Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02038/20.2BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/14/2022
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:INTIMAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ATO DEVIDO-ARTIGO 112.º DO RJUE-INTREPRETAÇÃO DE SENTENÇA
Sumário:1-Se estiver em causa a prolação de uma decisão no âmbito de “procedimento de licenciamento”, o incumprimento, no prazo legal, do dever de decidir, é considerado pelos artigos 111.º, alínea a), e 112.º do RJUE como uma omissão pura e simples ou como um “facto incolor”, isto é, como um mero facto constitutivo do interesse em agir em juízo para obter uma decisão judicial de condenação à prática do ato ilegalmente omitido.

2-Nesse caso, pode o interessado pedir ao tribunal administrativo de círculo da área da sede da autoridade requerida a intimação da autoridade competente para proceder à prática do ato que se mostre devido (artigo 112.º do RJUE). Estão abrangidos por este regime todos os atos que devessem ser praticados no âmbito do procedimento de licenciamento.

3- Sendo a sentença um ato jurídico por via do qual o Tribunal decide uma causa, pode muito bem acontecer que a mesma não seja clara, precisa ou inequívoca, e que, por via disso, suscite divergências interpretativas, deixando incertezas sobre o seu sentido e alcance, tal como de resto pode suceder com qualquer ato de comunicação humana, em que se proceda à exteriorização do pensamento por meio da linguagem.

4-Na interpretação de uma decisão judicial ter-se-á que atender à parte decisória propriamente dita (ao dispositivo final), aos seus fundamentos e mesmo à globalidade dos atos que a precederam (quer se trate de atos das partes, ou de atos do tribunal), bem como a outras circunstâncias relevantes, mesmo posteriores à respetiva elaboração.

5- A letra da sentença é elemento essencial na interpretação a fazer, não podendo a mesma valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos atos normativos – art. 9º, nº2, – tem, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer também para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial).
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Intimação Judicial para Prática Acto Legalmente Devido (art. 112.º RJUE) - Rec. Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO
1.1. E. moveu a presente ação administrativa contra o MUNICÍPIO (...), tendo em vista impugnar a decisão administrativa de 28 de agosto de 2020, tomada pelo Senhor Vereador da Área de Obras Particulares e Urbanista, que determinou o embargo de obras, no âmbito do processo de licenciamento com o n.º 157/2016.
Alega, para tanto, em síntese, que em 11/10/2016 apresentou nos competentes serviços do Réu um projeto para o licenciamento da construção de uma moradia unifamiliar, que deu lugar ao processo de obras com o n.º 157/16.
Perante o silêncio do Réu sobre o referido pedido de licenciamento, intentou ação administrativa urgente ao abrigo do artigo 112.º do RGEU para a prática de ato devido, que correu termos no TAF de Braga com o processo n.º 613/20.4BEBRG, formulando pedido de intimação do à emissão da licença de construção e das respetivas guias para pagamento das taxas que forem devidas.
Nesse processo, o Réu foi citado, mas não apresentou contestação, tendo sido proferida sentença, a 14/05/2020, transitada em julgado, em que foram dados como provados os factos que constam dos pontos 1 a 16 da mesma, e o mesmo condenado a deferir o pedido de licenciamento.
Entretanto, apresentou os projetos de especialidades, mas pese embora os sucessivos requerimentos que apresentou, o Réu continuou a não dar cumprimento à sentença proferida.
Por isso, viu-se forçado, ao abrigo do artigo 113.º, n.ºs 2 e 3 do RJEU a efetuar o pagamento da respetiva taxa nos termos do Regulamento de Taxas, no valor de 155,80€, tendo iniciado a execução da obra, contratando os meios humanos e equipamentos para a respetiva execução.
Considera que o embargo impugnado viola o caso julgado formado pela referida sentença e aponta em abono da sua tese o acórdão deste TCAN proferido no processo cautelar n.º 1049/20.2BEBRG que instaurou contra o réu.
Conclui que nas situações referidas no artigo 113.º do RJUE, conforme decorre do seu n.º8, a obra de construção em curso não podia ser embargada, violando o caso julgado formado pela referida sentença, devendo esse ato ser anulado.
1.2. Citado, o Réu contestou, defendendo-se por impugnação, pugnando pela improcedência da ação. Aduz, em síntese, que a parte decisória da sentença transitada proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG é clara, não tendo por efeito a aprovação da licença de construção, por não ser esse o efeito que decorre do artigo 113.º do RJUE.
Que foi dado cumprimento ao decidido pela referida sentença.
Contrariamente ao que alega, o autor não pagou as taxas devidas, uma vez que as mesmas são as previstas no artigo 116.º do RJUE, não apresentou requerimento para a emissão do alvará, nem deu conhecimento para o início das obras, e muito menos requereu a intimação do Réu para emitir o alvará de licença, nos termos do artigo 112.º, n.º7 do RJUE.
A obra pode ser embargada tal como foi, pois não existe sentença transitada em julgado que tenha intimado à emissão do alvará de licença de construção, para substituir para todos os efeitos os efeitos legais o alvará não emitido.
1.3. Proferiu-se despacho saneador-sentença, no qual foi fixado o valor da causa em €5.000,01, dispensou-se a produção da prova requerida pelas partes considerando que os autos dispunham já de todos os elementos probatórios necessários à prolação da decisão, bem como a realização de audiência prévia. Quanto ao mérito, julgou-se a ação improcedente, sendo o dispositivo do seguinte teor:
«Nos termos e com os fundamentos expostos:
i. Julgo totalmente improcedente a presente acção, absolvendo-se o Réu de todo o peticionado;
ii. Fixo o valor da acção em €5.000,01;
ii. Condeno em custas o Autor, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
iii. Registe e notifique
1.4. Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs o presente recurso de apelação, no qual apresenta as seguintes Conclusões:
«A. Em face das enunciadas razões de facto e de direito, a impugnação do acto administrativo praticado pelo Réu de 28 de Agosto de 2020 de embargo de obras com o n.º 157/2016, ao abrigo dos art.ºs 37.º, n.º 1, al. a) e 50.º e ss. do CPTA.
B. Competiria ao Tribunal decidir pela anulação da decisão de embargo da obra, reportada ao despacho de 28.08.2020, e proferida no processo de licenciamento com o n.º 157/2016.
C. Nesse sentido o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte de 02¬10-2020, em processo cautelar instaurado pelo Autor contra o Réu com o n.º 1049/20.2BEBRG, pág. 18, disponível em http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/a3a5f8b728e15dac8025860e003e8147?OpenDocument, conforme parcialmente se transcreve pela sua relevância a decisão: “12. Ora, desde logo, falta evidência à conclusão tirada pelo Tribunal a quo, de que pela sentença proferida no Proc. nº 613/20.4BEBRG não condenou o requerido MUNICÍPIO (...) a deferir o pedido de licenciamento procedimento, mas apenas a proferir decisão quanto a ele, já que sempre se imporá considerar, para além do externado no segmento decisório da sentença, os respetivos fundamentos, o quadro legal enformador dos deveres incutidos ao requerido MUNICÍPIO, nomeadamente à luz do disposto nos artigos 111º e 112º do RJUE (DL. nº 555/99) e da força e âmbito do caso julgado.
D. E a Sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG, Unidade Orgânica 1 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga condenou o Réu (cfr. Documento n.º 2).
E. O pedido principal do Autor no processo n.º 613/20.4BEBRG (cfr. Documento n.º 2): A) Ser a Ré intimada ao abrigo dos art.ºs 111.º e 112.º do RJUE à prática do acto legalmente devido de decisão do procedimento de licenciamento no processo de obras n.º 157/2016, no prazo de 30 dias, e consequentemente a licença de construção e respectivas guias para pagamento de taxas que sejam devidas;
F. Na pág. 5 a 10 da Sentença proferida, na parte “III. Fundamentação de Facto”, foram dados como provados os factos 1 a 16.
G. Na pág. 11 da Sentença, primeiro parágrafo, na parte “IV. Fundamentação de Direito [subsunção jurídica da factualidade apurada]” (cfr. Documento n.º 2): Como já se referiu, com a presente intimação urgente, o Autor visa a intimação da Ré para, no prazo de 30 (trinta) dias, praticar, ao abrigo dos arts. 111.º e 112.º do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (RJUE), o acto legalmente devido de decisão do procedimento de licenciamento no processo de obras n.º 157/2016 (mormente, a emissão de licença de construção e respectivas guias para pagamento de taxas que sejam devidas).
H. A Sentença do processo referido (cfr. Documento n.º 2), salientou o art.º 567.º do CPC em conformidade com o art.º 83.º, n.º 4 e n.º 6, do CPTA.
I. No último parágrafo da pág. 16 e da pág. 17 da fundamentação jurídica da Sentença (cfr. Documento n.º 2): Pelo que, ao abrigo do consignado no n.º 4, do art. 268.º da CRP, e em face da factualidade supra julgada provada em articulação com os referidos dispositivos normativos, a Ré terá de ser intimada à prática do acto legalmente devido de cumprimento do dever de decisão no processo de licenciamento, mormente a prática do acto de aprovação do projecto de construção apresentado pelo Autor e concomitante emissão de licença de construção e emissão de guias para pagamento das respectivas taxas que forem devidas [cf. arts. 111.º, alínea a), e 112.º, n.os 1 e 7, ambos do RJUE; cf. arts. 2.º, 3.º, n.º 3, 36.º, todos do CPTA]. Procede, assim, in totum, a pretensão do Autor.”
J. Portanto, a decisão do processo n.º 613/20.4BEBR deve ser interpretada de acordo com a fundamento de facto contida nas pág. 5 a 10 e de acordo com a fundamentação jurídica das páginas 11 a 17, nomeadamente no que concerne: “V. Decisão. Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a presente intimação urgente para a prática de acto legalmente devido procedente, por provada, e, em consequência, determino (i) a intimação da Ré a, no prazo de 30 (trinta) dias, praticar o acto legalmente devido consubstanciado na decisão do procedimento de licenciamento n.º 157/2016, com a consequente prolação de decisão respeitante à licença de construção e respectivas guias para pagamento de taxas que sejam devidas; (ii) sendo que decorrido o prazo fixado em (i), sem que se mostre praticado o acto devido pela Ré, tem lugar a aplicação do disposto no artigo 113.º do RJUE por parte do Autor [cf. art. 112.º, n.º 9, do RJUE]. Custas do processo a cargo da Ré, cujo decaimento foi total, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal e indo a mesma reduzida a metade [cf. arts. 527.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) ex vi do art. 13.º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais (RCP); cf. arts. 1.º, 2.º, 3.º, 6.º, e 14.º-A, e, ainda, a Tabela I-A, todos do RCP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de Março -, aplicáveis ex vi dos arts. 1.º, in fine e 189.º, ambos do CPTA].
K. E que dispõe o art.º 158.º, nºs 1 e 2, do CPTA, quanto á obrigatoriedade das decisões judiciais.
L. Pelo que conforme dispõe o art.º 113.º, n.º 8, do RJUE: 8 - Nas situações referidas no presente artigo, a obra não pode ser embargada por qualquer autoridade administrativa com fundamento na falta de licença. (sublinhado e negrito nosso).
M. Em face das enunciadas razões de facto e de direito, a impugnação do acto administrativo praticado pelo Réu de 28 de Agosto de 2020 de embargo de obras com o n.º 157/2016, ao abrigo dos art.ºs 37.º, n.º 1, al. a) e 50.º e ss. do CPTA, deveria ter sido julgado procedente.
N. A Sentença recorrida não respeitou o caso julgado da Sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG, Unidade Orgânica 1 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga condenou o Réu (cfr. Documento n.º 2).
O. E, além disso, o art.º 567.º do CPC, os art.ºs 83.º, n.º 4 e n.º 6 e 158.º do CPTA, bem como o art.º 113.º, n.º 8, do RJUE.
P. Assim, deverá a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que respeite o caso julgado da Sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga e as normas legais referidas e reputadas por desrespeitadas pela decisão recorrida.
Q. E, consequentemente, julgando-se procedente o pedido de impugnação e anulado o acto administrativo consubstanciado na decisão de embargo de obra reportado ao Despacho de 28-08-2020 no processo de licenciamento de obras com o n.º 157/2016 do Réu,
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável, deverá a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que respeite o caso julgado da Sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, as demais normas legais enunciadas e o art.º 113.º, n.º 8, do RJUE, julgando-se procedente o pedido de impugnação e anulado o acto administrativo consubstanciado na decisão de embargo de obra reportado ao Despacho de 28-08-2020 no processo de licenciamento de obras com o n.º 157/2016 do Réu,
É, pois, o que se Requer a V. Exas.»
1.5. O Réu contra-alegou, formulando as seguintes Conclusões:
«1º
O Recorrente dirige o recurso aos presentes autos, talvez por mero lapso ou não, porquanto na alegação coloca-se como parte – ora recorrente nos autos de processo cautelar instaurado contra o requerido MUNICÍPIO (...), notificado na sentença que antecede que rejeitou liminarmente o requerimento inicial ao abrigo do artº 116º, nº 2, al. d), CPTA – apresentando então as suas alegações de recurso.
Sucede que os autos de processo cautelar a que o Recorrente se refere correram termos pelo TAF-Braga, U.O.1, como proc. nº 1049/20.2BEBRG, nos quais foi proferida sentença que rejeitou liminarmente a providência cautelar. Interposto recurso de apelação para este TCAN, veio o mesmo a obter provimento, ordenando a baixa dos autos à primeira instância, para prosseguimento dos seus termos. Corridos os termos, foi proferida douta sentença que julga totalmente improcedente o processo cautelar e, em consequência, não decreta as providências requeridas, com notificação a 06-­12-2020. O presente recurso se dirigido a esta sentença proferida no proc. nº 1049/20.2BEBRG, deve ser indeferido por interposição fora de prazo – cf. artigos 144º, nº 1 e 145º, nº 2, al. a), C.P.T.A..

