Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00614/20.2BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/25/2021
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Margarida Reis
Descritores:RECLAMAÇÃO DE ATOS DO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO FISCAL; ENTREGA DE IMÓVEL; VENDA JUDICIAL; ARRENDAMENTO; TRESPASSE COMERCIAL;
ART. 819.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:Vigora no nosso sistema jurídico o princípio emptio non tollit locatio previsto no art. 1057.º do Código Civil (CC), nos termos do qual o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.
Donde, no caso de o contrato de arrendamento ter sido celebrado antes da penhora, sobrevive à venda executiva, sucedendo o comprador na posição do locador original.

Comportando o trespasse comercial uma mera transmissão subjetiva da posição contratual de arrendatário, conservando o arrendamento substancialmente intocado, quando seja posterior à penhora, e compreenda na universalidade transmitida um arrendamento celebrado antes da mesma, não é abrangido pela inoponibilidade prevista no art. 819.º do CC.

Donde não padece de erro de julgamento de direito, antes tendo feito uma correta interpretação da norma contida no art. 819.º do CC, a sentença que anula o ato (ilegal) proferido no âmbito de processo de execução fiscal que determinou a entrega efetiva aos adquirentes por venda judicial do prédio, com fundamento na inoponibilidade à venda de um trespasse a ela posterior por compreender na universalidade transmitida um arrendamento celebrado antes da mesma.*
* Sumário elaborado pela relatora.
Recorrente:Autoridade Tributária e Aduaneira
Recorrido 1:C., Lda
Votação:Unanimidade
Objecto:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
*
I. Relatório

A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com a sentença proferida em 2020-12-16 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, que julgou procedente a reclamação de atos do órgão de execução fiscal interposta por C., LDA. contra o despacho datado de 13 de julho de 2020 proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças da Feira 1, exarado no processo de execução fiscal n.º 0094200301012932 e apensos, que determinou a entrega efetiva aos adquirentes por venda judicial do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 656, assim anulando referido despacho, vem dela interpor o presente recurso.

A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES
1. A sentença recorrida decidiu anular o despacho reclamado, relativo à entrega do bem imóvel vendido em execução, artigo 656.º urbano de (...), (...), transmitido no âmbito das execuções fiscais n.º 0094200301012932 e apensos.
2. Decidindo que por efeito do trespasse do estabelecimento comercial a Reclamante tomou de arrendamento o prédio em data anterior à da penhora e respectivo registo, mantendo-se válido o contrato de arrendamento, não podendo o prédio ser entregue livre e devoluto de pessoas e bens.
3. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, a Fazenda Pública professa entendimento contrário, o de que a toma do arrendamento por parte da Reclamante ocorreu já depois da penhora do imóvel, sendo inoponível à execução a mudança de arrendatário após a celebração do contrato de trespasse do estabelecimento comercial.
4. Isto porque a penhora do imóvel foi efectuada em 15/06/2007 e registada na Conservatória do Registo Predial em 23/11/2007, sendo posterior a toma do imóvel pela Reclamante, já no ano de 2008.
5. Verificando-se o trespasse do estabelecimento comercial, por contrato firmado em 09/10/2008.
6. Ou seja, já depois da penhora do imóvel no ano de 2007.
7. Ora, o artigo 819.º do Código Civil, com a epígrafe “Disposição ou oneração dos bens penhorados”, refere que:
“Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.”
8. Entendemos que a celebração do contrato de trespasse do estabelecimento comercial, no qual se inclui o direito ao arrendamento do imóvel aqui em causa, não pode deixar de considerar como um acto de disposição do bem concretamente penhorado.
9. Consequentemente, por efeito do contrato de trespasse onde se inclui o direito de arrendamento do imóvel, ocorreu um acto de “disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”, tal como refere o artigo 819.º do Código Civil.
10. E isto é assim mesmo que, como referimos, o contrato de trespasse não se resuma à transmissão da posição de arrendatário, porquanto a verdade é que daquele contrato resultou uma acção de disposição do bem penhorado, incluído no trespasse do estabelecimento.
11. Como, aliás, na própria sentença de que se ora recorre se conclui, ao afirmar-se que, e transcrevemos, “com o contrato de trespasse operou a transmissão na posição de arrendatário, que deixa de ser a trespassante [“P., LDA.”] e passa a ser a trespassária [a aqui reclamante]” (sublinhado nosso).
12. De que resulta que o tribunal a quo, ao determinar que o artigo 819.º do CC não tem aplicação no caso em crise, errou na apreciação que fez, uma vez que se o arrendatário do imóvel era um até ao momento do trespasse, e passou a ser outro depois, é indubitável que por via do trespasse se dispôs do bem penhorado.
13. Com efeito, do artigo 819.º do Código Civil não se pode concluir que apenas um acto de disposição, oneração ou arrendamento que directamente incida sobre o bem penhorado é de relevar, mas sim, e também, todos aqueles que produzam o mesmo efeito por via indirecta, como é o caso da celebração de um contrato de trespasse que acarrete a transmissão de um direito relativo a um bem penhorado,
14. Por isso, estando já anteriormente registada a penhora do imóvel que veio a ser incluído no trespasse do estabelecimento comercial, a transmissão da posição de arrendatário é, nos termos do artigo 819.º do Código Civil, inoponível à execução, o que acarreta a caducidade do direito de arrendamento em resultado da venda do bem penhorado.
15. Paralelamente, sendo a penhora de imóveis um ato sujeito a registo, não podia a Reclamante alegar desconhecimento da situação real do mesmo, pelo que é líquido dar como assente que a Reclamante sabia, quando celebrou o contrato de trespasse, que o imóvel onde se situa o estabelecimento comercial que pretendia adquirir se encontrava já penhorado.
16. A não se entender assim, estaria a permitir-se que um terceiro, como era a Reclamante até ao trespasse, se arrogasse no direito de interferir na marcha do processo executivo, cujo desiderato é a venda do bem apreendido.
17. O que significa, sem margem para qualquer dúvida ou reserva, que o trespasse do estabelecimento comercial no caso em crise não tem, no que respeita ao arrendamento do imóvel, eficácia perante os termos executivos.
18. Por conseguinte, mostra-se errada e desajustada a aplicação do artigo 819.º do C.C. efectuada pelo tribunal a quo no caso concreto, pois que, ao contrário, e fazendo uma aplicação correcta do artigo 819.º do C.C. ao caso em crise, mostra-se evidente que o contrato de arrendamento caducou com a venda,
19. devendo o prédio vendido ser entregue pela Reclamante livre e devoluto de pessoas e bens.
20. Face ao exposto, defende a Fazenda Pública pela inoponibilidade do contrato de arrendamento invocado para impedir a entrega do bem imóvel, devendo ser desocupado e entregue ao adjudicatário, pelo que a decisão ora recorrida não pode permanecer na ordem jurídica.”
Termina pedindo:
Nos termos vindos de expor e nos que V.ªs Ex.ªs, sempre mui doutamente, poderão suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso com a revogação da decisão recorrida.”
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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O Digno Magistrado do M.º Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do presente recurso.
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Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo [cf. art. 36.º, n.º 2, do CPTA, aplicável ex vi art. 2.º, alínea d) do CPPT, e art. 278.º, n.º 3, do CPPT].
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Questões a decidir no recurso

