Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00879/19.2BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/30/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; ORDEM DOS ADVOGADOS; RETENÇÃO DO CRÉDITO DE HONORÁRIOS
Sumário:1 – Há desde logo uma questão incontornável, que assenta no facto de o artigo 96.º, n.º 3, do EOA, estatuir expressa e inequivocamente que “O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis”.

2 - Não está aqui em causa a possibilidade de um Advogado, se for caso disso, exercer o direito de retenção para garantia do pagamento dos respetivos honorários, mas antes o modo como tal foi exercido.
O ilícito disciplinar imputado ao Advogado aqui em causa, não resulta da circunstância de ter espoletado o seu direito retenção, mas antes o momento e a forma como exerceu tal direito.
Com efeito, quando o Advogado em 11/09/2013 remeteu às suas constituintes “Nota de despesas e honorários” dever-se-ia ter limitado a ficar por aí, não tendo sido legítimo que logo tivesse feito o “encontro de contas” retendo o valor dos honorários no quantitativo que entretanto havia percebido em resultado de expropriação, valor que deveria ser entregue às suas clientes.

3 - Na realidade, resulta do referido artigo 96.º, n.º 3, do EOA, que o advogado terá originariamente de apresentar aos seus clientes a sua nota de honorários e despesas, e só em momento ulterior, e se for caso disso, é que poderá exercer a retenção de quaisquer valores que tenha na sua posse.
Resulta da matéria dada como provada que o Advogado exerceu desde logo a retenção do seu crédito, à revelia do estatuído no referido Artº 96.º, n.º 3, do EOA e sem que estivesse legitimado para tal atuação, o que constitui um ilícito disciplinar..*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:J.
Recorrido 1:Ordem dos Advogados
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório
J., com os demais sinais nos autos, no âmbito de Ação Administrativa apresentada contra a Ordem dos Advogados, tendente, designadamente, à impugnação do acórdão de 21/02/2019 do Conselho Superior da OA, que negou parcialmente provimento ao recurso interposto pelo ora A. contra o acórdão do Conselho de Deontologia do Porto da OA, que decidiu aplicar-lhe pena de multa, no montante de €500, inconformado com a decisão proferida no TAF do Porto, em 10 de janeiro de 2020, através da qual foi decidido julgar a Ação improcedente, “mantendo na ordem jurídica o ato impugnado” veio em 24 de fevereiro de 2020 recorrer da decisão proferida, apresentando as seguintes conclusões:
“1ª – O presente recurso de apelação funda-se, desde logo, na impugnação do valor da causa, nos precisos termos do estatuído no artigo 629º, nº 2, al. b) do CPC, aplicável ex vi artigo 142º, nº 3 do CPTA; Com efeito,
2ª – O Apelante indicou à presente causa o valor de €5.001 na conclusão da petição, valor que a Apelada não impugnou na contestação;
3ª – A douta decisão vertida na parte inicial do Despacho Saneador – Sentença recorrido, que fixou o valor da causa em €500, deve ser considerada nula por falta de fundamentação, uma vez que se limita a remeter, aliás incorretamente, para legal normativo, para além de violação do princípio do contraditório; Sem Prescindir,
4ª – Sempre a decisão impugnada que fixou o valor da causa teria de ser revogada, por desconsiderar o efetivo dano causado ao Apelante pela sanção disciplinar em recurso, em clara violação do corpo do artigo 33º e artigo 32º, nº 5, ambos do CPTA;
5ª – A sanção disciplinar impugnada deve ser efetivamente ponderada à luz do Estatuto da Ordem dos Advogados na redação da Lei nº 15/2005, como o Tribunal recorrido bem decidiu, embora por fundamentação diversa, que aquele parece não haver vislumbrado, qual seja a disposição transitória do artigo 3º, nº 1, da Lei nº 145/2015, que aprovou o novo Estatuto;
6ª – A douta sentença impugnada contraria a incorreta fundamentação jurídica da Apelada para a sanção disciplinar aplicada ao Apelante, na precisa medida em que reconhece, de forma expressa, que a este assiste, à face do art. 96º do EOA, o direito de retenção sobre valores em dinheiro pertencentes aos clientes, acrescentando ser também “de admitir que essa retenção possa incidir sobre a totalidade dos valores”; No entanto,
7ª – Logo de seguida, o Tribunal recorrido considera que o Apelante exerceu o direito de retenção antes da remessa da nota de despesas e honorários, assim violando o dispositivo do artigo 96º do Estatuto da Ordem dos Advogados; Em boa verdade,
8ª – O referido entendimento configura um manifesto erro de julgamento, uma vez que do processo disciplinar junto aos autos pela própria Apelada resulta, de forma cristalina, que o Apelante remeteu às suas Constituintes nota de despesas e honorários previamente ao exercício do direito de retenção, no estrito cumprimento do citado art. 96º;
Em boa verdade,
9ª – A matéria de facto documentalmente demonstrada nos autos é claramente comprovativa do exercício do direito de retenção por parte do Apelante apenas na sequência da prévia apresentação da nota de despesas e honorários, recusa de pagamento e até remessa de explicação discriminada da referida nota; Deste modo,
10ª – Assim não entendendo, o Tribunal incorreu em flagrante erro de julgamento da matéria de facto, que bloqueou uma adequada aplicação ao litígio do normativo do artigo 96º do Estatuto da Ordem dos Advogados, na redação vigente à data dos factos,
Termos em que, e nos mais de Direito, revogando a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue procedente a presente ação, anulando a sanção disciplinar aplicada ao Apelante, será feita a habitual Justiça!”

