Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00274/19.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/15/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:COMPETÊNCIA MATERIAL; UNIVERSIDADE; OBJECTO DA ACÇÃO;
RELAÇÃO DE DIREITO PÚBLICA REGULADA PELO DIREITO ADMINISTRATIVO;
PROCEDIMENTO DE CONTRATAÇÃO SUJEITO A NORMAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO; COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA» contra a UNIVERSIDADE ..., ambas melhor identificadas nos autos, pretendendo impugnar ato do Sr. Reitor da UNIVERSIDADE ... de 24/10/2018, comunicado à Autora através de notificação postal de 09/11/2018, e no qual homologou o ato de seriação dos candidatos tomada pela Comissão de Seleção do procedimento de recrutamento de um Professor Auxiliar em regime de contrato de trabalho por tempo indeterminado, ao abrigo do Código do Trabalho, para a área disciplinar de Ciências Farmacêuticas, para o Laboratório de Farmacognosia do Departamento de Ciências Químicas da Faculdade de Farmácia da UNIVERSIDADE ... tomada na reunião de 01/09/2018.
Terminou peticionando: Nestes termos,
Pelos motivos expostos, deve a presente acção ser julgada provada e procedente, declarando-se nulo o acto de homologação da seriação dos candidatos e declarando-se nulos todos os actos subsequentes.”
Indicou como contrainteressados:
«BB», com domicílio profissional Laboratório de Farmacognosia, Departamento de Ciências Químicas, Faculdade de Farmácia, UNIVERSIDADE ..., Rua ... ...;
«CC», com domicílio profissional Laboratório de Farmacognosia, Departamento de Ciências Químicas, Faculdade de Farmácia, UNIVERSIDADE ..., Rua ... ...;
«DD», com domicílio profissional Escola Superior ..., Instituto Politécnico ..., Avenida ... ...;
«EE», com domicílio profissional, Faculdade de Farmácia, UNIVERSIDADE ..., Rua ... ...;
«FF», com domicílio profissional Escola Superior ..., Instituto Politécnico ..., Avenida ... ....
Por decisão proferida pelo TAF do Porto foi julgado o Juízo Especializado Administrativo Social do TAF do Porto materialmente incompetente para conhecer a ação e absolvida a Ré da instância.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:

1) Nos presentes autos o Tribunal a quo, erradamente, entendeu que o objecto da acção não era “qualquer relação jurídica de emprego público ou relativa à sua formação” e que por isso o acto impugnado não tinha qualquer carácter administrativo;

2) Conforme resulta da petição inicial, nos presentes autos é impugnado o acto do Sr. Reitor da UNIVERSIDADE ... de 24/10/2018, no qual homologou o acto de seriação dos candidatos tomada pela Comissão de Selecção do procedimento de recrutamento de um Professor Auxiliar;

3) Considerando tal pedido, o objecto da acção não é a forma como a relação contratual se irá desenrolar, mas sim o procedimento de contratação;

4) Analisando o objecto da acção à luz dos critérios comumente usados para distinguir as relações públicas das relações privadas, tal como se irá demonstrar, temos que concluir que estamos perante uma relação de direito pública regulada pelo direito administrativo;

5) Desde logo se verifica que a ré UNIVERSIDADE ..., por força do art.º 1.º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 96/2009 e art. 3º, nº 1 dos Estatutos da UNIVERSIDADE ... (Despacho normativo n.º 8/2015), é uma fundação pública em regime de direito privado;

6) Enquanto fundação a ré UNIVERSIDADE ... está sujeita à Lei Quadro das Fundações (Lei 24/2012 alterada pela Lei 150/2015), nomeadamente ao disposto no seu art. 48º, a), b) e d), que determina a sua sujeição, mesmo quando celebram contratos de natureza privada, aos princípios constitucionais de direito administrativo, aos princípios gerais da atividade administrativa e às regras da contratação pública;

7) Por outro lado, sendo a ré UNIVERSIDADE ... uma instituição de ensino superior público está submetida ao Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES - previsto na Lei n.º 62/2007), o qual nos termos do art. 134º, nº 1 e 2, prevê que está submetida à aplicação dos princípios constitucionais respeitantes à Administração Pública, designadamente, a prossecução do interesse público, dos princípios da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da proporcionalidade;

8) Esta sujeição aos princípios da administração é desde logo indiciador de estarmos perante um acto sujeito ao Direito Administrativo;

9) Para além desta sujeição ao Direito Administrativo verifica-se que o art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 96/2009 (que converta e UNIVERSIDADE ... em fundação pública de direito privado) prevê para a UNIVERSIDADE ... a concessão do privilégio de execução prévia, de expropriação por utilidade pública ou da prática de atos unilaterais de autoridade no domínio das suas atribuições, o que são poderes caracterizadores das relações públicas, da actuação com autoridade pública e de uma posição de superioridade em relação aos administrados;

10) Daqui temos que concluir que a Ré continua a deter a natureza de pessoa coletiva pública, embora com base fundacional;

11) Por outro lado, atentando nas normas aplicáveis ao caso, contrariamente ao entendimento sufragado pela sentença recorrida, teremos sempre que concluir que o procedimento de contratação está sujeito a normas de direito administrativo;

12) Nomeadamente, o art. 4º, nº 4 do Decreto-Lei n.º 96/2009 prevê que que a Ré, mesmo quando define as carreiras próprias dos seus docentes, tem que respeitar os princípios respeitantes à contratação de trabalhadores para o exercício de funções públicas;

13) No mesmo sentido concorrem as disposições relativas à contratação previstas no ECDU, aplicáveis por força do disposto no art. 1º,nº 1 desta disposição aos docentes da Ré, que se afastam da aplicação de um regime de direito privado no procedimento de seleção e recrutamento;

14) Por outro lado, o art. 85º-A do ECDU, para além de reforçar esta conclusão, vem expressamente prever que são aplicáveis às universidades públicas que estão ao abrigo do regime fundacional os procedimentos previstos no ECDU na admissão de pessoal;

15) O procedimento de contratação, em especial o procedimento de contratação de Professores Auxiliares, está previsto no art. 9º e 11º do ECDU, sendo expressamente determinado que a contratação é realizada através de concurso, o que afasta o procedimento de qualquer regime privado, na medida em que o Código do Trabalho não prevê qualquer regime concursal;

16) Esta conclusão é reforçada pelas restantes normas do ECDU que preveem a regulamentação dos concursos, nomeadamente os arts. 37º, 38º, 39º, 41º-A, 46º, 50º e 61.º do ECDU, dos quais decorrem uma séria de procedimentos, regras e princípios apenas compatíveis com normas administrativas;

17) Adicionalmente, impera salientar que o art.º 83º-A do ECDU prevê a possibilidade de as universidades aprovarem regulamentos necessários à execução dos concurso, mas impõe que estes respeitem os “procedimentos” aí previstos;

18) Ora estes regulamentos, incluindo o Regulamento de Celebração de Contratos de Trabalho de Pessoal Docente da UNIVERSIDADE ... ao Abrigo do Código do Trabalho, aprovado por Despacho (extrato) n.º 1567/2013, de 25 de janeiro (DR II.ª série, n.º 18, de 25/01/2013), aplicado ao caso, na medida em que assumem a natureza de normas jurídicas gerais e abstratas, criadas ao abrigo da função administrativa e por forma a realizar as atribuições e competências atribuídas por lei à Ré e que se destinam a produzir efeitos jurídicos externos constituem regulamentos administrativos;

19) A aplicação de regulamentos administrativos ao acto impugnado, inelutavelmente afastam-no de uma mera declaração negocial do foro privado;

20) Nunca um procedimento de seleção e recrutamento poderia ser enquadrado como tratando-se de um mero negócio jurídico, pois que a escolha de um contraente configura, racionalmente, um momento anterior ao da própria celebração do negócio jurídico e não tem qualquer negociação entre as partes;

21) Em resumo, verifica-se que o acto impugnado nos autos, resulta de:
· Um acto praticado por uma entidade pública, dotada de poderes públicos, para executar atribuições públicas;
· Que a Ré, na prática do acto impugnado está sujeita aos princípios constitucionais que regem Administração Pública e actividade administrativa;
· Que o acto impugnado decorre da aplicação de regulamentos administrativos; e
· Que no procedimento não há qualquer negociação entre as partes, mas sim a aplicação das já referidas regras de cariz público.

22) Ora, perante o exposto, verificamos que o acto objecto do presente processo é indubitavelmente um acto administrativo e que, enquanto tal, nos termos do art. 1º, nº 1 e 4º, nº 1, b) e e) do ETAF, está este acto sujeito à jurisdição administrativa;

23) Assim, ao decidir pela verificação da incompetência absoluta do Tribunal, a sentença recorrida viola o disposto no art. 1º, nº 1 e 4º, nº 1, b) e e) do ETAF.

Pelo exposto,
Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve a decisão recorrida ser anulada e substituída por outra que verifique a competência do Tribunal e determine o prosseguimento dos autos para a apreciação da relação material controvertida.
Não foram juntas contra-alegações.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
A Autora recorrente interpôs acção de impugnação, através da qual peticionou a anulação do acto de seriação dos candidatos ao procedimento concursal publicitado pela UNIVERSIDADE ..., com vista ao recrutamento de um professor auxiliar em regime de contrato de trabalho por tempo indeterminado, para a área disciplinar de Ciências Farmacêuticas, para o Laboratório de Farmacognosia do Departamento de Ciências Químicas da Faculdade de Farmácia da UNIVERSIDADE ....
Esta acção correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, na Unidade Orgânica 2, sob o nº 3096/14.4BEPRT e tinha exactamente as mesmas partes dos presentes autos.
Nesta acção foi suscitada, pela também aqui ré UNIVERSIDADE ..., a incompetência material dos Tribunais Administrativos para apreciar a acção.
Tal excepção foi julgada improcedente, porquanto o Tribunal considerou que o procedimento de contratação configurava um acto administrativo e, por isso, a apreciação da sua legalidade estava sujeita à jurisdição dos Tribunais Administrativos.
Esta acção foi julgada procedente, porquanto considerou o Tribunal que o acto de seriação padecia de vícios ao nível do procedimento, nomeadamente a falta de audiência prévia, que importavam a sua anulabilidade.
Em consequência de tal decisão judicial procedeu-se à repetição do procedimento concursal.
Não se conformando com a nova decisão do referido procedimento, veio a Autora intentar a presente acção, na qual impugnava o acto do Sr. Reitor da UNIVERSIDADE ... de 24/10/2018, comunicado à Autora através de notificação postal de 09/11/2018, e no qual homologou o acto de seriação dos candidatos tomada pela Comissão de Selecção do procedimento de recrutamento de um Professor Auxiliar em regime de contrato de trabalho por tempo indeterminado, ao abrigo do Código do Trabalho, para a área disciplinar de Ciências Farmacêuticas, para o Laboratório de Farmacognosia do Departamento de Ciências Químicas da Faculdade de Farmácia da UNIVERSIDADE ... tomada na reunião de 01/09/2018.
Em resumo invocava os seguintes vícios do acto impugnado:
· Ilegitimidade do contrainteressado «BB» para se manter no procedimento concursal e violação do princípio da imparcialidade;
· Vício decorrente da manutenção do júri do concurso;
· Vícios na constituição do Júri;
· Vício decorrente de falta de fundamentação;
· Vício decorrente da falta de audiência prévia; e
· Erros na apreciação dos curricula.
Após contestação foi proferida sentença que julgou o Tribunal materialmente incompetente porquanto entendeu que, estando em causa um concurso para a celebração de um contrato regido pelo disposto no Código do Trabalho, está tal matéria afastadas da jurisdição dos Tribunais Administrativos. Em consequência absolveu a Ré da instância.
Inconformada com esta decisão, vem da mesma interpor o presente recurso.
Em fundamento verifica-se que entendeu o Tribunal a quo que não era competente para apreciar a matéria em causa nos autos porquanto, em resumo não estava em causa nos autos “qualquer relação jurídica de emprego público ou relativa à sua formação a que se aplique um regime de direito público que confira algum tipo de administratividade aos atos praticados no seu âmbito.
Cremos que não se decidiu com acerto.
Vejamos,
Contrariamente ao entendimento do Tribunal, o que está em causa não é uma relação de emprego público, mas sim o procedimento de contratação, o qual, indubitavelmente é um procedimento administrativo. Por outro lado, previamente à análise da qualificação jurídica da relação controvertida nos autos, não podemos deixar de notar que, nos termos referidos, a questão sub judice, já foi objecto de apreciação judicial entre as partes e neste mesmo procedimento administrativo.
Da alegada incompetência material dos Tribunais Administrativos -
Nos termos supra mencionados, entendeu o Tribunal a quo que os Tribunais Administrativos não eram materialmente competentes para apreciar a presente acção; designadamente entende, pelo facto de a ré UNIVERSIDADE ... ser uma fundação pública de direito privado não está sujeita à jurisdição dos Tribunais Administrativos, nomeadamente quanto à gestão de pessoal.
Para tal invocou o disposto no art. 1º e 4º do ETAF, art. 1º, nº 1 e 4º do Decreto-Lei 96/2009 e o art. 134º do Lei 62/2007.
Do objecto do litígio -
Para a resposta à questão sub judice, em primeiro lugar, teremos que analisar qual o objecto da presente acção.
Ora, conforme resulta da petição inicial, nos presentes autos é impugnado o acto do Sr. Reitor da UNIVERSIDADE ... de 24/10/2018, no qual homologou o acto de seriação dos candidatos tomada pela Comissão de Selecção do procedimento de recrutamento de um Professor Auxiliar.
Daqui expressamente resulta que não estamos a analisar a forma como a relação contratual se irá desenrolar, mas sim o procedimento de contratação.
In casu, não é objecto do processo a qualificação do contrato a celebrar nem qualquer outro aspecto da contratação resultante do concurso.
O objecto do presente processo é o procedimento de contratação.
Da qualificação do acto impugnado -
É comummente aceite pela doutrina e pela jurisprudência que a qualificação das relações jurídicas como relações de direito público ou privado depende em grande medida da posição em que ambos actuam, do tipo de norma aplicáveis e o peso da vontade das partes na relação em causa.
Assim, em primeiro verifica-se que é indiscutível que a ré UNIVERSIDADE ... assume a natureza de fundação pública com regime de direito privado.
Veja-se neste sentido o art.º 1.º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 96/2009 e art. 3º, nº 1 dos Estatutos da UNIVERSIDADE ... (Despacho normativo n.º 8/2015).
Ora, analisando as disposições que regulam as pessoas colectivas públicas de natureza fundacional, verifica-se que estas, em diversos aspectos da sua actuação, nomeadamente no que respeita à sua gestão financeira, patrimonial continuam balizadas pelo direito público.
Assim, sendo a ré UNIVERSIDADE ... uma fundação está sujeita à Lei Quadro das Fundações (Lei 24/2012 alterada pela Lei 150/2015).
O art. 48º deste dispositivo prevê o seguinte:
Princípios
As fundações públicas, de direito público ou de direito privado, estão sujeitas:
a) Aos princípios constitucionais de direito administrativo;
b) Aos princípios gerais da atividade administrativa;
c) Ao regime de impedimentos e suspeições dos titulares dos órgãos e agentes da Administração, incluindo as incompatibilidades previstas nos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação;
d) Às regras da contratação pública; e
e) Aos princípios da publicidade, da concorrência e da não discriminação em matéria de recrutamento de pessoal.
Daqui resulta desde logo que, mesmo quando celebram contratos de natureza privada, as fundações públicas de direito privado estão sujeitas aos princípios da actividade administrativa e, sobretudo, às regras da contratação pública.
Ora, tal como se demonstrará adiante, a contratação de docente para o ensino superior público não está sujeita ao Código dos Contratos Públicos, mas sim a regulamentação especial prevista no Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU - Decreto-Lei 205/2009). Por outro lado, sendo a ré UNIVERSIDADE ... uma instituição de ensino superior público está submetida ao Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES - previsto na Lei n.º 62/2007).
Do art. 134º, nº 1 e 2 do RJIES, resulta expressamente que fundações de ensino superior público estão permanentemente submetidas à aplicação dos princípios constitucionais respeitantes à Administração Pública, nomeadamente, a prossecução do interesse público, dos princípios da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da proporcionalidade.
Ora, para além de estar “submetida à aplicação dos princípios constitucionais respeitantes à Administração Pública”, verifica-se que o art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 96/2009 (que converte a UNIVERSIDADE ... em fundação pública de direito privado) prevê para a UNIVERSIDADE ... a concessão do privilégio de execução prévia, de expropriação por utilidade pública ou da prática de atos unilaterais de autoridade no domínio das suas atribuições. Poderes estes que são caracterizadores das instituições sujeitas ao direito público na medida em que lhe permitem actuar com autoridade pública e estar numa posição de superioridade em relação aos administrados.
Daqui temos que concluir que a Ré continua a deter a natureza de pessoa coletiva pública, embora com base fundacional.
Por outro lado, atentando nas normas aplicáveis ao caso, contrariamente ao entendimento sufragado pela decisão recorrida, teremos sempre que concluir que o procedimento de contratação está sujeito a normas de direito administrativo.
Assim, contrariamente à leitura perfilhada pela sentença, o disposto no art. 134º, nº 3 do RJIES, ao estabelecer que as instituições de ensino superior público de substrato fundacional podem “criar carreiras próprias para o seu pessoal docente, investigador e outro” apenas reforça o entendimento defendido pela aqui Recorrente. Isto porque, esta norma tem que ser conjugada com o disposto no já citado Decreto-Lei n.º 96/2009 (que aprovou a passagem da UNIVERSIDADE ... para o regime fundacional previsto na Lei nº 62/2007, de 10 de setembro), com o ECDU e com o próprio Estatuto da Ré.
Ora, o art. 4º, nº 4 do Decreto-Lei n.º 96/2009 prevê o seguinte:
“Na definição do regime das carreiras próprias do pessoal docente, investigador e outro, a UNIVERSIDADE ... deve, nos termos do n.º 3 do artigo 134.º da Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, promover a convergência dos respetivos regulamentos internos com os princípios subjacentes à Lei n.º 12 -A/2008, de 27 de fevereiro [anterior regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas anterior], e à legislação especial aplicável às referidas carreiras”. Ou seja, mesmo quando define as carreiras próprias dos seus docentes, a Ré tem que respeitar os princípios respeitantes à contratação de trabalhadores para o exercício de funções públicas.
Daqui temos que concluir que, quer o disposto no n.º 3 do art.º 134.º da Lei n.º 62/2007, quer o disposto no n.º 4 do art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 96/2009, ao definirem a possibilidade de estabelecer um poder de definição da carreira dos docentes, apenas conferem à ré UNIVERSIDADE ... poder para regulamentar aspectos relacionados com o exercício da docência e não quanto ao procedimento de seleção e recrutamento de docentes.
No mesmo sentido concorrem as disposições relativas à contratação previstas no ECDU que se afastam da aplicação de um regime de direito privado no procedimento de seleção e recrutamento.
Em primeiro lugar verifica-se que, por força do art. 1º, nº 1 do ECDU, este normativo aplica-se aos docentes das instituições de ensino superior público com substrato fundacional. Por outro lado, o art. 85º-A, para além de reforçar esta conclusão vem expressamente prever que são aplicáveis às universidades públicas que estão ao abrigo do regime fundacional os procedimentos previstos no ECDU na admissão de pessoal.
Veja-se a citada disposição:
Artigo 85.º-A
Instituições em regime fundacional
1 - O pessoal em relação jurídica de emprego público que se encontre a exercer funções sem instituições de ensino superior à data da sua transformação em instituição de ensino superior em regime fundacional transita para esta, com garantia da manutenção integral do seu estatuto jurídico.
2 - As instituições de ensino superior em regime fundacional podem admitir pessoal em regime de contrato de trabalho em funções públicas, observando os requisitos e procedimentos previstos no presente Estatuto.
Ora o procedimento de contratação, em especial o procedimento de contratação de Professores Auxiliares, está previsto no art. 9º e 11º do ECDU. Veja-se as citadas disposições:
Artigo 9.º
Recrutamento de professores catedráticos e associados
Os professores catedráticos e associados são recrutados exclusivamente por concurso documental, nos termos do presente Estatuto.
Artigo 11.º
Recrutamento de professores auxiliares
1 - Os professores auxiliares são recrutados exclusivamente por concurso documental, nos termos do presente Estatuto.
Daqui resulta que os procedimentos de contratação têm necessariamente que ser feitos por concursos, o que, desde logo, afasta o procedimento de contratação de um procedimento de contratação privado.
Esta conclusão é reforçada pelas restantes normas do ECDU que preveem a regulamentação dos concursos, nomeadamente, do disposto nos arts. 37º, 38º, 39º, 41º-A, 46º, 50º e 61.º do ECDU, dos quais decorrem uma séria de procedimentos, regras e princípios apenas compatíveis com normas administrativas.
Veja-se que o art. 61º expressamente prevê a aplicação aos concursos do regime de garantias de imparcialidade do Código do Procedimento Administrativo.
Adicionalmente, impõe-se salientar que o art.º 83º-A do ECDU estabelece, sob a epígrafe de “Regulamentos” que:
1- O órgão legal e estatutariamente competente de cada instituição de ensino superior aprova a regulamentação necessária à execução do presente Estatuto, a qual abrange, designadamente, os procedimentos, as regras de instrução dos processos e os prazos aplicáveis aos concursos e convites, no quadro da necessária harmonização de regras gerais sobre a matéria.
2- No que se refere aos concursos, os regulamentos devem abranger a tramitação procedimental, designadamente as regras de instrução de candidaturas, os prazos, os documentos a apresentar, os parâmetros de avaliação, os métodos e critérios de seleção a adotar e o sistema de avaliação e de classificação final.
3- Os regulamentos a aprovar pelas instituições não podem afastar as disposições do presente Estatuto.
Daqui resulta a conclusão que o legislador, no art.º 83.º-A do ECDU, habilita as instituições de ensino superior público, incluindo as de natureza fundacional, a estabelecerem regulamentos de execução em matéria de procedimento de seleção e recrutamento de pessoal docente. Regulamentos estes que assumem a natureza de normas jurídicas gerais e abstratas, criadas ao abrigo da função administrativa e por forma a realizar as atribuições e competências atribuídas por lei à Ré, e que se destinam a produzir efeitos jurídicos externos. Isto é, os regulamentos emitidos pela Ré no domínio indicado, incluindo o Regulamento de Celebração de Contratos de Trabalho de Pessoal Docente da UNIVERSIDADE ... ao Abrigo do Código do Trabalho, aprovado por Despacho (extrato) n.º 1567/2013, de 25 de janeiro (DR II.ª série, n.º 18, de 25/01/2013), constituem regulamentos administrativos.
Ora a aplicação das normas deste regulamento ao procedimento aqui impugnado evidentemente o afasta de meras declarações negociais do foro privado, conforme as qualificou o Tribunal a quo.
Não obstante, conforme verificou o TAF do Porto na citada decisão do processo 3096/14.4BEPRT, nunca um procedimento de seleção e recrutamento poderia ser enquadrado como tratando-se de um mero negócio jurídico, pois que a escolha de um contraente configura, racionalmente, um momento anterior ao da própria celebração do negócio jurídico.
Veja-se que no processo de recrutamento não há qualquer declaração negocial das partes, mas sim um procedimento, que não tem qualquer negociação entre as partes, que culmine num convite a contratar.
Em resumo, verifica-se que o acto impugnado nos autos, resulta de:
· Um acto praticado por uma entidade pública, dotada de poderes públicos, para executar atribuições públicas;
· Que a Ré, na prática do acto impugnado está sujeita aos princípios constitucionais que regem Administração Pública e actividade administrativa;
· Que o acto impugnado decorre da aplicação de regulamentos administrativos; e
· Que no procedimento não há qualquer negociação entre as partes, mas sim a aplicação das já referidas regras de cariz público.
Ora, perante o exposto, verificamos que o acto objecto do presente processo é indubitavelmente um acto administrativo.
Enquanto acto administrativo, nos termos dos artigos 1º, nº 1 e 4º, nº 1, b) e e) do ETAF, está este acto sujeito à jurisdição administrativa.
Em suma,
Nos presentes autos o Tribunal a quo entendeu que o objecto da acção não era “qualquer relação jurídica de emprego público ou relativa à sua formação” e que por isso o acto impugnado não tinha qualquer carácter administrativo;
Conforme resulta da petição inicial, nos presentes autos é impugnado o acto do Sr. Reitor da UNIVERSIDADE ... de 24/10/2018, no qual homologou o acto de seriação dos candidatos tomada pela Comissão de Selecção do procedimento de recrutamento de um Professor Auxiliar;
Considerando tal pedido, o objecto da acção não é a forma como a relação contratual se irá desenrolar, mas sim o procedimento de contratação;
Analisando o objecto da acção à luz dos critérios comumente usados para distinguir as relações públicas das relações privadas, temos que concluir que estamos perante uma relação de direito pública regulada pelo direito administrativo;
Desde logo se verifica que a ré UNIVERSIDADE ..., por força do art.º 1.º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 96/2009 e art. 3º, nº 1 dos Estatutos da UNIVERSIDADE ... (Despacho normativo n.º 8/2015), é uma fundação pública em regime de direito privado; Enquanto fundação a ré UNIVERSIDADE ... está sujeita à Lei Quadro das Fundações (Lei 24/2012 alterada pela Lei 150/2015), nomeadamente ao disposto no seu art. 48º, a), b) e d), que determina a sua sujeição, mesmo quando celebram contratos de natureza privada, aos princípios constitucionais de direito administrativo, aos princípios gerais da atividade administrativa e às regras da contratação pública;
Por outro lado, sendo a ré UNIVERSIDADE ... uma instituição de ensino superior público está submetida ao Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES - previsto na Lei n.º 62/2007), o qual nos termos do art. 134º, nº 1 e 2, prevê que está submetida à aplicação dos princípios constitucionais respeitantes à Administração Pública, designadamente, a prossecução do interesse público, dos princípios da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da proporcionalidade;
Esta sujeição aos princípios da administração é desde logo indiciador de estarmos perante um acto sujeito ao Direito Administrativo; Para além desta sujeição ao Direito Administrativo verifica-se que o art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 96/2009 (que converte a UNIVERSIDADE ... em fundação pública de direito privado) prevê para a UNIVERSIDADE ... a concessão do privilégio de execução prévia, de expropriação por utilidade pública ou da prática de atos unilaterais de autoridade no domínio das suas atribuições, o que são poderes caracterizadores das relações públicas, da actuação com autoridade pública e de uma posição de superioridade em relação aos administrados;
Daqui temos que concluir que a Ré continua a deter a natureza de pessoa coletiva pública, embora com base fundacional;
Por outro lado, atentando nas normas aplicáveis ao caso, contrariamente ao entendimento sufragado pela sentença recorrida, teremos sempre que concluir que o procedimento de contratação está sujeito a normas de direito administrativo, nomeadamente, o art. 4º, nº 4 do Decreto-Lei n.º 96/2009 que prevê que a Ré, mesmo quando define as carreiras próprias dos seus docentes, tem que respeitar os princípios respeitantes à contratação de trabalhadores para o exercício de funções públicas;
No mesmo sentido concorrem as disposições relativas à contratação previstas no ECDU, aplicáveis por força do disposto no art. 1º, nº 1 desta disposição aos docentes da Ré, que se afastam da aplicação de um regime de direito privado no procedimento de seleção e recrutamento;
Ademais, o art. 85º-A do ECDU, para além de reforçar esta conclusão, vem expressamente prever que são aplicáveis às universidades públicas que estão ao abrigo do regime fundacional os procedimentos previstos no ECDU na admissão de pessoal;
O procedimento de contratação, em especial o procedimento de contratação de Professores Auxiliares, está previsto no art. 9º e 11º do ECDU, sendo expressamente determinado que a contratação é realizada através de concurso, o que afasta o procedimento de qualquer regime privado, na medida em que o Código do Trabalho não prevê qualquer regime concursal;
Esta conclusão é reforçada pelas restantes normas do ECDU que preveem a regulamentação dos concursos, nomeadamente os arts. 37º, 38º, 39º, 41º-A, 46º, 50º e 61.º do ECDU, dos quais decorrem uma séria de procedimentos, regras e princípios apenas compatíveis com normas administrativas;
Adicionalmente, importa salientar que o art.º 83º-A do ECDU prevê a possibilidade de as universidades aprovarem regulamentos necessários à execução dos concursos, mas impõe que estes respeitem os “procedimentos” aí previstos;
Ora estes regulamentos, incluindo o Regulamento de Celebração de Contratos de Trabalho de Pessoal Docente da UNIVERSIDADE ... ao Abrigo do Código do Trabalho, aprovado por Despacho (extrato) n.º 1567/2013, de 25 de janeiro (DR II.ª série, n.º 18, de 25/01/2013), aplicado ao caso, na medida em que assumem a natureza de normas jurídicas gerais e abstratas, criadas ao abrigo da função administrativa e por forma a realizar as atribuições e competências atribuídas por lei à Ré e que se destinam a produzir efeitos jurídicos externos constituem regulamentos administrativos;
A aplicação de regulamentos administrativos ao acto impugnado, inelutavelmente afastam-no de uma mera declaração negocial do foro privado;
Nunca um procedimento de seleção e recrutamento poderia ser enquadrado como tratando-se de um mero negócio jurídico, pois que a escolha de um contraente configura, racionalmente, um momento anterior ao da própria celebração do negócio jurídico e não tem qualquer negociação entre as partes;
Em resumo, verifica-se que o acto impugnado nos autos, resulta de:
· Um acto praticado por uma entidade pública, dotada de poderes públicos, para executar atribuições públicas;
· Que a Ré, na prática do acto impugnado está sujeita aos princípios constitucionais que regem Administração Pública e actividade administrativa;
· Que o acto impugnado decorre da aplicação de regulamentos administrativos; e
· Que no procedimento não há qualquer negociação entre as partes, mas sim a aplicação das já referidas regras de cariz público.
Peerante o exposto, verificamos que o acto objecto do presente processo é um acto administrativo e que, enquanto tal, nos termos dos artºs 1º, nº 1 e 4º, nº 1, b) e e) do ETAF, está sujeito à jurisdição administrativa.
Assim, ao decidir pela verificação da incompetência absoluta do Tribunal, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1º, nº 1 e 4º, nº 1, b) e e) do ETAF.
Procedem todas as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso e, em consequência, anula-se a sentença recorrida, declara-se a competência material do Tribunal e determina-se a remessa dos autos ao TAF a quo a fim de prosseguirem para a apreciação da relação material controvertida, caso a tal nada mais obste.
Sem custas.
Notifique e DN.

Porto, 15/12/2023

Fernanda Brandão
Nuno Coutinho
Rogério Martins