Para a hipótese deste Tribunal decidir pela admissão do recurso e apreciar a pretensão como deduzida contra a sentença aqui proferida, determinando a correção com fundamento em meras razões de índole formal, o Recorrido expressa desde já plena discordância, porque a admissão não tem acolhimento processual, mormente nos artigos 6º, 146º e 193º, C.P.C.. Contudo, se assim for decidido não se fará discorrer maior libelo, porque quanto ao essencial a improcedência do recurso, se à sentença aqui proferida está dirigido, parece manifesta.

A minuta recursiva apresentada nestes autos evidencia em tudo um conteúdo igual ao já produzido pelo Recorrente noutros processos em curso nesta jurisdição administrativa, processo nº 1621/20.0BEBRG, assim nos respeitantes ao irmão Bruno Tiago da Rocha Matos. É a repetição insistente proclamada. Esta jurisdição, nesses processos, já por várias vezes se pronunciou sobre o segmento decisório e os limites do caso julgado que se extrai da sentença proferida no proc. nº 613/20.4BEBRG. O Recorrente insiste e persiste, numa conduta manifesta de má fé, porquanto preenche os pressupostos da instrumentalização do direito previstos pelo artº 542º, nº 2, alíneas a), b), d), C.P.C..
O Recorrido por questão de dever de elegância para com o Tribunal e também na observância do princípio da cooperação e da limitação dos atos, entende ser seu dever não repetir tudo quanto já alegou sobre a matéria.

O recurso a avaliar pela conclusão contida em “N”, fundamenta-se em que a sentença em mérito não respeitou o caso julgado formado pela sentença proferida por este TAF, U.O.1, proc. nº 613/20.4BEBRG.
Nas conclusões “E” e “G”, vem expresso o pedido formulado nesses autos e na conclusão “J” a pronúncia nesses autos sobre os factos essenciais aí alegados. O Recorrente extrai da condenação nesses autos uma amplitude que a sentença não acolhe, atendendo ao meio processual onde aquela decisão foi proferida e aos seus limites intrínsecos, como refere a fundamentação da sentença em mérito, que não merece censura.

O Recorrente extrai do segmento decisório da sentença, que convoca como caso julgado, um sentido verbal que a mesma não contém, pelo qual em seu entender o Município ora recorrido ficou obrigado a deferir o pedido de licenciamento. Não. A douta sentença, em conformidade com a amplitude do objeto do processo, apenas intima o Réu a, no prazo de 30 dias, praticar o ato legalmente devido consubstanciado na decisão do procedimento de licenciamento nº 157/2016, com a consequente prolação de decisão respeitante à licença de construção, (...).
Conforme referido na fundamentação de facto da sentença em recurso, II. Fundamentação, 4.1. de facto, a sentença proferida no proc. nº 613/20.4BEBRG, em conformidade com o preceituado no artº 94º, nº 2, C.P.T.A., enuncia de forma muito clara a questão de mérito que ao tribunal cumpre solucionar – intimação urgente para a prática de ato legalmente devido para o cumprimento do dever de decisão no processo de licenciamento (..). Com vista à intimação de tal entidade para, no prazo de 30 dias, praticar, ao abrigo dos artºs 111º e 112º, do RJUE, o acto legalmente devido de decisão do procedimento de licenciamento no processo de obras nº 157/2016. Na sequência e em cumprimento do comando legal, após a fundamentação de facto e de direito segue-se a sentença, no âmbito da qual é destacado o segmento decisório, não só porque a lei o determina, como ainda pelo facto de o mesmo evidenciar com mais clareza o resultado da lide e os limites do caso julgado. Deve ser especialmente ponderada a necessidade de respeitar a natureza (..) do pedido formulado, sob pena de nulidade, nos termos do artº 615º, nº 1, al. e), CPC. (..) Também deve atentar-se na necessidade de respeitar a amplitude do objeto do processo, respeitando os factos essenciais que foram alegados e o efeito prático-jurídico associado ao pedido que foi formulado, vide Abrantes Geraldes, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª Ed., Almedina, 2020, pág. 749.
Na ação que correu termos como proc. nº 613/20.4BEBRG, o Recorrente aí autor circunscreve o thema decidendum, isto é a providência requerida, e a sentença proferida inseriu-se no âmbito desse pedido, porque não pode condenar em objeto diverso do que foi pedido sob pena de nulidade, tal como impõe o disposto no artº 95º, C.P.T.A..

O Recorrente pretende ver sancionado por este Tribunal que o prédio onde pretende construir uma moradia é servido por um caminho público, o que não é verdade conforme se alcança do processo de licenciamento referido e como se demonstra em contestação apresentada nos presentes e, nos autos em curso pelo TAF-Braga, proc. nº 1621/20.0BEBRG, matéria factual que diz ter sido dada como provada no proc. nº 613/20.4BEBRG, e daí a pretensa formação do caso julgado.