A Recorrida/OA veio a apresentar as suas Contra-alegações de recurso em 26 de junho de 2020, nas quais concluiu:

“I – Vem o Autor, ora Recorrente, interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em 10 de Janeiro de 2020, através da qual se considerou a ação improcedente.
II - Ao contrário do que sustenta o Autor, ora Recorrente, a douta sentença recorrida, ao pronunciar-se sobre a independência disciplinar ínsita no disposto no artigo 111º do EOA, fê-lo, justamente, dirimindo a questão controvertida, tal como ela foi colocada pelo Recorrente na Petição Inicial.
III – A ora Recorrente reitera, pois, a propósito de tal matéria, o entendimento versado na Contestação que apresentou, motivo pelo qual adere, no que tange à matéria da autonomia de responsabilidade disciplinar, às conclusões vertidas no douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo.
IV – Sem embargo da argumentação aduzida na sentença ora posta em crise ao concluir pela violação do disposto no artigo 96º, nº3 do EOA, reitera a Recorrida, desde já, os fundamentos em que se estribou a decisão impugnada, devendo a mesma manter-se na ordem jurídica.
V – Não padecendo, pois, de invalidade a decisão da Recorrida, através da qual o Recorrente foi condenado, deve o presente recurso jurisdicional ser considerado improcedente com as devidas consequências legais, fazendo-se JUSTIÇA!
Pelo exposto, deve o presente recurso jurisdicional ser considerado improcedente, por não provado, com as devidas consequências legais.”

Em 1 de julho de 2020 foi proferido Despacho de Admissão do Recurso, e sustentação da decisão relativamente ao Valor da Ação, nos seguintes termos:

“1. O A., em sede de recurso, mostra-se inconformado com a fixação do valor desta causa em €500,00 (quinhentos euros), mais dizendo que o Tribunal, entendendo modificar o valor da causa, devia conceder, previamente, o contraditório às partes sobre tal matéria.
É por esta última razão que nos pronunciamos neste despacho, não vá o A. considerar que pode estar em causa a omissão de uma formalidade e, daí, a arguição de uma pretensa nulidade.
Acontece que o Tribunal indicou o artigo 31.º, n.º 1, do CPTA, que manda atribuir a toda a causa um valor expresso em moeda legal, poder que é exercido pelo Juiz do processo, ao abrigo da Lei, sem que para tal, ainda que as partes tenham atribuído valor diverso, seja obrigado a conformar-se com a errónea fixação desse valor, conforme ocorre no caso vertente.
E do artigo 31.º do CPTA não decorre a tese propugnada pelo A., pois desse comando legal nenhuma obrigação de contraditório prévio se impõe ao Juiz no seu poder de fixação do valor do processo, tanto mais que do artigo 306.º do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 31.º, n.º 4, do CPTA, apenas dimana que o Juiz deve fixar o valor da causa em sede do despacho-saneador ou da sentença, sem que aí se vislumbre qualquer obrigação de contraditório às partes.
Aliás, tal contraditório seria desnecessário, pois as partes, em cada um dos seus articulados principais, já tiveram a oportunidade para indicar o valor que entendem competir à causa, cabendo ao Juiz nos momentos processuais adequados (despacho-saneador ou sentença) fixar o correto valor da demanda, sanando divergências e decidindo aquilo que for mais conforme à Lei.
Por outro lado, no que concerne ao valor da presente lide, o Tribunal reitera o preceito legal especificamente definidor do critério aplicável, ou seja, estando em causa a impugnação pelo A. de uma sanção disciplinar de conteúdo pecuniário, uma pena de multa no montante de €500, é precisamente esse o valor que o Juiz deve atribuir à causa, nos termos do citado artigo 33.º, alínea b), do CPTA, pois é consabido que na aplicação da Lei se deve utilizar, em primeiro lugar, o critério especial previsto para o caso concreto e, só na falta deste, o critério geral.
A ser assim, não se antevê qualquer nulidade que contamine o labor de fixação do valor da causa, posto em causa pelo A., indeferindo-se o que nesse sentido vem arguido.
Mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos e fundamentos.”

