Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00257/13.7BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/28/2022
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM;
ÁGUAS; PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO;
DESPACHO PRÉ-SANEADOR, DECISÃO SURPRESA;
Recorrente:AN, S.A.
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE MACEDO DE CAVALEIROS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
AN, S.A. (que legalmente sucedeu à extinta sociedade Á..., S.A., nos termos do Decreto-Lei nº 93/2015, de 29 de maio), NIPC ..., com sede na Avenida ..., ..., propôs acção administrativa comum contra o MUNICÍPIO DE MACEDO DE CAVALEIROS, NIPC ..., com sede no ... Maio, formulando o seguinte pedido:
“Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente acção ser considerada procedente, por provada e, em consequência, deverá a R. ser condenada a pagar à A. a quantia de 780 860,61 € (setecentos e oitenta mil, oitocentos e sessenta euros e sessenta e um cêntimos), valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de € 52 885,00 (cinquenta e dois mil, oitocentos e oitenta e cinco euros), o que perfaz o total de € 833 745,61 (oitocentos e trinta e três mil, setecentos e quarenta e cinco euros e sessenta e um cêntimos), bem como nos demais que se vierem a vencer até ao efectivo e integral pagamento da dívida.”.
X
Por requerimento de fls. 486-492, rectificado por requerimentos de fls. 555-574 e 589-635, a Autora declarou que pretendia “desistir parcialmente do pedido, ao abrigo do disposto no nº 1 do Artigo 283º, do nº 1 do Artigo 285º e do Artigo 290º do C.P.C.”, requerendo: “a redução do valor peticionado nos autos, o qual deverá ser fixado em € 45.388,72 (quarenta e cinco mil, trezentos e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos). Mantendo quanto ao demais, o pedido de condenação formulado na PI.”, atento o teor do Acordo de Transacção celebrado entre as partes em 28/09/2012, bem como, o Acordo de Regularização de Dívidas, datado de 12/03/2019, celebrado entre as partes, por via dos quais, o Réu veio a reconhecer parte do montante de capital em dívida, comprometendo-se a pagar as quantias por ele reconhecidas nos termos do referido acordo.
X
Por despacho de fls. 637-639, foi homologado o pedido de desistência parcial do pedido.
Por decisão proferida pelo TAF de Mirandela foi julgada improcedente a ação.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida em 23/03/2022 (notificada à aqui Apelante por despacho datado e certificado do mesmo dia), na qual o Mm.º tribunal a quo julgou improcedente a ação proposta pela Autora, aqui Apelante, quanto aos pedidos de condenação do Município, ora Recorrido, no pagamento de €45.388,72, relativo a notas de débito emitidas pela Apelante ao Recorrido, e juros vencidos e vincendos desde a data de emissão de tais documentos, até efetivo e integral pagamento.
II. A presente questão decidenda, conforme o douto Tribunal a quo expõe na sentença recorrida (vide páginas 2 e 3 da sentença recorrida), é a de saber se a Autora, ora Apelante, tem direito a receber do Município, ora Recorrido, a quantia de €45.388,72, a título de juros de mora por pagamento tardio de faturas emitidas em decorrência de serviços prestados de saneamento e de fornecimento de água.
III. Através da sentença recorrida, veio o douto Tribunal a quo julgar totalmente improcedente a ação proposta pela Apelante, porquanto considera que:
a. Em relação ao pedido de condenação da Recorrida no pagamento dos montantes das notas de débito referenciados nos autos, a Apelante não logrou cumprir com o ónus de alegação e demonstração dos factos constitutivos desse direito;
b. E que, em consequência, improcede o pedido de condenação da Recorrida no pagamento de juros vencidos e vincendos sobre tais quantias peticionadas.
IV. Entende a Apelante que, na sentença recorrida, o Mmo. Tribunal a quo incorreu em erro na valoração da prova e em erro de julgamento quanto à matéria de facto, o que redundou em erro de julgamento na aplicação do direito, impondo-se a sua revogação.
V. Sem prescindir, ainda que se entenda que a petição inicial carece de alegação de factos essenciais, sempre se arguirá o vício da sentença decorrente da verificação de nulidade processual da falta de despacho de aperfeiçoamento, na medida em que tal inobservância influiu no exame e decisão da causa
VI. Do ponto de vista da matéria de facto subjacente aos presentes autos, perfaz entendimento da Apelante que foram cabalmente alegados e demonstrados os factos essenciais constitutivos do pedido de condenação formulado na douta petição inicial, o qual foi posteriormente objeto de redução, nos termos do artigo 265.°, n.° 2 do CPC, ex vi art. 1.° do CPTA.
VII. Com efeito, atendendo ao alegado na douta petição inicial e posteriores requerimentos de desistência parcial e subsequente redução do pedido, entende a Apelante que se mostra clarividente que a questão nuclear dos presentes autos se projeta no aquilatar de ser devido (ou não) à Apelante o montante de € 45.388,72, relativo aos parciais das notas de débito emitidas e enviadas pela Autora, ora Apelante, ao Município, ora Recorrido, identificadas sob os n.os ...87, ...39, ...68, ...30, ...75, ...96, cujo valor global ascende ao montante de €210.850,92, relativas a juros de mora vencidos sobre os capitais discriminados no quadro/tabela que seguiu em anexo a cada uma dessas notas de créditos.
VIII. Sendo certo que, para além de tais factos terem sido alegados pela Apelante (e confessados pelo Recorrido), a mesma instruiu prova documental bastante no sentido de ser cognoscível a realidade subjacente aos mesmos.
IX. Nesse sentido, entende a Apelante que deverão ser aditados ao elenco de factos provados QUATRO novos factos, que resultam da prova documental produzida, nomeadamente:
9. As notas de débito referenciadas no Ponto 4 dos factos dados como provados integram valores dos juros de mora vencidos sobre o capital reconhecido/pago ao abrigo do “Acordo de Transacção” de 28/09/2012”
10. O “Acordo de Regularização de Dívida” de 12/03/2019, abrange o remanescente das faturas de serviços de água e de saneamento que não haviam sido reconhecidas/pagas com aquele “Acordo de Transacção” outorgado em 2012, bem como os juros de mora vencidos sobre esses parciais de capital.
11. Permanece, assim, por liquidar à Autora o montante €45.388,72, decomposto nas seguintes quantias:
a. € 3.084,71 (três mil, oitenta e quatro euros e setenta e um cêntimos), que corresponde à fatura n.° ...87 e aos remanescentes em dívida das n.° ...39, ...97, ...30, ...75 e ...96 – e que diz respeito a juros de mora vencidos, calculados sobre faturas de capital pagas pelo Município Réu após o prazo convencionado para o seu vencimento –, relativamente aos quais Autora e Réu não lograram alcançar qualquer acordo;
b. € 42.304,01 (quarenta e dois mil, trezentos e quatro euros e um cêntimo), que corresponde a valores parciais das faturas de juros n.° ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96 – e que diz respeito a juros de mora vencidos, calculados sobre os montantes das faturas de capital que foram parcialmente reconhecidas/pagas pelo Município Réu no citado “Acordo de Transacção” celebrado pelas partes em 2012, Autora e Réu não lograram alcançar qualquer acordo.
12. Não obstante interpelado o Réu para efetuar o seu pagamento, o mesmo não pagou a totalidade dos valores das notas de débito peticionadas.