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações de recurso.

Assim sendo, importa apreciar se a sentença recorrida padece do erro de julgamento de direito que lhe é assacado pela Recorrente, por ter alegadamente feito uma incorreta interpretação do disposto no art. 819.º do CC ao considerar que o trespasse comercial posterior à penhora, compreendendo na universalidade transmitida arrendamento celebrado antes da mesma, não é abrangido pela inoponibilidade prevista naquela norma.


II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto

Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:

III. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Dos autos considera-se como assente a seguinte factualidade com relevância para a decisão a proferir:
1) Contra H. foi instaurado o PEF n.º 0094200301012932 e apensos, o qual corre termos no SF da Feira-1 – cfr. resulta dos autos [facto não controvertido];
2) Em 15-06-2007, no âmbito do PEF mencionado na alínea antecedente foi penhorado o prédio urbano constituído por cave e rés-do-chão destinado a comércio e 1.º andar destinado a habitação, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (...), concelho de (...) sob o artigo 656 e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 781, tendo essa penhora sido registada sob a AP. 20 de 2008/10/02 – cfr. resulta da informação de fls. 234 a 237 conjugado com fls. 4 [Título de Transmissão de Bens], todas do PEF apenso;
3) Em 04-03-2009, foi proferido despacho a designar o dia 15-04-2009 para a venda do prédio aludido no ponto anterior – cfr. resulta da informação de fls. 234 a 237 do PEF apenso;
4) Em 15-04-2009 realizou-se a venda do imóvel, sendo aceite a proposta de €148.870,00, apresentada por N. – cfr. resulta de fls. 4 do PEF apenso;
5) Em 21-04-2009 o executado requereu a anulação da venda aludida no ponto anterior, a qual correu termos neste Tribunal sob o n.º 370/09.5BEAVR – cfr. resulta da informação de fls. 234 a 237 do PEF apenso;
6) Em 28-04-2009, N. procedeu ao pagamento do preço e dos impostos devidos pela aquisição do imóvel – cfr. resulta de fls. 4 do PEF apenso;
7) Nesse mesmo dia 28-04-2009 foi emitido o Título de Transmissão de Bens referente ao prédio identificado em 2) – cfr. resulta de fls. 4 do PEF apenso;
8) Os adquirentes N. e mulher apresentaram requerimento a peticionar a entrega do bem imóvel, dando origem ao processo n.º 370/09.5BEAVR-A, que correu termos neste Tribunal – cfr. resulta da consulta ao SITAF [processo n.º 370/09.5BEAVR-A];
9) Por sentença proferida em 22-02-2013, no processo n.º 370/09.5BEAVR, a acção de anulação de venda foi julgada improcedente – cfr. fls. 54 a 57 do PEF apenso;
10) Em 12-02-2015 foi proferido Acórdão pelo Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA) a negar provimento ao recurso interposto da sentença proferida no processo n.º 370/09.5BEAVR – cfr. fls. 6 a 14 do PEF apenso;
11) Por ofício datado de 27-04-2015 foi comunicado ao executado, na qualidade de depositário do bem penhorado, que deveria, no prazo de cinco dias, apresentar as chaves do imóvel e entregar o mesmo devoluto – cfr. fls. 16 e 17 do PEF apenso;
12) Em 26-10-2015, o executado apresentou requerimento dirigido ao Chefe do SF da Feira-1, peticionando o seguinte:
«(…) que sejam conhecidas e declaradas as questões das NULIDADES INSANÁVEIS do processo de execução fiscal, (…), impondo-se a declaração daquelas nulidades insanáveis, com a consequente anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente, inclusive a venda do imóvel (…)» - cfr. fls. 25 a 33 e 88 do PEF apenso;
13) Por sentença proferida em 19-04-2016 no processo n.º 370/09.5BEAVR-A foi indeferido o pedido de entrega efectiva do bem, apresentado pelos adquirentes, constando como fundamentação dessa decisão, além do mais, o seguinte:
«(…)
Concluindo-se assim, que o pedido a formular pelo requerente, o deverá ser, junto do respetivo órgão de execução fiscal, sendo este, o competente para proceder a todas as diligências no sentido de ser concretizada a entrega do bem.
Ou seja, cabe ao adquirente junto do órgão de execução fiscal respetivo, requerer o prosseguimento da execução no caso do executado não proceder à entrega do bem de uma forma voluntária.
Assim e uma vez requerido pelo adquirente dos bens o prosseguimento da execução e não tendo o executado cumprido com o determinado pelo órgão de execução fiscal cabe recurso ao artº 757º do CPC, procedendo-se à respetiva entrega judicial efetiva, se necessário, com o auxílio da força pública.
(…)» - cfr. fls. 343 a 347 do PEF apenso;
14) Em 16-06-2016, os adquirentes do imóvel, N. e M., dirigiram ao Chefe do SF da Feira-1 um requerimento de entrega efectiva do bem – cfr. fls. 58 e 59 do PEF apenso;
15) Em 05-07-2016, o Chefe de Finanças proferiu despacho com o seguinte teor:
«Face ao requerido pelo Adquirente, apresentado ao abrigo e nos termos do n.º 2 e 3 do artigo 256.º do CPPT, proceda-se à entrega efectiva do imóvel vendido, nos termos conjugados dos artigos 828.º, 861.º e 757.º, todos do CPC.
Para o efeito, notifique-se o fiel depositário para no prazo de 5 (cinco) dias apresentar os bens, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência pela não entrega.
Em caso de incumprimento, solicite-se ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, decisão judicial com vista à entrega efectiva do bem à adquirente, com recurso às respectivas autoridades policiais, nos termos do disposto no art.º 828.º do CPC, situação enquadrável no n.º 4 do art.º 757.º do CPC.» - cfr. fls. 65 do PEF apenso;
16) Em 20-07-2016, foi efectuada diligência de verificação de hora certa visando a comunicação ao Executado do despacho referido no ponto anterior – cfr. fls. 80 do PEF apenso;
17) Mediante ofício datado de 20-07-2016, foi comunicado ao Executado a realização da diligência referida no ponto anterior – cfr. fls. 81 e 82 do PEF apenso;
