Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00743/13.9BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/17/2021
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL; ACIDENTE EM ESCOLA; SEGURO ESCOLAR; DANO BIOLÓGICO
Sumário:1– O dano biológico corresponde a um dano físico permanente que pode determinar uma indemnização por danos patrimoniais ou não patrimoniais, consoante haja ou não perda da capacidade de ganho, mas que sempre se destinará a compensar o lesado pela irreversibilidade ou permanência do dano físico-psíquico sofrido.
O dano biológico, enquanto dano físico permanente justificará uma indemnização seja no âmbito patrimonial, se se verificar afetação da pessoa do ponto de vista funcional determinante de consequências negativas também ao nível da sua atividade geral, seja a título de dano não patrimonial na medida em que seja merecedor da tutela do direito.

2 - Resultando do Artº 491º do Código Civil que “as pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiros”, sempre caberia aos Demandados ilidir a presunção relativamente aos funcionários que se encontravam a vigiar o espaço escolar onde se veio a verificar o acidente que vitimou uma criança.

3 - O seguro escolar, à luz dos diplomas que o instituíram, constitui uma modalidade de ação social escolar destinada a garantir a cobertura financeira dos danos resultantes de acidente escolar e cujo fim primordial é a proteção dos próprios alunos durante a sua vida escolar, garantindo-se aos mesmos uma cobertura financeira na assistência de que careçam em consequência de acidente escolar de que sejam vítimas, em íntima conexão com a atividade escolar e desta dependentes e que igualmente justificam proteção financeira.
Em qualquer caso, o regime jurídico aplicável, designadamente da Portaria n.º 413/99, mormente, os seus arts. 23.º e 24.º, não impede por parte do lesado, se for caso disso, o recurso aos meios jurisdicionais tendentes ao ressarcimento dos danos verificados em termos da Responsabilidade Civil extracontratual
Recorrente:Estado Português
Recorrido 1:C.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento aos recursos.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:N/A
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório
O Estado Português e o Município (...), devidamente identificados nos autos, no âmbito da ação administrativa comum, intentada por G. e J., em representação do seu filho menor C., tendente à condenação daqueles a título de responsabilidade civil extracontratual, em resultado do acidente sofrido pelo identificado menor, encontrando-se no recreio do Infantário (...), quando uma criança levantou a tampa de uma caixa de saneamento e a deixou cair sobre o seu terceiro dedo da mão direita, inconformados com a Sentença proferida em 1 de setembro de 2021 no TAF de Penafiel, na qual a ação foi julgada parcialmente procedente, vieram, separadamente, interpor recurso jurisdicional da mesma.
Assim, constam das conclusões do Recurso apresentado pelo Estado Português em 23 de setembro de 2021, as seguintes conclusões:
1 – A douta sentença proferida em 01/09/2021 julgou parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, condenou solidariamente o Réu Estado Português e o interveniente Município (...) no pagamento ao Autor do montante de €4.000 a título de dano patrimonial (dano biológico) e no montante de €10.000 a título de danos não patrimoniais;
2 - Decorre da matéria de facto assente, que no dia do evento danoso (acidente que vitimou o Autor C.) estavam de vigilância ao recreio uma professora do 1º ciclo, uma educadora de infância e duas auxiliares de ação educativa que, apesar de estarem colocadas em sítios distintos do recreio, não visualizaram o ocorrido. E, perante tal circunstancialismo, a Mmª Juiz a quo concluiu que o dever de vigilância foi omitido, porque não foi eficaz e adequado, sobretudo estando em causa crianças de tão tenra idade, que muitas vezes não são capazes de representar potenciais situações de perigo, ainda para mais, quando inseridas num grupo de outras crianças da mesma idade ou idades semelhantes;
3 - Todavia, com o devido respeito por opinião diversa, não houve violação de qualquer dever de cuidado ou vigilância por parte da educadora ou auxiliar;
4- Com efeito, para além da educadora, estavam no recreio uma professora e duas auxiliares, distribuídas pelo espaço, de forma a abarcarem todo o recreio e estarem vigilantes relativamente às crianças que ali se encontravam a brincar
5 - O acidente decorreu devido a um comportamento imprevisível de uma criança, colega do Autor, que não foi possível acautelar pelas professoras/auxiliares e que poderia ter acontecido mesmo que ali estivessem mais professores/auxiliares;
6 - Tanto mais que não resultou provado qual o número de crianças que ali se encontravam naquele momento, nem tão pouco ficou provado que os professores e auxiliares que se encontravam no recreio eram insuficientes;
7 - Ademais, na eventualidade de se dar como verificada alguma conduta ilícita, a mesma deveria ser imputada, em exclusivo, ao Município (...), porquanto era sobre si que recaía o dever de providenciar que as tampas de escoamento de água em local do recreio acessível a crianças em idade pré-escolar seriam dotadas de mecanismo de segurança, que evitasse a sua abertura;
8 – Efetivamente, após o acidente ter ocorrido, a autarquia procedeu à colocação de “ganchos” na tampa de escoamento de águas para evitar que voltasse a suceder algo semelhante;
9 – Pois, a gestão, manutenção e conservação dos equipamentos escolares cabia ao Município (...), pois a tampa de saneamento foi ali colocada pela entidade gestora (Município (...)), tal como resulta dos factos dados como provados, uma vez que aquele estabelecimento de ensino não previa a colocação de tais tampas, tendo sido da iniciativa do Município a sua colocação. Logo, a tampa deveria estar apenas ao alcance da entidade gestora (Município) e dos seus funcionários;
10 - Ademais, para que ocorra o tipo de responsabilidade aqui em causa que integra, no essencial, o conceito civilístico da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, segundo o regime previsto no artº. 483°, n°. 1 do C. Civil, são seus pressupostos cumulativos o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, ponderado segundo a teoria da causalidade adequada;
11 - Ora, não se verificou nenhum comportamento ilícito por parte das professoras/educadoras, logo não pode ser assacada nenhuma responsabilidade ao Estado Português;
12 – Caso assim se não entenda, sempre se dirá que tratou-se de um acidente escolar, tendo sido instaurado inquérito escolar, tal como resulta dos factos dados como provados, sendo que o regime do seguro escolar encontra-se regulamentado pela Portaria n.º 413/99, de 8 de junho, e tem regras específicas, que, salvo o devido respeito por opinião contrária, não podem ser postergadas, não podendo ser “aproveitado” apenas para a questão de alguns danos patrimoniais e totalmente obliterado no que tange a outros danos patrimoniais e aos danos não patrimoniais;
13 - Com efeito, o seguro escolar constitui um sistema de proteção destinado a garantir a cobertura dos danos resultantes do acidente escolar, complementarmente aos apoios assegurados pelo Sistema Nacional de Saúde;
14 - Os progenitores do menor acidentado foram informados dos respetivos trâmites e apenas reclamaram despesas com deslocações e farmácia, nada reclamando a título de outros danos patrimoniais ou não patrimoniais;
15 - Pelo que não se pode afastar totalmente o regime do seguro escolar e aplicar apenas o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, que só será aplicável quando verificados os requisitos legais da responsabilidade civil extracontratual e o regime do seguro escolar se revele insuficiente;
16 - Tendo o evento sido qualificado como acidente escolar, haveria que determinar, em primeira linha, qual a cobertura que através da previsão contida no artigo 11.º do RSE (Portaria 413/99, de 8 de junho) era alcançada para os danos não patrimoniais e só posteriormente fazer intervir o instituto da responsabilidade cível extracontratual;
17 - Ou seja, teria que ser realizada a junta médica e aquilatada a eventualidade de ser fixada uma incapacidade permanente e, na eventualidade de fixação de incapacidade permanente assacar as consequências a nível de fixação da indemnização por danos não patrimoniais e caso o que viesse a ser apurado se revelasse aquém da pretensão do Autor e verificados os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, poderia então equacionar-se uma indemnização a título de danos não patrimoniais;
18 - Nessa medida, tendo ultrapassado o regime legal do seguro escolar, salvo o devido respeito (que é muito), entendemos que a decisão agora em crise fez errada aplicação de direito;
19 – Para além do que ficou dito, entendemos que o valor da indemnização fixada a título de danos não patrimoniais nos parece exagerado, tendo em conta a linha da jurisprudência nacional no que tange à ressarcibilidade deste tipo de danos e ao que, em concreto resultou da matéria provada;
20 - Tendo em conta o estabelecido no artigo 496.º do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, sendo o montante da indemnização fixado equitativamente pelo tribunal e, conforme dispõe o nº 3 do referido artº 494º do CC , a compensação deve ser proporcional à gravidade do dano, ponderando-se, para tanto, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e do criterioso sopesar das realidades da vida;
21 - No caso sub judice, salvo o devido respeito, a fixação do valor de indemnização em 10.000€ por danos não patrimoniais parece-nos manifestamente exagerada e desajustada, e desconforme com os juízos de equidade que devem presidir à sua fixação, tanto mais que ficou provado que o Autor não tem alterações nos atos da sua vida diária, afetiva, familiar, social ou de formação;
22 - Atento o aduzido, o Tribunal «a quo», ao decidir como decidiu, desrespeitou, neste âmbito, o preceituado no Regulamento do Seguro Escolar, aprovado pela Portaria nº 413/99, de 08/06, mormente os artºs 10º, 11º e 14º e os artºs 7º a 10º da Lei nº 67/2007, de 31/12, 483º, 487º, 491º, 493º, 494º e 496º do Código Civil;
23 - Nestes termos e nos demais de Direito que V.as Exas doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, alterar-se a douta sentença, nos termos aduzidos, com todas as devidas e legais consequências.
No entanto, Vossas Excelências, decidindo, farão, como habitualmente, JUSTIÇA!”