A jurisprudência também é decisiva, assertiva, clara e unânime, quanto à não extensão do caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença aos factos aí dados como provados, assim como quanto ao poder oficioso do Tribunal de recurso de determinar a eliminação e/ou alteração desses mesmos factos, de modo a que não se confira à decisão sobre a matéria de facto um valor de caso julgado que, manifestamente, a mesma não contém, como expressamente se decide no Ac. S.T.J., de 17-05-2018, proc. nº 3811/13.3TBPRD.P1.S1, in www.dgsi.pt:
...
III. Não obstante a verificação de uma situação de dupla conformidade, tendo os recorrentes centrado o objeto do recurso em torno da ofensa do caso julgado formal constituído por decisão proferida dentro do próprio processo e do caso julgado material formado por sentença proferida em ação anterior, é de admitir o recurso de revista ao abrigo do disposto nos arts. 629º, nº 2, al. a) e 671º, nº 2, al. a), ambos do CPC.
IV. Factos provados são os factos concretos assim julgados, na sentença final, após exame crítico das provas e não os factos tidos como assentes no despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
V. Ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do novo Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso.
VI. O caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença proferida num primeiro processo, não se estende aos factos aí dados como provados para efeito desses mesmos factos poderem ser invocados, isoladamente, da decisão a que serviram de base, num outro processo.
VII. Os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente.
VIII. Tendo a sentença do tribunal de 1ª instância se limitado a transpor os factos dados como provados numa ação anterior, julgando-os assentes, sem o exame crítico a que alude o art. 607º, nºs 4 e 5 do CPC, não está o Tribunal da Relação, ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º do CPC, impedido de determinar, mesmo oficiosamente, a eliminação e/ou a alteração desses mesmos factos, pois, a não ser assim, estar-se-ia a conferir à decisão sobre a matéria de facto um valor de caso julgado que, manifestamente, a mesma não tem.
IX. Nem o princípio da aquisição processual, previsto no artigo 413.º do CPC, nem o princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 421º, nº 1 do mesmo código, habilitam o tribunal a, sem mais, dar como provados os factos que assim foram considerados numa ação anterior.
Sobre a matéria, por relevante, mais se chama à colação o Ac. T.R.P., de 04-01-2011, proc. nº 3492/09.9TBVNG-C.P1, in www.dgsi.pt:
I - O caso julgado resultante do trânsito em julgado de sentença proferida em anterior acção não se estende aos factos aí declarados provados para efeitos desses.
II - Para que os depoimentos prestados num processo possam ser invocados e valorados noutro processo, nos termos do art. 522.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é pressuposto indispensável que tais depoimentos tenham sido sujeitos a audiência contraditória entre as mesmas partes.
III - Os factos de que o tribunal se pode servir por deles ter conhecimento no exercício das suas funções, a que alude o n.º 2 do art. 514.º do CPC, são apenas os factos já julgados pelo mesmo juiz noutro processo, ficando excluídos os factos julgados por juiz diferente em tribunal diferente.