18) Em 15-09-2016, relativamente ao requerimento referido no ponto 12), o Chefe de Finanças proferiu despacho cujo teor é o seguinte:
«Analisado o requerimento apresentado pela executada, a informação que antecede, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido, verifica-se que as nulidades invocadas foram já apreciadas em sede de pedido de anulação de venda, pelo que não será de apreciar novamente o pedido, de conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 56.º da LGT.
Notifique-se.» - cfr. fls. 101 do PEF apenso;
19) Para notificação do despacho referido no ponto anterior foi remetido à mandatária do executado ofício por correio registado com aviso de recepção, que foi assinado em 19-09-2016 – cfr. fls. 91 a 93 do PEF apenso;
20) Em 16-09-2016 o Chefe do SF proferiu o seguinte Despacho:
«Face ao requerido pelo adquirente, entrega do imóvel adquirido, ao abrigo e nos termos do n.º 2 e 3 do artigo 256.º do CPPT, proceda-se à sua efetivação, nos termos conjugados dos artigos 828.º, 861.º e 757.º, todos do CPC.
Uma vez que o fiel depositário não procedeu voluntariamente à entrega do bem, proceda-se:
- À requisição de força policial, territorialmente competente, para a eventual necessidade de arrombamento de portas, conforme despacho judicial junto aos autos;
- À notificação do adquirente/novo proprietário para estar presente no acto e lhe ser entregue o imóvel, bem como se fazer acompanhar de um serralheiro.
- À notificação do executado e fiel depositário das diligências tomadas.
Designo o próximo dia 06 de outubro de 2016, pelas 10.30 horas, como data para a realização da diligência de entrega efectiva do bem.
Comunique-se ao Ministério Público o incumprimento do fiel depositário na entrega do bem, conforme o disposto no art.º 1187º do CC e art.º 771º do CPC.» - cfr. fls. 98 do PEF apenso;
21) Para comunicação do despacho referido no ponto anterior foi remetido ao Executado o ofício n.º 6497, de 20-09-2016, por correio registado – cfr. fls. 133 e 134 do PEF apenso;
22) Em 27-09-2016, o Executado apresentou reclamação judicial, que correu termos neste Tribunal sob o n.º 1070/16.5BEAVR, na qual peticionou:
«(…) que seja revogado o Despacho proferido em 15-09-2016 e em consequência, sejam conhecidas e declaradas as NULIDADES INSANÁVEIS do processo de execução fiscal, arguidas no processo executivo N.º 0094200301012932 por requerimento apresentado em 26 de Outubro de 2015, ou seja, em data anterior ao trânsito em julgado, com a consequente anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente, inclusive a venda do imóvel (…)» - cfr. fls. 103 a 117 do PEF apenso;
23) Em 04-10-2016, o Chefe do SF da Feira-1 proferiu Despacho com o seguinte teor:
«Tendo o executado apresentado Reclamação relativa ao despacho para a entrega efectiva do bem e considerado haver reacção jurídica do detentor do bem, a decisão a proferir sobre o respectivo requerimento será da competência do tribunal tribuário, por ser um ato de natureza jurisdicional.
Assim deverá ficar suspensa a entrega efectiva do bem, sendo de aguardar decisão do tribunal tributário.
(…)» - cfr. fls. 152 do PEF apenso;
24) Por sentença proferida em 29-03-2017, a Reclamação com o n.º 1070/16.5BEAVR foi julgada procedente, «determinando-se a anulação ao ato reclamado com todas as suas demais consequências.» - cfr. fls. 182 a 197 do PEF apenso;
25) Por acórdão de 01-06-2017, o Tribunal Central Administrativo do Norte confirmou o sentido da decisão proferida no processo n.º 1070/16.5BEAVR – cfr. fls. 198 a 209 do PEF apenso;
26) O Executado faleceu em 19-08-2007 – cfr. fls. 224 do PEF apenso;
27) Na sequência das decisões judiciais referidas nos pontos 24) e 25), o Chefe do Serviço de Finanças da Feira-1 proferiu, em 25-08-2017, novo despacho relativamente ao requerimento referido no ponto 12), no qual, considerando não se verificarem nenhuma das nulidades invocadas no requerimento, indeferiu o pedido – cfr. fls. 215 a 217 do PEF apenso;
28) Para notificação do despacho referido no ponto anterior foi remetido o ofício n.º 5143, de 28-08-2017, dirigido à mandatário do executado, por correio registado com aviso de recepção, que foi assinado em 04-09-2017 – cfr. fls. 219, 220 e 233 do PEF apenso;
29) Em 12-09-2017 foi apresentada Reclamação Judicial, que correu termos neste Tribunal sob o n.º 883/17.5BEAVR, contra o acto de indeferimento aludido em 27) – cfr. resulta da informação de fls. 234 a 237 do PEF apenso;
30) Por sentença proferida em 10-11-2017, no processo n.º 883/17.5BEAVR, decidiu-se «julgar improcedente a presente reclamação e, em consequência, manter-se o despacho reclamado.» - cfr. fls. 434 a 457 do PEF apenso;
31) Por Acórdão de 08-02-2018, o Tribunal Central Administrativo do Norte negou provimento ao recurso interposto da decisão referida no ponto anterior – cfr. fls. 459 a 509 do PEF apenso;
32) Mediante correio registado em 11-12-2018 H., na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai H., remeteu requerimento dirigido ao Chefe do SF da Feira-1, peticionando:
«(…) que sejam conhecidas e declaradas (…) as NULIDADES INSANÁVEIS que existem no processo de execução fiscal N.º 0094200301012932, a saber:
a) A falta de citação, quando possa prejudicar a defesa do interessado;
b) A falta de requisitos essenciais do título executivo, quando não puder ser suprida por prova documental.
com a consequente anulação de todos os termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente, inclusive a venda do imóvel, dando cumprimento ao disposto no artigo 100º da Lei Geral Tributária e artigo 165º, n.º 1, alínea a) e b), n.º 2 e n.º 4 do C.P.P.T.)» - cfr. fls. 331 a 337 do PEF apenso;
33) Com data de 07-01-2019, o Chefe do SF da Feira-1, M., proferiu despacho de indeferimento do requerimento mencionado na alínea antecedente – cfr. fls. 348 a 351 do PEF apenso;