Constam das conclusões do Recurso apresentado pelo Município (...) em 8 de outubro de 2021, as seguintes conclusões:
1. O Presente recurso é tempestivo e nada obsta à sua aceitação;
2. Em face da prova produzida nos autos, tendo-se que o RECORRIDO era uma criança que tinha um comportamento do tipo rebelde e imprevisível desajustada, que verdade seja dita, foi ajustando/melhorando no decurso do tempo, o facto dado como provado no Ponto 19, deverá ser retificado, permitindo-se propor, deverá ter a seguinte redação:
O Autor, à data dos factos, era uma criança com um comportamento desajustado ou rebelde, quer no recreio quer na sala de aulas”.
3. Da análise da factualidade dos autos e do respetivo probatório tem-se que Inexiste qualquer ilicitude, por ação ou omissão, que possa ser imputada à RECORRENTE e neste contexto, a pretensão do RECORRIDO deverá improceder e em consequência, repondo a merecida justiça, a RECORRENTE deverá ser totalmente absolvida;
4. Da análise da factualidade dos autos e do respetivo probatório tem-se que Inexiste qualquer conduta, por ação ou omissão, que possa ser considerada culposa e imputada à RECORRENTE e nesta conformidade, a pretensão do RECORRIDO deverá improceder e em consequência, repondo-se merecida justiça, a RECORRENTE deverá ser absolvida;
5. Da análise da factualidade dos autos e do respetivo probatório tem-se que Inexiste qualquer violação do dever objetivo de cuidado, por ação ou por omissão, que possa ser imputada à RECORRENTE e neste contexto, a pretensão do RECORRIDO deverá improceder e em consequência, repondo-se merecida justiça, a RECORRENTE deverá ser totalmente absolvida, uma vez que não lhe era exigível conduta diferente;
6. Admitindo-se por razões de mero patrocínio a procedência da ação, o que não se concebe pelos motivos esclarecidos supra, da análise da factualidade dos autos e do respetivo probatório tem-se que o valor indemnizatório é manifestamente excessivo e destituído de fundamento, pelo que, com todo o respeito, o mesmo deverá ser reduzido para uma quantia global que, permitindo-se, não deverá exceder €2.500.
Nestes termos, e nos demais de direito, com o sempre douto suprimento de vossas excelências, o presente recurso deverá ser julgado procedente e, em consequência, a douta sentença deverá ser anulada e/ou revogada e substituída por outra, decidindo-se conforme com as precedentes alegações e conclusões, assim fazendo, vossas excelências farão a costumada justiça!”

Os Recorridos G. e J., em representação do seu filho menor C., vieram apresentar as suas contra-alegações de Recurso em 19 de outubro de 2021, concluindo:
“Os poderes dados a este mui douto Tribunal sobre a alteração da matéria de facto provada em primeira instância têm que se cingir a casos de flagrante desconformidade entre o que foi produzido em termos de prova e aquilo em que foi dado como provado.
No presente recurso, o Recorrente Município pretende ver alterada a resposta dada como provada no Ponto 19 da douta sentença, o que não deve merecer qualquer colhimento pois que o depoimento da testemunha M. refere-se ao comportamento do Autor quando o mesmo frequentava o 5º ano e não à data dos factos, altura em que com 5 anos, se encontrava no pré-escolar.
Existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores.
Mas no caso concreto, bastaria contextualizar a parte do depoimento transcrito pelo Recorrente na globalidade do mesmo, para verificar que aquela testemunha apenas conheceu o Autor quando ele foi para o 5º ano de escolaridade, não tendo qualquer conhecimento objetivo do comportamento da criança à data dos factos, ao contrário da sua educadora de infância, a testemunha M., com quem privava todos os dias e que referiu que, à data dos factos, o Autor era uma criança norma e educada.
Por isso, entendemos que a resposta à matéria de facto não se mostra deficiente, obscura ou contraditória, nem haverá necessidade de se proceder à sua alteração, pelo que não é de anular sequer, oficiosamente, a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Procedendo-se à audição dos depoimentos e atentando à prova documental e pericial dos autos, parece-nos óbvio não existir desconformidade entre as respostas dadas à matéria de facto e àquilo que se produziu, em termos de prova, em audiência de julgamento.
E se atentarmos à motivação sobre a resposta dada à matéria de facto é inolvidável que o Tribunal de primeira instância decidiu de forma ponderada, fundamentada e criteriosa, analisou criticamente as provas, com base nas quais formou a sua convicção.
Não havendo razão para que seja alterada a matéria de facto dada como provada e ora impugnada pelo Recorrente Município.
O Tribunal apreciou criticamente o depoimento de cada uma das testemunhas, credibilizou-os em função da sua razão de ciência e motivação, e fê-lo de forma correta de acordo com os imperativos e normativos legais.
Pelo que em situação alguma, merece reparo a apreciação da prova.
Sendo que, da mesma forma, o Tribunal a quo fez a correta aplicação do Direito.
De tudo, resulta claro e inequívoco que os recursos do Estado Português e do Município (...) a que se responde estão condenados à improcedência.
Termos em que devem os recursos apresentados pelos Recorrentes ser julgados improcedentes, Mantendo-se integralmente a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, fazendo assim, V. Exas., a esperada Justiça”.

O Recurso veio a ser admitido por Despacho de 15 de novembro de 2021.

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.