Antes de terminar e sem repetir o já alegado em contestação nestes autos, assim como o que de vem de invocar, com a devida vénia alude-se por ser relevante ao alegado na contestação – artigos 91º, 92º, 95º a 119º, sobre as competências autárquicas e a tentativa de fraude à lei, bem como os efeitos da revelia ao não apresentar contestação nos autos de proc. nº 613/20.4BEBRG – artigos 92º e 93º.
TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado improcedente, assim se fazendo justiça!»
1.6. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público não emitiu parecer.
1.7. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1 Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas pela Apelante à apreciação deste TCAN resumem-se a saber se a decisão recorrida errou ao julgar que a sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG apenas condenou o Apelado a proferir uma decisão sobre o pedido de licenciamento urbanístico e não a deferir esse pedido, ou se, como sustenta o Apelante, aquela sentença condenou o município à prática de um ato devido de aprovação do projeto e emissão da licença de construção, o que tem como consequência a invalidade da ordem de embargo por ofensa da autoridade do caso julgado.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO
A- DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância deu como assentes os seguintes factos (não objeto de sindicância por parte da apelante, que limitou o seu recurso à interpretação e aplicação do direito, como resulta nomeadamente da falta de qualquer referência - e cumprimento - ao ónus de impugnação do julgamento da matéria de facto, previstos no art.º 640.º, nºs 1 e 2, al. a) do CPC):
«A. Em 14.05.2020, foi proferida sentença no processo n.º 613/20.4BEBRG, a qual transitou em julgado, contendo o seguinte teor (cf. documento n.º 2 junto aos autos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido): «(...)
«(...) E., contribuinte fiscal n.º (…), residente na Rua (…), doravante e abreviadamente designado de Autor, Intentou a presente Intimação urgente para a prática de acto legalmente devido para o cumprimento do dever de decisão no processo de licenciamento contra a CÂMARA MUNICIPAL DE (...) (órgão e entidade competente do MUNICÍPIO (...)), com sede na Praça (…), doravante e abreviadamente designada de Ré,
Com vista à intimação de tal entidade para, no prazo de 30 (trinta) dias, praticar, ao abrigo dos arts. 111.º e 112.º do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (RJUE), o acto legalmente devido de decisão do procedimento de licenciamento no processo de obras n.º 157/2016 (mormente, a emissão de licença de construção e respectivas guias para pagamento de taxas que sejam devidas).
(...)
IV. Fundamentação de Direito [subsunção jurídica da factualidade apurada]
Como já se referiu, com a presente intimação urgente, o Autor visa a intimação da Ré para, no prazo de 30 (trinta) dias, praticar, ao abrigo dos arts. 111.º e 112.º do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (RJUE), o acto legalmente devido de decisão do procedimento de licenciamento no processo de obras n.º 157/2016 (mormente, a emissão de licença de construção e respectivas guias para pagamento de taxas que sejam devidas).
Para tanto e, em síntese, como fundamento da sua pretensão, o Autor alegou que não tem habitação própria e que precisa de tal habitação por intermédio de construção de moradia unifamiliar - motivo pelo qual, deu entrada, em 11 de Outubro de 2016, nos serviços camarários da Ré, do processo de obras n.º 157/2016, tendo peticionado o licenciamento para a construção de uma moradia unifamiliar e de uma anexo agrícola. Alegou que do requerimento inicial constavam todos os documentos e elementos instrutórios; sendo que, apenas, em 29 de Agosto de 2017, o Autor recebeu da Ré a notificação n.º 1859/17, na qual, começou a ser apreciado o projecto de obras do Autor. Mais, alegou que foi sempre atendendo às solicitações da Ré, sendo que, em 28 de Março de 2018, a Junta de Freguesia de (...) apresentou, junto, dos serviços da Ré, um projecto de todas as infra-estruturas executadas no caminho público com o qual confronta o prédio rústico do Autor. Assim, em 13 de Março de 2020, o Autor apresentou, junto dos serviços da Ré, um requerimento, no qual, solicitava que fosse proferida a decisão no procedimento de licenciamento. Todavia, e até à presente data, não obteve qualquer resposta por parte da Ré (não tendo a Ré se pronunciado sobre o pedido formulado pelo Autor, continuando sem proferir a decisão no procedimento de licenciamento). Finalmente, o Autor alegou que tem direito a construir a sua habitação, dentro dos limites legais aplicáveis ao urbanismo (conforme arts. 268.º, n.º 4, 17.º e seguintes, 65.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e art. 9.º do RJUE), tendo a Ré incumprido o dever legal de decidir o procedimento de licenciamento nos termos do art. 13.º do CPA e do disposto nos arts. 23.º, n.º 1, alínea c), e 4.º, n.º 2, ambos do RJUE. O que tem prejudicado o seu direito constitucionalmente consagrado à habitação.
A Ré não apresentou contestação.
Vejamos.
Cumpre apreciar e decidir.
Desde logo, compulsada a factualidade supra julgada provada em 1) a 16) - e para a qual, aqui, se remete, por uma questão de economia processual -, constata-se que assiste razão ao Autor.
Senão, vejamos.
Desde logo, o art. 65.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o direito à habitação; tendo o Autor direito a contruir a sua habitação, com respeito pelos limites legais aplicáveis em matéria de urbanismo [cf. arts. 17ºess. E 65ºdaCRP; cf art (...) do RJUE].
Ora, em 11 de Outubro de 2016, o Autor, ao abrigo da faculdade prevista na alínea c), do n.º 2, do art. 4.º do RJUE, apresentou, junto dos serviços da Ré, um pedido de licenciamento para a construção de uma moradia unifamiliar e de um anexo agrícola, no prédio rústico descrito na Conservatória de Registo Predial de (...) com o n.º 271/19971008, com a área de 1010 m2, e inscrito na caderneta predial rústica com o n.º 279, sito na freguesia de (...), concelho de (...). Sendo que tal pedido de licenciamento foi instruído com os elementos para o efeito, tendo dado origem ao processo de obras n.º 157/2016.
Acresce que, em 11 de Setembro de 2017, o Autor prestou a informação que a Ré lhe solicitou, bem como apresentou os documentos requeridos, tendo cumprido com as condições fixadas. Ademais, em 09 de Outubro de 2017, os serviços da Divisão de Obras e Urbanismo da Ré elaboraram uma Informação Técnica cujo teor se transcreve, na parte que importa, a saber: “...Quanto à primeira questão parece-me inquestionável que a Assembleia de freguesia é órgão competente para aceitar a integração no seu domínio público dos terrenos e caminhos que assim entenda e neste caso a acta e certidão anexas são comprovativo suficiente de que o caminho em questão é público. Relativamente à execução das infraestruturas, trata-se de um trabalho que foi acompanhado pelos serviços competentes da Câmara Municipal que inclusivamente indicaram quais os materiais a aplicar e fizeram/supervisionaram a ligação às redes públicas pelo que concluo que também quanto a essa matéria estará tudo em situação regular, estando em falta a apresentação do projecto das mesmas que deverá ser apreciado por esta Câmara Municipal, para efeitos de licenciamento; Estas obras, enquadram-se na alínea h) do artigo 2o do RJUE, “Obras de Urbanização”, constituem uma “Operação Urbanísticas”, segundo a alínea j) do mesmo artigo 2o e estão sujeitas a licenciamento, segundo estabelece a alínea b) do nº 2 do artigo 4o do mesmo diploma. Quanto ao projecto de arquitectura, o mesmo já foi apreciado pelo técnico, Arq.to André Lopes em 16-08-2017, folha 78, podendo o mesmo ser aprovado condicionado à correcção das inconformidades apontadas na mesma, relativamente às dimensões do lugar de estacionamento e à informação administrativa da folha 56, com excepção da toponímia que ainda não existe para o caminho em causa, conforme certifica declaração da J.F. da folha 92, devendo nessas condições apresentar as especialidades.”. Tendo, em 04 de Abril de 2018, sido aposto despacho de concordância com tal Informação Técnica. Não se olvidando que o caminho público aí referido - com o qual o prédio rústico do Autor confronta - dispõe, na presente data, de todas as infra-estruturas como o pavimento de acesso público, redes de água, águas residuais de saneamento, águas pluviais e demais infra-estruturas de electricidade, iluminação pública e telecomunicações, atestadas pelos técnicos responsáveis, inclusive e de equipamento de fibra óptica instalado no próprio caminho público pela respectiva concessionária.
E, como é sabido, ao caso em apreço aplica-se o preceituado no art. 67.º do Regulamento do Plano Director Municipal (RPDM) de (...), pelo que não se extrai qualquer fundamento para a recusa da Ré em proferir a respectiva decisão no procedimento de licenciamento, nomeadamente porque tal dispositivo normativo reporta-se à “existência de infra-estruturas ” e não ao seu “licenciamento ”, conforme se transcreve: "É condição imperativa de edificabilidade, seja qual for o tipo ou utilização do edifício, a existência de infra-estruturas de acesso público, de abastecimento de água, de saneamento e de eletricidade, individuais ou coletivas, de iniciativa pública ou de iniciativa privada".
Ora, compulsada a factualidade supra julgada provada, constata-se que, no caso em apreço, não se verifica qualquer condição ou condicionante ao caminho público e às infra-estruturas de acesso público que com as mesmas confronta e tem acesso o prédio rústico do Autor, conforme atestado pelos órgãos autárquicos da Freguesia de (...). Por conseguinte, o prédio rústico do Autor, no qual pretende implantar o projecto de obras, confronta com caminho público com todas as infra-estruturas necessárias, nos termos da lei, respeitando, na íntegra, o art. 67.º do RPDM de (...). Aliás, a própria Freguesia de (...) comunicou, em 19 de Março de 2019, à Ré pelo processo n.º 164/19, que as infra-estruturas já se encontravam executadas no referido caminho público. Sendo que as obras de execução dos trabalhos de urbanização das infra-estruturas e redes de saneamento, águas pluviais, águas residuais, telecomunicações, electricidade iluminação pública e de pavimentação do referido caminho público da Freguesia de (...) se encontram isentas de controlo prévio e de licenciamento. Nesse sentido, vide, o art. 7.º do RJUE que preceitua, no seu n.º 1, o seguinte: “...estão igualmente isentas de controlo prévio: a) As operações urbanísticas promovidas pelas autarquias locais e suas associações em área abrangida por plano municipal ou intermunicipal de ordenamento do território...
Consequentemente, (i) considerando as atribuições da Freguesia de (...) e as respectivas competências [cf. arts. 7.º a 19.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro], e (ii) resultando do Decreto-Lei n.º 42271, de 31 de Maio de 1959 (o “plano das estradas municipais”) e do Decreto-Lei n.º 45552, de 30 de Janeiro de 1964 (o “plano das estradas municipais”), que o caminho público em questão nos autos é vicinal, e portanto sob jurisdição da Freguesia de (...), (iii) certo é que, integrando os caminhos o domínio público e tendo as freguesias atribuições e competências sobre os mesmos, devem estas "zelar" pela sua protecção, nos termos dos arts. l.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 07 de Agosto e do art. 84.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Encontrando-se previsão quanto ao “caminho vicinal” a título exemplificativo nos arts. 24.º e 63.º, ambos do RPDM de (...).
Em suma, constando do requerimento inicial apresentado pelo Autor e do respectivo procedimento a que deu origem, todos os elementos instrutórios legalmente exigidos, com a confrontação com o caminho público e a existência de infra-estruturas conforme requerimento e documentos da Freguesia de (...), mostra-se cumprido, in casu, o consignado nos arts. 4.º, n.º 2, alínea c), 9.º, 10.º, 11.º, 20.º e 23.º, do RJUE, na Portaria n.º 113/2015, de 22 de Abril, na Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, no Decreto-Lei nº 123/2009, de 21 de Maio e no art. 67.º do RPDM de (...). Também, quanto às dimensões necessárias do lugar de estacionamento, o projecto apresentado pelo Autor, cumpre com o disposto no art. 48.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento Municipal de Edificações do Concelho de (...). Finalmente, no tocante à toponímia, a Junta de Freguesia de (...) já atestou, nos termos dos arts. 15.º e ss. da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que o caminho público terá a designação de “Rua (...)” e os respectivos números de porta já se encontram definidos, faltando apenas a aprovação pela Ré.
Pelo que, não se vislumbra qualquer fundamento de indeferimento de acordo com o numerus clausus previsto no art. 24.º do RJUE, no Regulamento Municipal de Edificações do Concelho de (...), no art. 67.º do RPDM de (...).
Ademais, da leitura conjugada da alínea a), do art. 111.º e do n.º 1, do art. 112.º, ambos do RJUE, resulta que, tratando de acto que devesse ser praticado por qualquer órgão municipal, no âmbito do procedimento de licenciamento, o interessado pode deduzir junto dos Tribunais Administrativos, um pedido de intimação dirigido à entidade competente, aqui Ré, para o cumprimento do dever de decisão.
Ora, como se viu, a Ré omitiu (e continua a omitir) o dever de decisão que lhe é imposto, não apenas pelos arts. 20.º e 23.º do RJUE, mas também pelo art. 13.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA). Pelo que, com a sua conduta omissiva, a Ré criou uma situação de desprotecção jurídica do Autor, uma vez que este, sem nenhum acto administrativo que possa atacar, encontra-se sem decisão de licenciamento, não existindo sequer qualquer indeferimento ou recusa expressa da Ré. Sendo uma tal omissão susceptível de lesar direitos e interesses legítimos do Autor.
E, como se sabe, a Ré encontra-se vinculada ao princípio da legalidade, por força do art 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do art. 3.º, n.º 1, do CPA; pelo que o comportamento da Ré não se coaduna com os princípios pelos quais se deve pautar a Administração, tanto ao nível do procedimento como do processo, mormente no que se refere aos domínios da igualdade, proporcionalidade, colaboração, justiça, imparcialidade e da boa fé, concretizados nos arts. 6.º a 12.º do CPA. Por conseguinte, esgotado o prazo legal para a Ré proferir a respectiva decisão nos termos das referidas normas legais do RJUE, o Autor apresentou requerimento para efeitos de ser proferida a decisão do procedimento de licenciamento pela Ré - verificando-se, até à data, uma ausência de decisão por parte da Ré, seja quanto ao requerimento inicial do procedimento de licenciamento de 11 de Outubro de 2016, seja quanto a não ter relevado o requerimento e documentos da Freguesia de (...) no processo de infra-estruturas n.º 164/19.
Assim, permite-se o recurso a este Tribunal Administrativo, para intimação da autoridade administrativa competente para a prática do acto, sendo considerado facto constitutivo do interesse em agir para obter uma decisão judicial de intimação à prática de acto ilegalmente omitido. Ou, então, se os actos administrativo forem considerados estritamente vinculados este Tribunal poderá emitir decisão que produza os efeitos dos actos devidos.
Pelo que, ao abrigo do consignado no n.º 4, do art. 268.º da CRP, e em face da factualidade supra julgada provada em articulação com os referidos dispositivos normativos, a Ré terá de ser intimada à prática do acto legalmente devido de cumprimento do dever de decisão no processo de licenciamento, mormente a prática do acto de aprovação do projecto de construção apresentado pelo Autor e concomitante emissão de licença de construção e emissão de guias para pagamento das respectivas taxas que forem devidas [cf. arts. (..) alínea a), e 112.º, n.º 1 e 7, ambos do RJUE; cf. arts. 2 º, 3 º, nº 3, 36 º, todos do CPTA]. Procede, assim, in totum, a pretensão do Autor.
V. Decisão.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a presente intimação urgente para a prática de acto legalmente devido procedente, por provada, e, em consequência, determino (i) a intimação da Ré a, no prazo de 30 (trinta) dias, praticar o acto legalmente devido consubstanciado na decisão do procedimento de licenciamento n.º 157/2016, com a consequente prolação de decisão respeitante à licença de construção e respectivas guias para pagamento de taxas que sejam devidas; (ii) sendo que decorrido o prazo fixado em (i), sem que se mostre praticado o acto devido pela Ré, tem lugar a aplicação do disposto no artigo 113.º do RJUE por parte do Autor [cf. art. 112º, n.º9, do RJUE].
Custas do processo a cargo da Ré, cujo decaimento foi total (...).».
*
B. Em cumprimento do despacho de 13.07.2020 do Vereador da Câmara Municipal de (...), E. foi notificado de que por despacho do Presidente da Câmara Municipal de (...), de 20.10.2017 e face ao parecer prestado pelo Jurista dos Serviços Técnicos da Divisão de Obras, foi indeferido o pedido de licenciamento da construção de uma moradia unifamiliar e arrecadação agrícola (cf. documento junto aos autos com a petição inicial que deu origem ao processo n.º 1621/20.0BEBRG, na sequência de despacho, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
C. O parecer técnico que acompanhou o ofício a notificar o indeferimento do pedido de licenciamento da construção do Autor, contém o seguinte teor (cf. documento junto aos autos com a petição inicial que deu origem ao processo n.º 1621/20.0BEBRG, na sequência de despacho, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido): «(...)
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