X. De igual modo, entende a Apelante que, em face do que foi alegado e provado nos presentes autos, sempre deverá ser alterado o texto do Ponto 4 da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, por forma a apresentar a seguinte redação:
4. A autora emitiu e remeteu à autora as seguintes notas de débito, no montante global de €210.850,92 (cfr. documentos n° 3 a 8, 22, 23, 32, 35, 38 e 41 juntos com a petição inicial e documentos de fls. 589-635):
i. nota de débito n.° ...87, emitida em 31/08/2010, no montante de €5.579,68, relativa a juros de mora vencidos no período entre os meses de Julho a Agosto de 2010, sobre as faturas e montantes de capital discriminados no quadro/tabela em anexo à mesma (cfr. doc. n.° 3 junto aos autos com a PI).
ii. nota de débito n.° ...39, emitida em 31/12/2010, no montante de €4.178,37, relativa a juros de mora vencidos no período entre os meses de Novembro a Dezembro de 2010, sobre as faturas e montantes de capital discriminados no quadro/tabela em anexo à mesma (cfr. doc. n.° 4 junto aos autos com a PI).
iii. nota de débito n.° ...68, emitida em 30/12/2011, no montante de €84.442,18, relativa a juros de mora vencidos no período entre os meses de Julho a Dezembro de 2011, sobre as faturas e montantes de capital discriminados no quadro/tabela em anexo à mesma (cfr. doc. n.° 23 junto aos autos com a PI).
iv. nota de débito n.° ...97, emitida em 31/03/2012, no montante de €56.665,46, relativa a juros de mora vencidos no período entre os meses de Janeiro a Março de 2012, sobre as faturas e montantes de capital discriminados no quadro/tabela em anexo à mesma (cfr. doc. n.° 32 junto aos autos com a PI).
v. nota de débito n.° ...30, emitida em 30/04/2012, no montante de €19.589,99, relativa a juros de mora vencidos no período do mês de Abril de 2012, sobre as faturas e montantes de capital discriminados no quadro/tabela em anexo à mesma (cfr. doc. n.° 35 junto aos autos com a PI).
vi. nota de débito n.° ...75, emitida em 31/05/2012, no montante de €23.517,23, relativa a juros de mora vencidos no período do mês de Maio de 2012, sobre as faturas e montantes de capital discriminados no quadro/tabela em anexo à mesma (cfr. doc. n.° 38 junto aos autos com a PI).
vii. nota de débito n.° ...96, emitida em 30/06/2012, no montante de €22.457,69, relativa a juros de mora vencidos no período do mês de Junho de 2012, sobre as faturas e montantes de capital discriminados no quadro/tabela em anexo à mesma (cfr. doc. n.° 41 junto aos autos com a PI).»
XI. A Apelante efetuou a alegação da factualidade essencial que suporta o valor
peticionado no montante de € 45.388,72 (quarenta e cinco mil, trezentos e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), assim como também alegou os factos que os especificam e densificam.

XII. A Apelante logrou demonstrar serem devidos pela Recorrida os créditos peticionados, no montante de € 45.388,72 (quarenta e cinco mil, trezentos e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), relativos aos parciais dos valores titulados nas notas de débito n.° ...87, ...39, ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96, referentes a juros de mora contabilizados sobre os atrasos verificados no pagamento de faturas de capital, decorrentes dos serviços prestados pela Apelante ao Município Recorrido, no âmbito dos contratos de recolha de efluentes e de fornecimento de água celebrados entre as partes.
XIII. Conforme resulta do teor dos documentos juntos com a douta petição inicial (cfr. docs. n.°s ..., ..., ...2, ...3, ...2, ...5, ...8 e ...1 juntos com a petição inicial), na sequência de atrasos verificados nos pagamentos de faturas de capital decorrentes dos serviços prestados pela Apelante ao Município Recorrido, efetuados em atraso após o prazo convencionado para o seu vencimento, a Apelante emitiu as notas de débito referentes a juros de mora, com os n.os ...87, ...39, ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96.
XIV. Resulta igualmente da prova documental anteriormente referenciada que as referidas notas de débito foram acompanhadas com quadros/tabelas onde surgem identificadas as faturas de capital, e discriminados os valores e os períodos, sobre os quais incidem o cômputo dos respetivos valores de juros de mora.
XV. Ficou igualmente demonstrado que, no âmbito da presente ação, os montantes peticionados ao abrigo das notas de débito constantes da causa de pedir respeitam parciais de juros contabilizados sobre faturas de capital, cujos créditos foram objeto de reconhecimento/pagamento pelo Município, no âmbito de “Acordo de Transacção” celebrado entre Apelante e Recorrido (cfr. documento junto com o requerimento de 27/01/2020, a fls. 575 a 583).
XVI. Sendo que:
a. No âmbito do “Acordo de Transacção” de 2012 não foram reconhecidos/pagos pelo Recorrido os parciais de juros de mora relativos aos créditos de capital objeto do acordo.
b. No âmbito do “Acordo de Regularização de Dívidas” celebrado em 12/03/2019, apenas foram reconhecidos/pagos os parciais de juros moratórios referentes aos créditos de capital objeto deste acordo (cfr. documento junto aos autos com o requerimento datado de 12/12/2019, a fls. 493 se seguintes).
c. Pelo que, ainda se encontra em dívida o montante de € 45.388,72, relativo aos parciais de créditos titulados nas notas de débito n.° ...87, ...39, ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96, relativos a juros de mora contabilizados sobre os atrasos verificados no pagamento de faturas de capital, decorrentes dos serviços prestados pela Apelante ao Município Recorrido, no âmbito dos contratos de recolha de efluentes e de fornecimento de água celebrados entre as partes.
XVII. Assim, quanto aos créditos peticionados a título de juros de mora faturados à Recorrida, a Apelante não pode deixar de considerar que, tendo em consideração os documentos juntos com a douta petição inicial (Cfr. Docs. n.ºs ..., ..., ...2, ...3, ...2, ...5, ...8 e ...1) e com os requerimentos de 12/12/2019 e 27/01/2020, o douto Tribunal a quo sempre deveria ter decidido em sentido diverso ao que decidiu na sentença Recorrida, considerando que resultam demonstrados os fundamentos de facto em que radica a dívida de tais quantias.
XVIII. Sem olvidar que, em relação à relevância da factualidade exigida ao cômputo dos valores peticionados, a mesma encontra correspondência na categoria dos factos instrumentais/complementares, a qual, sem embargo, foi devidamente alegada e instruída nos presentes autos, pelo que, com todo o respeito, não se vê como se possa concluir que a aqui Apelante não cumpriu o ónus de alegação e demonstração que lhe incumbia relativamente ao direito que avoca nos presentes autos - quando é manifesto que os montantes de capital sobre os quais recaem aqueles juros de mora faturados, a taxa de juros aplicável, o prazo de vencimento e os respetivos dias de atraso no seu pagamento, constam daqueles documentos juntos com as notas de débito –, motivo pelo qual tal factualidade sempre deveria ter sido julgada por provada.
XIX. Mais, sempre se diga que, considerando a posição assumida pelo Recorrido ao longo de todo o processo (que não impugnou especificadamente os factos alegados sob os artigos 7.° a 10.° da douta petição inicial, nem tomou qualquer posição relativamente à matéria alegada sob os requerimentos apresentados pela Apelante em 12/12/2019 e 27/01/2020, como também não impugnou os documentos carreados aos autos pela Recorrete), e porquanto em momento algum invocou a falta de recebimento ou interpelação por parte da Apelante para pagamento daqueles montantes, há que concluir-se, evidentemente, pela receção daquelas notas de débito e respetivos quadros anexos por parte do Réu - motivo pelo qual, os pressupostos que consubstanciam os cálculos de juros de mora faturados e peticionados nos presentes autos são do seu conhecimento pessoal.