II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, designadamente os suscitados Erros de julgamento da matéria de facto e da matéria de direito, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade, como provada e não provada:
“Factos Provados
1. G. e J., são pais de C., nascido em 30.08.2008. (cf. doc. nº 1 junto com a petição inicial)
2. No ano de 2013, o menor C., frequentava a educação pré-escolar no Centro Escolar (...), do Agrupamento de Escolas de (...). (cf. depoimento das testemunhas M., M. , M., M., M.)
3. O Agrupamento de Escolas de (...), integra o parque escolar do Município (...). (acordo)
4. O Centro Escolar (...) iniciou o seu funcionamento no ano letivo 2010/2011. (cf. depoimento das testemunhas M. , M. e M.)
5. O Centro Escolar (...) alberga o ensino pré-escolar e o primeiro ciclo. (cf. depoimento das testemunhas M., M. , M., M., M.)
6. No ano letivo 2012/2013, o Centro Escolar (...) era frequentado por mais de 200 alunos do pré-escolar e primeiro ciclo. (cf. depoimento das testemunhas M. , M.)
7. O recreio do Centro Escolar (...) tem uma área extensa. (cf. depoimento das testemunhas M., M. , M., M., M.)
8. No dia 24 de maio de 2013, cerca das 10h40, o menor encontrava-se juntamente com os demais alunos no recreio do Centro Escolar (...). (cf. documentos de fls. 69 da paginação eletrónica; depoimento das testemunhas M., M. , M., M., M.)
9. Nessa ocasião, um outro aluno do pré-escolar, J., ajudado pelo Autor, levantou a tampa de escoamento de águas pluviais existente no espaço do recreio, à procura de tampas de garrafa. (cf. documentos de fls. 69 da paginação eletrónica; depoimento das testemunhas M., M. , M., M., M.)
10. Em movimento descendente, a tampa caiu sobre o terceiro dedo da mão direita do menor. (cf. documento de fls. 69 da paginação eletrónico; M. , M., M., M.)
11. No momento do acidente encontravam-se de vigilância ao recreio a educadora M., a professora M. e as assistentes operacionais M. e M.. (cf. documento de fls. 69 da paginação eletrónica)
12. Os factos descritos em 7 e 8, não foram presenciados por nenhuma das vigilantes mencionadas no ponto anterior. (cf. documento de fls. 69 da paginação eletrónica; depoimento das testemunhas M., M., M., M.)
13. O menor foi transportado para o Hospital Padre Américo, Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, E.P.E., onde deu entrada pelas 11horas e 51 minutos. (cf. doc. nº 2 junto com a PI)
14. No episódio de urgência foi verificada a “amputação da extremidade distal de F3 de D3 da mão direita” do menor. (cf. doc. nº 2 junto com a petição inicial)
15. Nessa mesma data, o menor foi submetido a um procedimento do âmbito de pequena cirurgia. (cf. doc. nº 2 junto com a petição inicial; relatório pericial)
16. Do evento ocorrido, resultou “a amputação da extremidade distal ( < de 50%) de F3 de D3. Dismorfia dessa extremidade tipo “dedo em baqueta de tambor”. (cf. relatório pericial)
17. O menor teve alta da consulta no dia 17.07.2013, data em que foi verificada a cicatrização sem complicações da ferida. (cf. doc. nº 2 junto com a petição inicial)
18. À data do acidente, o menor tinha 5 anos. (cf. doc. nº 1 junto com a PI)
19. E era uma criança normal. (cf. depoimento da testemunha M.)
20. O menor sofreu dores, quer aquando do evento, quer durante os tratamentos. (cf. doc. nº 2 junto com a petição inicial; depoimento da testemunha M.)
21. A data das lesões é fixável em 17.07.2013. (cf. relatório pericial)
22. O período de défice funcional temporário total foi de 1 dia. (cf. relatório pericial)
23. O período de défice funcional temporário parcial foi de 52 dias. (cf. relatório pericial)
24. O dano estético permanente é de 3 pontos em 7. (cf. relatório pericial)
25. O quantum doloris é de 3 pontos em 7. (cf. relatório pericial)
26. O défice funcional permanente de integridade físico-psíquica é de 1 ponto. (cf. relatório pericial)
27. No exame pericial o Autor referiu não ter alterações nos atos da sua vida diária, da vida afetiva, social e familiar e na vida de formação. (cf. relatório pericial)
28. O sinistro deu origem a um inquérito escolar, aberto no dia em que o mesmo ocorreu. (cf. docs. nºs 1 e 2 juntos tom a contestação)
29. O seguro escolar assegurou o pagamento do montante de €51,88, a título de despesas relacionadas com transporte e farmácia. (cf. docs. nºs 3 e 4 juntos com a contestação)
30. O sistema de drenagem do Parque Escolar (...) foi executado pelo Município (...). (cf. documento de fls. 352 da paginação eletrónica)
31. O sinistro foi comunicado à Autarquia. (cf. depoimento das testemunhas M., M.)
32. O local foi visitado pela Vereadora Engenheira C. e um funcionário da autarquia, que procedeu à colocação de “ganchos” na tampa de escoamento de águas. (cf. depoimento das testemunhas M., M., M.)
33. A tampa de escoamento de águas levantada pelos menores, é uma grelha articulada de um dos lados. (cf. fls. depoimento das testemunhas M., M., M.)
34. A presente Ação Administrativa deu entrada neste Tribunal Administrativo em 11.12.2013. (cfr. consulta SITAF)
Factos Não Provados
Com relevância para a decisão da matéria de facto assente, resultou como não provado:
1. A tampa/caixa de escoamento de águas pluviais encontrava-se semiaberta.
2. O menor tem dificuldades em escrever e pintar.
3. A disformidade do dedo causa ao menor um enorme desgosto e tristeza.
4. Não dorme devido às dores e ao trauma.
5. O recreio possui uma área de 4.446,2m.”

IV – Do Direito
Importa agora analisar e decidir o suscitado.