O Ministério Público junto deste tribunal, devidamente notificado, veio a emitir Parecer em 7 de outubro de 2020, concluindo que”(...) face à letra da lei e à doutrina interpretativa dos Conselhos Superiores da OA, invocada no processo disciplinar e na resposta ao recurso, cremos ser de concluir que a medida da punição disciplinar aplicada ao recorrente se mostra adequada e proporcional, tendo em consideração a gravidade dos factos provados, pelo que nada haverá a alterar à sentença em apreciação, terminando, afirmando que “Somos de parecer que o presente recurso não merece provimento”.

O Autor, aqui Recorrente veio, em 20 de outubro de 2020, a pronunciar-se relativamente ao Parecer do Ministério Público, retomando a argumentação que foi esgrimindo anteriormente, concluindo que “(...) como nas Alegações de Recurso, que o Ministério Público não logrou contrariar”.

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, designadamente o valor da Ação e o facto de, alegadamente, ter sido ignorada a disposição transitória constante do artigo 3º, nº 1, da Lei nº 145/2015, que aprovou o novo Estatuto, o que determinou a verificação “erro de julgamento”, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC.

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte matéria de facto relevante para a apreciação da questão controvertida, cujo teor infra se reproduz:
1.º - Em 11/09/2013, o A. elaborou a seguinte “Nota de despesas e honorários” (cf. fls. 8, verso, e 9 do processo físico);
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
2.º - O A., em 13/09/2013, 23/09/2013 e 20/01/2014, transferiu para as suas constituintes, respetivamente, as seguintes quantias em dinheiro: €7.500,00; €2.000,00; e €1.500,00 (cf. fls. 24, verso, e 25 do processo físico);
3.º - O A., em 31/01/2014, endereçou às suas constituintes a seguinte “Conta de Honorários” (cf. fls. 9, verso, a 11 do processo físico);
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
4.º - Em 13/02/2014, o ora A. instaurou ação de honorários contra as suas constituintes, processo que seguiu em apenso à ação principal na Comarca do Porto, Matosinhos - Instância Local - Secção Cível - J1 - sob o n.º 5590/08.7TBMTS-A, no âmbito do qual foi proferida sentença em 26/06/2015, que decidiu o seguinte (cf. fls. 16 a 24 do processo físico):
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
5.º - Contra o ora A. foi instaurado o processo disciplinar sob o n.º 266/2014-P/D, que correu termos no Conselho de Deontologia do Porto da Ordem dos Advogados, no âmbito do qual, em 30/06/2015, foi elaborado o seguinte “Relatório Final” (por excertos):
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
…” – (cf. fls. 28 a 36 do processo físico);
6.º - O Conselho de Deontologia do Porto da OA deliberou, em 15/07/2015, o seguinte (cf. fls. 37 do processo físico):
7.º - O ora A., em 17/09/2015, interpôs recurso da decisão antecedente para o Conselho Superior da OA (cf. fls. 206 a 217 do PA);
8.º - Em 20/02/2019, foi elaborado no Conselho Superior da OA o seguinte “Parecer” (por excertos):
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
…” - (cf. fls. 45 a 50 do processo físico);
9.º - O Conselho Superior da AO deliberou, em 21/02/2019, “negar parcialmente ao recurso, mantendo a multa de €500,00…” – (cf. fls. 50, verso, do processo físico).”