XX. Por tudo o quanto acima se expôs, sempre deveriam considerar-se alegados e provados os factos essenciais relativos ao pedido de condenação formulado pela Autora, ora Apelante e, em consequência, ser proferida decisão no sentido da total procedência da presente ação.
XXI. Com efeito, e por um lado, no que concerne à alegação dos factos essenciais constitutivos desse seu direito, consta dos seguintes segmentos:
· 7.° a 11.° da douta petição inicial – onde consta a identificação das notas de débito (valor e data de emissão) e das faturas a que se reportam.
· Requerimento da Apelante de 12/12/2019, relativo à desistência parcial do pedido de condenação ao pagamento das faturas/notas de débito sob o art. 7.° da PI e subsequente redução para € 3.084,71, mantendo no demais o peticionado – no qual são indicadas as faturas a que esse valor se reporta.
· Requerimento da Apelante de 27/01/2020, relativo à retificação da desistência parcial e redução do pedido, no sentido de incluir o montante de € 42.304,01 – tendo aí a Recorrente exaurido os motivos de facto e cálculos para se aferir da falta de pagamento desse valor, indicando e decompondo os parciais em dívida das notas de débito n.° ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96, e com a identificação das faturas os mesmos se reportam (constando dos documentos juntos com esse requerimento tabelas em “Excel” indicativas de tais cálculos).
· Requerimento da Apelante de 27/01/2020, relativo à desistência parcial e redução do pedido para € 45.388,72 pedido de condenação ao pagamento das notas de débito com os n.os ...87, ...39, ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96, mantendo no demais o peticionado, no qual são referidos – no qual são alegadas as notas de crédito a que se reporta o valor peticionado.
XXII: Acresce que, tudo o quanto foi alegado entre os artigos 7.° a 10.° da douta petição inicial não foi objeto de impugnação especificada pelo Recorrido, assim como também não foi impugnada a matéria alegada nos requerimentos de 12/12/2019 e 27/01/2020 apresentados pela Apelante.
XXIII. Motivo pelo qual sobre toda a materialidade vertida em tais segmentos da PI/requerimentos opera o efeito cominatório da falta de impugnação, consubstanciado na confissão tácita ou ficta da correspondente factualidade, nos termos e para efeitos dos artigos 574.°, n.° 2, primeira parte, devendo considerar-se assente e provado o facto essencial de ser devido à Autora, ora Apelante, o montante de € 45.388,72, relativo a montantes titulados pelas notas de débito n.° ...39, ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96.
XXIV. De outro passo, e no que respeita à demonstração dos factos constitutivos do direito da Apelante relativo aos montantes peticionados ao abrigo das sobreditas notas de débito, relevam os seguintes elementos probatórios:
a. Documentos n.° 3 a 8, 22, 23, 32, 35, 38 e 41 juntos com a douta petição inicial, que corporizam as comunicações enviadas ao Município juntamente com as notas de débito n.° ...87, ...39, ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96, e em anexo às quais se apresenta um quadro/tabela, de onde constam todas as faturas de capital sobre os quais são calculados os respetivos juros de mora faturados – com respetiva identificação e montante faturado –, os respetivos prazos de vencimento e dias de atraso no pagamento daquelas, a respetiva taxa de juro aplicável e o montante de juros liquidado.
b. “Acordo de Transacção” outorgado pelas partes em 28/09/2012, junto aos autos com o requerimento da Apelante, em 27/01/2020, e constante dos autos a fls. 576 a 583, de cujo teor se pode apurar, por um lado, que o Recorrido não reconheceu/pagou à ora Apelante parciais relativos aos créditos titulados por faturas de capital mencionadas no artigo 7.° da petição inicial e, por outro lado, que o Município igualmente não reconheceu/pagou notas de débito relativas a juros de mora sobre valores de capital, e nomeadamente as notas de débito relativas aos créditos peticionados nos presentes autos.
c. “Acordo de Regularização de Dívida” celebrado pelas partes em 12/03/2019, donde resulta que o Município Recorrido reconheceu/pagou à Apelante parciais relativos aos créditos titulados por faturas de capital mencionadas no artigo 7.° da petição inicial, assim como os respetivos juros de mora; ficando de fora do objeto de tal Acordo os parciais dos juros moratórios não reconhecidos ao abrigo do “Acordo de Transacção” de 2012.
XXV. Acresce que, aquando da junção dos referidos documentos foi concedida audiência contraditória do Município Recorrido relativamente ao seu teor probatório (art. 415.° do CPC), o qual, todavia, nada invocou ou opôs nesse sentido.
XXVI. Pelo que, toda a facticidade resultante ao teor, pressupostos e conclusões subjacentes a tais documentos sempre deverão ser considerados para efeitos de valoração de prova nos presentes autos e, por conseguinte, para a formulação da convicção sobre a realidade dos factos controvertidos.
XXVII. Posto isto, a Recorrente logrou alegar e demonstrar os factos que constituem a causa de pedir, em pleno cumprimento do disposto no art. 5.°, n.° 1 do Código Processo Civil, aplicável ex vi art. 1.° do CPTA.
XXVIII. Na eventualidade de assim não ser doutamente entendido, e mesmo que se considere que a decisão proferida quanto à matéria de direito não carece de qualquer reparo, sempre se dirá que a alegação e demonstração dos factos essenciais constitutivos do pedido de condenação em juros de mora não queda dependente da comprovação dos valores de capital a que se reportam.
XXIX. Com efeito, e não obstante a ligação existente entre essas duas tipologias debitórias (desde logo porque a obrigação de juros não se concebe sem a correspondente obrigação de capital), determina o art. 561.° que a obrigação de juros arvora autonomia em relação à obrigação de capital, “podendo qualquer deles ser cedido ou extinguir-se sem o outro”.
XXX. De modo que, em relação aos parciais de capital sobre os quais incidem os juros de mora peticionados na presente ação, mostra-se residual à apreciação do mérito da causa a cognoscibilidade da sua origem, causas e fundamentos.
XXXI. Efetivamente, e como supra se alegou, quanto muito, a relevância a atribuir à alegação e demonstração dos factos relativos às obrigações tituladas nas faturas a que se referem as notas de débito cujo valor (parcial) vem peticionado nos presentes autos, move-se no espetro dos factos instrumentais/complementares.
XXXII. Factos esses que, como supra pugnado, foram devidamente depurados no âmbito da instrução deste processo.
XXXIII. O que desde já se deixa alegado para os devidos e legais efeitos.
XXXIV. Ainda que se conclua pela falta de alegação de factos essenciais relativamente ao pedido de condenação do Município, ora Recorrido, no pagamento das sobreditas notas de crédito – o que não se concede, mas por mera cautela de patrocínio se concebe –, mostra-se categórico atender à nulidade processual da falta de despacho de aperfeiçoamento enquanto conditio sine qua non do sentido da decisão recorrida.
XXXV. Ora, da conjugação do disposto na al. b) do n.° 1 do artigo 87.° do CPTA com os números 2 e 3 do mesmo preceito, decorre que, uma vez findos os articulados, e conclusos os autos ao juiz, tem este o dever proferir despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, quando nestes se verifiquem irregularidades – designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa , ou quando ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
XXXVI. Acresce que, o disposto no artigo 87.°, n.° 1, al. b) enquadra-se no princípio pro actione previsto no art. 7.° do mesmo códice, nos termos do qual [p]ara efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.