Enquadrando desde já a matéria controvertida, no que ao direito concerne, e no que aqui releva, discorreu-se em 1ª instância:
“(…) Alega o Autor, que o Réu Estado Português, através dos seus funcionários, violou o dever de vigilância que sobre si impendia, tendo o facto danoso ocorrido em virtude de tal omissão.
Verificou-se, então, que no recinto escolar ocorreu um acidente que os órgãos da escola não impediram.
Estamos assim, perante uma situação de culpa in vigilando.
O nº 3, do art.º 10º transcrito, consagra uma presunção de culpa leve sempre que tenha existido incumprimento dos deveres de vigilância, consagrando a designada presunção de culpa “in vigilando”, tendo, por conseguinte aplicação o estatuído no art.º 491º do CCiv. (neste sentido, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 14.02.2020, proc. nº 00491/11.4BEBRG, disponível em www.dgsi.pt)
Estatui este preceito que “As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, foram obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido.”
Incumbe ao Autor o ónus de alegar e demonstrar os factos que servem de base à presunção legal (a existência do dever de vigilância e do dano causado pelo ato antijurídico da pessoa a vigiar), não tendo, por outra monta, que provar a culpa do réu. A este incumbe o ónus de elisão da presunção, ou seja, cabe-lhe demonstrar que cumpriu o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido (prova liberatória).
Na situação sub judice, como melhor se verá, verifica-se uma omissão ilícita, juridicamente relevante para efeitos do apuramento de eventual responsabilidade extracontratual do Réu Estado Português em relação aos danos sofridos pelo Autor, conforme estatuído no art.º 9º do RRCEEEP
O Estatuto do Aluno e Ética Escolar, aprovado pela Lei nº 51/2012, de 5 de setembro, aplicável à situação dos autos, prevê no seu art.º 7º os direitos do aluno, fazendo constar, nomeadamente, na al. j) que, os alunos têm direito a “ver salvaguardada a sua segurança na escola e respeitada a sua integridade física e moral, (…)”.
Mais preceitua o art.º 40º, nº 1 do referido Estatuto que “os alunos são responsáveis, em termos adequados à sua idade e capacidade de discernimento, pelo exercício dos direitos e pelo cumprimento dos deveres que lhe são outorgados pelo presente Estatuto, pelo regulamento da escola e pela demais legislação aplicável.”
Importa ainda salientar o papel do pessoal não docente na dinâmica das escolas, o que encontra assento legal no art.º 46º do mencionado Estatuto, cujo nº 1 prevê que, “ O pessoal não docente das escolas deve colaborar no acompanhamento e integração dos alunos na comunidade educativa, incentivando o respeito pelas regras de convivência, promovendo um bom ambiente educativo e contribuindo, em articulação com os docentes, os pais ou encarregados de educação, para prevenir e resolver problemas comportamentais e de aprendizagem.”
Releva também ter em consideração que art.º 47º, nº 1 do Estatuto do Aluno, que sobre a segurança dos alunos, dispõe que, “Perante situação de perigo para a segurança, saúde, ou educação do aluno, designadamente por ameaça à sua integridade física ou psicológica, deve o diretor do agrupamento de escolas ou escola não agrupada diligenciar para lhe pôr termo, pelos meios estritamente adequados e necessários e sempre com preservação da vida privada do aluno e da sua família, atuando do modo articulado com os pais, representante legal ou quem tenha a guarda de facto do aluno.”
Ainda o regulamento interno das escolas, tem de prever regras que garantam, entre outros, a preservação da segurança dos alunos (art.º 48º do Estatuto do Alunos).
Do quadro legal exposto, resulta que um aluno, seja ele do pré-escolar, ensino básico, ou secundário, tem de ver salvaguardada a sua segurança e integridade física durante o tempo que permanece na escola. E ainda de forma mais intensa, quando estamos perante alunos do pré-escolar, cujas idades rondam os 3 e os 6 anos, como é do conhecimento geral, em que a sua autonomia física e intelectual é menor.
Dúvidas inexistem que incumbe ao Estado Português, através dos seus órgãos e agentes, o dever de vigilância sobre alunos no recreio na escola pública.
Decorre da matéria de facto assente, que no dia do evento danoso estavam de vigilância ao recreio uma professora do 1º ciclo, uma educadora de infância e duas auxiliares de ação educativa que, apesar de estarem colocadas em sítios distintos do recreio, não visualizaram o ocorrido.
Perante tais circunstâncias é de concluir que o dever de vigilância foi omitido, porque não foi eficaz e adequado, sobretudo estando em causa crianças de tão tenra idade, que muitas vezes não são capazes de representar potenciais situações de perigo, ainda para mais, quando inseridas num grupo de outras crianças da mesma idade ou idades semelhantes.
Acresce referir, que o facto da escola ser nova, àquela data, não significa que todas as potenciais situações de riscos ou perigo para a segurança e integridade física dos alunos estejam à partida afastadas. Como se referiu supra, incumbe ao diretor do agrupamento de escolas diligenciar por fazer cessar situações que possam constituir ou constituam uma ameaça à integridade física e psicológica dos alunos, ameaças essas que num plano ideal devem ser identificadas antes da ocorrência de eventos danosos, o que não sucedeu.
É certo que os comportamentos das crianças são muitas vezes inusitados, sendo, por isso, exigível um maior estado de alerta por quem tem o dever de as vigiar e a eventual adoção de mecanismos de vigilância mais eficazes tendo em conta variáveis como a área a vigiar e o número de alunos.
Foi referido por várias testemunhas que o recreio é grande e que na data e hora do evento poderia ter muitos alunos, caso todas as turmas estivessem a fazer a pausa de recreio em simultâneo, o que exige que seja implementada uma vigilância adequada a essas variáveis, o que claramente não existiu.
Cabe ainda salientar, que a testemunha M. coordenadora de escola à data do sinistro, referiu que o Centro Escolar (...) cumpria os rácios legalmente previstos no que concerne ao pessoal não docente. Contudo, e tendo em conta os critérios previstos na Portaria nº 272-A/2017, de 13 de setembro (em vigor à data dos factos), nada de concreto foi demonstrado, uma vez que nada foi alegado quanto à dotação máxima prevista, os critérios seguidos, ou sequer, ao certo, o número de alunos em frequência naquele ano letivo.
No entanto diga-se que, ainda que os rácios quanto ao número de pessoal não docente estivessem a ser cumpridos, tal não permite concluir que a vigilância estava a ser feita de modo adequado e com o número necessário de vigilantes, atendendo, nomeadamente, à extensão do recinto de recreio e ao número de alunos naquele local em simultâneo. Demonstrativo de tal, é o facto de nenhum vigilante ter visto o que as crianças estavam a fazer, com o que estavam a brincar.
Se o recreio tem uma dimensão considerável como afirmado pelas testemunhas, e se os alunos, independentemente da idade, podem usufruir de toda a área, a gestão da escola tinha necessariamente de organizar a vigilância para cobrir em simultâneo todo o recreio. Para além do facto de ter de assegurar que o recinto está desimpedido de obstáculos que pudessem hipoteticamente constituir um perigo para os discentes.
Por tudo o exposto, é de concluir que o autor logrou demonstrar os factos que serviam de base à presunção de culpa do Réu Estado Português, sendo que, pelo contrário, o Réu não conseguiu provar o cumprimento dos deveres de adequada vigilância. Com efeito, da matéria de facto assente, não é possível retirar que o Réu tenha agido sem culpa ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que tivesse agido diligentemente.
É assim forçoso concluir pela conduta omissiva ilícita e culposa do Réu Estado Português.
Por outro lado, o Autor configura também a ilicitude pela omissão do dever de cuidado e de um dever de agir prevenindo o perigo, ou seja, adequando o método de escoamento de águas ao local onde foi colocado, mais concretamente, às especificidades de um recreio de uma escola que congrega alunos de pré-escolar e primeiro ciclo. Num primeiro momento, o Autor imputa esta alegação ao Estado Português, tendo feito posteriormente intervir o Município (...), sustentando que a gestão e conservação/manutenção do sistema de drenagem de águas pluviais incumbe à edilidade. Vejamos.
Resultou da matéria de facto assente, que o sistema de escoamento de águas do Centro Escolar (...) foi edificado pela Município (...), cabendo a este zelar pela conservação e manutenção do mesmo.
Portanto, era dever do Município garantir que a tampa de escoamento colocada no recreio da escola, não oferecia qualquer perigo para as crianças que frequentavam o recreio, nomeadamente, quer pelo local onde a mesma foi colocada, quer atendendo ao estado de conservação da mesma.
Face à matéria apurada nos autos, o que se verifica é que o Município violou o dever de cuidado, ao colocar a tampa de escoamento de águas acessível às crianças que frequentam a escola. Independentemente do material colocado estar ou não de acordo com a normas de certificação europeia, o certo é que o mesmo foi colocado em local facilmente acessível a crianças de 5 anos, que, sem a intervenção de qualquer adulto, conseguiram levantar a tampa.
Ora, apesar de não ser expectável que crianças em idade pré-escolar sejam capazes de remover tampas de saneamento, deve ser garantido que estão reunidas condições de segurança para que uma criança não consiga aceder às mesmas, ou conseguindo, não seja capaz de as manipular.
Tendo sido o Município o dono da obra e estando adstrito ao dever de manutenção e conservação, é de concluir que ao colocar as tampas de escoamento de águas em local do recreio acessível a crianças em idade pré-escolar e sem qualquer tipo de mecanismo de segurança que evitasse a sua abertura, agiu de forma ilícita e censurável.
A conduta descrita, demonstra que o Município agiu em violação do dever de cuidado, da qual resultou a ofensa à integridade física do Autor, e com uma diligência inferior ao que era devido.
Atentas as circunstâncias concretas, é de concluir que o Autor demonstrou quer o dever que impendia sobre o Município, quer a culpa do mesmo (art.º 342º, nº 1 do CCiv), concluindo-se pela atuação ilícita e culposa daquele.
c. Para que se gere a obrigação de indemnizar é ainda essencial que exista um dano.
Neste âmbito, dano é a lesão ou o prejuízo que o lesado (aqui Autor) sofreu em virtude de um certo facto.
Retira-se da matéria de facto assente, que em resultado da queda da grelha de escoamento de águas pluviais sobre a mão do Autor este veio a sofrer vários danos, como melhor se concretizarão.
No que a este requisito concerne, o RRCEEEP não estabelece um verdadeiro regime, limitando-se a fixar no art.º 3º um principio geral, remetendo a restante regulamentação para o Código Civil. Dispõe o referido preceito:
“1 - Quem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente lei, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
2 - A indemnização é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa.