34) No despacho mencionado o SF da Feira-1 pronunciou-se, ainda, sobre o pedido de entrega do imóvel formulado pelo adjudicatário nos seguintes termos:
«Quanto ao pedido de entrega do imóvel formulado pelo adjudicatário, uma vez que transitou em julgado a decisão de improcedência da reclamação judicial relativa à nulidade invocada da falta de citação pessoal do executado, nada obsta a que se iniciem os procedimentos para a sua entrega.
Assim, requerida a entrega pelo adjudicatário do imóvel, na sequência de decisão de indeferimento do pedido de anulação de venda e ao abrigo e nos termos do n.º 2 e 3 do artigo 256.º do CPPT, proceda-se à sua efetivação, nos termos conjugados dos artigos 828.º, 861.º e 757.º, todos do CPC.
Para o efeito, notifique-se o cabeça de casal H., da herança aberta por óbito de seu pai e executado H. para no prazo de 5 (cinco) dias apresentar os bens, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência pela não entrega.
Em caso de incumprimento, proceda-se:
- À requisição de força policial, territorialmente competente, para a eventual necessidade de arrombamento de portas, conforme ordenado no despacho judicial junto aos autos, proferido no âmbito do Processo N.º 370/09.5BEAVR, requerido pelo adjudicatário no TAF Aveiro:
- À notificação da adquirente/novo proprietário para estar presente no acto e lhe ser entregue o imóvel, bem como se fazer acompanhar de um serralheiro.
Designo o próximo dia 22 de janeiro de 2019, pelas 10.30 horas, com data para a realização da diligência de entrega efectiva do bem.
Comunique-se ao Ministério Público o incumprimento do cabeça de casal da herança aberta por óbito do executado pela entrega do bem, sendo o caso, conforme o disposto no art.º 1187º do CC e art.º 771º do CPC.
(…)» - cfr. fls. 348 a 351 do PEF apenso;
35) Para notificação do despacho referido no ponto anterior foi remetido o ofício n.º 182, de 09-01-2019, dirigido à mandatária, mediante aviso de recepção que foi assinado em 10-01-2019 – cfr. fls. 537 e 538 do PEF apenso;
36) Em 18-01-2019 H. apresentou a petição inicial da Reclamação Judicial que veio a correr termos neste Tribunal sob o n.º 143/19.7BEAVR – cfr. fls. 358 e 362 a 394 do PEF apenso;
37) A reclamação judicial aludida no ponto anterior veio a ser julgada improcedente por sentença proferida em 15-11-2019 – cfr. fls. 707 a 760 do PEF apenso;
38) Em 07-02-2020 o Tribunal Central Administrativo do Norte veio a proferir Acórdão a conceder provimento ao recurso interposto por H. e, consequentemente, a «revogar a sentença recorrida e anular o acto reclamado proferido em 07/01/2019.» - cfr. fls. 19 a 65 vº do suporte físico dos autos;
39) No Acórdão aludido no ponto anterior consta, além do mais, o seguinte:
«(…)
Independentemente do restante circunstancialismo, o certo é que se logrou provar que a sociedade “C. Lda.” mantém actualmente a exploração do estabelecimento comercial denominado “Restaurante C.”, instalado no rés-do-chão e cave do imóvel identificado no ponto 3, pagando à herança aberta por óbito de H. a renda mensal € 300,00 – cfr. ponto 59 da decisão da matéria de facto. E que M. reside no primeiro andar do imóvel identificado no mesmo ponto 3 – cfr. ponto 63 do probatório.
Ora, a actual pretensão do adquirente é a efectiva desocupação da totalidade do imóvel, a entrega do imóvel devoluto, uma vez que a investidura na posse a que alude o n.º 3 do artigo 861.º, na sequência de um pedido formulado pelo adquirente, é “a investidura real e efectiva”, isto é, “a entrega material do imóvel acompanhada dos respectivos documentos e chaves” (cfr., neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 19/04/2007, relatado pelo Desembargador Silva Santos e disponível nas Bases de Dados do IGFEJ).
Estando em causa uma entrega material do bem imóvel, a decisão do órgão de execução fiscal reclamada deveria ter sido dirigida aos seus detentores físicos (passe o pleonasmo), ou seja os alegados arrendatários ou quaisquer detentores, para que respeitem e reconheçam o direito do exequente/adjudicatário (artigo 861.º, n.º 3 do CPC).
Neste âmbito, os detentores notificados podem, eventualmente, opor-se à entrega física do bem, e sendo arrendatários, não podemos esquecer que o direito do locatário tem natureza obrigacional. E que este direito obrigacional de gozo está subtraído à regra da transmissão livre dos ónus ou encargos referidos no artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil, desde que constituído em momento anterior ao registo da penhora que conduziu à venda do bem – cfr. Acórdão do STA, de 18/12/2013, proferido no âmbito do processo n.º 01756/13 e a situação especial julgada no Acórdão do TCA Sul, de 15/09/2016, proferido no âmbito do processo n.º 09766/16.
Chamamos à colação esta questão para evidenciar a importância de a decisão de entrega do bem ser dirigida aos detentores do mesmo.
Na verdade, o despacho reclamado não contempla os detentores do imóvel (com cave, R/ch e 1.º andar), conforme se provou nos pontos 59 e 63 da decisão da matéria de facto. Entendemos ter consequências especialmente gravosas a entrega do bem ser pedida ao cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do executado, sob pena de crime de desobediência, quando o imóvel está a ser utilizado por um estabelecimento de restauração na cave e no seu R/ch e por M. no 1.º andar.
Como vimos, a entrega do bem é pedida contra o detentor no próprio processo executivo, não se mostrando respeitado, in casu, o artigo 256.º, n.º 2 do CPPT.
Nestes termos, as normas invocadas e que fundamentam o despacho proferido em 07/01/2019, ora reclamado, – os artigos 256.º, n.º 2 do CPPT e os artigos 828.º e 861.º do CPC – não se mostram respeitadas, dado que no mesmo não se direcciona a entrega do bem contra os detentores C. Lda.” e M., em violação de lei.