XXXVII. O disposto no art. 87.°, n.° 1, al. b) do CPTA sempre deverá ser interpretado como uma decorrência do dever de gestão processual consagrado no art. 7.°­A do CPTA, o qual, entre o demais, determina que o Tribunal “providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando-as a praticá-lo”.
XXXVIII. Em face do supra expendido, finda fase dos articulados e conclusos os autos ao Juiz, verificando-se articulados faticamente insuficientes ou faticamente imprecisos, impende sobre o Tribunal o dever de proferir despacho no sentido de convidar a parte ou partes ao aperfeiçoamento do articulado ou articulados em questão, sob pena de se verificar uma nulidade processual ao abrigo do art. 195.°, n.° 1 do CPC, aplicável ex vi artigos 35.° e 1.° do CPTA).
XXXIX. Compulsada a causa de pedir dos presentes autos, mostra-se insofismável que a Autora, ora Apelante, invocou, pelo menos, o conteúdo fáctico mínimo da sua pretensão jurídica, porquanto a literatura da petição inicial permite a individualização da causa de pedir, conforme se apura da alegação dos valores peticionados, da sua natureza, e das faturas/notas de débito a que os mesmos se referem, essas devidamente identificadas.
XL. De facto, caso assim não se entendesse, sempre teria sido arguido pelo Recorrido em sede de contestação ou decretado em sede de despacho saneador a nulidade do processado com fundamento na ineptidão da petição inicial (cfr. artigos 84.°, n.° 3 e 88.° do CPTA, e artigos 196.° e 186.° do CPC, aplicáveis ex vi art. 1.° do CPTA).
XLI. Neste sentido, a douta sentença recorrida sempre se considerará ilegal, por violar o princípio do contraditório.
XLII. A violação do princípio do contraditório, ínsito no artigo 3.° do CPC, aplicável, ex vi, artigo 1.° do CPTA, considerando que a presente decisão consubstancia uma verdadeira decisão-surpresa, inadmissível no quadro legal processual português, constituindo, inclusive, uma manifestação da tutela jurisdicional efetiva, consagrada no artigo 20.° da CRP – a qual consubstancia uma verdadeira Nulidade da Sentença, nos termos do disposto no artigo 615.°/1, al. d) do CPC.
XLIII. Pelo que, a conclusão vertida na douta sentença recorrida quanto à falta de alegação de factos essenciais da pretensão, tem subjacente a obliteração do princípio do contraditório e do dever de gestão processual (art. 3.° do CPC e art. 87.°, n.° 1, al. b) do CPTA) –, o que se perfilou como condiúo sine qua non para uma incorreta apreciação sobre o mérito da causa, que culminou com a decisão de improcedência da ação proposta pela ora Apelante.
XLIV. Assim, deverá também ser REVOGADA A SENTENÇA, nestes segmentos decisórios, por manifesto erro de julgamento quanto à matéria de direito.
XLV. Por tudo o quanto se expôs, a sentença recorrida, o Mmo. Tribunal a quo incorreu em erro na valoração da prova e em erro de julgamento quanto à matéria de facto, o que redundou em erro de julgamento na aplicação do direito, impondo-se a sua revogação nos termos que infra se irá expender.
XLVI. A Sentença recorrida é ilegal, porquanto viola, entre outras, as seguintes disposições legais: artigos 7.º e 87.º, n.º 1, al. b) do CPTA e artigos 5.º, 574.º, n.º 2, 590.º/1 al. b) e n.º 4 do CPC; 195.º/1 e 2 do CPC, 3.º do CPC; 590.º/2, al. b) e n.º 4 do CPC, art. 87.º aplicáveis ex vi art. 1.º do CPTA).
Termos em que,
E nos melhores de Direito, com o suprimento, deverá o presente recurso jurisdicional ser julgado integralmente procedente por provado, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por outra que julgue a ação procedente.
Assim se fazendo justiça!
O Réu/Município não juntou contra-alegações.
A Senhora Procuradora Geral Adjunta, notificada ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na sentença foi fixada a seguinte factualidade:
1. Através de contrato de concessão outorgado em 26/10/2001, o Estado Português atribuiu à Á..., S.A. (ATMAD), a concessão da exploração e gestão do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento de Trás-os-Montes e Alto Douro para captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes de vários municípios, de entre os quais Município de Macedo de Cavaleiros, do qual consta, além do mais, o seguinte (cfr. documento nº 1 junto aos autos com a petição inicial):
“Cláusula 33ª
(Medição e facturação)
1. A medição dos caudais de água fornecidos e de efluentes recolhidos, quando efectuada,
reger-se-á pelo estabelecido nos contratos de fornecimento e de recolha.
(...)
4. A facturação será apresentada mensalmente e, quando, nos termos previstos na cláusula 16ª, não resultar de medição, corresponderá a um duodécimo dos valores mínimos anuais previstos nos números 1 e 2 da mesma cláusula (...).”
2. Em 26/10/2001, entre a ATMAD e o réu, foi outorgado um contrato de fornecimento de água, destinada ao abastecimento público, denominado “Contrato de Fornecimento entre o Município de Macedo de Cavaleiros e a Á..., S.A.”, do qual consta, além do mais, o seguinte (cfr. documento nº 2 junto aos autos com a petição inicial):
“(...)
Cláusula 1ª
1. A Sociedade obriga-se a fornecer água ao Município, destinada ao abastecimento público, nos termos e de acordo com as condições previstas no contrato de concessão, adiante como tal designado, celebrado entre o Estado e a Sociedade relativo à atribuição da concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento de Trás-os-Montes e Alto Douro, criado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 270-A/2001, de 6 de Outubro, adiante designado, abreviadamente, por "Sistema".
O Município obriga-se a criar todas as condições que forem da sua competência e se mostrem previstas no presente contrato e no contrato de concessão, bem como respeitar todas as condições técnicas necessárias ao bom funcionamento do Sistema.
(...)
Cláusula 3ª
1. O regime tarifário a aplicar ao Município, respeitantes ao fornecimento de água, reger-se-á pelo estabelecido no contrato de concessão.
(...)
6. As facturas referentes débitos de consumo, bem assim como as relativas a quaisquer outros fornecimentos ou serviços prestados, serão pagas pelo município na sede da concessionária até sessenta dias após a data da facturação.
7. Em caso de mora no pagamento das facturas, estas passarão a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável às dívidas do Estado, com a taxa prevista na mesma legislação, sem prejuízo de a sociedade poder recorrer às instâncias judiciais como forma de obter o ressarcimento dos seus débitos, bem como de exercer os demais direitos previstos no contrato de concessão. (...)”;
3. Em 26/10/2001, entre a ATMAD e o réu, foi outorgado um contrato de recolha de
efluentes, denominado
“Contrato de Recolha de Efluentes entre o Município de Macedo de Cavaleiros e a Á..., S.A.”, do qual consta, além do mais, o seguinte (cfr. documento nº 2 junto aos autos com a petição inicial):
“(...)
Cláusula 1ª
1. A Sociedade obriga-se a recolher efluentes provenientes do sistema próprio do Município, nos termos e de acordo com as condições previstas no contrato de concessão, adiante como tal designado, celebrado entre o Estado e a Sociedade relativo à atribuição da concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento de Trás-os-Montes e Alto Douro, criado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 270-A/2001, de 6 de Outubro, adiante designado, abreviadamente, por "Sistema".
2. O Município obriga-se a criar todas as condições que forem da sua competência e se mostrem previstas no presente contrato e no contrato de concessão, bem como respeitar todas as condições técnicas necessárias ao bom funcionamento do Sistema.
