Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00486/07.2BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/15/2012
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos
Descritores:PRINCÍPIO DA ESPECIALIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS
PRINCÍPIO DE JUSTIÇA
IRC
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Sumário:I. O princípio da especialização dos exercícios não pode comprometer ou afrontar os valores gerais que serve e exprime nem conduzir a uma solução materialmente injusta.
II. Afronta o princípio de justiça, genericamente consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária, que o contribuinte que declara proveitos inferiores aos reais em determinado exercício e oculta dolosamente o seu verdadeiro valor obste à consideração dos proveitos reais nesse mesmo exercício, com o exclusivo fundamento de que deveriam ser considerados em exercício anterior, em que a correcção já não é possível.
III. Pelo que deve ser confirmada a sentença que não acolheu tal fundamento para obviar à tributação.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:Clínica...
Recorrido 1:Fazenda Pública
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
1.1. Clínica…, Lda., n.i.f. 5…, com sede indicada na Avenida…, em Aveiro, recorre da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou improcedente a presente impugnação judicial da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (I.R.C.) e juros compensatórios do exercício de 2002 no valor de € 33.349,40.
Recurso este que foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.
1.2. Notificada da sua admissão, a Recorrente apresentou as respectivas alegações e formulou as seguintes conclusões (que optamos por ordenar por alíneas):
A. Não é verdade que a ora recorrente tenha adoptado em 2002 exclusivamente o critério financeiro, que consiste em registar os proveitos apenas na data em que são recebidos e não na data em que os serviços são prestados.
B. Como também não é verdade que a própria Fiscalização tenha adoptado apenas um dos critérios em 2002;
C. Da análise do Anexo 5 ao relatório de exame verifica-se que os proveitos que a AF considerou imputáveis a 2002 respeitam, em alguns casos a serviços prestados em 2000 e 2001,
D. Do mesmo modo que aceitou a influência, nos proveitos de 2002, de verbas que corresponderam a serviços efectivamente prestados neste ano mas que apenas foram recebidos no ano seguinte (2003).
E. Este critério, de aceitar a imputação dos proveitos a determinado exercício ora com base nos recebimentos ora com base nas facturas é que nos parece não ser virtuoso, ao contrário do que entendeu a sentença recorrida (fls 15 da mesma).
F. A bondade das decisões proferidas afere-se em face da sua conformidade com as disposições legais aplicáveis, que estipulam que os proveitos são imputados ao exercício a que respeitam, na data a que se reportam os serviços respectivos.
G. Independentemente das alterações efectuadas em cumprimento das disposições legais poderem originar, em concreto, correcções a favor do ora recorrente, em parte devidas ao incumprimento das obrigações inspectivas que impendem sobre a AF.
H. O comando legislativo que regula tal matéria manda imputar os proveitos por serviços ao exercício em que os mesmos foram prestados, independentemente da data do seu recebimento.
I. Ao ignorar tal comando, a sentença recorrida violou a lei (art. 18º CIRC)
1.3. A Fazenda Pública não contra-alegou.
1.4. Neste Tribunal, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, pelas razões que desenvolvidamente explana de fls. 143 a fls. 144 dos autos.
1.5. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
1.6. A única questão a decidir é a de saber se a decisão recorrida fez errada interpretação da lei e em especial do artigo 18.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (doravante sob a sigla “C.I.R.C.”).
2. Fundamentação de Facto
2.1. É o seguinte o acervo dos factos que em primeira instância foram dados como provados:
A. Em 27 de Março de 1986 foi constituída, por escritura pública, a sociedade por quotas com a firma “Clínica…, Lda., sendo definido como objecto social a prestação de serviços médicos e dentários, actividade classificada com o CAE 85 130, cfr. fls. 4 e 5 do Relatório de Inspecção a que correspondem fls. 6 e 7 do Processo Administrativo que aqui se dão por reproduzidas o mesmo se dizendo dos demais elementos infra referidos. Factualidade não questionada pela Impugnante antes resulta confirmada de outros elementos, nomeadamente do depoimento das duas testemunhas;
B. A escrita da Impugnante foi alvo de exame, levado a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção Distrital de Finanças de Aveiro, tendo sido elaborado, em 6 de Novembro de 2006, o relatório donde resulta com interesse para a decisão:
(…)
II. – Organização contabilística
Para efeito do apuramento do resultado fiscal (IRC), o sujeito passivo encontra-se obrigado a dispor de contabilidade organizada segundo os preceitos da Lei Comercial e Fiscal, devendo as respectivas operações ser relevadas contabilisticamente de harmonia com o Plano Oficial de Contabilidade tal como estabelece o artigo 115º do CIRC.