3 - A responsabilidade prevista na presente lei compreende os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como os danos já produzidos e os danos futuros, nos termos gerais de direito.”
Por seu turno, resulta do disposto no art.º 564º, nº 1 do Código Civil, que, “O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.”
(…)
O dano pode ser patrimonial ou não patrimonial, consoante seja suscetível ou insuscetível de avaliação pecuniária.
O Autor invoca a ocorrência de danos patrimoniais (dano biológico, na vertente de dano futuro) e não patrimoniais (também dano biológico) decorrentes do sinistro sofrido.
Mais concretamente, o Autor invocou que em virtude do acidente sofreu a amputação da extremidade distal do 3º dedo da mão direita, tendo ficado com uma incapacidade permanente geral, pela qual reputa uma indemnização de €7.000,00.
E ainda danos não patrimoniais decorrentes das dores que sofreu no momento do acidente, com a intervenção cirúrgica e durante os tratamentos, e pelo trauma com que ficou, pela deficiência que o acompanhará para sempre, pelos quais reclama a quantia de €30.000,00.
(…)
O défice funcional permanente, anteriormente designado por incapacidade permanente geral, integra o que comumente se designa por dano ou incapacidade funcional, que se reflete na impossibilidade de levar uma vida repleta de normalidade, em virtude da existência de repercussões no intelecto, na vontade e na capacidade. Acresce que, a incapacidade funcional, mesmo que não determine a imediata perda ou diminuição de rendimentos, pode importar necessariamente um dano futuro, que deve ser indemnizado. (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.04.2021, proc. nº 2908/18.8T8PNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Assim é na situação dos presentes autos, atendendo ao facto de na data do facto danoso, o lesado apenas ter 5 anos, não revestindo a sua incapacidade numa perda imediata de rendimentos.
Já no que concerne aos danos não patrimoniais (também eles danos biológicos), ficou demonstrado que o Autor sofreu dores quer no momento da ocorrência do acidente, quer durante os tratamentos, o que determinou um défice funcional temporário total de 1 dia e um défice funcional parcial de 52 dias.
Ficou ainda demonstrado que em virtude da amputação da extremidade distal do terceiro dedo da mão direita, o Autor ficou a padecer de uma deficiência que o acompanhará por toda a vida, tendo sido fixado um dano estético permanente de 3 em 7 pontos.
(…)
No entanto, diga-se, que apesar de tais factos não terem sido demonstrados nos presentes autos, em termos convincentes, o dano estético de que padece o Autor é inegável.
Perante o exposto, é incontestável a existência de danos, danos biológicos na dupla vertente de danos patrimoniais e não patrimoniais, que verificado o nexo de causalidade subjacente, serão indemnizáveis nos termos da responsabilidade civil extracontratual.
d. Como último pressuposto a analisar, surge o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Nos termos do art.º 563º do Código Civil, “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
De acordo com a doutrina e jurisprudência, esta norma estabelece o regime do nexo de causalidade em matéria da obrigação de indemnizar, e consagra a designada “teoria da causalidade adequada”.
(…)
Conjugando a matéria dada por assente com toda a análise que vem sendo feita, dúvidas inexistem que o facto ocorrido, em virtude da conduta ilícita do Réu (e interveniente), é idóneo a produzir os danos resultantes. Não só num plano naturalístico o facto ocorrido era suscetível de produzir os danos verificados, como face às regras da vida, a causa verificada era adequada aos danos.
Aliás, no que concerne ao dano patrimonial, o nexo de causalidade foi estabelecido, reconhecido e admitido no relatório pericial.
Como já por diversas vezes foi repetido, o facto danoso em causa traduziu-se na queda de uma grelha de escoamento de águas pluviais sobre a mão de uma criança de 5 anos, que resultou no traumatismo no terceiro dedo da mão direta e que determinou a amputação da extremidade do mesmo. Todas essas circunstâncias causaram dor no Autor e um dano estético permanente.
O facto danoso apurado é causa a adequada a provocar os danos verificados, permitindo afirmar a existência de nexo de causalidade entre o facto concreto e os danos provocados.
Perante a análise feita, conclui-se que estão preenchidos todos os pressupostos para afirmar a responsabilidade da Entidade Ré e da interveniente, em virtude dos factos imputados, gerando nas suas esferas a obrigação de indemnizar o Autor.
Impõe-se assim que o Estado Português e o Município (...) compensem o dano verificado.
e. Importa então fixar qual o quantum indemnizatório a suportar pela Entidade Ré e interveniente.
O Autor peticiona a título de dano biológico enquanto dano patrimonial futuro, traduzido na desvalorização permanente, o montante de €7.000,0, atendendo à esperança média de vida e ao salário mínimo nacional à data do sinistro.
Mais peticiona, a título de danos não patrimoniais o valor de €30.000,00.
Vejamos. Tal como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência,
“I – O dano biológico corresponde a um dano físico permanente que pode determinar uma indemnização por danos patrimoniais ou não patrimoniais, consoante haja ou não perda da capacidade de ganho, mas que sempre se destinará a compensar o lesado pela irreversibilidade ou permanência do dano físico-psíquico sofrido.
II – A atribuição de indemnização por equidade deve assentar numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso; mas o juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto.”(cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 19.02.2021, Proc. nº 00404/13.9BEBRG, disponível em www.dgsi.pt)
Assim, no que respeita ao dano biológico, na medida em que afeta a integridade físico-psíquica do lesado, ao atingir a capacidade geral de trabalho, tem necessariamente uma repercussão económica, ainda que em razão da idade, como na situação dos autos, ou de outras circunstâncias, o lesado ainda não exerça qualquer profissão.
Nos termos do art.º 566º, nºs 1 e 3 do CCiv, verificando-se não ser possível a reconstituição natural, a indemnização é fixada em dinheiro, julgando o Tribunal equitativamente, na hipótese de não ser possível averiguar o valor exato dos danos.
A indemnização deve ser calculada, em atenção ao tempo provável da vida ativa do lesado, aos seus rendimentos anuais e à incapacidade sofrida, de forma a representar um capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a atual até ao fim desse período.
Nos casos de não exercício atual de atividade profissional (em virtude, como é o caso dos autos, da menoridade do lesado), reveste-se, porém, de particular dificuldade a determinação do rendimento do lesado, necessariamente futuro.
Sendo o lesado de menor de idade, deverá atender-se à idade em que previsivelmente ingressará no mercado de trabalho, o que não ocorrerá certamente antes dos 18 anos, assim como ponderar o défice funcional permanente e a repercussão que o mesmo terá na sua vida profissional.
Assim, na fixação do quantum indemnizatório a título de dano biológico decorrente do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, considera-se in casu, o facto do Autor à data do sinistro ter 5 anos, ser uma criança normal, e em virtude do evento danoso ocorrido ter ficado com um défice funcional permanente de 1 ponto, sem limitações, em conformidade com a análise pericial elaborada nos autos.
Tendo em conta tais variáveis e seguindo de perto aquele que tem sido co curso da jurisprudência em casos similares (vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20.12.2017, proc. nº 871/12.8TBPTL.G1.S1; de 16.03.2017, proc. nº 294/07.0TBPCV.C1.S1; de 11.02.2015, proc. nº 3329/09.9TBVLG.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt), fixo o valor da compensação pelo dano biológico em €4.000.00 (quatro mil euros).
Já no que concerne aos danos não patrimoniais, resulta do disposto no art.º 496º, nº 1 do CCiv que, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, acrescentando o nº 4 do mesmo preceito que o montante é fixado equitativamente pelo Tribunal.
Daqui resulta o acolhimento da tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, porém limitada àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
(…)
Ficou demonstrado nos autos que o Autor, em virtude do acidente sofrido amputou a extremidade distal do 3º dedo da mão direita, sofreu dores, foi submetido a uma cirurgia corretiva na data do episódio de urgência, sofreu de défice funcional temporário total de 1 dia e défice funcional temporário parcial durante 52 dias. Ao que acresce ainda, a determinação de um quantum doloris de 3 em 7 pontos e um dano estético permanente de 3 em 7 pontos.
Cumpre referir que, pese embora, se admita, por recurso ao conhecimento geral e à vida em sociedade, que um evento como o sofrido pelo Autor cause tristeza e desgosto, não ficou demonstrado nos autos, que o Autor tivesse ficado emocional e psicologicamente perturbado pelo acontecimento, ou que tenha ficado com um trauma derivado do mesmo. Assim como também não resultou que o Autor tivesse ficado com medo de brincar com outras crianças.
A factualidade apurada consubstancia danos não patrimoniais de considerável gravidade, que atentas as dores, os períodos de incapacidade temporária, o dano estético permanente, determina que seja fixado um montante indemnizatório de €10.000,00
O Autor peticiona ainda juros legais desde a citação até integral pagamento.
Estabelece o art.º 805º, nº 1, do CCiv, que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. Mais acrescenta o nº 3 do mesmo preceito, que tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação.
Deste modo, sobre o montante indemnizatório apurado, acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação nos presentes autos, até efetivo e integral pagamento.
Em suma, atento o analisado e decidido, são solidariamente responsáveis pelo pagamento dos montantes de compensação fixados, o Estado Português e o Município (...), pois contribuíram na mesma medida para o dano apurado (artigos 497º e 512º do CCiv).
Assim, recai sobre o Estado Português e o Município (...) o dever de indemnizar o Autor, a título de responsabilidade civil extracontratual, no montante global de €14.000, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Vejamos:
Tal como se discorreu em 1ª instância, estamos manifestamente perante um dano biológico.
O dano biológico corresponde a um dano físico permanente que pode determinar uma indemnização por danos patrimoniais ou não patrimoniais, consoante haja ou não perda da capacidade de ganho, mas que sempre se destinará a compensar o lesado pela irreversibilidade ou permanência do dano físico-psíquico sofrido (cfr. acórdão deste TCA Norte de 11/09/2015, Proc. nº 00372/10.9BEMDL). Ou, como é dito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça , de 27/10/2009, Proc. 560/09.0YFLSB, o dano biológico traduzir-se-á na “…diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre” que pode ser ressarcida como dano patrimonial ou a título de dano moral, verificando-se para esse efeito “…se a lesão originou, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.”