(...)
Cláusula 3ª
1. O regime tarifário e o regime de facturação e de pagamentos a aplicar ao Município, respeitantes à recolha de efluentes, reger-se-ão pelo estabelecido no contrato de concessão.
(...)
5. A facturação será apresentada mensalmente e, quando, nos termos previstos no contrato de concessão, não resultar de medição, corresponderá a um duodécimo dos valores mínimos anuais previstos no mesmo.
6. As facturas referentes débitos de recolha de efluentes, bem assim como as relativas a quaisquer outros fornecimentos ou serviços prestados, serão pagas pelo município na sede da concessionária até sessenta dias após a data da facturação.
7. Em caso de mora no pagamento das facturas, estas passarão a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável às dívidas do Estado, com a taxa prevista na mesma legislação, sem prejuízo de a sociedade poder recorrer às instâncias judiciais como forma de obter o ressarcimento dos seus débitos, bem como de exercer os demais direitos previstos no contrato de concessão. (...)”;
4. A autora emitiu e remeteu à autora as seguintes notas de débito (cfr. documentos nº 3 a 8, 22, 23, 32, 35, 38 e 41 juntos com a petição inicial e documentos de fls. 589-635):
Nº Nota de
débito
Valor total
Descrição
Data da
Factura
Número
de doc.
PI
...87
5 579,68 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Julho e Agosto de 2010
31-08-2010
3
...39
4 718,37 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Novembro e Dezembro de 2010
31-12-2010
4
...64
9 544,87 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Fevereiro de 2011
28-02-2011
5
...12
6 530,43 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Março de 2011
31-03-2011
6
...27
7 339,07 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Abril de 2011
30-04-2011
7
...42
8 694,07 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Maio de 2011
31-05-2011
8
...36
9 363,15 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Junho de 2011
30-12-2011
22
...68
84 442,18 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Julho a Dezembro de 2011
30-12-2011
23
...97
56 665,46 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Janeiro a Março de 2012
31-03-2012
32
...30
19 589,99 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Abril de 2012
30-04-2012
35
...75
23 517,23 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Maio de 2012
31-05-2012
38
...96
22 457,69 €
juros de mora por atraso no pagamento, período Junho de 2012
30-06-2012
41
Total
258 442,19 €

5. Em 28/09/2012 foi celebrado entre as partes documento denominado “Acordo de Transacção”, pelo qual, entre o mais, o ora réu reconheceu e comprometeu-se a pagar as facturas e notas de débito identificadas no Anexo II ao indicado documento, relativas aos serviços prestados de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais (cfr. documento de fls. 575­583);
6. No mesmo documento, as partes comprometeram-se a encetar diligências com vista à resolução dos diferendos existentes relativamente à dívida não reconhecida pelos Contraentes (cfr. documento de fls. 575-583);
7. Em 12/03/2019, as partes outorgaram documento denominado “Acordo de Regularização de Dívida”, do qual consta, entre o mais, o seguinte (cfr. documento de fls. 493-552):
“(...)
Cláusula 2ª
Montante em dívida
2.1 - Na data da assinatura do Acordo, o Devedor reconhece a obrigação de pagamento das facturas e notas de débito emitidas pelo Credor e identificadas no anexo I ao presente Acordo, do qual faz parte integrante, no valor de € 1.931.734,35 (um milhão, novecentos e trinta e um mil, setecentos e trinta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos), as quais se encontram vencidas desde as datas indicadas no referido anexo I.
2.2 - Em acréscimo à quantia referida na cláusula anterior, o Devedor reconhece que são devidos juros vencidos ao Credor incorridos desde a data de vencimento das facturas identificadas no anexo I ao presente Acordo até à presente data («Juros»).
2.3 - O Credor concede ao Devedor o benefício de redução correspondente a 30% (trinta por cento) dos juros vencidos à data de 31 de Dezembro de 2018, nos termos previstos no nº 5 do artigo 4º do decreto-lei.
2.4 - Os créditos objecto do presente Acordo (os «Créditos») correspondem às quantias identificadas no anexo I ao presente Acordo e incluem (i) o montante das facturas e notas de débito em dívida até 31 de Dezembro de 2018, de acordo com o nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei; (ii) 70 % (setenta por cento) dos Juros vencidos à data de 31 de Dezembro de 2018; e (iii) a totalidade dos Juros vencidos após 1 de Janeiro de 2019 até à presente data. 2.5 - Sobre os Créditos incidirão juros remuneratórios devidos pelo Devedor ao Credor («Juros Comerciais»), contados diariamente desde a data de assinatura do Acordo e calculados com base na aplicação de uma taxa de juro, nas datas de pagamento de juros que ocorram no ano 2018, correspondente à rentabilidade média diária, no ano de 2017, das Obrigações do Tesouro Portuguesas a 10 (dez) anos, acrescida de 1,5 % (um ponto cinco por cento). Nas datas de pagamentos de juros subsequentes, os Juros Comerciais serão contados diariamente e calculados com base na aplicação de uma taxa de juro, correspondente à rentabilidade média diária, nos 12 (doze) meses anteriores, das Obrigações do Tesouro Portuguesas a 10 (dez) anos, acrescida de 1,5 % (um ponto cinco por cento), sendo a referida taxa susceptível de revisão nos termos da cláusula 4.4.
2.6 - O Acordo não constitui nem produz os efeitos de uma novação da dívida, correspondendo somente ao estabelecimento consensual entre as Partes das condições aplicáveis ao reescalonamento das dívidas a que os Créditos correspondem.
(...)
[dá-se por reproduzido o documento/imagem constante do original]

8. No âmbito do acordo mencionado no ponto antecedente, o réu efectuou os seguintes pagamentos parciais (confissão; cfr. documentos de fls. 493-552 e 589-­635):
Nº Nota de débitoValor totalValor reconhecido e pago
Em 12/03/2019
...394 718,37 €1 435,25 €
...649 544,87 € 1 883,03 €
...126 530,43 € 1 288,41 €
...277 339,07 € 1 448,07 €
...428 694,07 € 1 797,16 €
...369 363,15 € 1 964,12 €
...6884 442,18 € 18 321,19 €
...9756 665,46 € 12 576,57 €
...3019 589,99 € 4 371,45 €
...7523 517,23 € 5 293,92 €
...9622 457,69 € 5 084,62 €
Total258 442,19 €55 463,79 €

O Tribunal consignou:
Factos não provados
Inexistem factos que cumpra julgar não provados com interesse para a decisão da causa.
E continuou:
A convicção do Tribunal fundou-se no posicionamento das partes, assumido nos respectivos articulados, e na inexistência de desacordo ou confronto factual quanto à matéria assente, bem como, na análise crítica dos documentos juntos aos autos, não impugnados, conforme indicado em cada um dos pontos do probatório, assim como, nas declarações confessórias da autora prestadas no requerimento de fls. 589-635.
DE DIREITO
Está posta em causa a sentença que desatendeu a pretensão da Autora.
Atente-se no seu discurso fundamentador:
Resulta dos factos provados nos autos que o réu pagou à autora a totalidade das facturas peticionadas nos presentes autos, identificadas no artigo 7º da petição inicial sob os nº ...89, ...19, ...52, ...85, ...15, ...48, ...76, ...05, ...99, ...36, ...65, ...97, ...26, ...60, ...88, ...45, ...73, ...21, ...46, ...83, ...16, ...44, ...72, ...05, ...33, ...66 e ...94 (cfr. facto provado nº 7 e requerimento de fls. 589­635).