A contabilidade é processada por sistema informático nos termos previstos no nº 6 do artigo 115º do CIRC, encontrando-se os documentos contabilísticos que lhe servem de suporte em bom estado de conservação.

II. 3.8 Abordagem às demonstrações financeiras, resultados e rácios
Tendo por base os elementos declarados pelo contribuinte foi efectuada a análise comparativa:
Dos balanços tendo por base os anos de 2000 a 2004
Das demonstrações de resultados líquidos dos anos de 2000 a 2004
Alguns indicadores económicos e
Síntese do resultado do sujeito passivo
Donde podemos sistematizar o seguinte:
Relativamente ao balanço:
O imobilizado diminuiu em 2001 cerca de 50% relativamente ao ano anterior. Posteriormente aumentou 45% nos três anos seguintes.

Os depósitos bancários e caixa atingiram o montante mais elevado em 2004 com um total de 158 128,04€. Nos anos de 2001, 2002 e 2003 atingiu valores mais baixos….

A propósito da demonstração de resultados:
Este mapa reflecte um aumento das prestações de serviços do ano de 2004, enquanto nos 4 anos anteriores se verificou uma estabilidade dos valores declarados. …

O total dos custos em 2004 foi 370,84 inferior aos custos suportados em 2003. Importa lembrar que os proveitos aumentaram 29% em 2004 correspondendo a 48 311,00,…
O resultado líquido do exercício apurado em 2000 a 2003 foi reduzido entre um prejuízo de 4 291,12€ em 2000 e os 6 113,89 em 2002. No entanto, em 2004 o resultado apurado ascendeu a 54 124, 08….
II. 3.9 Procedimentos adoptados na acção inspectiva
… Não notificámos previamente o sujeito passivo do início da inspecção suportado na alínea b) do nº 1 do artigo 50º do RGIT.
Só no dia em que foi iniciada a acção é que o contribuinte foi notificado do início da mesma… insistimos em aceder à documentação que, por aquilo que nos foi comunicado não se encontrava nas instalações da empresa, mas na casa do sócio-gerente Dr. R…, na R….– 3800 Cacia.
…notificámos as entidades com quem o sujeito passivo tinha acordo de prestação de serviços para que nos enviassem o extracto onde estivessem relacionadas todas as facturas emitidas, assim, como a indicação da data dos seus pagamentos. Recebemos elementos de : ADSE, ACASA, EDP, SAD/PSP e Ministério da Justiça.

Todos os elementos recolhidos foram analisados, tendo-se encontrado infracções aos normativos fiscais as quais serão descritas mais adiante
III DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORRECÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIUBUTÁVEL
III.1. EM SEDE DE IRC
III.1.1. Exercício de 2002
III. 1.1.1. Proveitos omitidos – artigo 20º do CIRC
O sujeito passivo emitiu os recibos:
nº 33 859 de 2-10-2002 no montante de 344,71€;
nº 34 172 de 27-12-2002 no montante de 517,24€; e
nº 33 888 de 8-10-2002 no montante de 1 339,86€.
No entanto não os considerou como proveito apenas afectando a conta de terceiros. Foram assim omitidos rendimentos que ascenderam a 2 201,81€
III. 1.1.2. Proveitos omitidos – artigo 20º do CIRC
…apuraram-se outros proveitos obtidos pela empresa que também foram omitidos na sua contabilidade e por conseguinte no apuramento do rendimento tributável.
Na verdade constatou-se que, relativamente aos serviços prestados à ADSE e ACASA o sujeito passivo emitia o recibo para estas entidades com o valor efectivo dos seus proveitos (sendo-lhe enviado o original), mas o valor do recibo que era contabilizado (o duplicado) não correspondia ao que era efectivamente emitido e recebido da ADSE ou da ACASA. Eram utilizados vários critérios para fazer diminuir o valor do recibo contabilizado.
No anexo 5 apresentamos em observações os critérios utilizados para diminuir o valor do recibo contabilizado que de seguida, sintetizamos, assim:
no recibo contabilizado era diminuído o dígito dos milhares;
no recibo contabilizado era eliminado o dígito das unidades; e,
o recibo contabilizado correspondia a 10% do valor facturado à ADSE ou à ACASA.