D. Em 14.07.2021, foi apresentado junto do MUNICÍPIO (...) o projecto de especialidades, no âmbito do processo n.º 157/16 (cf. documento n.º 6 junto aos autos com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
E. Em 03.08.2020, na sequência da notificação da decisão de indeferimento do processo de obras n.º 157/16, E. apresentou recurso hierárquico dirigido à Câmara Municipal de (...), e juntou comprovativo do pagamento de taxas, no valor de €155,80 (cf. documento n.º 7 junto aos autos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
F. Em 28.08.2020, E. foi notificado do despacho do Presidente da Câmara Municipal de (...), com o seguinte teor (cf. documento n.º1 junto aos autos com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido):
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

G. A informação técnica de 20.08.2020 que sustentou a decisão de embargo da obra contém o seguinte teor (cf. documento n.º1 junto aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido): «(...)
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
*
H. Em 11.10.2016, o MUNICÍPIO (...) emitiu, em nome de E., factura/recibo com o seguinte teor (cf. 5 junto aos autos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido):
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
*
I. Em 27.11.2020, foi registada a entrada, via SITAF, de petição inicial que originou os presentes autos (cfr. fls. dos autos, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
*
Factos não provados: inexistem, com relevância para a decisão da causa.»
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III.B.DE DIREITO
O Recorrente impetra erro de julgamento de direito ao saneador-sentença recorrido por ter julgado a ação improcedente, considerando que a 1.ª Instância devia ter anulado a decisão administrativa datada de 28 de agosto de 2020, por via da qual o Apelado determinou o embargo das obras de construção de uma moradia unifamiliar a que respeita o processo de licenciamento de obras n.º 157/16, uma vez que, por força do disposto nos artigos 112.º e 113.º do RJUE estava legalmente autorizado a realizar tais obras, pelo que o embargo questionado nestes autos ofende o caso julgado formado pela sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG que intimou o réu a aprovar a sua pretensão urbanística.
Para tanto, aduz que perante a inércia do Réu quanto ao pedido de licenciamento da moradia que pretendia edificar em terreno sua propriedade, intentou no TAF de Braga a competente ação administrativa urgente de intimação para a prática de ato legalmente devido ao abrigo dos artigos 111.º, al. a) e 112.º, n.ºs 1 e 7, ambos do RJUE, e artigos 2.º, 3.º, n.º3 e 36.º, todos do CPTA, que ali correu termos com o processo n.º 613/20.4BEBRG, vindo a ser proferida sentença, transitada em julgado, que condenou o Município a, no prazo de 30 dias, aprovar o pedido de licenciamento apresentado e a emitir as competentes guias para pagamento das taxas que forem devidas, pelo que, tendo junto os projetos de especialidade e tendo o Réu deixado passar o referido prazo de 30 dias sem dar cumprimento à referida sentença, teve lugar a aplicação do disposto no art.º 113.º, n.º8 do RJUE, ficando o mesmo autorizado a iniciar a obra de construção, que por isso não podia ser embargada.
A 1.ª Instância, diferentemente da tese perfilhada pelo Autor, considerou não resultar da sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG uma obrigação para o Município de aprovar o pedido de licenciamento apresentado pelo Apelante, mas apenas o dever de proferir decisão quanto a esse pedido de licenciamento, a qual podia, assim, ser de indeferimento da sua pretensão urbanística. E entendeu assim, não por essa conclusão se impor perante o teor da sentença referida, mas porque considerou resultar da atual redação do artigo 112.º do RJUE, aprovada pelo Decreto-Lei 214-G/2015, de 2 de outubro, na qual passou a referir-se expressamente à interpelação da entidade competente para o cumprimento do dever de decisão, em conjugação com a natureza urgente deste meio processual, que « a intimação judicial para a prática do acto, consagrada no referido normativo, permite apenas a condenação na tomada da decisão, sem que o juiz se possa pronunciar sobre o concreto sentido decisório a tomar pela entidade administrativa, e bem assim, que caso se verifique o indeferimento expresso da pretensão ou da recusa expressa na prática do acto, deve o Autor lançar mão da acção de condenação à prática do acto devido, prevista nos artigos 66.º e seguintes do CPTA (neste sentido e para melhor esclarecimento, cfr. página 709 a 712 do RJUE Comentado por Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves e Dulce Lopes, Almedina, 2016, 4.ª Edição)»( negrito nosso). Foi nesse enquadramento que a Senhora juiz a quo entendeu ter «assim que concluir, que por via da sentença que fora proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG, apenas se impunha à Entidade Demandada a prática do acto administrativo devido, e que se encontrava em falta, ou seja, a decisão do pedido formulado pelo Autor, no âmbito do processo de licenciamento, e não o sentido decisório a seguir.
Tendo-se dado por assente no probatório que, na sequência da decisão judicial proferida no processo n.º613/20.4BEBRG, a Entidade Administrativa indeferiu o pedido de licenciamento em causa, o que legítima a decisão que ordenou o embargo das obras, ainda que o Autor possa sindicar judicialmente a bondade de tal decisão, o que inclusivamente fez, correndo o processo termos neste tribunal.»
Não podemos subscrever esta decisão da 1.ª Instância, pelas razões que passamos a expender.
Prima facie, recordemos o que dispõem os preceitos legais insertos no RJUE que regem sobre o pedido de intimação à prática de ato devido nesta matéria.
Começando pelo artigo 111.º do RJUE, o mesmo dispõe, sob a epígrafe “Silêncio da Administração”, que:
“Decorridos os prazos fixados para a prática de qualquer ato especialmente regulado no presente diploma sem que o mesmo se mostre praticado, observa-se o seguinte:
a) Tratando-se de ato que devesse ser praticado por qualquer órgão municipal no âmbito do procedimento de licenciamento, o interessado pode recorrer ao processo regulado no artigo 112.º;
b) [Revogada];
c) Tratando-se de qualquer outro ato, considera-se tacitamente deferida a pretensão, com as consequências gerais.”.
Por sua vez, o art.º 112º, também do RJUE, sob a epígrafe “Intimação judicial para a prática de ato legalmente devido”, estabelece que:
“1 - No caso previsto na alínea a) do artigo 111.º, pode o interessado pedir ao tribunal administrativo de círculo da área da sede da autoridade requerida a intimação da autoridade competente para proceder à prática do ato que se mostre devido.
2 - O requerimento de intimação deve ser apresentado em duplicado e instruído com cópia do requerimento para a prática do ato devido.
3 - A secretaria, logo que registe a entrada do requerimento, expede por via postal notificação à autoridade requerida, acompanhada do duplicado, para responder no prazo de 14 dias.
4 - Junta a resposta ou decorrido o respetivo prazo, o processo vai com vista ao Ministério Público, por dois dias, e seguidamente é concluso ao juiz, para decidir no prazo de cinco dias.
5 - Se não houver fundamento de rejeição, o requerimento só será indeferido quando a autoridade requerida faça prova da prática do ato devido até ao termo do prazo fixado para a resposta.
6 - Na decisão, o juiz estabelece prazo não superior a 30 dias para que a autoridade requerida pratique o ato devido e fixa sanção pecuniária compulsória, nos termos previstos no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
7 - Ao pedido de intimação é aplicável o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto aos processos urgentes.
8 - O recurso da decisão tem efeito meramente devolutivo.
9 - Decorrido o prazo fixado pelo tribunal sem que se mostre praticado o ato devido, o interessado pode prevalecer-se do disposto no artigo 113.º, com excepção do disposto no número seguinte.
10 - Na situação prevista no número anterior, tratando-se de aprovação do projecto de arquitetura, o interessado pode juntar os projetos das especialidades e outros estudos ou, caso já o tenha feito no requerimento inicial, inicia-se a contagem do prazo previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º”.
Outrossim, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 113.º do RJUE «Nas situações referidas no n.º 9 do artigo anterior, o interessado pode iniciar e prosseguir a execução dos trabalhos de acordo com o requerimento apresentado nos termos do n.º4 do artigo 9.º ou dar de imediato utilização à obra».
De acordo com estes preceitos legais, a intimação aí prevista é um meio processual principal urgente, que deve ser dirigido contra a autoridade competente para praticar o ato e apenas pode ser usado perante situações de omissão ou silêncio, não tendo o silêncio da Administração Municipal o mesmo valor em todas as situações. Para o que releva in casu, se estiver em causa a prolação de uma decisão no âmbito de “procedimento de licenciamento”, o incumprimento, no prazo legal, do dever de decidir, é considerado pelos artigos 111.º, alínea a), e 112.º do RJUE como uma omissão pura e simples ou como um “facto incolor”, isto é, como um mero facto constitutivo do interesse em agir em juízo para obter uma decisão judicial de condenação à prática do ato ilegalmente omitido. Refere o n.º 1 do artigo 112.º do RJUE que, naquele caso, pode o interessado pedir ao tribunal administrativo de círculo da área da sede da autoridade requerida a intimação da autoridade competente para proceder à prática do ato que se mostre devido. Estão abrangidos por este regime todos os atos que devessem ser praticados no âmbito do procedimento de licenciamento. A respeito deste mecanismo veja-se Sónia Afonso Vasques, in “As Intimações no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, 2013, pág. 241, segundo a qual: “Com o RJUE, perante o silêncio pela Administração municipal dos atos indispensáveis à propulsão do procedimento de licenciamento ou da respectiva deliberação final, o particular deixa de poder supor tacitamente deferida a pretensão a que o ato omitido se refere. O silêncio da Administração passa a ser configurado – no âmbito do procedimento de licenciamento de operações urbanísticas – como um mero facto cuja ocorrência abre o acesso à via contenciosa, através da intimação judicial para a prática de ato legalmente devido. Se o particular não lançar mão deste meio processual, a ausência de decisão no prazo legal estabelecido não produz qualquer efeito.” (no mesmo sentido, cfr. Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs, in “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado, 3ª Edição, 2012, pág. 692)