Mais resultou provado, no que se refere às notas de débito elencadas no facto provado nº 4, que o réu procedeu ao pagamento da quantia de 55.463,79 € (cfr. facto provado nº 8 e requerimento de fls. 589-635).
Acresce que, pelo requerimento de fls. 589-635, a autora desistiu ainda do pedido de pagamento das quantias de:
“a) € 18.272,63 (dezoito mil, duzentos e setenta e dois euros e sessenta e três cêntimos), que correspondem a parciais das facturas n.° ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96, por já se encontrarem peticionados genericamente no processo n.° 439/11...., enquanto juros de mora vencidos sobre o capital em dívida ali peticionado – pelo que sempre se encontraria em litispendência com o Processo n.° 439/11...., o que não obsta à desistência, nestes termos, desta parte do pedido.
b) € 139.317,04 (cento e trinta e nove mil, trezentos e dezassete euros e quatro cêntimos), que correspondem a parciais das facturas de juros n.° ...39, ...64, ...12, ...27, ...42, ...36, ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96, por já se encontrarem peticionados genericamente no processo n.° 149/12...., enquanto juros de mora vencidos sobre o capital em dívida ali peticionado – pelo que sempre se encontra em litispendência com o Processo n.° 149/12...., o que não obsta à desistência, nestes termos, desta parte do pedido.”
Após os pagamentos e desistência de pedido formulados pela autora, mantém-se em dívida o pagamento do montante de 45.388,72 €, que corresponde a parte dos montantes titulados nas notas de débito identificados no ponto 4 do probatório.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
*
Compulsado o teor das notas de débito cujo pagamento é peticionado nos presentes autos, verifica-se que as mesmas se referem à cobrança de juros de mora “por atraso no pagamento, calculados de acordo com o previsto no Aviso n° ...11 da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças Publicado no DR IIª Série nº 15, de 21 de Janeiro de 2011”, indicando ainda o período a que se referem (cfr. facto provado nº 4).
Ou seja, no que respeita às notas de débito elencadas no ponto 4 do probatório, está em causa o débito de juros de mora por parte da autora, como consta da descrição de tais documentos.
Sucede, porém, que dos autos não constam os factos essenciais subjacentes ao pedido de condenação do réu ao pagamento de juros de mora, designadamente, quais os montantes sobre os quais seriam devidos juros, e a partir de que datas (cfr. artigo 804º, nº 2 do Código Civil).
De facto, nada refere a autora quanto aos fornecimentos de água, ou recolha de
efluentes, que efectuou ao réu, quais as facturas que emitiu e não foram pagas, e quando as
apresentou a pagamento. E, se assim é, não é possível aferir o momento da constituição em

mora, nem a correcção do cálculo do montante de juros devidos (cfr. artigo 805º, nº 2, alínea a) do Código Civil).
Em situação semelhante à dos autos, já se pronunciou o Tribunal Central Administrativo do Norte, em Acórdão de 23/09/2015, processo nº 00303/13...., disponível para consulta em, www.dgsi.pt , em cuja fundamentação, à qual aderimos, e, por isso, passamos a transcrever, se diz:
“(...) a Autora/Recorrente pretende o pagamento de determinadas quantias que entende serem devidas a título de juros de mora, sem contudo ter provado, ou sequer alegado, em que termos e relativamente a que serviços/facturas e montantes e em que datas, alegadamente o Réu/Recorrido se constituiu em mora. Para esse efeito, sublinhe-se, é manifestamente insuficiente a junção das “notas de débito” referidas no ponto 6. dos factos provados, desde logo, porque das mesmas não é possível extrair quais os serviços que a autora prestou ao réu e este não pagou atempadamente.
Note-se, aliás, que a própria petição é pouco clara quanto à natureza da quantia peticionada, uma vez que parece indiciar que as quantias que a autora alega estarem em dívida se relacionam com a prestação de serviços de abastecimento de água e saneamento (cfr., nomeadamente, os pontos 4 a 7 da petição) e não (apenas e exclusivamente) com juros de mora. Tanto assim é que sobre as mesmas quantias a Autora/Recorrente também peticiona juros de mora, quando é sabido que a regra no nosso ordenamento jurídico é a da proibição do anatocismo (cfr. Artigo 560.º do CCiv) e sendo certo que os juros aqui alegadamente em causa não se enquadram em qualquer das excepções a este princípio.
Em suma, a Autora/Recorrente não cuidou de fundamentar o seu pedido de condenação do Réu/Recorrido no pagamento de quantias alegadamente devidas (exclusivamente) a título de juros de mora, não resultando provados nos autos elementos suficientes para demonstrar, nomeadamente, a situação de mora que serviria de fundamento aos juros peticionados. Pelo que improcede o recurso, devendo ser confirmada a sentença recorrida.”.
Em conformidade com o exposto, não tendo a autora alegado e demonstrado os factos constitutivos do direito que se arroga, conforme era seu ónus, face ao disposto nos artigos 5º, nº 1 do CPC e 342º, nº 1 do Código Civil, improcede necessariamente a sua pretensão de condenação do réu ao pagamento de tais quantias, bem como, a pretensão de condenação ao pagamento de juros de mora, vencidos e vincendos, sobre as quantias elencadas nas notas de débito em apreciação (as quais, no limite, configurariam, aliás, a prática de anatocismo, proibida no artigo 560º do Código Civil).

X
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim, vejamos,
No âmbito da presente ação, a Recorrente veio peticionar a condenação do Réu Município, ora Recorrido, no pagamento do montante de €780.860,61, relativo a faturas emitidas na sequência de serviços de saneamento e fornecimento de água (especificadas no artigo 7.° do seu articulado), acrescido dos competentes juros de mora vencidos, no valor de € 52.885,00, o que perfaz o valor global de €833.745,61, bem como nos demais que se vierem a vencer até ao efetivo e integral pagamento da dívida (cfr. petição inicial, a fls. 1 a 7).
Por requerimento datado de 12/12/2019 (a fls. 484 a 492), a Autora veio declarar a desistência parcial do pedido, ao abrigo do disposto no n.° 1 do 283.°, do n.° 1 do artigo 285.° e do artigo 290.° do CPC, e requerer a redução do valor peticionado nos 3 autos, fixando-o em €3.084,71, mantendo quanto ao demais, o pedido de condenação formulado na petição inicial, na sequência de Acordo de Regularização de Dívidas celebrado com o Recorrido em 12/03/2019, e através do qual este veio reconhecer parte do montante de capital em dívida, e o valor dos respetivos juros de mora decorrentes do respetivo pagamento tardio (documento constante dos autos a fls. 493 e seguintes).
Através de dois requerimentos datados de 27/01/2020 (a fls. 484 a 492), a Autora, reconhecendo manifesto e evidente erro de cálculo, veio retificar o anterior requerimento de desistência parcial do pedido e de redução do pedido, fixando-o no quantitativo de €45.388,72, alegando que:
a) Autora e Réu celebraram em 28/09/2012 um “Acordo de Transacção” sobre parciais de faturas de serviços de abastecimento de água e de saneamento, através do qual o Município Réu se veio a comprometer a pagar à Autora aqueles montantes parciais por ele reconhecidos, nos termos convencionados (cfr. documento junto com o requerimento de 27/01/2020, a fls. 575 a 583);
b) Os valores peticionados na presente ação respeitam a parciais das faturas que não se encontravam integrados naquele Acordo de Transação de 2012;
c) Pelo que o antedito “Acordo de Regularização de Dívidas” celebrado entre as partes em 12/03/2019, apenas integrou o remanescente das faturas de serviços de água e de saneamento que não haviam sido reconhecidas/pagas com aquele “Acordo de Transação de 2012”, e que, por isso, haviam sido peticionados nos presentes autos.
d) Motivo pelo qual, o Acordo de Regularização de Dívidas celebrado em 2019 apenas abrange os juros de mora vencidos sobre esses parciais faturados que não haviam sido reconhecidos/pagos no Acordo de Transação de 2012.
e) De tal modo que se mantém em dívida o quantitativo de €42.304,01, referente aos parciais dos juros de mora constantes das notas de débito n.° ...68, ...97, ...30, ...75 e ...96, calculados sobre os montantes das faturas de capital que foram parcialmente reconhecidas/pagas pelo Município Réu - em relação aos quais Autora e Réu não lograram alcançar qualquer acordo.
f) Assim como, se mantém por pagar o valor de €3.084,71, que corresponde à fatura n.° ...87 e aos remanescentes em dívida das n.° ...39, ...97, ...30, ...75 e ...96, e que diz respeito a juros de mora vencidos, calculados sobre faturas de capital pagas pelo Município Réu após o prazo convencionado para o seu vencimento - , relativamente aos quais Autora e Réu não lograram alcançar qualquer acordo.
Por despacho de 29/05/2020, constante de fls. 637 a 639, o Tribunal a quo decretou a validade da desistência parcial do pedido, admitindo a sua redução e fixação no montante de €45.388,72.
Posteriormente, através de despacho datado de 20/12/2021, constante de fls. 681, o Tribunal a quo notificou as partes para, no prazo de 20 dias, apresentarem, por escrito, as alegações de facto e de direito, tendo a aqui Apelante apresentado as suas alegações por escrito em 24/01/2022.
Isto posto, veio o Tribunal a quo a proferir sentença em 23/03/2022, no sentido de julgar a ação improcedente e, em consequência, absolver o Réu do pedido de condenação ao pagamento do montante de €45.388,72, bem como do pedido de condenação ao pagamento de juros de mora, vencidos e vincendos, sobre tal montante.
Para a sua decisão, o Tribunal a quo apoiou-se nos fundamentos que, sucintamente, se adiantam:
1) «(...) Após os pagamentos e desistência de pedido formulados pela autora, mantém-se em dívida o pagamento do montante de 45.388,72 €, que corresponde a parte dos montantes titulados nas notas de débito identificados no ponto 4 do probatório.»
2) «(...) Compulsado o teor das notas de débito cujo pagamento é peticionado nos presentes autos, verifica-se que as mesmas se referem à cobrança de juros de mora “por atraso no pagamento, calculados de acordo com o previsto no Aviso n° ...11 da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças Publicado no DIA IIª Série n° 15, de 21 de Janeiro de 2011”, indicando ainda o período a que se referem (cfr. facto provado n° 4).»
3) «Ou seja, no que respeita às notas de débito elencadas no ponto 4 do probatório, está em causa o débito de juros de mora por parte da autora, como consta da descrição de tais documentos.»
4) «Sucede, porém, que dos autos não constam os factos essenciais subjacentes ao pedido de condenação do réu ao pagamento de juros
de mora, designadamente, quais os montantes sobre os quais seriam devidos juros, e a partir de que datas (cfr. artigo 804°, n° 2 do Código Civil).»
5) «De facto, nada refere a autora quanto aos fornecimentos de água, ou recolha de efluentes, que efectuou ao réu, quais as facturas que emitiu e não foram pagas, e quando as apresentou a pagamento. E, se assim é, não é possível aferir o momento da constituição em mora, nem a correcção do cálculo do montante de juros devidos (cfr. artigo 805°, n° 2, alínea a) do Código Civil).»
6) «(...)Em conformidade com o exposto, não tendo a autora alegado e demonstrado os factos constitutivos do direito que se arroga, conforme era seu ónus, face ao disposto nos artigos 5°, n° 1 do CPC e 342°, n° 1 do Código Civil, improcede necessariamente a sua pretensão de condenação do réu ao pagamento de tais quantias, bem como, a pretensão de condenação ao pagamento de juros de mora, vencidos e vincendos, sobre as quantias elencadas nas notas de débito em apreciação (as quais, no limite, configurariam, aliás, a prática de anatocismo, proibida no artigo 560° do Código Civil).».
Em suma, o Tribunal a quo julgou totalmente improcedente a ação proposta pela Autora, porquanto considera que:
a) Em relação ao pedido de condenação do Recorrido no pagamento dos montantes das notas de débito referenciados nos autos, a Autora não logrou cumprir com o ónus de alegação e demonstração dos factos constitutivos desse direito;
b) E que, em consequência, improcede o pedido de condenação do Recorrido no pagamento de juros vencidos e vincendos sobre tais quantias peticionadas.
A Apelante não se conforma, quer quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto - pois que considera que o Tribunal a quo errou no seu julgamento ao omitir na decisão proferida factos provados (em função dos elementos probatórios produzidos, os quais se fundam essencialmente em
prova documental), relevantes para a tomada de decisão -, quer quanto à decisão proferida sobre a matéria de direito, por diversas ordens de razão, entre as quais:
Discorda com a tramitação processual adotada pelo Tribunal a quo, que, no seu entender, violou as regras que asseguram o princípio do inquisitório e o princípio da boa-fé processual (violação consumada na decisão proferida), porquanto:
-Através da petição inicial, veio a ora Apelante peticionar a condenação do Réu Município, aqui Recorrido, no pagamento do montante de €780.860,61, referente às faturas e notas discriminadas sob o artigo 7.° desse seu articulado, relativas à prestação de serviços de saneamento e fornecimento de água prestados pela Recorrente ao Recorrido, acrescido do montante de €52.885,00, a título de juros de mora vencidos, e dos juros de mora vincendos até ao efetivo e integral pagamento da dívida;
-Nessa sequência, o Recorrido veio apresentar contestação, através da qual se defendeu por impugnação, pugnando pela improcedência da ação;
-Posteriormente, o Tribunal a quo proferiu despacho saneador (a fls. 431 dos autos), tendo fixado como objeto do litígio:
«Responsabilidade contratual do Réu perante a Autora quanto às faturas elencadas na petição inicial».
-Sem prejuízo de o ónus de alegação das partes se restringir aos factos essenciais (art. 5.°, n.° 1 do CPC, aplicável ex vi art. 1.° do CPTA), entendendo o Tribunal que os factos alegados em sede de petição pecam por insuficiência ou imprecisão, sempre deveria ter lugar despacho pré-saneador no sentido de convidar ao aperfeiçoamento da petição inicial, em cumprimento do dever de gestão processual e do princípio da descoberta da verdade material (cfr. artigo 7.°- A do CPTA), e conforme postula o artº 87.°, n.° 1, al. b) do CPTA.
-Certo é, porém, que não teve lugar nos autos qualquer despacho nesse sentido.
Entende, assim, a Recorrente, além do mais, que se verifica o vício decorrente de nulidade processual da falta de despacho de aperfeiçoamento, na medida em que tal inobservância influiu no exame e decisão da causa.
Avança-se, já, que lhe assiste razão.
Conforme se alcança do teor da petição inicial apresentada pela ora Apelante, a causa de pedir dos presentes autos consubstancia-se na falta de pagamento de créditos titulados por faturas/notas de débito emitidas e enviadas ao Município Recorrido, na sequência de serviços prestados de recolha de efluentes e de fornecimento de água, os quais ascendem à importância de €45.388,72, tendo sido peticionada a condenação do Município no pagamento desse montante.
Entendeu o Tribunal a quo que a ora Recorrente não logrou cumprir com o ónus de alegação e demonstração que sobre si impendia em relação à factualidade constitutiva do seu pedido.
Ora, mostra-se categórico atender à nulidade processual da falta de despacho de aperfeiçoamento enquanto conditio sine qua non do sentido da decisão recorrida.
Da conjugação do disposto na al. b) do n.° 1 do artigo 87.° do CPTA com os números 2 e 3 do mesmo preceito, decorre que, uma vez findos os articulados, e conclusos os autos ao juiz, tem este o dever de proferir despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, quando nestes se verifiquem irregularidades - designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa -, ou quanto ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
O disposto no antedito normativo segue de perto a solução preconizada no artigo 590.°, nºs 2, al. b), e 4, do CPC (aplicável ex vi artigos 1.° e 35.° do CPTA).
A este respeito, vide o Acórdão do Tribunal da Relação ... de 30/04/2020, proferido no processo n.° 639/18....:
I - Diversamente do que acontecia na vigência do Código de Processo Civil de 1961, agora, face ao que se dispõe no artigo 590.º, nºs 2, al. b), e 4, do CPC, não há razão para controvérsia: o poder do juiz de convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada não é um poder discricionário, mas antes um poder-dever, um poder vinculado.
II - O convite ao aperfeiçoamento (como o próprio termo inculca) supõe que os articulados revelem um conteúdo fáctico mínimo, ainda que deficientemente expresso: a petição inicial, que individualize a causa de pedir; a contestação, que identifique a(s) excepção(ões) deduzida(s) densificando-a(s) com os pertinentes elementos de facto.
III - No caso sub juditio, embora esteja, minimamente, identificada a causa de pedir, a petição inicial é, manifestamente, deficiente, já porque (…), pelo que se impunha que o tribunal proferisse despacho de convite ao aperfeiçoamento daquele articulado.
IV - A falta desse despacho configura omissão de um acto que a lei prescreve e a situação é especialmente ostensiva porquanto a Sra. Juiz, além de omitir a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, extraiu da deficiência da p.i. efeitos que se projectaram na improcedência da acção.
V - A omissão desse despacho, sendo uma nulidade processual, influiu no exame e decisão da causa, posto que esta julgou improcedente o pedido formulado pelo autor por insuficiência de factos que poderiam ter sido invocados em cumprimento do convite ao aperfeiçoamento, acabando por afectar com o vício da nulidade a própria sentença.»
Acresce que, o disposto no artigo 87.°, n.° 1, al. b) enquadra-se no princípio pro actione previsto no artº 7.° do mesmo diploma, nos termos do qual [p]ara efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.
A respeito deste princípio, ensinam Mário Aroso e Carlos Cadilha, que «(...)] o princípio pro actione, que decorre do disposto no art. 7.º (...) impõe que, em situações duvidosas, a interpretação das normas seja efectuada no sentido de promover a emissão de uma decisão de mérito» (em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, pp. 63-64.).
A par disso, o disposto no artº 87.°, n.° 1, al. b) do CPTA sempre deverá ser interpretado como uma decorrência do dever de gestão processual consagrado no artº 7.°-A do CPTA, o qual, entre o demais, determina que o Tribunal “providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando-as a praticá-lo”.
Em face do expendido, finda a fase dos articulados e conclusos os autos ao Juiz, verificando-se articulados facticamente insuficientes ou facticamente imprecisos, impende sobre o Tribunal o dever de proferir despacho no sentido de convidar a parte ou partes ao aperfeiçoamento do articulado ou articulados em questão, sob pena de se verificar uma nulidade processual ao abrigo do artº 195.°, n.° 1 do CPC, ex vi, artigos 1º e 35.° do CPTA).
A sentença recorrida é ainda ilegal, por violar o princípio do contraditório.
A violação do princípio do contraditório, ínsito no artigo 3.° do CPC, aplicável, ex vi, artigo 1.° do CPTA, considerando que a presente decisão consubstancia uma verdadeira decisão-surpresa, inadmissível no quadro legal processual português, constituindo, inclusive, uma manifestação da tutela jurisdicional efetiva, consagrada no artigo 20.° da CRP - a qual consubstancia uma verdadeira nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615.°/1, al. d) do CPC.
Pelo que, a conclusão vertida na sentença recorrida quanto à falta de alegação de factos essenciais da pretensão, tem subjacente a obliteração do princípio do contraditório e do dever de gestão processual (artº 3.° do CPC e artº 87.°, n.° 1, al. b) do CPTA) -, o que se perfilou como conditio sine qua non para a decisão de improcedência da ação.
Assim, não tendo sido, desde logo, considerada inepta a petição inicial, sempre deveria ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando-se a parte a suprir as deficiências de alegação ou exposição dos factos, designadamente completando a causa de pedir através de alegação de factos que complementem ou concretizem os factos antes alegados - o que, repete-se, nunca ocorreu, tendo as diligências probatórias prosseguido os seus termos - , para depois se julgar o presente pedido improcedente por “falta de factos essenciais”, o que não se pode conceder.
Em conclusão,
-A decisão em causa, proferida em violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3°/3 do CPC, configura uma decisão surpresa;
-Este é um princípio basilar do processo, que hoje ultrapassou a concepção clássica, que estava associada ao exercício do direito de resposta, assumindo-se como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o processo, conferindo às partes a possibilidade de influírem em todos os elementos que se liguem ao objeto da causa;
-Como ensina Lebre de Freitas em Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, pág. 96: “a esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção
mais lata de contraditoriedade, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo”;
-Segundo este princípio, o juiz não deve decidir qualquer questão, de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre ela se pronunciarem, pois só assim se assegura a participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e na busca da justiça da decisão;
-Como se sumariou no Acórdão do STA de 13/11/2007, proc. 0679/07
I-O princípio do contraditório é um dos direitos fundamentais das partes no desenvolvimento do processo já que, garantindo-lhes a possibilidade de intervir em todos os seus actos, permite-lhes defender os seus interesses e influenciar a decisão do Tribunal.
II-E, porque assim, tal princípio só pode ser postergado nos casos de manifesta desnecessidade ou nos casos em que o seu cumprimento poderia pôr em causa, injustificadamente, os direitos de uma das partes ou poderia comprometer seriamente a finalidade que determinou a instauração do processo.
III-O cumprimento do princípio do contraditório é essencial na marcha do processo e que, por isso, a sua violação constitui nulidade uma vez que pode influir no exame ou na decisão da causa a qual, por via de regra, determinará a nulidade de todo o processado que lhe é posterior. - nºs 1 e 2 do art. 201 do CPC;

-Este princípio foi aqui postergado;
-A “decisão surpresa” tem um alcance objetivo: a decisão é desse tipo - e, então, surpreende - quando o tribunal, desviando-se do que seria expectável em face do anteriormente discutido, resolve uma questão sem antes ouvir as partes a seu propósito; por outro lado, a “decisão surpresa” tem a ver com a novidade das questões - e não com a novidade dos argumentos utilizados na resolução delas.
Procedem as conclusões da Apelante.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, e, em consequência, anula-se o aresto recorrido e determina-se que, baixando o processo ao TAF a quo, aí se dê cumprimento ao poder-dever de convidar a Autora a aperfeiçoar o articulado inicial, como manda o artigo 590.º, nºs 2, al. b), e 4, do Código de Processo Civil, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.

Notifique e DN.
Porto, 28/10/2022
Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Alexandra Alendouro