IV - Do Direito
No que ao direito concerne e no que aqui releva, discorreu-se na Sentença de 1ª instância:

“Considerando a data do ilícito disciplinar imputado pela OA contra o ora A., que se reporta, precisamente, à conduta de elaboração da “Nota de despesas e honorários” com retenção do crédito de honorários sobre a importância paga pela entidade expropriante a favor das mandantes, datada de 11/09/2013 (cf. ponto 1.º do probatório), conclui-se que é de aplicar o Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) na versão que lhe foi conferida pela Lei n.º 15/2005, de 26/01.
É assim porque o artigo 110.º do EOA preceitua o seguinte: “Comete infração disciplinar o advogado ou advogado estagiário que, por ação ou omissão, violar dolosa ou culposamente algum dos deveres consagrados no presente Estatuto, nos respetivos regulamentos e nas demais disposições legais aplicáveis”.
Deste modo, o apuramento da infração disciplinar deve ter em atenção o circunstancialismo fáctico e a lei vigente no momento da sua prática, ou seja, na indicada data de 11/09/2013. Importa também ter em conta o disposto no artigo 111.º, n.º 1, do EOA, que plasma a regra da independência da responsabilidade disciplinar, ditando o seguinte: “A responsabilidade disciplinar é independente da responsabilidade civil ou criminal”.
(...)
Desviando o julgamento da situação em apreço para aquilo que realmente importa, há que concentrar a nossa sindicância na norma estatutária concretamente violada pelo ora Autor.
Ao que interessa, o artigo 96.º, n.º 3, do EOA, estipula o seguinte: “O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis”.
Não se coloca em causa o direito de retenção do advogado sobre valores em dinheiro que pertençam ao seu mandante para garantia do pagamento dos respetivos honorários. De igual modo, também é de admitir que essa retenção possa incidir sobre a totalidade dos valores. Acontece que o ilícito disciplinar imputado ao ora A. não tem tanto a ver com a circunstância de ter despoletado o seu direito retenção, mas antes com o momento e a forma como exerceu tal direito.
Explicando melhor. A infração disciplinar foi cometida pelo A. a montante, isto é, logo em 11/09/2013, quando elaborou e remeteu às suas constituintes a “Nota de despesas e honorários” inclusa no ponto 1.º do probatório, na qual, o ora A. procedeu de imediato à retenção de €3.173,60, a título de honorários e despesas com o processo judicial que patrocinara, sobre o total de €23.218,59 que se encontravam depositados na sua conta bancária, quantia esta que havia sido paga pela entidade expropriante a favor das suas constituintes e que a estas pertencia.
Ora bem, a correta leitura e interpretação do preceituado no artigo 96.º, n.º 3, do EOA, determinava que o A., num primeiro momento, tivesse singelamente apresentado para pagamento a nota de honorários e despesas às suas constituintes, sem qualquer retenção.
Só depois de remetida a indicada nota e de, posteriormente, se tornar clara a recusa de pagamento por parte das suas constituintes, é que o A., numa segunda fase de atuação, poderia, então, acionar o seu direito de retenção sobre os valores em dinheiro à sua guarda.
Os factos mostram que o A. assim não agiu. Inversamente, de forma precipitada, o A. decidiu logo partir para a retenção do seu crédito, sem que o artigo 96.º, n.º 3, do EOA, na versão então aplicável, permitisse tal atuação. Mostra-se, com efeito, comprovada a prática do ilícito disciplinar pelo A., não se perscrutando qualquer erro sobre os pressupostos de facto e de direito da decisão impugnada que, assim tendo considerado tais premissas, nenhum vício se lhe pode assacar.
Por outro lado, não estão em crise a tutela jurisdicional efetiva nem o princípio da confiança, insertos nos artigos 2.º e 20.º da CRP, porquanto, nem o A. ficou desprovido de meios judiciais aptos à defesa do seu direito de crédito por honorários, cujo reconhecimento judicial se manteve incólume, apesar da prática do ato impugnado (que não afetou o crédito de honorários reconhecido judicialmente), nem o Impetrante foi impedido pelo ordenamento jurídico de impugnar a sanção disciplinar.
Por fim, no que concerne às circunstâncias atenuantes ou agravantes da infração disciplinar importa dizer o seguinte:
i) Não constitui uma especial circunstância atenuante da infração o facto do A. ter devolvido às suas constituintes o valor do depósito em dinheiro, posto que, essa maquia, por direito, nunca lhe pertenceu, mais não cumprindo do que a sua obrigação profissional;
ii) Nem essa devolução poderia ser enquadrada na circunstância atenuante preconizada no artigo 127.º, alínea d), do EOA - “A reparação espontânea, pelo advogado arguido, dos danos causados pela sua conduta” -, já que, conforme atrás se disse, o A. devolveu as quantias em dinheiro às suas constituintes sob o desígnio de uma mera obrigação profissional e não sob as vestes de uma reparação, em espécie ou em numerário, de danos patrimoniais ou não patrimoniais resultantes da sua conduta ilícita;
iii) No que toca à especial circunstância atenuante da infração disciplinar que tem a ver com a ausência de registo de anteriores sanções disciplinares, entende-se que o A. não tem razão no levantamento de tal questão, visto que, resulta claramente do Relatório Final antecedente à decisão impugnada a alusão de que “O Senhor Advogado não averba qualquer pena registada apesar de exercer a advocacia há mais de vinte e cinco anos”, o que traduz, indubitavelmente, a ponderação da citada circunstância atenuante na medida e graduação da pena, conforme aconselham os artigos 126.º, n.º 1, e 127.º, alínea a), do EOA.
Tudo visto, impõe-se concluir que o ato impugnado não se mostra inquinado dos vícios que lhe foram apontados pelo A., devendo, em consequência, ser mantida na ordem jurídica a sanção disciplinar “sub judice”, com a consequente improcedência total da presente demanda.”