Assim, o dano biológico, enquanto dano físico permanente justificará uma indemnização seja no âmbito patrimonial, se se verificar afetação da pessoa do ponto de vista funcional determinante de consequências negativas também ao nível da sua atividade geral, seja a título de dano não patrimonial na medida em que seja merecedor da tutela do direito.

Neste sentido de pronunciaram também:
Acórdão do STJ de 07/10/2004, Proc. n.º 04B2970, aí se sumariando:
«1. A afetação da pessoa do ponto de vista funcional na envolvência do que vem sendo designado por dano biológico, determinante de consequências negativas da nível da sua atividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial, independentemente da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial.
2. As fórmulas financeiras utilizadas na determinação do quantum indemnizatório por danos patrimoniais futuros só relevam como meros elementos instrumentais, no quadro da formulação de juízos de equidade, face aos elementos de facto provados.
3. Tendo a vítima sofrido no acidente lesões que lhe determinaram incapacidade total para o exercício da sua profissão habitual de motorista de veículos pesados, que poderia exercer durante mais 27 anos, da qual auferia €8.379,80 anuais, e incapacidade de 45% para o exercício de outras profissões, em relação às quais ainda não conseguiu emprego, justifica-se a fixação da sua indemnização a título de danos futuros montante de €120.000»;

Acórdão do STJ de 22/09/2005, Proc. nº 05B2586, aí se sumariando:
«(…) 2. A afetação da pessoa do ponto de vista funcional na envolvência do que vem sendo designado por dano biológico, determinante de consequências negativas ao nível da sua atividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial, independentemente da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial.
3. As fórmulas financeiras utilizadas na determinação do quantum indemnizatório por danos patrimoniais futuros apenas relevam como meros elementos instrumentais, no quadro da formulação de juízos de equidade, face aos elementos de facto provados.
4. Na determinação do quantum da compensação por danos não patrimoniais deve atender-se à culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, à flutuação do valor da moeda e à gravidade do dano, tendo em conta as lesões, as suas sequelas e o sofrimento físico-psíquico por ele experimentado, sob o critério objetivo da equidade, envolvente da justa medida das coisas, com exclusão da influência da subjetividade inerente a particular sensibilidade.
5. É adequada a indemnização por perda de capacidade de ganho no montante de €47.500 devida à lesada, que percebia anualmente, no exercício da sua profissão de lavradeira por conta de outrem e na sua própria atividade agrícola e de criação de gado, €7.481,97, que tinha cerca de quarenta e um anos de idade no termo da sua incapacidade temporária, e que ficou com incapacidade permanente para o trabalho de dezanove por cento e não mais pôde trabalhar na lavoura ou na criação de gado.
6. É adequada a compensação de €12.500 por danos não patrimoniais a atribuir à lesada que sofreu fratura de clavícula costelas, isquiopúbico e acetábulo, laceração do joelho, dores, receio de ficar deficiente física, se sujeitou a oito dias de internamento hospitalar e a três meses de acamamento, ficou com grande rigidez de uma anca, marcha claudicante, impossibilidade de permanecer de pé mais de quinze minutos, hipertensão, doença hepática, foi sujeita a sessenta sessões de recuperação funcional, deslocou-se dezenas de vezes a consultas médicas a localidade diversa da sua e tem desgosto por haver perdido a sua normalidade física.»

A acórdão deste TCA Norte de 30/11/2012, Proc. nº 01425/04.8BEBRG:
A acórdão deste TCA Norte de 12/06/2019, Proc. nº 01223/06.4BEPRT, aí se sumariando: «I) – O chamado “dano biológico” pode ter repercussão patrimonial ou não patrimonial, a ressarcir segundo equidade»;

Acórdão deste TCA Norte de 03/04/2020, Proc. nº 03063/06.1BEPRT, aí se sumariando, entre o demais, que: «(…) VIII. O dano biológico corresponderá a diminuição ou lesão da integridade psicofísica da pessoa, em si e por si considerada, e incidindo sobre o valor da pessoa em toda a sua concreta dimensão e pode determinar uma indemnização por danos patrimoniais ou não patrimoniais, consoante haja ou não perda da capacidade de ganho, mas que sempre se destinará a compensar o lesado pela irreversibilidade ou permanência do dano físico-psíquico sofrido.
IX. O artigo 564º do Código Civil reconhece e assegura que na fixação da indemnização devida possam ser atendidos os danos futuros desde que sejam previsíveis; aos danos futuros exige-se, assim, previsibilidade, não a sua verificação certa e necessária, já que a certeza do futuro não se pode prever, o que se pode é fazer aproximações à realidade, fazendo-se a transposição a partir de elementos conhecidos e da normalidade do seu desenrolar. (…)
XI. A avaliação do dano corporal, porque assume complexidade decorrente de diversos fatores, designadamente da dificuldade que pode existir na interpretação de sequelas, da subjetividade que envolve alguns dos danos a avaliar, da impossibilidade de submeter os sinistrados a determinados exames complementares, de inevitáveis reações psicológicas aos traumatismos, de situação de simulação ou dissimulação, entre outros, justificou a adoção de tabelas de incapacidade enquanto instrumento de determinação da incapacidade., o que primeiramente foi feito apenas para as incapacidades por acidentes de trabalho ou doença profissional e só posteriormente para a avaliação da incapacidade em Direito Civil através do DL. nº 352/2007, de 23 de outubro que aprovou, para além da nova Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, a Tabela Indicativa para a Avaliação da Incapacidade em Direito Civil que constitui o anexo II àquele diploma. (…)»

Aqui chegados, dispõe o artigo 496º nº 4 do Código Civil que o montante da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo tribunal, podendo, todavia, quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, ser a indemnização fixada em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem, nos termos do artigo 494º do Código Civil para que o 496º nº 4 remete.

Em todo o caso, e naturalmente, na fixação de indemnização com recurso à equidade o Tribunal julgará dentro dos limites que tiver por provados, nos termos do disposto artigo 566º nº 3 do Código Civil.

Objetivemos agora o suscitado em função dos Recursos interpostos:
Desde logo e no que respeita ao Recurso do Estado Português, são invocadas predominantemente as seguintes questões:
Erro de julgamento e errada aplicação do Direito
Fixação do valor da indemnização a título de danos não patrimoniais

Entende o Estado Português que o Tribunal a quo não fez uma correta interpretação dos factos dados como provados o que se terá refletido na correspondente aplicação do direito.

Em qualquer caso, é incontornável que este Recorrente não questionou a matéria dada como provada na sentença.
Com efeito, antes contesta a conclusão a que o Tribunal chegou ao considerar “que no dia do evento danoso estavam de vigilância ao recreio uma professora do 1º ciclo, uma educadora de infância e duas auxiliares de ação educativa que, apesar de estarem colocadas em sítios distintos do recreio, não visualizaram o ocorrido” mais afirmando que “o dever de vigilância foi omitido, porque não foi eficaz e adequado, sobretudo estando em causa crianças de tão tenra idade, que muitas vezes não são capazes de representar potenciais situações de perigo, ainda para mais, quando inseridas num grupo de outras crianças da mesma idade ou idades semelhantes.”

O Estado entende, conclusivamente e em síntese, que em face da matéria de facto fixada, não seria possível retirar aquele conjunto de conclusões, o que se não acompanha, pois que a convicção firmada pelo tribunal, em função da prova disponível e fixada, é perfeitamente admissível e coerente, sendo que qualquer intervenção de tribunal superior relativamente à matéria de facto é meramente residual e excecional, com base em eventuais erros de apreciação que aqui se não vislumbram.

Suscita o Recorrente/Estado que não se terá verificado qualquer violação do dever de cuidado ou vigilância, sendo que, se assim fosse, provavelmente não teria ocorrido o acidente objeto da presente Ação, mesmo considerando a presença no espaço de uma educadora, uma professora e duas auxiliares, pois que “o recreio do Centro Escolar (...) tem uma área extensa” (Facto7), e estariam presentes “mais de 200 alunos do pré-escolar e primeiro ciclo” (Facto 6).

Resultando do Artº 491º do Código Civil que “as pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiros”, sempre caberia aos Demandados aqui Recorrentes, ilidir a presunção relativamente aos elementos que se encontravam a realizar a vigilância do espaço.