São poucos os recibos para os quais não encontrámos a relação entre o recibo emitido para a ADSE ou a ACASA e aquele que foi contabilizado.
Conseguimos comprovar que não foram contabilizados os valores que foram recebidos da ADSE e da ACASA. Note-se que até 2003 o sujeito passivo contabilizava o proveito aquando do recebimento e não com a prestação de serviços. Este facto leva a que em 2002 sejam tributados serviços que foram prestados em 200 e 2001. No final de 2003 o sujeito passivo corrige o seu procedimento e passa a emitir factura aquando da prestação do serviço.
Resumidamente o procedimento do sujeito passivo passava pela emissão de recibos para a ADSE e ACASA que correspondiam aos serviços efectivamente prestados ao abrigo dos acordos convencionados. No entanto o duplicado do recibo que era utilizado como suporte à contabilização encontrava-se com um valor inferior ao que constava do original.

O montante dos proveitos que assim foram omitidos no apuramento do lucro tributável ascendeu a 85 980,90€, cujo método de determinação se apresenta no anexo 5….
Da análise da documentação recolhida constata-se que houve uma viciação da contabilidade conseguida com o recurso à ocultação de valores que deviam ser relevados à Administração Tributária por via das declarações de rendimentos. Aquela viciação foi consumada com a falsificação de documentos de relevância tributária exigidos pela Lei. Na verdade a fraude foi conseguida com a utilização de facturas (entenda-se recibos) por valores diferentes aos da operação subjacente.

III. 1.1.4. Custos indevidos – artigo 23º do CIRC
O sujeito passivo contabilizou na subconta “622983 – Portagens” custos reportados a viaturas que não se encontram no imobilizado da empresa ou em qualquer regime de locação. Por outro lado, também encontramos portagens que estão associadas às viaturas ao serviço da empresa mas em que não consideramos que os custos associados a essas viaturas não contribuíram para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora como obriga o artigo 23º do CIRC, é o caso das viaturas 14-67-SJ e 64-67-HL.

III. 1.1.6 Custos indevidos – artigo 23º do CIRC
O sujeito passivo contabilizou na conta “622322 – Conservação e reparação” a aquisição de diversos materiais relacionados com obras. Com a análise dos elementos descritos nas guias de remessa verificámos que os materiais não foram afectos à empresa. Na verdade, encontram-se nessas guias de remessa:1 electro-serra, 2 esfregonas, 2 vassouras, 3 panos do pó, 4 esfregões, 2 bichas, 1 torneira, 2 desentupidores e 1 misturador de banheira. Atendendo ao volume dos bens comprados concluímos que os mesmos não foram afectos à actividade da empresa.
Ainda na mesma conta encontramos a aquisição de 20 lts d hidrofugo Sv reactivamente ao qual também se conclui que se trata de um material não aplicado nas instalações da empresa.
O mesmo procedimento do sujeito passivo se verificou na compra de materiais para instalação em casas de banho. Na verdade, na mesma conta encontrámos documentos que se referem à aquisição de 3 sanitas e respectivos tanques e tampos, assim como diversos materiais de canalização associados à sua instalação.
No mesmo sentido verificámos que foram adquiridos 6 prumos e 20 prateleiras, 13 pés de borracha, 2 espelhos, 3 focos c/pilhas, 1 pistola de rega, 1 torneira, 2 fechaduras, 2 pares de puxadores e 1 chaveiro metálico de 56 chaves.
Foi ainda adquirido 1 arrolhador, 1 bicha para chuveiro, 1 funil, 1 torneira de lavatório, 23 metros de fio eléctrico 5 prateleiras, 3 barras de travamento e outro material de canalização.
Também adquiriu 4 post cipres dopo verde 1705, 14 lâmpadas, 1 automático de escada, 100 metros de escada e outro material eléctrico.
Na verdade entendemos que estamos perante custos que não se relacionam com a actividade da empresa que não contribuíram para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora como obriga o artigo 23º do CIRC.