Desde logo, refira-se que se não se vislumbram razões para divergir do entendimento adotado em 1ª instância.

Do Valor Da Ação
O Recorrente questiona desde logo o valor da ação fixado (500€), uma vez que “indicou à presente causa o valor de €5.001 na conclusão da petição, valor que a Apelada não impugnou na contestação”.

Em face do que precede, entende o Recorrente que, por esse motivo, a Sentença “que fixou o valor da causa em €500, deve ser considerada nula por falta de fundamentação, uma vez que se limita a remeter, aliás incorretamente, para legal normativo, para além de violação do princípio do contraditório”.

Refira-se desde logo que a referida questão não contende com a possibilidade de Recurso, uma vez que o mesmo sempre seria admissível, nos termos do Artº 142.º, n.º 3, alínea b), do CPTA, o qual estatui que o recurso será sempre admissível, independentemente do valor da Ação, desde que esteja em causa, como é o caso, matéria sancionatória.
De resto, e independentemente do referido, o Tribunal a quo indicou o artigo 31.º, n.º 1, do CPTA, que manda atribuir a toda a causa um valor expresso em moeda legal, poder que é exercido pelo Juiz do processo, ainda que as partes tenham atribuído valor diverso.

As partes já haviam indicado o valor da Ação ou se haviam conformado com aquele que havia sido indicado pela contraparte, em face do que, ao ter o tribunal fixado valor diverso, já havia tido em conta o entendimento das partes a esse respeito, em face do que se mostraria redundante facultar novo contraditório para o efeito, como decorre, aliás, do artigo 306.º do CPC.

Estando em causa na presente Ação singelamente o valor da pena de multa de 500€ aplicada ao aqui Recorrente, mostra-se adequado o valor da Ação fixado, o que, como se viu, não obstou à interposição do presente Recurso.


Do Objeto do Recurso
Enquadrando a questão em abstrato, diz-nos Eduardo Correia que “(...) na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem (...) em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo (...)” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Almedina, 1971, pág. 37.).

Por seu turno, José Beleza dos Santos sustenta que: “(…) As sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas crimes; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou. (...) aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua atuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho atual ou futuro (...). No que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respetivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum. (...)” (José Beleza dos Santos, Ensaio sobre a introdução ao direito criminal, Atlântida Editora SARL/1968, págs.113 e 116.).
Tal não significa que o princípio da legalidade e consequente função garantística de direitos subjetivos públicos esteja arredada do direito sancionatório disciplinar, nomeadamente ao amparo da conceção da relação jurídica de emprego público como relação especial de poder (Luís Vasconcelos Abreu, Para o estudo do procedimento disciplinar no direito administrativo português vigente: as relações com o processo penal, Almedina, Coimbra/1993, pág. 30. Francisco Liberal Fernandes, Autonomia coletiva dos trabalhadores da administração. Crise do modelo clássico de emprego público, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, 9, Universidade de Coimbra, Coimbra /1995, págs.146/147.).

