrina, como sejam os elementos histórico, sistemático ou teleológico (cfr. artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil).
III - A proibição de venda reporta-se a um concreto bem presente na esfera patrimonial do devedor/executado. Fora da proibição de venda introduzida pela Lei n.º 13/2016, de 23/05, ficam, desde logo, os imóveis que, apesar de serem propriedade do executado, não são utilizados pelo mesmo, ou pelo seu agregado familiar, como habitação própria e permanente.
IV - -Da conjugação dos normativos 248.º e 250.º, ambos do CPPT, resulta que, regra geral, a venda de bens penhorados é concretizada mediante leilão electrónico, correspondendo o valor base de venda a 70 % do valor patrimonial tributário, ressalvada a situação em que se mostre evidente que o valor de mercado dos bens é manifestamente superior ao valor patrimonial tributário.
V – Nessa situação, deverá lançar-se mão de um procedimento específico, estritamente vinculado, que apenas permite o afastamento do regime regra em situações perfeitamente definidas, ou seja, utilizando-se a formulação constante do artigo 250.º, n.º 2 do CPPT, em situações “evidentes” das quais resulte que o valor de mercado é “manifestamente” superior ao valor patrimonial tributário.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da Recorrente, nos termos da tabela I-B – cfr. artigos 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.

Porto, 25 de Janeiro de 2024

Ana Patrocínio
Vítor Salazar Unas
Maria do Rosário Pais