III. 1.1.7 Custos não devidamente documentados – alínea g) do nº 1 do artigo 42º do CIRC
Ao analisarmos a subconta “622122 – combustíveis” verificamos que o sujeito passivo contabilizou como custo do exercício o montante de 512,04€ tendo por base uma Nota de lançamento emitida por CISF Veículos sociedade de Aluguer, Lda…. que se refere ao gasóleo consumido pela viatura Citroen Saxo 1.5D Van de matrícula 50-44-LC e cuja forma de pagamento está associada ao contrato de aluguer ALD) nº …
No entanto o documento de suporte apenas se refere ao débito do pagamento na conta bancária. Assim, não estamos perante um documento de aquisição do bem, mas sim de um documento de pagamento. Desta forma, a despesa não está devidamente documentada, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 42º do CIRC os encargos assim suportados não são dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável.” vide o aludido relatório, mormente fls. 12 a 19 do Processo Administrativo e anexos para que remetem, fls. 36 e sgs. do já aludido Processo Administrativo;
C. Para além das situações referidas em B) mais se apurou que a Impugnante para além de umas obras realizadas em 2005 ou 2006 outras efectuou em 2002 ou 2003, obras realizadas nas paredes de três escritórios, paredes que estavam pretas devido à humidade, aplicando isolante e pintando e aplicando desumidificadores nas janelas; num dos escritórios havia uma fuga na canalização da água; as casas de banho também foram objecto de obras, cfr. depoimento da 1ª testemunha que trabalha para a Impugnante como recepcionista e assistente desde 1996;
D. As instalações da Impugnante terão de área total não mais de 60 metros quadrados repartida por casas de banho, sala de espera, escritórios e uma sala que tem uma divisão com prateleiras que servem para arquivo, idem anterior e também o depoimento da outra testemunha que é o autor do Relatório de Inspecção;
E. No ano de 2002 a Impugnante não tinha qualquer veículo automóvel sendo que por vezes os seus sócios usavam as viaturas de sua propriedade, de matrícula 14-67-SJ e 64-67-HL, em deslocações que faziam a Lisboa, Porto e Coimbra para discutir/negociar convenções com ADSE, ACASA, etc. para congressos, formações ou para realizar compras para a Impugnante, idem C);
F. A contabilidade da Impugnante continha outras despesas relativas a produtos de limpeza, para além dos referidos em III 1.1.6, supra transcritos em B) e que foram entendidos como custos, produtos que seriam obtidos, quando necessário, em estabelecimentos próximo das instalações da Impugnante, já que a limpeza “somos nós que a fazemos”, palavras da 1ª testemunha e também o depoimento da 2ª Testemunha;
G. No âmbito da Inspecção e ainda antes de elaborado o Relatório final, ambos aludidos em B) a Impugnante foi notificada para exercer o direito de audição sobre o Projecto de Relatório de Inspecção Tributária, faculdade que usou apresentando a sua apreciação, vide fls. 207 e segs. do Processo Administrativo e também do relatório referido em B);
H. Face ao apurado em sede de Inspecção, substancialmente referido na alínea B) a Inspecção propôs, foi aceite e reafirmado a desconsideração de custos e demais correcções ali referidas que vieram a determinar a liquidação nestes autos impugnada, a de IRC e juros compensatórios do ano de 2002, no montante de 33 349 40 €, cfr. fls. 1 e 2, 248 a 252 do Processo Administrativo, cabeçalho e artigos 1º da petição inicial.
2.2. A respeito da matéria de facto não provada, consignou-se em primeira instância o seguinte:
«Não se provaram factos que estejam em contradição com a factualidade provada, ou outros».
2.3. À fundamentação da resposta à matéria de facto aditou-se ainda na douta sentença o seguinte:
«A convicção do tribunal formou-se com base nos elementos documentais e testemunhais indicados em cada alínea dos factos provados.
Conjugando a petição inicial com o relatório de inspecção verifica-se facilmente que o montante mais elevado das correcções não sofreu impugnação ao nível dos factos mas tão só na apreciação legal da sua concretização. No fundo, relativamente aos proveitos omitidos a Impugnante apenas alega em sua defesa o desrespeito pelo princípio da especialização de exercícios.
Correcções houve que não foram objecto de impugnação e, por essa razão, não foram também mencionadas na transcrição supra constante de B)
Quanto ao demais, a argumentação da Impugnante cingiu-se à apreciação crítica das correcções sem fornecer uma pormenorização ao nível da alegação ou da prova apresentada».
3. Fundamentação de Direito
3.1. Na parte dispositiva da sentença, deparamos com diversos segmentos decisórios, justificando-se a sua decomposição com vista à delimitação objectiva do recurso. Para tal, iremos partir das correcções propostas no relatório de fiscalização que integrou o procedimento de liquidação que lhe deu origem, com referência ao exercício de 2002.
Assim, extrai-se do ponto III.1.1. do relatório de inspecção tributária (“R.I.T.”)– de que se junta cópia no processo administrativo em apenso – que as correcções propostas neste exercício se traduziram no seguinte:
a) Proveitos omitidos (“valores constantes dos recibos nºs 33859, 34172 e 33888”), no montante de € 2.201,81 (III.1.1.1 do R.I.T.);
b) Proveitos omitidos (“valor contabilizado com base no duplicado dos recibos inferior ao valor do respectivo original”), no montante de € 85.980,90 (III.1.1.2 do R.I.T.);
c) Custos indevidos (“TV Cabo”) no montante de € 52,35 (III.1.1.3 do R.I.T.);
d) Custos indevidos (“portagens”) no montante de € 427,81 (III.1.1.4 do R.I.T.);
e) Custos indevidos (“mecanismo electrónico de portões”) no montante de € 122,57 (III.1.1.5 do R.I.T.);
f) Custos indevidos (“materiais de obras”) no montante de € 2.481,04 (III.1.1.6 do R.I.T.);
g) Custos indocumentados (“gasóleo”) no montante de € 512,04 (III.1.1.7 do R.I.T.);
h) Custos indocumentados (“água”) no montante de € 54,03 (III.1.1.8 do R.I.T.);
Da análise da douta p.i. resulta que a ali Impugnante se conformou com parte das correcções, visto que nada contrapôs às que foram operadas na parcela dos custos e a que aludem as alíneas c), e) e h). Analisando, por outro lado, os fundamentos do recurso da douta sentença, verificamos que, apesar de ter decaído na totalidade do pedido, a Recorrente nada contrapõe ao decidido quanto às demais correcções efectuadas nesta parcela (a dos custos). Pelo que, atendendo ao disposto no artigo 684.º do Código de Processo Civil (doravante sob a sigla “C.P.C.”) aplicável aos recursos em processo tributário por força do artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante sob a sigla “C.P.P.T.”), o âmbito do presente recurso está externamente delimitado pelas correcções efectuadas na parcela dos proveitos.
Mas é possível ir ainda mais longe na decantação do objecto do recurso. É que, sendo o seu único fundamento a violação do princípio da especialização dos exercícios e atendendo ao disposto nos artigos 3.º e 35.º das doutas alegações de recurso, conjugado com a 40.ª conclusão (acima transcrita sob a alínea “C”), é notório que se impugnam apenas parte das correcções efectuadas na parcela dos proveitos e inseridas na alínea b) supra. Ou seja, a Recorrente só não se conforma com a confirmação judicial das correcções efectuadas a que se reporta aquela alínea; e, dentro desta alínea, a Recorrente só não se conforma com as que têm por base a diferença entre os valores dos recibos e os dos respectivos duplicados, emitidos com base em facturas de exercícios anteriores (2000 e 2001), que calcula no valor total de € 30.052,18.
Que, como se alcança do anexo 5 do “R.I.T.”, representa o somatório dos seguintes parciais:
- € 10.204,78, a que se reportam as facturas nºs 9,10 e 11, todas de 2001);
- € 2.962,89, a que se reporta a factura n.º 12, de 2001.12.01;
- € 11.109,28, a que se reportam as facturas nºs 6, 7 e 8, todas de 2000;
- € 5.775,23, a que se reportam as facturas nºs 4 e 5, ambas de 2000.
(10.204,78 + 2.962,89 + 11.109,28 + 5.775,23 = € 30.052,18)
Assim sendo, e atento o disposto no n.º 3 do citado artigo 684.º do C.P.C., o recurso encontra-se restringido à parte da sentença que confirmou estas correcções.
Mas um reparo de pode fazer desde já: é que a liquidação impugnada não tem por base o valor que integra as referidas facturas nºs 4, 5, 6, 7 e 8 de 2000 e 9, 10 e 11 de 2001; tem por base – isso sim – a diferença entre o valor que integra essas facturas e o valor incluído no duplicado nos recibos correspondentes e com base no qual foram contabilizadas. Ou seja 9.000,00 (no caso das facturas 9, 10 e 11 de 2001) mais os restantes valores indicados = € 28.847,40.
Resultando a diferença entre o valor imputado (€ 30.052,18) e o que é realmente imputável a estas correcções (€ 28.847,40) de uma deficiente interpretação – do lado da Recorrente – das correcções efectuadas e que a douta sentença confirmou.