Todo este labor legislativo traduz-se na adoção de conceitos gerais e indeterminados, juridicamente expressivos do conteúdo da relação laboral (vinculativos) o que outorga à autoridade administrativa no exercício da competência disciplinar, uma vez definidos quais os factos provados, uma margem de livre apreciação, subsunção e decisão, operações todas elas jurisdicionalmente sindicáveis no que concerne à definição do efeito jurídico no caso concreto (validade do ato), v.g. quanto à existência material dos pressupostos de facto (Mário Esteves de Oliveira, Lições de Direito Administrativo – FDL/1980, págs.621 e 787. Bernardo Diniz de Ayala, O défice de controlo judicial da margem de livre decisão administrativa, Lex, 1995, pág. 91).

A operação de subsunção da factualidade provada ao conceito identificado pelos substantivos abstratos que qualificam os deveres gerais, em ordem a aplicar ao caso concreto a consequência jurídica definida pela norma, passa, assim, por dois planos:
primeiro: pela interpretação e definição de conteúdo dos conceitos indeterminados que consubstanciam os deveres gerais;
segundo: pelo juízo de integração ou inclusão dos factos apurados na previsão do normativo aplicável e consequente concretização dos referidos conceitos normativos.

O direito sancionatório disciplinar pune os comportamentos que, consubstanciados no caso concreto pela factualidade apurada e definida no procedimento disciplinar, em juízo subsuntivo não integrem as qualidades abstratamente elencadas.

A questão aqui a analisar prende-se predominantemente com a necessidade de verificar se o procedimento disciplinar subjacente à aplicação da pena aqui objeto de impugnação, foi instruído de forma correta e no cumprimento dos normativos legal e constitucionalmente aplicáveis.

Se é certo que as garantias dos direitos dos arguidos não podem ser vistas, como muitas vezes sucede, como categorias abstratas, formais, tipo pronto-a-vestir, mas como instrumentos concretos cujo conteúdo há de ser conformado em função da natureza e características da matéria disciplinar em causa, o que se pretende é que o arguido em processo disciplinar compreenda o conteúdo da acusação que lhe é dirigida e que dela se possa defender.

Como é sabido, o chamado controlo jurisdicional da adequação da decisão aos factos, conforme entendimento corrente dos Tribunais Administrativos, determina que o Tribunal se não pode substituir à Administração na concretização da medida da sanção disciplinar, o que não impede que lhe seja possível sindicar a legalidade da decisão punitiva, na medida em que esta ofenda critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei ou que saia dos limites normativos correspondentes (cfr. Ac. STA, 1ª Secção, de 9.3.83; in Ac. Dout. Ano XXIX, nº 338, p. 191 e ss).

Vejamos então agora em concreto o suscitado.
Há desde logo uma questão incontornável, que aqui se reitera, que assenta no facto de o artigo 96.º, n.º 3, do EOA, estatuir expressa e inequivocamente que “O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis”.

Efetivamente, e como o tribunal de 1ª instância evidenciou não está em causa a possibilidade de um Advogado, se for caso disso, exercer o direito de retenção para garantia do pagamento dos respetivos honorários, mas antes o modo como tal foi exercido.

Na realidade, o ilícito disciplinar imputado ao aqui Recorrente, enquanto Advogado, não resulta da circunstância de ter espoletado o seu direito retenção, mas antes o momento e a forma como exerceu tal direito.

Com efeito, quando o Recorrente em 11/09/2013 remeteu às suas constituintes “Nota de despesas e honorários” dever-se-ia ter limitado a ficar por aí, não tendo sido legítimo que logo tivesse feito o “encontro de contas” retendo o valor dos honorários no quantitativo que entretanto havia percebido pela expropriação (23.218,59€), e que deveria ser entregue às suas clientes, referindo que a “importância a restituir às expropriadas” se situaria em 20.044,99€.

Na realidade, resulta do referido artigo 96.º, n.º 3, do EOA, que o advogado terá originariamente de apresentar aos seus clientes a sua nota de honorários e despesas, e só em momento ulterior, e se for caso disso, é que poderá exercer a retenção de quaisquer valores que tenha na sua posse.

Resulta da matéria dada como provada que o Advogado em causa própria, aqui Recorrente, exerceu desde logo a retenção do seu crédito, à revelia do estatuído no referido Artº 96.º, n.º 3, do EOA e sem que estivesse legitimado para tal atuação.

Em face de tudo quanto precedentemente se expendeu, sem necessidade de acrescida argumentação, não se vislumbra assim que a decisão recorrida mereça censura.


V - DECISÃO
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, negar provimento ao Recurso, confirmando-se a Sentença Recorrida.
*

Custas pelo Recorrente
*

Porto, 30 de outubro de 2020


Frederico de Frias Macedo Branco
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa