Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00017/10.7BEMDL
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/25/2012
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Catarina Almeida e Sousa
Descritores:NULIDADE DA SENTENÇA; FALTA DE ESPECIFICAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DE FACTO; FALTA DE DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS; ANULAÇÃO OFICIOSA
Sumário:I - A nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto abarca não apenas a falta de discriminação dos factos provados e não provados, a que se refere o artigo 123º, nº 2 do CPPT, mas também a falta de exame crítico das provas, previsto no artigo 659º, nº 3 do CPC.
II - No que concerne à matéria de facto provada, prevê-se no nº4 do art.º 712º do CPC, para os recursos para tribunais de 2ª instância, como é o caso dos tribunais centrais administrativos, que, em recursos de decisões dos tribunais de 1ª instância, eles poderão anular oficiosamente a decisão proferida pela 1ª instância, quando reputem deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta. Como é óbvio, se esta possibilidade existe quando se está perante uma mera deficiência, obscuridade ou contradição, por maioria de razão existirá esta possibilidade de anulação oficiosa quando exista uma total falta de discriminação dos factos provados.
III – A matéria de facto assente na sentença recorrida que se limita à formulação “Estão em causa vendas e não doações, conforme declarado pelo próprio sujeito passivo na declaração de IRS do ano de 2005, pelos valores de € . 20.314,46 e de € 80.000,00, respectivamente, para o U 1466 e o U 9896, sendo certo porém que o respectivo valor da avaliação é de € 172.210,00 e de € 86.250,00”, não permite descortinar minimamente o circunstancialismo fáctico que está na base da questão que é objecto de litígio, como é exigido nos termos do artigo 123º, nº1 do CPPT.
IV – Assim, a assinalada falta de discriminação dos factos provados determina a anulação oficiosa da sentença proferida pelo tribunal a quo.
Recorrente:T(...)
Recorrido 1:Fazenda pública
Votação:Unanimidade
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte

1- RELATÓRIO

T(…), inconformado com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra o acto tributário de liquidação adicional de IRS nº 2009 5004859275, relativo ao ano de 2005, dela veio interpor o presente recurso jurisdicional, formulando as seguintes conclusões:

1 - O recurso vem interposto da sentença que julgou improcedente a impugnação deduzida pelo recorrente contra uma liquidação do montante de € 10.270, relativa a IRS, referente ao ano de 2005.

2 - Com a devida vénia, a sentença recorrida errou na avaliação dos factos e na aplicação do direito.

3 - O erro quanto aos factos é fruto, em grande medida, da completa desconsideração pela prova testemunhal e da quase completa desconsideração pela prova documental.

4 - O erro de direito resultou de apenas se ter atendido ao preceituado nos códigos de imposto na especialidade - CIMI e CIRS - sem que se tenha dado conta da violação dos princípios gerais de direito que fazem parte do nosso bloco da legalidade.

5 - A não ser anulada a liquidação o recorrente terá de pagar imposto sobre o rendimento sem o ter auferido, ou seja, sem que se tenha gerado a necessária capacidade contributiva.

6 - A liquidação impugnada é ilegal por enfermar dos vícios de errónea quantificação de matéria colectável e de violação de lei por atropelo aos princípios consagrados nos arts. 104º da CRP e 4º, nº 1, 5º, nº2 e 55º da LGT.

7 - Acresce que - sem prescindir - o Tribunal podia e devia ter ordenado todas as diligências adequadas e úteis para a descoberta da verdade, o que não fez.

8 - Assim, a sentença padece de erro de julgamento tanto no âmbito da valoração da prova produzida como na aplicação do direito.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e consequentemente ser revogada a sentença recorrida, com todas as consequências legais, nomeadamente a anulação da liquidação impugnada, por ilegalidade - art. 99° do CPPT, assim se cumprindo a Lei e se fazendo Justiça.

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Não foram produzidas contra-alegações.

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Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu parecer, defendendo, em síntese, que deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se a sentença recorrida.

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Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.

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São as conclusões da alegações do recurso que, como é sabido, definem o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração.

Conforme resulta das conclusões apresentadas, o Recorrente imputa à sentença recorrida o (i) erro de julgamento da matéria de facto, em concreto por errada avaliação dos factos em resultado da completa desconsideração pela prova testemunhal e da quase completa desconsideração pela prova documental; (ii) erro de julgamento da matéria de direito, em concreto a violação do disposto nos artigos 104ºda CRP, 4º, nº 1, 5º, nº2 e 55º da LGT.

2 – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida:

Com base nos elementos constantes dos autos [afirmações e confissões expressas na petição inicial (arts 38°, 490° e 567° do CPC), bem como prova por documentos juntos e apensos (art 5230 e segs do CPC)], resulta provada a seguinte matéria de facto com interesse para a decisão a proferir.

Estão em causa vendas e não doações, conforme declarado pelo próprio sujeito passivo na declaração de IRS do ano de 2005, pelos valores de € . 20.314,46 e de € 80.000,00, respectivamente, para o U 1466 e o U 9896, sendo certo porém que o respectivo valor da avaliação é de € 172.210,00 e de € 86.250,00.

Facto provado por afirmações e confissões expressas na petição inicial (v.g. arts 5° e 6° da p.i.), bem como pelos documentos integrados e apensados aos autos.

2.2. De direito

Sem prejuízo das questões relativamente às quais este Tribunal foi chamado a pronunciar-se pelo Recorrente, a análise da sentença objecto do presente recurso jurisdicional leva-nos a que nos detenhamos, desde já, numa outra questão.

Vejamos.

Dispõe o artigo 125º, nº1 do CPPT que constitui causa de nulidade da sentença, além do mais, a não especificação dos fundamentos de facto da decisão. No mesmo sentido preceitua o artigo 668º, nº1, al. b) do CPC, nos termos do qual se refere que é nula a sentença quando esta não especifique os fundamentos de facto da decisão.

Como se vem entendendo, no que respeita à matéria de facto, tal nulidade abrange, quer a falta de discriminação dos factos provados e não provados, exigida pelo nº2 do artigo 123º do CPPT, quer a falta do exame crítico das provas, previsto no artigo 659º, nº3 do CPC Neste sentido, vide, Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, Vol. II, Áreas Editora, 6ª edição, 2011, pág. 358; acórdão do TCAN, de 08/03/12, processo nº 00329.05.1 BEMDL..

O nº 4 do referido artigo 668º do CPC (na actual redacção, resultante do DL 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável) prevê que o conhecimento desta nulidade (sem distinguir a falta de discriminação da matéria de facto provada, a falta de indicação dos factos não provados ou a falta do exame crítico das provas) está dependente de arguição dos interessados, a qual será feita directamente no tribunal que proferiu a decisão ou no tribunal de recurso, consoante este seja, ou não, admissível.

Contudo, como refere Jorge Lopes de Sousa Vide, Jorge Lopes de Sousa, obra citada pág. 359., “haverá que fazer uma distinção, que resulta de outras disposições, entre a falta de indicação da matéria de facto provada (ou mesmo só a sua deficiência, obscuridade ou contradição) e os restantes casos (designadamente a não indicação dos factos não provados, a falta de exame crítico das provas ou a falta de fundamentação de direito).

Na verdade, no que concerne à matéria de facto provada, prevê-se no nº4 do art.º 712º do CPC, para os recursos para tribunais de 2ª instância, como é o caso dos tribunais centrais administrativos, que, em recursos de decisões dos tribunais de 1ª instância, eles poderão anular oficiosamente a decisão proferida pela 1ª instância, quando reputem deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Como é óbvio, se esta possibilidade existe quando se está perante uma mera deficiência, obscuridade ou contradição, por maioria de razão existirá esta possibilidade de anulação oficiosa quando exista uma total falta de discriminação dos factos provados”. No sentido de que a falta de julgamento dos factos necessários à decisão da causa constitui nulidade do conhecimento oficioso, pode ver-se o acórdão do STA, de 20/02/08, proferido no processo nº 0903/07. Veja-se, também, o acórdão do TCAN, de 26/10/06, proferido no processo nº 00398/04.

De acordo com a primeira parte do referido artigo 712º, nº4 do CPC, prevê-se, como condição da decisão de anulação da sentença proferida em 1ª instância, a não disponibilização no processo de todos os elementos probatórios que, em conformidade com o disposto na al. a) do respectivo n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto. O tribunal de recurso, com vista à eventual alteração, pode, assim, reapreciar ou reexaminar a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto, não lhe competindo, porém, efectivar o julgamento de facto sem que na 1.ª instância o mesmo tenha sido efectuado.

Ora, no caso em concreto, como tentaremos demonstrar, estamos perante uma nulidade por falta de discriminação da matéria de facto provada (ou pelo menos, perante uma manifesta deficiência e obscuridade da matéria de facto provada), a justificar a intervenção a título oficioso deste Tribunal.

Vejamos, então, recuperando a factualidade assente pelo Tribunal a quo.

Consignou-se na sentença recorrida, unicamente, a título de matéria de facto com interesse para a decisão a proferir, o seguinte:

Estão em causa vendas e não doações, conforme declarado pelo próprio sujeito passivo na declaração de IRS do ano de 2005, pelos valores de € 20.314,46 e de € 80.000,00, respectivamente, para o U 1466 e o U 9896, sendo certo porém que o respectivo valor da avaliação é de € 172.210,00 e de € 86.250,00.

Importa dizer que, no caso sub judice, e de acordo com a p.i, vinha impugnada uma liquidação de IRS resultante de correcções administrativas respeitantes a mais-valias (artigo 4º da p.i) que terão resultado da consideração da obtenção de ganhos decorrentes da alienação onerosa de dois imóveis. Ainda de acordo com a p.i, o impugnante insurge-se, relativamente a um dos imóveis, contra a qualificação do negócio jurídico como oneroso, defendendo, a este propósito, a inexistência do facto tributário (artigo 15º). Por outro lado, quanto a outra das transmissões, o impugnante contesta o valor de realização considerado para efeitos do cálculo do ganho correspondente à mais-valia, defendendo que o mesmo deve ser o valor declarado e não outro administrativamente fixado (artigos 18º a 20º).

Ora, sem prejuízo de, naturalmente, se considerar que, relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de tomar posição sobre todos os factos alegados, tendo apenas o dever de, nos termos do disposto nos artigo 508º-A, nº1, alínea e), 511º e 659º do CPC, seleccionar os que interessam para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, a verdade é que a aquela formulação, vertida em forma de facto pelo Mmo. Juiz, não permite descortinar minimamente o circunstancialismo fáctico que está na base da questão que é objecto de litígio, como é exigido nos termos do artigo 123º, nº1 do CPPT.

Na verdade, pode até dizer-se, se bem interpretamos a transcrita formulação dada ao facto pelo Mmo. Juiz, que a mesma encerra em si mesma – concretamente na parte onde se pode ler que “Estão em causa vendas e não doações, (…) pelos valores de € . 20.314,46 e de € 80.000,00, respectivamente, para o U 1466 e o U 9896” - uma conclusão de direito, qual seja a de qualificar como um negócio jurídico oneroso (venda) determinada transmissão de imóvel por oposição à sua qualificação como negócio jurídico gratuito (doação). De resto, como deixámos referido, se atentarmos na p.i, logo se percebe que essa qualificação, relativamente a um dos imóveis, era crucial, do ponto de vista do impugnante, para saber se, no caso, se podia considerar, ou não, a existência de mais-valias sujeitas a IRS.

Por outro lado, a segunda parte daquela formulação – “sendo certo porém que o respectivo valor da avaliação é de € 172.210,00 e de € 86.250,00” – surge absolutamente desgarrada, sem qualquer concretização quanto à origem e momento da avaliação, o que, na economia do caso concreto, assume incontornável importância em face da discordância do impugnante quanto ao valor a considerar como valor de realização a ter em conta no cálculo do ganho sujeito a IRS mas, também, por o Mmo. Juiz ter considerado que se os valores das avaliações não eram do agrado do sujeito passivo sempre os poderia ter impugnado a final dos procedimentos de avaliação e que, por isso, não podia o impugnante, fora de tempo, fora do local processual adequado e utilizando meio impróprio, questionar agora as avaliações.

É patente, pois, que a formulação apresentada pelo Mmo. Juiz, sob a veste de factualidade assente, só na aparência pode merecer tal designação, sendo para nós claro que, in casu, o tribunal a quo se demitiu, por completo, de discriminar os factos provados que permitiam julgar de direito a pretensão apresentada pelo impugnante na petição inicial. Note-se, desde logo, que não vem discriminado o acto impugnado, nem o circunstancialismo fáctico subjacente às transmissões dos imóveis relativamente às quais foram considerados os ganhos sujeitos a IRS, nem, por seu turno, a indicação dos procedimentos de avaliação em que foram fixados os valores dos imóveis a que a sentença alude na parte que reservou à aplicação do direito.

Por conseguinte, a assinalada falta de discriminação dos factos provados não pode deixar de implicar a anulação oficiosa da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, nos termos apontados.

Da anulação oficiosa da decisão que, a final, se irá determinar, resulta que fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo Recorrente.

Refira-se, a finalizar que, nos termos previstos no artigo 3º, nº 3 do CPC, se nos afigura manifestamente desnecessário ouvir as partes antes do decretamento oficioso da anulação da decisão recorrida.

3 - DECISÃO

Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:

a) Anular a decisão recorrida;

b) Ordenar a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela a fim de que este proceda ao julgamento da matéria de facto e, após, profira nova decisão.

Sem custas.

Porto, 25 de Outubro de 2012.

Ass.: Catarina Almeida e Sousa

Ass.: Nuno Bastos

Ass.: Irene Neves