Mas há mais: tanto quando do anexo 5 resulta, o recibo n.º 33019 não se reporta apenas à factura n.º 12, de 2001, mas também à factura n.º 1 de 2002; e o recibo n.º 33578 não se reporta apenas às facturas nºs 6, 7 e 8 de 2000, mas também às facturas nºs 2, 3 e 4 de 2002. O que significa que a Recorrente está a imputar a totalidade do valor da diferença apurado nos exercícios mais antigos, quando, na verdade, não é possível aferir totalmente a que exercício se reporta a diferença (por causa do englobamento num mesmo recibo).
Este aspecto reclama alguma reflexão adicional. A Recorrente não põe em causa que subtraiu – dolosamente – à declaração de rendimentos de 2002 parte substancial do valor dos recibos emitidos nesse ano e que, por conseguinte, a sua declaração não reflecte a sua verdade fiscal, por ter sido manipulada com a intenção de lesar o Estado. Mas contrapõe que o valor declarado é parte do valor total mencionado em facturas de exercícios diferentes. Entendemos que, à luz do princípio da boa fé que deve nortear as relações entre a Administração Tributária e os contribuintes, que a impossibilidade de determinar a componente de um ano e de outro deve reverter contra o contribuinte, até porque essa impossibilidade resulta directamente dessa actuação dolosa.
Assim, o recibo 33019, de 30.06.2002, com base no qual foi contabilizado o valor de € 673,32, tem relação com as facturas 12, de 2001 (no valor de € 2.962,89) e 1, de 2002 (no valor de € 3.769,47). Entendemos que o valor declarado deve ser imputado na factura mais antiga (12) da qual resulta por contabilizar o montante de € 2.289,57. Pelo seu lado, o recibo 33578, com base no qual foi contabilizado o montante de € 1.739,43, tem relação com as facturas 6,7 e 8, de 2000 (no valor total de € 11.109,28) e com as facturas 2, 3 e 4, de 2002 (no valor total de € 9.757,26). Entendemos que o valor declarado e contabilizado deve ser imputado nas três facturas mais antigas, das quais resulta por contabilizar o montante de € 9.369,85.
Assim, o valor de proveitos a imputar a exercícios anteriores seria, quando muito, de (9.000,00 + 2.289,57 + 9.369,85 + 5.775,23 =) € 26.434,65.
A questão que fica é a de saber se o facto destes valores terem sido contabilizados em 2002 pela Recorrente a impedem de impugnar a liquidação com exclusivo fundamento na violação do princípio da especialização dos exercícios.
Foi o que defendeu o tribunal recorrido, apoiando-se no princípio da boa fé (dizendo que a Impugnante está a venire contra factum proprium porque até 2003 contabilizava o proveito aquando do recebimento e não da prestação do serviço).
No entanto, as situações em que é aplicável a proibição do venire contra factum proprium estão relacionadas com a tutela da confiança, exigindo-se, além do mais, que o dano na esfera da contraparte tenha resultado dessa confiança (para maiores desenvolvimentos sobre este assunto, sempre na óptica do direito privado, vd. JOÃO BAPTISTA MACHADO, «Tutela da Confiança e “Venire Contra Factum Proprium”, in Obra Dispersa 1991, págs. 345 e seguintes). Aplicando estes conceitos ao caso, tal pressupunha, desde logo, que existisse na esfera da Recorrente o direito de imputar os rendimentos no exercício do recebimento, que a Administração Tributária pudesse interpretar a actuação do contribuinte como uma auto-vinculação a esse critério e que a sua actuação posterior tivesse sido determinada por esse convencimento.
Não é o caso. O princípio da especialização dos exercícios, consagrado no artigo 18.º do C.I.R.C. tem uma densidade vinculativa elevada, não tolerando – fora dos casos expressamente consignados na lei – qualquer margem de manobra do contribuinte na afectação temporal dos movimentos económico-financeiros da empresa. A razão é evidente: trata-se de impedir práticas de manipulação do resultado fiscal que resultem na imputação de mais proveitos nos exercícios em que se verificam prejuízos fiscais ou lucros mais reduzidos e mais custos nos exercícios que geraram maiores lucros.