Mais entende o Ministério Público que existindo um Seguro Escolar (Portaria nº 413/99 de 8 de Junho), estaria o Estado dispensado de qualquer pagamento indemnizatório acrescido e autónomo, entendimento que igualmente se não acompanha, em consonância com jurisprudência já firmada.

Efetivamente, e como resulta da filosofia subjacente ao Acórdão deste TCAN de 06.05.2011, proferido no Procº nº 93/10.2BEPNF, e citando-se aí o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra nº de 06.11.2001 - Proc. n.º 2122/01, não “… parece, pois, líquido que o seguro escolar assente numa relação contratual. O chamado seguro escolar é hoje disciplinado pelo Dec. Lei n.º 35/90 (…) e Portaria n.º 413/99 (…).
(…) Parece não restarem dúvidas de que o Estado se movimenta aqui no cumprimento da função pública, mesmo quando fala em seguro escolar. E apesar da Portaria regulamentadora falar em prémio, nada permite que se fale duma atividade seguradora do Estado ao nível das seguradoras privadas. O Estado age como ente público, no domínio da administração pública, e na persecução do bem comum …”.
E aprofundando tal entendimento, sustenta-se ainda no citado aresto que “… o chamado seguro escolar não passa de uma figura próxima do seguro que vem disciplinado no Código Comercial, mas com o qual não se confunde. O Estado não assume propriamente um risco perante um aluno; limita-se a cobrir financeiramente o que outros não são obrigados a reparar em função da culpa ou do risco. Ou, por outras palavras, o Estado limita-se a dar ao aluno aquilo que ele não pode receber de outros intervenientes no acidente, por e na medida da exclusão da responsabilidade em caso de acidente imputável ao próprio lesado (artigo 505.º do Código Civil).
(…) Ora isto não é propriamente uma atividade seguradora; é mais uma medida de assistência social ou segurança social; um serviço público, portanto. Mas se o próprio legislador fala em seguro, tal terminologia só nos pode reportar ao que a doutrina vem classificando como seguro social, onde o Estado, intervindo embora como segurador, desempenha um serviço público e a relação de seguro nasce diretamente da lei, sem ser objeto de qualquer convenção. O seguro escolar é então um seguro social, por contraposição aos seguros privados, que são contratados com as seguradoras em obediência às regras do mercado.
(…) Não se aplica ao seguro escolar o art. 441.º do Código Comercial. Por isso não deve o Estado, como segurador escolar, ser condenado a pagar a totalidade dos danos, para depois ficar sub-rogado nos direitos do lesado (aluno) sobre o lesante, na medida da responsabilidade deste.
Sendo a responsabilidade do Estado limitada à responsabilidade do aluno sinistrado, judicialmente definida, só pode aquele ser condenado a reparar os danos até ao montante correspondente à medida da responsabilidade deste …”.

O seguro escolar, à luz dos diplomas que o criaram ou instituíram supra invocados e enquadrados, constitui, pois, uma modalidade de ação social escolar destinada a garantir a cobertura financeira dos danos resultantes de acidente escolar e cujo fim primordial é a proteção dos próprios alunos durante a sua vida escolar, garantindo-se aos mesmos uma cobertura financeira na assistência de que careçam em consequência de acidente escolar de que sejam vítimas, na certeza de que apesar de tal não estar previsto no DL n.º 35/90, o Estado, quando regulamentou o seguro escolar, alargou as garantias cobertas por este seguro a situações que, não podendo ser qualificadas como acidente escolar, são, ainda assim, eventos em íntima conexão com a atividade escolar e desta dependentes e que igualmente justificam proteção financeira.

Atente-se, ainda, que o regime do seguro escolar, previsto na citada Portaria, contempla uma indemnização ao lesado em caso de sinistro ocorrido no âmbito das atividades escolares, em termos objetivos, independentemente de culpa do Estado ou de qualquer dos seus órgãos, e mesmo nas situações em que haja culpa do próprio lesado, já que basta ver que as circunstâncias excludentes da garantia previstas no art. 25.º do «RSE» não incluem a questão da culpa do sinistrado (cfr. Ac. STA de 07.04.2005 - Proc. n.º 0303/05), na certeza de que tal regime do seguro escolar se mostra autónomo e em nada contende com o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, não impedindo a dedução por parte do lesado de ação administrativa comum para efetivação daquela responsabilidade civil tudo sem prejuízo dos necessários cuidados em matéria de fixação da indemnização de molde a não serem duplicados valores indemnizatórios em ilícito enriquecimento.

Admitindo claramente a possibilidade de acionamento e autonomia das formas de tutela jurisdicional vejam-se os acórdãos do STA de 04.10.2006 (Proc. n.º 01760/03 - onde se afirma a dado passo a este propósito, nomeadamente, que “… a ação baseada na culpa é, portanto, independente do seguro, e vice-versa …”) e de 25.10.2007 (Proc. n.º 0348/06), sendo que igual juízo está subjacente ao decidido no acórdão daquele mesmo Tribunal de 07.04.2005 (Proc. n.º 0303/05) quando, no âmbito de processo cautelar de natureza antecipatória, ali se argumenta e passa-se a citar que “… esta providência cautelar é formalmente apresentada pelos requerentes como antecipatória de uma ação principal (ação administrativa comum), a intentar necessariamente naquele TAF de Penafiel, tendente à reparação emergente do seguro escolar, prevista na Portaria n.º 413/99, …, e que não foi voluntariamente acionada pelo Réu Estado. … Como eles próprios sublinham ao delinearem o pedido, esta providência, restrita ao acionamento da indemnização pelo seguro escolar, em nada depende da ação de responsabilidade civil extracontratual que corre termos no TAF do Porto, ação que é fundada em responsabilidade extracontratual por facto ilícito, nos termos gerais. … Nesta ação pendente no TAF do Porto, a efetivação da responsabilidade do Estado dependerá naturalmente da verificação cumulativa dos requisitos previstos nos arts. 2.º e 6.º do DL n.º 48.051, …, em consonância com o previsto nos arts. 483.º e segs. do C.Civil, de entre os quais ressalta marcadamente o pressuposto da «culpa». … Coisa diversa se passa na ação a que os requerentes reportam a providência aqui em causa. É que o regime do seguro escolar, previsto na citada Portaria n.º 413/99, contempla uma indemnização ao lesado em caso de sinistro ocorrido no âmbito das atividades escolares, em termos objetivos, independentemente de culpa do Estado ou de qualquer dos seus órgãos, e mesmo nas situações em que haja culpa do próprio lesado …”

Assim, do quadro normativo em presença, mormente, dos arts. 23.º e 24.º da Portaria n.º 413/99, não resulta a enunciação ou constituição dum qualquer procedimento administrativo prévio obrigatório que condicione ou limite a possibilidade de instauração dos meios contenciosos adequados e competentes para a efetivação de responsabilidade no âmbito do seguro escolar.

É que se resulta dos citados preceitos legais, na sua articulação e concatenação com o demais regime legal aplicável, a existência dum procedimento administrativo a instaurar com vista a decidir sobre se no caso ocorreu ou não acidente e se este se devia qualificar ou não como “acidente escolar”, já do mesmo quadro normativo não se extrai que aquele procedimento seja ou constitua condição prévia obrigatória a verificar-se e sem a qual não poderá ser instaurada ação administrativa comum tendente a efetivar responsabilidade assente no regime do seguro escolar.

Subjacente a este entendimento está o afirmado e sustentado em parte no acórdão deste TCAN de 22.02.2007 (Proc. n.º 02242/04.0BEPRT quando ali se refere que “… face ao modo como as partes litigaram nos presentes autos, ficamos sem saber se foi proferida a decisão a qualificar o evento descrito nos autos como acidente escolar, o que competia à DREN, por se tratar de um atropelamento, nos termos do disposto no art. 24.º, n.º 2, al. b) do referido Regulamento.
A eventual obrigação de indemnização que recaia sobre o Estado, por força de se dever qualificar o evento como acidente escolar, exige em primeira linha que esse mesmo evento seja reconhecido pela DREN como acidente escolar, ou voluntariamente, ou mediante sentença judicial que a isso a condene.
De facto o pedido formulado na presente ação implica, não só, a comprovação da existência dos danos, mas numa fase inicial e que condiciona o pedido indemnizatório a qualificação do evento como acidente escolar, o que até ao momento não foi feito.
Tendo esta realidade como pressuposto facilmente podemos concluir que o pedido formulado na presente ação não se resume (não se pode resumir) ao mero pagamento de uma indemnização por força do seguro escolar, tal pagamento exige previamente que o Ministério da Educação seja convencido de que o evento se tratou efetivamente de um acidente escolar, e portanto a eventual condenação do mesmo ao pagamento das importâncias peticionadas já deve incorporar em si mesma a condenação ao reconhecimento de se tratar de acidente escolar.
E de facto existem nos autos todos os elementos para que se possa vir a provar que o evento se deve qualificar como acidente escolar, quer nos termos do disposto no art. 21.º, quer nos termos do disposto no art. 22.º, já que, tanto os recorrentes como o Ministério da Educação articularam factos suficientes para que se possa concluir pela real existência de um acidente escolar (dependendo naturalmente da prova que venha a ser feita em juízo) …”.
Inexiste, por conseguinte, qualquer constituição de procedimento administrativo de dedução obrigatória em termos pré-judiciais que condicione, limite ou impeça a possibilidade de instauração de meio contencioso, a ponto de sem a sua existência a via judicial não seria admissível.