Pelo exposto, o despacho reclamado que visa a entrega do bem não pode manter-se “qua tale” na ordem jurídica, devendo ser anulado.
(…)» - cfr. fls. 19 a 65 vº do suporte físico dos autos [mais concretamente, fls. 63 vº e 64];
40) Em 10-07-2020 foi proferida pelo SF da Feira-1 a Informação constante de fls. 846 a 849, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, da qual se destaca o seguinte:
«(…)
- Por despacho 07.01.2019 do Chefe de Finanças, foi determinada a entrega efetiva do imóvel.
- Deste despacho em 18.01.2019, o executado, representado por H., na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai H. apresentou reclamação nos termos do artigo 276.º do CPPT. Esta reclamação é a registada no tribunal com o n.º143/19.7BEAVR, e apesar ter sido considerada improcedente, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, em recurso, é proferida sentença de anulação da sentença recorrida e do ato reclamado.
- O acórdão – Decisão do TCAN, considera procedente a pretensão do executado uma vez que o despacho proferido pelo Chefe de Finanças, no sentido de a desocupação do imóvel ter sido dirigido à pessoa errada – o executado.
- Embora o acórdão não analise as questões relativas à constituição, manutenção e extinção do contrato de arrendamento que sendo posterior à penhora, caducou com a venda, nos termos do artigo 824º, n.º 2 do Código Civil, do mesmo resulta que independentemente do contrato de arrendamento ter caducado com a venda, o prédio está a ser ocupado por pessoa(s) diferente(s) do executado.
- Assim, de conformidade com a decisão, a notificação com vista à desocupação do imóvel, deverá ser ao(s) ocupante(s) de facto do mesmo.
- Conforme entendimento da DF, o Serviço de Finanças deve notificar as arrendatárias no sentido de desocupar o imóvel, na qualidade de detentoras de facto. A decisão referente à anulação da venda proferida no processo n.º 370/09.5BEAVR é perfeitamente válida, estando o Serviço legitimado para requerer a desocupação do bem.»;
41) Com base na Informação que antecede, J. proferiu, em 13-07-2020, Despacho com o seguinte conteúdo:
«Conforme informação que antecede, face à decisão proferida no âmbito da Reclamação dos Atos do Órgão de Execução Fiscal, deduzida por H., na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai, H., deverá considerar-se anulado o ato reclamado, ato esse relativo à decisão proferida pelo despacho de 07-01-2019.
Quanto ao pedido de entrega do imóvel formulado pelo adjudicatário, uma vez que transitou em julgado a decisão de improcedência da reclamação judicial relativa à nulidade invocada da falta de citação pessoal do executado, nada obsta a que se iniciem os procedimentos para a sua entrega.
Assim, requerida a entrega pelo adjudicatário do imóvel, na sequência de decisão de indeferimento do pedido de anulação de venda e ao abrigo e nos termos do n.º 2 e 3 do artigo 256.º do CPPT, proceda-se à sua efectivação, nos termos conjugados dos artigos 828.º, 861.º e 757.º, todos do CPC.
Para o efeito, notifique-se a sociedade C., Lda, NIF (…), na qualidade de ocupante do rés-do-chão e cave do artigo urbano n.º 656º da freguesia de (...) e M., NIF (…), na qualidade de ocupante do 1.º andar do mesmo artigo, para no prazo de 15 (quinze) dias, prazo fixado ao abrigo do previsto no 23.º, n.º 2 do CPPT e no artigo 57.º, n.º 2 e n.º 3 da LGT, nos termos do n.º 3 do artigo 861.º do Código de Processo Civil, para que respeitem e reconheçam o direito do exequente, e desocupem o imóvel de modo que este imóvel, penhorado e vendido nos autos supra identificados, possa ser entregue ao adquirente N..
No prazo fixado deverão depositar as chaves no serviço de finanças ou entregá-las ao referido adquirente/proprietário.
Em caso de incumprimento, este Serviço de Finanças levará a cabo os procedimentos legalmente previstos que permitam a entrega efetiva do bem ao adquirente.
Notifique-se o adquirente/proprietário do teor deste Despacho.
(…)» - cfr. fls. 849 a 850 do PEF apenso;
42) Pelo ofício n.º 2200, datado de 14-07-2020 foi a ora reclamante, na pessoa de H., notificada, em 15-07-2020, do despacho que antecede – cfr. fls. 152 e 152 vº do suporte físico dos autos;
43) Em 21-07-2020 deu entrada no SF da Feira-1 a presente reclamação judicial – cfr. resulta de fls. 78 do suporte físico dos autos;
Ø MAIS SE PROVOU QUE:
44) H. e D. subscreveram um documento, denominado “Contrato de Arrendamento”, no qual declararam dar de arrendamento à sociedade “P., LDA.”, representada por H. e S., o prédio urbano identificado no ponto 2), com início em 01-01-2003, pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos, e pela renda anual de € 1.800,00 – cfr. fls. 57 e 57 vº do suporte físico dos autos;
45) O documento referido no ponto anterior não está datado, mas contém um averbamento do qual consta que o original foi recebido no SF em 07-03-2003 – cfr. fls. 57 do suporte físico dos autos;
46) Em 09-10-2008 foi outorgado um documento denominado “Contrato de Trespasse” em que é primeira outorgante a sociedade “P., Lda.”, representada pelos gerentes H. e S., como trespassante e segunda outorgante a sociedade “C., Lda.”, representada por H., como trespassária, no qual vem declarado o seguinte:
«Declara a primeira outorgante que é dona e legítima possuidora de um Estabelecimento Comercial de Restauração, denominado “Restaurante C.” instalado e a funcionar no Rés-do-chão e cave do prédio urbano sito no Lugar do Barracão, freguesia de (...), concelho de (...) (…), inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (...) sob o artigo n.º 656, (…).
Pelo presente contrato, a primeira trespassa à segunda contraente, e esta toma de trespasse àquela, o referido estabelecimento comercial, nos termos das cláusulas seguintes:

O Estabelecimento é trespassado livre de quaisquer ónus ou encargos, designadamente de passivo, e com todos os móveis, pelo preço de 3.000,00 € (Três mil euros), que é pago com a assinatura do presente contrato.
(…)

O prédio onde funciona o estabelecimento está arrendado ao Senhor H., (…), sendo a renda mensal de cento e cinquenta euros, tendo sido notificado o senhorio para exercer o direito legal de preferência, tendo comunicado não estar interessado.
(…)» - cfr. fls. 58 e 58 vº do suporte físico dos autos;
47) Desde a data da celebração do contrato de trespasse que a sociedade “C., Lda.” explora o estabelecimento comercial denominado “Restaurante C.”, instalado no rés-do-chão e cave do imóvel identificado no ponto 2), pagando à herança aberta por óbito de H. a renda mensal de € 300,00 – cfr. resulta de fls. 136vº e 137 do suporte físico dos autos;
48) Com data de 08-08-2019 foi subscrito por H., na qualidade de cabeça de casal da herança de H., um documento denominado “RECIBO DE RENDA N.º 103” e do qual consta o seguinte:
«Recebi de C., Lda (…)
a quantia de Trezentos euros (…)
pelo arrendamento de r/c e cave, art. 656 prédio sito na Rua (…) relativo ao mês de Agosto» - cfr. fls. 61 do suporte físico dos autos;
49) No ano de 2019, H. declarou, para efeitos de IRS, ter recebido rendas anuais nos montantes de € 3.600,00, referente ao rés-do-chão do imóvel referido em 2) – cfr. fls. 59, 59 vº e 60 do suporte físico dos autos;
50) P. e E. são avós maternos de M., chefe do SF da Feira-1 e bisavós paternos de N. – cfr. resulta de fls. 416 a 418 do PEF apenso;
51) N. foi baptizado catolicamente em 14-05-1978, do qual foram testemunhas, designados padrinho e madrinha, respectivamente, M. e L. – cfr. fls. 180 a 181 do suporte físico dos autos.
***
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos.
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O Tribunal alicerçou a sua convicção com base no exame crítico dos documentos que se encontram juntos aos presentes autos e ao PEF apenso.
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II.2. Fundamentação de Direito