Por outro lado, as relações entre a Administração Tributária e os contribuintes não assentam propriamente na confiança suscitada nas declarações de rendimentos por estes efectuadas, mas na presunção legal da sua conformidade com a verdade fiscal, quando seja escrupulosamente observado o dever de colaboração dos contribuintes com a Administração Tributária. E sem prejuízo do dever desta de verificar a legalidade e materialidade do conteúdo dessas declarações.
O que não significa que o princípio da especialização dos exercícios não deva conjugar-se com outros valores ou princípios jurídico-tributários quando se verifique que a sua aplicação concreta conduz a um resultado que afronta esses outros princípios. Como se defendeu no douto acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Maio de 2010 (processo n.º 0214/07, integralmente disponível in www.dgsi.pt), quando este princípio conduza a uma solução flagrantemente injusta, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária.
De salientar, de resto, que o princípio da especialização dos exercícios é um subprincípio do da tributação do rendimento líquido. Que, por sua vez, concretiza ou densifica uma determinada ideia de igualdade tributária (neste sentido, vd. «Manual de Direito Fiscal» do Prof. J.L. Saldanha Sanches, 3.ª ed. pág. 370). Sendo as concepções mais recentes do princípio da igualdade tributária apontam precisamente para lhe atribuir de uma dimensão positiva e conformadora, dela fazendo uma «genuína expressão de justiça». (cit. «O Princípio da Equivalência como Critério de Igualdade Tributária», do Prof. Sérgio Vasques, pág. 70). O que confirma que a rigidez estrutural do princípio da especialização dos exercícios não pode comprometer ou afrontar os valores gerais que serve e exprime nem conduzir a uma solução materialmente injusta.
A doutrina e a jurisprudência têm recorrido ao princípio da justiça para obviar a que o princípio da especialização dos exercícios se transforme «numa armadilha que possibilite à Administração Tributária cobrar impostos que não são devidos» (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, in Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 2.ª edição Revista e Aumentada, Vislis 2000, pág. 219). Temos como certo, porém, que também pode ser invocado para obviar a que se transforme num obstáculo à liquidação e cobrança de impostos que são devidos, quando lhes estejam na origem omissões intencionais dos contribuintes.
Entendemos, por isso, que do mesmo modo que afronta a justiça tributária desconsiderar determinado custo declarado quando já não possa ser imputado no exercício a que diga respeito (porque a correcção foi efectuada no último ano em que podia ser feita) e da sua consideração não resulte efectivo prejuízo para o Fisco, também afronta tal princípio desconsiderar determinado proveito dolosamente ocultado, quando o serviço correspondente foi imputado pelo próprio contribuinte em exercício posterior e já não pode ser imputado no exercício a que dizia respeito, redundando essa ocultação num benefício indevido para o prevaricador e em prejuízo directo para o Estado.
Assim sendo, e muito embora os elementos disponíveis indiquem que os serviços a que se reportam as facturas 4, 5, 6, 7 e 8 foram prestados em 2000, e os serviços a que se reportam as facturas 9, 10, 11 e 12 foram prestados em 2001, e que, por conseguinte o proveito se deveria considerar realizados nesses exercícios, por força do artigo 18.º, n.º 1, do C.I.R.C., e não estando em causa que foi o próprio contribuinte a imputá-los no exercício de 2002 nem a ocultação dolosa do verdadeiro valor desses serviços nem – ainda – a impossibilidade de imputar os proveitos respectivos nos exercícios anteriores, consideramos que não pode o contribuinte obstar à tributação com exclusivo fundamento na violação do princípio da especialização dos exercícios.
Pelo que o recurso não merece provimento e a douta sentença deve ser confirmada, embora com fundamentação algo diversa.
4. Conclusões
4.1. O princípio da especialização dos exercícios não pode comprometer ou afrontar os valores gerais que serve e exprime nem conduzir a uma solução materialmente injusta.
4.2. Afronta o princípio de justiça, genericamente consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária, que o contribuinte que declara proveitos inferiores aos reais em determinado exercício e oculta dolosamente o seu verdadeiro valor obste à consideração dos proveitos reais nesse mesmo exercício, com o exclusivo fundamento de que deveriam ser considerados em exercício anterior, em que a correcção já não é possível.
4.3. Pelo que deve ser confirmada a sentença que não acolheu tal fundamento para obviar à tributação.
5. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença, na parte recorrida.
Custas pela Recorrente
Porto, 15 de Fevereiro de 2012
Ass. Nuno Bastos
Ass. Irene Neves
Ass. Aragão Seia