No caso em análise, o Autor/ Apelante, recorreu ao mecanismo previsto nestes preceitos legais e obteve do TAF de Braga uma sentença que julgou procedente o pedido de intimação do Município à prática do ato devido. Acontece que, para o Apelante, a referida sentença condenou o Município Apelado a deferir o pedido de licenciamento urbanístico que apresentara, ao passo que para o Município aquela sentença apenas o condenou a decidir o referido pedido de licenciamento, na sequência do que veio a proferir decisão administrativa de indeferimento da pretensão urbanística formulada pelo Autor/ Apelante. E daí que, tendo o autor dado início à obra de construção da moradia que constituía objeto do pedido de licenciamento que foi indeferido, as mesmas tenham sido embargadas através do despacho impugnado nestes autos.
A questão que se coloca é, por conseguinte, a de saber se a ordem de embargo determinada pelo ato impugnado desrespeitou a sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG, ao ponto de se poder afirmar que essa decisão administrativa violou o caso julgado formado por essa decisão judicial.
Numas breves considerações sobre o caso julgado, dir-se-á que, obviamente, não está aqui em causa a exceção dilatória de caso julgado, mas, sim, uma alegada autoridade do caso julgado (formado pela referida sentença no processo n.º 613/20.4BEBRG).
Como é consabido, uma vez transitadas em julgado, as decisões dos tribunais tornam-se estáveis, isto é, o nelas decidido, não pode vir a ser submetido a posterior novo julgamento (Manuel Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 306 e 307; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manuel de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, págs. 704 e 705.)
Essas decisões, porque dirimiram o concreto conflito que foi submetido pelas partes à decisão do tribunal, logo que transitem em julgado, por não admitirem recurso ordinário, ficam a ter força obrigatória dentro e fora do processo, mas nos limites fixados pelos arts. 580º e 581º do CPC (art. 619º, n.º 1 do mesmo Código), impondo-se, de modo absoluto, a todos os tribunais, às partes e, inclusivamente, dentro de determinados limites e pressupostos, a terceiros, intra e extra processualmente.
Deste modo é que, como referido, o art.º 619º, n.º 1 do CPC., “transitada em julgado a sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º”, e nos termos do art. 621º “a sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga”. Esta imutabilidade e indiscutibilidade da decisão transitada em julgado, como «garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, própria do Estado de Direito (cf. artigo 2.º da Constituição)» ( cfr. RUI PINTO, in Código de Processo Civil anotado, Almedina, vol. II, Almedina, 2018, nota 2-I ao art.619, pág.185) manifesta-se, de acordo com a construção doutrinária e jurisprudencial do caso julgado:
a) Num efeito negativo e formal, que opera como exceção dilatória e que evita que o Tribunal julgue a ação repetida (entre os mesmos sujeitos e sobre o mesmo objeto processual) e reproduza ou contradiga a decisão anterior, nos termos dos arts. 577º/i), 578º, 580º e 581º do C. P. Civil: «Entre as mesmas partes e com o mesmo objeto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma exceção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado)»[ LEBRE DE FREITAS, in «Um polvo chamado Autoridade do Caso Julgado», pág.693, in www.portal.oa.pt ).
Neste caso, a decisão anterior impede o conhecimento do objeto posterior (Ac. do TRG de 07.08.2014, proferido no processo nº600/14.TBFLG.G1.)
b) Num efeito positivo e material, que opera no conhecimento de mérito da causa, através da autoridade do caso julgado, quando, apesar de existir identidade de sujeitos ou via equiparada a esta, se está perante objetos processuais distintos.
«Entre as mesmas partes, mas com objetos diferenciados entre si e ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da ação mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado)- LEBR DE FREITAS, in artigo citado in ii, pág.693.
Temos, assim, que o caso julgado tem “por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior” e, na sua vertente positiva, não implicando a tríplice identidade quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, “tem o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito” ( cfr. Ac do STJ de 26/2/2019, processo nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Em conclusão, a autoridade de caso julgado decorre de “uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dando expressão aos valores da segurança e certeza inerentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver: a intangibilidade (tendencial) do caso julgado visa evitar a existência de decisões, em concreto, incompatíveis. A força e autoridade de caso julgado tem por finalidade evitar que a regulação jurídica da relação jurídica possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica” (Ac STJ de 14/5/2019, processo 1049/18.2T8GNR-A.S1, disponível em www.dgsi.pt15].
No que concerne às decisões proferidas pelos tribunais administrativos, o n.º1 do artigo 158.º do CPTA, reafirmando o princípio constitucional da obrigatoriedade das decisões dos tribunais e da prevalência sobre as decisões de quaisquer outras autoridades estabelece expressamente que tais decisões «são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas». E no seu n.º2 prevê-se que « A prevalência das decisões dos tribunais administrativos sobre as das autoridades administrativas implica a nulidade de qualquer ato administrativo que desrespeite uma decisão judicial e faz incorrer os seus autores em responsabilidade civil, criminal e disciplinar, nos termos previstos no artigo seguinte». Reafirma-se neste preceito a regra de que são nulos os atos administrativos que ofendam os casos julgados, estabelecida no artigo 161.º, n.º2, alínea i) do CPA.
Voltando ao caso sub judice, temos, antes de mais, que ver e interpretar devidamente o que foi decidido na sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG, pois só dessa forma poderemos aferir sobre a verificação de uma ofensa ao aí julgado por banda da decisão administrativa de embargo de obra impugnada na presente ação.
O Tribunal a quo, como vimos, rejeita a interpretação defendida pelo Apelante, considerando que da referida sentença não pode resultar uma condenação ao deferimento do pedido de licenciamento urbanístico apresentado pelo Apelante, quando para o mesmo aquela sentença condenou precisamente o réu a aprovar a sua pretensão urbanística.
Existe, por conseguinte, uma divergência interpretativa em relação à prolatada sentença que põe em confronto duas teses opostas, não sendo inócua a opção por uma ou outra das teses, na medida em que, caso se acompanhe o entendimento subscrito pelo Tribunal a quo, que é também o defendido pelo Réu/Apelado, a decisão sob sindicância terá de ser confirmada, ao passo que, caso se conclua assistir razão ao Apelante então terá forçosamente de revogar-se a decisão in crisis e, em substituição, julgar a ação proposta pelo Autor/Apelante, como procedente, julgando nula a decisão de embargo com fundamento em violação da autoridade de caso julgado formada por aquela sentença administrativa.
Assim, o primeiro exercício a efetuar é de cariz interpretativo, no caso, aferir o verdadeiro sentido e alcance da sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG. Ora, a sentença, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 152.º do CPC, é «o ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa». Destarte, prevê o artigo 154º, nº 1 e nº 2 do C.P.C que as «decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas», não podendo em princípio a justificação «consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição», o que mais não é do que uma concretização do comando constitucional inscrito no artigo 205º, nº 1 da Lei Fundamental (CRP), nos ternos do qual as «decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
Tendo a sentença como fim resolver um conflito de interesses de modo a restabelecer a paz social, a mesma só será alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação (M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 348). E daí que a falta de especificação dos respetivos fundamentos, de facto ou de direito, constitua causa de nulidade da decisão judicial (artigo 615º, nº 1, al. b) do C.P.C., com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho).
Ora, sendo a sentença um ato jurídico por via do qual o Tribunal decide uma causa, pode muito bem acontecer que a mesma não seja clara, precisa ou inequívoca, e que, por via disso, suscite divergências interpretativas, deixando incertezas sobre o seu sentido e alcance, tal como de resto pode suceder com qualquer ato de comunicação humana, em que se proceda à exteriorização do pensamento por meio da linguagem. Aliás, como bem se expendeu em Acórdão do STJ, de 28.07.1994, CJ, Ano II; Tomo 2, p. 166: «as decisões, como os contratos, como as leis, como, afinal, todos os textos, têm de ser interpretados e não lidos; ler não é o fim; é o princípio da interpretação».
Pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/02/2011, proferido no processo n.º 190-A/1999.E1.S1 que constitui afirmação corrente a de que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro ato jurídico a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos – pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de uma sentença - o que determina que a sentença deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto.
Sendo inequívoco que as sentenças judiciais são atos jurídicos, naturalmente que ser-lhe-ão aplicáveis as regras de interpretação consignadas para os negócios jurídicos, como de resto decorre do disposto no artigo 295º do C.C.
De acordo com o artigo 236º, nº 1 do Cód.Civil «a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele». Contudo, «sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida» (nº 2 do art. 236º citado).
O nº 1 do artigo 236º do Cód. Civil consagrou uma interpretação objetivista (denominada teoria da impressão do destinatário), ao passo que o seu nº 2 consagrou uma interpretação subjetivista, relativamente à qual deixa de se justificar a proteção das legítimas expectativas do declaratário e da segurança do tráfico.
Estando em causa a interpretação de uma sentença tem-se «por adquirido que a interpretação da decisão judicial não tem por objecto a reconstrução da mens judicis - mas a descoberta do sentido preceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente» (Cfr. Ac. do TRC, de 15.01.2013, Henrique Antunes, Processo nº 1500/03.6TBGRD-B.C1). Ou seja, «não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei”, no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objectivo a essa situação” ( Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/11/1998, processo nº 98B712, ITIJ, citando Rosenberg e Schwab)» ( cfr. Ac. do STJ, de 03.02.2011, Lopes do Rego, Processo nº 190-A/1999.E1.S1).
De acordo com a jurisprudência que tem vindo a produzir-se neste domínio, a decisão judicial deve ser interpretada de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário - a parte ou outro tribunal - possa deduzir do seu contexto. (Neste sentido, entre muitos: Ac. do STJ, de 05.12.2002, Ferreira Girão, Processo nº 02B3349, Ac. do STJ, de 05.11.2009, Oliveira Rocha, Processo nº 4800/05.TBAMD-A.S1, Ac. do STJ, de 03.02.2011, Lopes do Rego, Processo nº 190-A/1999.E1.S1, Ac. do STJ, de 26.04.2012, Maria do Prazeres Beleza, Processo nº 289/10.7TBPTB.G1.S1, ou Ac. do STJ, de 20.03.2014, Fernandes do Vale, Processo nº 392/10.3TBBRG.G1.S1; Ac. do STA, de 23.02.2012, Francisco Rothes, Processo nº 01153/11; Ac. da RC, de 22.03.2011, Teles Pereira, Processo nº 243/06.3TBFND-B.C1, ou Ac. da RC, de 15.01.2013, Henrique Antunes, Processo nº 1500/03.6TBGRD-B.C1. Contudo, no citado Ac. do TRC, de 22.03.2011, refere-se e justifica-se a necessidade de se ponderarem, simultaneamente, as regras próprias da interpretação da lei, face novamente à particular natureza do ato a interpretar em causa).
Entende-se por «declaratário normal» o que seja «medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante», a não ser que este, razoavelmente, não pudesse contar com tal sentido (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 223).
Já o «comportamento do declarante» (a que se refere o nº 1 do art. 236º do C.C.) terá aqui que ser desvalorizado ou habilmente concretizado, importando antes de mais ter presente que qualquer decisão judicial é a necessária conclusão de um pré-ordenado procedimento; e que o seu autor «se situa “numa específica área técnico jurídica”, investido na função de aplicador da lei, que, por sua vez, está obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no artigo 9º do Código Civil, dirigindo-se a outros técnicos de direito» (Ac. do STJ, de 03.02.2011, Lopes do Rego, Processo nº 190-A/1999.E1.S1).
«Assim, as afirmações decisórias contidas num pronunciamento judicial, não valem desgarradas do acto de aplicação do Direito que as determinou ou, tão pouco, pela sua aparência semântica. Valem, isso sim, no quadro jurídico que a elas conduziu e na medida - e só nessa medida - em que nesse quadro adquiriram significado e são passíveis de uma reconstrução racional. Valem, pois, enfim, como afirmações decisórias de cariz técnico-jurídico cujo sentido passa pelo processo argumentativo que as justificou.
É neste sentido que os elementos objetivos (correspondentes ao ato de interpretação e aplicação do Direito, visto este como percurso do qual a decisão constitui o ponto de chegada) se destacam (os elementos objetivos), na compreensão do sentido de uma decisão judicial, da pura afirmação, descontextualizada desse ato, que essa decisão pareça expressar, se isso (o que nela pareça) não obtiver uma efetiva comprovação, racionalmente expressa, no antecedente ato de interpretação e aplicação do Direito» (Ac. do TRC, de 22.03.2011, Teles Pereira, Processo nº 243/06.3TBFND-B.C1).
Logo, na interpretação da decisão judicial ter-se-á que atender (conforme toda a jurisprudência anteriormente citada): à parte decisória propriamente dita (ao dispositivo final); aos seus fundamentos; e mesmo à globalidade dos atos que a precederam (quer se trate de atos das partes, ou de atos do tribunal), bem como a outras circunstâncias relevantes, mesmo posteriores à respetiva elaboração.
«Por outras palavras, a identificação do objecto da decisão passa pela definição da sua estrutura, constituída pela correlação teleológica entre a motivação e o dispositivo decisório, elementos que reciprocamente se condicionam e determinam, fundindo-se em síntese normativa concreta (cfr. Castanheira Neves, RLJ 110º, pags. 289 e 305).
De realçar, ainda, que, embora o objecto da interpretação seja a própria sentença, a verdade é que, nessa tarefa interpretativa, há que ter em conta outras circunstâncias, mesmo que posteriores, que funcionam como meios auxiliares de interpretação, na medida em que daí se possa retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar (Vaz Serra, RLJ, 110-42)» (Ac. do STJ, de 05.11.2009, Oliveira Rocha, Processo nº 4800/05.TBAMD-A.S1).
Sendo, porém, a decisão judicial um
acto formal, - amplamente regulamentado pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição de interesses nela contida -, «não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso» (art. 238º, nº 1 do C.C.).
Concluindo, para a interpretação de uma sentença, «não basta considerar a parte decisória, cumprindo tomar em conta a fundamentação, o contexto, os antecedentes da sentença e os demais elementos que se revelem pertinentes, sempre garantindo que o sentido apurado tem a devida tradução no texto» (Ac. do STJ, de 26.04.2012,
Maria do Prazeres Beleza, Processo nº 289/10.7TBPTB.G1.S1).
Ainda muito recentemente, o STJ, no seu acórdão de 16/12/2021, proferido no processo n.º 970/18.2T8PFR.P1.S1, a respeito da interpretação das sentenças, conclui que «I. As regras da interpretação dos negócios jurídicos são aplicáveis à interpretação das sentenças enquanto actos jurídicos. Daí que uma sentença judicial (por via do estatuído no citado artº 295º) deve ser interpretada à luz do artº 236º, ambos do Código Civil»
Voltando ao caso em análise, na ótica do Apelado, o Apelante extrai da condenação no processo nº 613/20.4BEBRG uma amplitude que a sentença não acolhe, atendendo ao meio processual onde aquela decisão foi proferida e aos seus limites intrínsecos, e daí que a decisão recorrida não mereça censura ao considerar válida a decisão de embargo. A seu ver, o Apelante extrai do segmento decisório da sentença, que convoca como caso julgado, um sentido verbal que a mesma não contém, pelo qual em seu entender o Município ora recorrido ficou obrigado a deferir o pedido de licenciamento. Mas sem razão.
Consta do dispositivo da referida sentença a seguinte condenação: «Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a presente intimação urgente para a prática de acto legalmente devido procedente, por provada, e, em consequência, determino (i) a intimação da Ré a, no prazo de 30 (trinta) dias, praticar o acto legalmente devido consubstanciado na decisão do procedimento de licenciamento n.º 157/2016, com a consequente prolação de decisão respeitante à licença de construção e respectivas guias para pagamento de taxas que sejam devidas; (ii) sendo que decorrido o prazo fixado em (i), sem que se mostre praticado o acto devido pela Ré, tem lugar a aplicação do disposto no artigo 113.º do RJUE por parte do Autor (...)». (sublinhado nosso).
Ora, salvo o devido respeito, lendo atentamente o segmento decisório da aludida sentença resulta do seu próprio teor literal que o Município foi condenado a emitir um ato de sentido positivo, ou seja, de aprovação dos projetos, emissão de licença de construção e das guias para pagamento das taxas devidas e não apenas a emitir uma decisão, sem conteúdo pré-determinado. Qualquer destinatário normal colocado perante o dispositivo daquela sentença não poderia senão concluir que a ação em causa foi julgada procedente e, nesse seguimento, que o réu foi intimado a praticar o ato legalmente devido, «com a consequente prolação de decisão respeitante à licença de construção e respetivas guias para pagamento de taxas que sejam devidas».
Mas se alguma dúvida existisse sobre a amplitude da condenação determinada naquela sentença, então bastaria atentar-se na fundamentação da referida sentença, na qual se afirma inequivocamente que « mostra-se cumprido, in casu, o consignado nos arts. 4.º, n.º 2, alínea c), 9.º, 10.º, 11.º, 20.º e 23.º, do RJUE, na Portaria n.º 113/2015, de 22 de Abril, na Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, no Decreto-Lei nº 123/2009, de 21 de Maio e no art. 67.º do RPDM de (...). Também, quanto às dimensões necessárias do lugar de estacionamento, o projecto apresentado pelo Autor, cumpre com o disposto no art. 48.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento Municipal de Edificações do Concelho de (...). Finalmente, no tocante à toponímia, a Junta de Freguesia de (...) já atestou, nos termos dos arts. 15.º e ss. da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que o caminho público terá a designação de “Rua (...)” e os respectivos números de porta já se encontram definidos, faltando apenas a aprovação pela Ré». Extrai-se deste trecho da sentença que para o senhor juiz que proferiu aquela decisão não existia qualquer impedimento legal ao licenciamento da pretensão urbanística objeto do pedido de condenação à prática de ato devido, o que, leva a que se conclua que o tribunal intimou o réu à prática de um ato devido com um conteúdo pré-determinado, qual seja o de aprovação do pedido de licenciamento apresentado pelo Apelante. Aliás, afirma-se naquela sentença que «não se vislumbra qualquer fundamento de indeferimento de acordo com o numerus clausus previsto no art. 24.º do RJUE, no Regulamento Municipal de Edificações do Concelho de (...), no art. 67.º do RPDM de (...)» e conclui-se que « a Ré terá de ser intimada à prática do acto legalmente devido de cumprimento do dever de decisão no processo de licenciamento, mormente a prática do acto de aprovação do projecto de construção apresentado pelo Autor e concomitante emissão de licença de construção e emissão de guias para pagamento das respectivas taxas que forem devidas [cf. arts. (..) alínea a), e 112.º, n.º 1 e 7, ambos do RJUE; cf. arts. 2 º, 3 º, nº 3, 36 º, todos do CPTA]. Procede, assim, in totum, a pretensão do Autor». (sublinhado nosso).
Perante tão expressiva e concludente fundamentação, cremos não subsistirem quaisquer dúvidas sobre o sentido e alcance da condenação do réu. Como supra se disse e relembramos, na interpretação da decisão judicial ter-se-á que atender à parte decisória propriamente dita (ao dispositivo final), aos seus fundamentos e mesmo à globalidade dos atos que a precederam (quer se trate de atos das partes, ou de atos do tribunal), bem como a outras circunstâncias relevantes, mesmo posteriores à respetiva elaboração. Note-se que a letra da sentença é elemento essencial na interpretação a fazer, não podendo a mesma valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos atos normativos – art. 9º, nº2, – tem, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer também para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial).
Partindo dessas premissas, não podemos aquiescer com o entendimento sufragado pela 1.ª Instância de acordo com o qual apenas decorre da dita sentença uma condenação do Município à prática do ato devido, qual seja, decidir o pedido de licenciamento apresentado pelo Autor/Apelante, sem uma vinculação ao sentido da decisão a proferir.
No caso, é insofismável que a sentença em causa condenou o Município à prolação de uma decisão de aprovação do projeto, com a consequente emissão de licença de construção e das guias para pagamento das taxas que se mostrarem devidas.
E não se diga que a esta conclusão obsta a consideração da natureza do meio processual que foi acionado e em cujo âmbito se prolatou a sentença em causa, como parece ser a posição sufragada pelo Tribunal a quo para afastar do segmento decisório daquela sentença qualquer condenação à prática de um ato com um determinado conteúdo. Para a 1.ª Instância, estando em causa a intimação regulada nos artigos 111.º e 112.º do RJUE, o ato devido só pode traduzir-se numa condenação da Administração Municipal a decidir a pretensão do interessado, mas não pode traduzir-se uma condenação direta da Administração à prática de um ato de deferimento/indeferimento. Para a senhora juiz a quo, seja qual a for fundamentação da sentença, a condenação inserta nessa decisão não podia ser uma condenação à prática de ato devido de aprovação do projeto mas a mera condenação do Apelado a decidir o processo de licenciamento (deferindo ou indeferindo), porque só uma condenação geral nesses termos é consentida pelo meio processual em causa. Mas sem razão.
Pese embora as diferenças que existem entre a intimação prevista nos referidos artigos 111.º e seguintes do RJUE e, a ação de condenação à prática de ato devido regulada no CPTA « é relativamente aos poderes de pronúncia que este recurso ao CPTA é mais prodigioso, na medida em que permite concluir que ao juiz não é apenas admissível condenar “neutralmente” a autoridade recorrida a decidir num determinado prazo, mas também a graduar os termos da sua decisão, em conformidade com o disposto no artigo 71.º do CPTA.
De facto, tanto na intimação como na ação de condenação à prática de um ato administrativo devido, o poder característico e irrenunciável do juiz é, precisamente, o poder de condenação , sendo que são permitidos vários graus de intervenção e de conformação judicial, na medida em que o juiz tanto pode determinar a prática de um ato em gera, sem se pronunciar sobre o conteúdo que lhe deve ser imprimido, como pode estabelecer as grandes linhas orientadoras pelas quais se deve guiar o decisor, i.e., explicitar as vinculações que impendem sobre o mesmo, como ainda determinar o conteúdo preciso do ato…Admite-se, portanto, quer condenações concretas e diretas, quando se esteja perante atos de conteúdo devido, quer condenações genéricas, que visam apenas fornecer indicações ou diretrizes mais ou menos precisas tendo em consideração o caso sub iudicio» ( cfr. FERNANDA PAULA OLIVEIRA, MARIA JOSÉ CASTANHEIRA NEVES, DULCE LOPES E FERNANDA MAÇAS, in Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado, 2.ª Edição, Almedina, pág.593/4).
Além do mais, precise-se que mesmo que não coubesse dentro dos poderes de pronuncia do tribunal, o poder de condenação à prática de ato devido com um certo e determinado conteúdo, não seria por essa razão que o interprete passava a estar autorizado a ver na decisão judicial a condenação que tinha de ser proferida e não a que concretamente foi decidida. Se essa condenação não é admissível considerando o objeto da ação (pedido e causa de pedir) ou o disposto no quadro legal aplicável, então a conclusão que se imporia retirar é a de que o julgador em causa incorreu em nulidade por excesso de pronúncia ou em erro de julgamento, o que carecia de ser atacado em sede de recurso jurisdicional.
A nosso ver, a sentença em causa é clara, expressa e inequívoca no reconhecimento ao Autor/Apelante do direito a ver a sua pretensão urbanística aprovada pelo réu, o que se mostra em conformidade com a convicção do julgador de que estavam reunidos todos os pressupostos que permitiam condenar o Município a aprovar o pedido de licenciamento, e daí que tenha proferido uma sentença de condenação à emissão de um concreto ato devido- o de aprovação desse pedido.
No caso, não tendo sido interposto recurso jurisdicional da sentença proferida na ação que correu termos com o processo n.º 613/20.4BEBRG, a mesma transitou em julgado, pelo que, bem ou mal, o aí decidido consolidou-se na ordem jurídica tornando-se inatacável, intra e extraprocessualmente, a não ser em recurso de revisão, caso naturalmente os respetivos pressupostos materiais e temporais se encontrem preenchidos.
A este respeito não é despiciendo considerar o que se escreveu em Acórdão deste TCAN, de 02/10/2020, proferido no processo cautelar n.º 1049/20.2BEBRG intentado pelo autor, onde se pode ler o seguinte: «Ora, desde logo, falta evidência à conclusão tirada pelo Tribunal a quo, de que pela sentença proferida no Proc. n.º 613/20.4BEBRG não condenou o requerido MUNICÍPIO (...) a deferir o pedido de licenciamento, mas apenas a proferir decisão quanto a ele, já que sempre se imporá considerar, para além do externado no segmento decisório da sentença, os respetivos fundamentos, o quadro legal enformador dos deveres incutidos no requerido MUNICÍPIO, nomeadamente à luz do disposto nos artigos 11.º e 112.º do RJUE ( DL. n.º 555/99) e da força e âmbito do caso julgado.
Mas também lhe falta a certeza, na medida em que não se pode ter por unicamente certo e ser, assim, seguro que por tal razão a pretensão do requerente deveria ser, à luz do direito, indeferida, por falta de preenchimento do requisito do fumus boni iuris. Isto quando, o requerente também suportou a sua tese da ilegalidade do despacho suspendendo na alegação de que se havia formado ato tácito de deferimento por ter decorrido o fixado prazo de 30 dias sem que tenha sido proferida decisão, e que, assim, haveria lugar à aplicação do disposto no artigo 113.º do RJUE».
Logo, estando a sentença em causa transitada em julgado, a mesma não pode ser alterada por qualquer tribunal a não ser, reafirma-se, em sede de recurso de revisão.
Por conseguinte, forçoso é concluir que a decisão de embargo questionada na presente ação é nula por violar o caso julgado formado pela sentença proferida no processo n.º 613/20.4BEBRG e conforme se prevê no artigo 158.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, essa é a consequência para os atos administrativos que desrespeitem uma decisão judicial.
Termos que se impõe julgar procedente o presente recurso jurisdicional, revogando-se a sentença recorrida e, em substituição, julgar procedente a ação administrativa movida pelo autor (apelante), declarando a nulidade do ato impugnado.
**

IV-DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte, em julgar a presente apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e julgam, em substituição, procedente a ação de impugnação movida pelo autor contra o réu, declarando-se nula a decisão de embargo de obra constante do despacho de 28 de agosto de 2020, proferida no processo de licenciamento de obras com o número 157/2016.
*
Custas pelo apelado (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
*

Porto, 14 de janeiro de 2022

Helena Ribeiro)
Nuno Coutinho
Paulo Ferreira de Magalhães, em substituição