Importa apreciar se a sentença recorrida padece do erro de julgamento de direito que lhe é imputado pela Recorrente, concretamente, se fez uma incorreta interpretação do disposto no art. 819.º do CC, ao considerar que o trespasse comercial posterior à penhora, compreendendo na universalidade transmitida arrendamento celebrado antes da mesma, não é abrangido pela inoponibilidade prevista naquela norma.

Desde já se adianta que é manifesto que a Recorrente não tem razão, nada havendo a censurar à sentença proferida pelo Tribunal a quo.

Prevê-se no art. 819.º do CC, norma pretensamente violada, que “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.

Situando a questão, importará começar por recordar que vigora no nosso sistema jurídico o princípio emptio non tollit locatio (a venda não põe fim à locação) previsto no art. 1057.º do Código Civil (CC), nos termos do qual o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.

Donde, no caso de o contrato de arrendamento ter sido celebrado antes da penhora, sobrevive à venda executiva, sucedendo o comprador na posição do locador original.

Com efeito, “nenhuma dúvida deve (…) subsistir quanto ao significado do art. 1057.º do Código Civil: a fórmula o «adquirente … sucede nos direitos e obrigações do locador», implica que a situação locatícia complexa se mantenha inalterada, não obstante a modificação na identidade dum dos seus sujeitos. No tocante ao locatário, infere-se, daqui, que ele, apesar da transmissão, mantém as mesmas possibilidades de actuação em relação à coisa, e as mesmas faculdades e adstrições em relação ao novo locador.

É esta, aliás, a interpretação que, com unanimidade, tem sido dada ao art. 1057.º” (cf. CORDEIRO, António Menezes - Da natureza do direito do locatário. Lisboa: [s.n.], 1980. Separata da Revista da Ordem dos Advogados, pág. 353).

Por maioria de razão, “se o arrendamento subsiste após a venda executiva – subsistência que se verifica ope legis –, o direito do arrendatário (de aquisição ou direito de preferência e o direito pessoal de gozo) não se extingue por efeito daquela venda. O arrendamento só caduca quando posterior ao registo da penhora do imóvel arrendado (cf. art. 824.º, n.º 2, parte final, do CCiv, aplicado por analogia). Estando a posição do arrendatário ope legis acautelada, a entrega ordenada no processo de execução não pode ser entendida como se de um despejo se tratasse, pois o que essa diligência significa é a tradição simbólica do imóvel arrendado [cf. art. 1263.º, al. b), do CCiv], e nada mais do que isso” (cf. Delgado de Carvalho, J.H. (2016-04-18). O arrendatário e a entrega judicial do imóvel arrendado após a venda forçada [Web log post]. Retirado de https://blogippc.blogspot.com/2016/04/o-arrendatario-e-entrega-judicial-do.html).

Pretende a Entidade Recorrente que o facto de o trespasse do estabelecimento comercial ter na sua origem um “contrato firmado em 09/10/2008”, ou seja, em data posterior à penhora, cujo registo data de 2007-11-23, o torna “inoponível à execução a mudança de arrendatário após a celebração do contrato de trespasse do estabelecimento comercial”, por considerar que o trespasse constitui um “acto de disposição do bem concretamente penhorado” para efeitos do disposto no art. 819.º do CC.

No entanto, e com o devido respeito, o seu posicionamento reflete uma interpretação errada da natureza jurídica do contrato de trespasse, que ao contrário do que pretende, mantém intocado o arrendamento que integra a universalidade transferida.

Com efeito, e como resulta com meridiana clareza do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 1112.º do CC, o trespasse de estabelecimento comercial constitui “a transmissão por acto entre vivos da posição do arrendatário”, e não, como parece pretender a Recorrente, um novo arrendamento.

Dito por outras palavras, mantém-se o arrendamento substancialmente intocado, ocorrendo tão só uma transmissão da posição contratual de arrendatário, ou uma “novação subjetiva” (COSTA, Ricardo - O novo regime do arrendamento urbano e os negócios sobre a empresa In: Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais: Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier. Vol. I. Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 486), aliás, imposta ao senhorio, como claramente decorre do disposto no n.º 1 do art. 1112.º do CC.

Com efeito, “no trespasse, para além da transferência do estabelecimento, há também a transmissão da posição jurídica do arrendatário. O contrato de arrendamento é o mesmo só que o trespassante deixa de ser inquilino e o trespassário vai ocupar a posição daquele(cf. MARTINEZ, Pedro Romano – Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos. Compra e Venda. Locação. Empreitada. 2.ª edição. Coimbra: Almedina, 2000, pág. 296; destacado nosso).

Não ocorre assim qualquer “ato de disposição” do bem penhorado para efeitos do disposto no art. 819.º do CC, que tenha por consequência a inoponibilidade da mudança do arrendatário que justifique o pretendido “despejo” do mesmo.

Tanto é quanto basta para que se conclua que nada há a censurar à sentença recorrida, na qual é feita uma correta interpretação do direito aplicável ao concluir pela ilegalidade do despacho reclamado e sua consequente anulação.
*
Quanto à responsabilidade por custas, em face da decisão de improcedência, a Entidade Recorrente decai no presente recurso, pelo que é sua a responsabilidade pelas custas, nos termos do disposto no art. 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT.
***

Conclusão:

Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:

Vigora no nosso sistema jurídico o princípio emptio non tollit locatio previsto no art. 1057.º do Código Civil (CC), nos termos do qual o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.
Donde, no caso de o contrato de arrendamento ter sido celebrado antes da penhora, sobrevive à venda executiva, sucedendo o comprador na posição do locador original.

Comportando o trespasse comercial uma mera transmissão subjetiva da posição contratual de arrendatário, conservando o arrendamento substancialmente intocado, quando seja posterior à penhora, e compreenda na universalidade transmitida um arrendamento celebrado antes da mesma, não é abrangido pela inoponibilidade prevista no art. 819.º do CC.

Donde não padece de erro de julgamento de direito, antes tendo feito uma correta interpretação da norma contida no art. 819.º do CC, a sentença que anula o ato (ilegal) proferido no âmbito de processo de execução fiscal que determinou a entrega efetiva aos adquirentes por venda judicial do prédio, com fundamento na inoponibilidade à venda de um trespasse a ela posterior por compreender na universalidade transmitida um arrendamento celebrado antes da mesma.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao presente recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.
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Custas pela Entidade Recorrente.
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Porto, 25 de fevereiro de 2021
Margarida Reis (relatora) – Maria do Rosário Pais (em substituição) – Paulo Moura.