Em síntese, e como se sumariou no citado acórdão deste TCAN de 06.05.2011, proferido no Procº nº 93/10.2BEPNF:
“I. O seguro escolar, à luz dos diplomas que o criaram ou instituíram, constitui uma modalidade de ação social escolar destinada a garantir a cobertura financeira dos danos resultantes de acidente escolar e cujo fim primordial é a proteção dos próprios alunos durante a sua vida escolar, garantindo-se aos mesmos uma cobertura financeira na assistência de que careçam em consequência de acidente escolar de que sejam vítimas, na certeza de que apesar de tal não estar previsto no DL n.º 35/90, o Estado, quando regulamentou o seguro escolar, alargou as garantias cobertas por este seguro a situações que, não podendo ser qualificadas como acidente escolar, são, ainda assim, eventos em íntima conexão com a atividade escolar e desta dependentes e que igualmente justificam proteção financeira.
II. Do quadro normativo decorrente do citado DL e da Portaria n.º 413/99, mormente, dos arts. 23.º e 24.º da referida Portaria, não resulta a enunciação ou constituição dum qualquer procedimento administrativo prévio obrigatório que condicione ou limite a possibilidade de instauração dos meios contenciosos adequados e competentes para a efetivação de responsabilidade no âmbito do seguro escolar.”

Também já o STA se havia pronunciado face à presente questão em 04.10.2006, no Acórdão nº 01760/03, onde se sumariou que:
“I – Os acidentes escolares estão cobertos pelo chamado seguro escolar, que, no entanto, apresenta limitações indemnizatórias decorrentes do grau de incapacidade do aluno e até os danos morais não são ressarcíveis totalmente.
II – Por isso, e mais ainda pelo facto de o recurso contencioso – que o interessado possa interpor da decisão que no âmbito do seguro estabeleça a indemnização – não ser de jurisdição plena, a tutela efetiva só é alcançada através da ação de condenação contra o Estado com base na responsabilidade civil extracontratual.”

Concluiu-se assim que a Ação por Responsabilidade Civil Extracontratual é independente do Seguro Escolar.

Aqui chegados, e decorrendo da matéria dada como assente sustentada no relatório pericial, ter resultado a amputação da extremidade distal do terceiro dedo da mão direita do filho dos Autores, o que lhe causou um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 1 ponto, causando dor e um dano estético permanente, sendo o quantum doloris de 3 em 7 pontos e o dano estético permanente de 3 em sete pontos, mostra-se equilibrada e adequada a atribuição da fixada indemnização de 4.000€ por danos patrimoniais e de 10.000€ a título de danos não patrimoniais.

Do Recurso do Município (...)
São pelo Recorrente Município suscitadas as seguintes questões:
a) Erro de julgamento da matéria de facto;
b) Erro de julgamento da matéria de direito

Surpreendentemente, vem o Município (...) invocar que o sinistrada, à data dos factos com 5 anos, era um aluno agressivo e rebelde, sendo que assentou este seu entendimento, nas declarações de professora (Professora M.) que só veio a contactar com a criança no 5º ano de escolaridade, quando ele teria 10 anos, o que significa que, mesmo a confirmar-se o alegado, poderia até o acidente ter contribuído para a consolidação de tais eventuais características comportamentais, o que ainda agravaria a responsabilidade dos demandados.

Fica assim, por natureza, comprometida a inclusão de tais eventuais comportamentos desajustados na matéria assente, não merecendo censura o entendimento adotado pelo tribunal a quo, de acordo com o qual, por falta de prova em contrário, à data do sinistro, a criança sinistrada “era uma criança normal”, tal como referenciado pela sua Educadora, M., que o definia como “uma criança educada, ativa”.

Quanto à titularidade do equipamento que veio a determinar o sinistro, ninguém questiona que “o sistema de escoamento de águas do Centro Escolar (...) foi edificado pelo Município (...), cabendo a este zelar pela conservação e manutenção do mesmo”, sendo que, se foi executado, como alegado, “de acordo com as boas regras e sem constituir perigo para a segurança de pessoas e bens”, mal se compreende como foi retirado por criança de 5 anos.

Ainda assim, a referida questão recursivamente suscitada pelo Município, não deixa de ser uma questão nova trazida recursivamente aos autos, sendo assim insuscetível de ser admitida.

Como se sumariou, nomeadamente, no acórdão deste TCAN nº 674/08.4BEBRG, de 10-09-2021, “(…) A decisão proferida em 1ª instância não pode ser revista em recurso jurisdicional com fundamento em questão nova. Os recursos jurisdicionais destinam-se a rever as decisões proferidas pelo tribunal recorrido, não a decidir questões novas.
Com efeito, os recursos são meios para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.
Assim, não pode em sede de recurso conhecer-se de questão nova, que não tenha sido objeto da sentença pois os recursos jurisdicionais destinam-se a reapreciar as decisões proferidas pelos tribunais inferiores e não a decidir questões novas, não colocadas a esses tribunais, ficando, assim, vedado ao Tribunal de recurso conhecer de questões que podiam e deviam ter sido suscitadas antes e o não foram.”

Assim, por natureza, improcederá a questão suscitada relativamente ao manuseamento da grelha que veio a determinar o acidente participado, sendo incontornável que confessadamente o Município reconhece que procedia regularmente à vistoria daquele equipamento, em face do que, por maioria de razão, mal se compreende a sua fácil acessibilidade e abertura por crianças de 5 anos, situação que, no mínimo, deveria ter sido adequada e previamente acautelada.

Aliás, o reconhecimento de que a situação à data do sinistro não era a mais adequada e segura, resulta do facto de Vereadora do Município, em visita ulterior ao local, ter determinado a colocação de “ganchos” na tampa de escoamento de águas (Facto Provado 32), exatamente para obstar à sua abertura inadvertida.

É incontornável e foi reconhecido pelo Município, ser o mesmo responsável pela gestão, manutenção e conservação dos equipamentos escolares tendo sintomaticamente assumido no documento que juntou em 07.06.2021 que “não estava previsto na empreitada a drenagem de águas pluviais das áreas envolventes (logradouros) (...)” e que “o sistema de drenagem utilizando sumidouros (sargetas (…) ficaram a cargo do Município”.

O referido não pode pois ser dissociado do artigo 486º do CC ao afirmar que “as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando independentemente de outros requisitos legais, havia por força da lei ou negócio jurídico, o dever de praticar o ato omitido.”

Havendo uma obrigação de agir, na prevenção do perigo potencial por parte do município, no âmbito da sua gestão do parque escolar e correspondentes áreas afetas ao mesmo, não pode aquele deixar de ser responsabilizado em decorrência do facto de não terem sido utilizados desde logo quaisquer meios mecânicos impeditivos da abertura inadvertida das referidas grelhas, mormente por crianças de tenra idade, o que, como se viu, só veio a ser realizada após o sinistro aqui em apreciação.

Situações como a descrita pelo irmão da vitima, na qualidade de testemunha, ao referir que o sinistrado “continua a sofrer”, é perfeitamente compreensível, pois que a situação gerada é estigmatizante e traumatizante, com compreensíveis efeitos colaterais, mormente em crianças, atenta a deformação irreversível de um dos seus dedos da mão.

Com efeito, é crível o afirmado por testemunha (Professora, Diretora de Turma), de acordo com a qual a criança sinistrada “sentia alguma vergonha nas aulas de música (decorrente do facto de ter de tocar flauta)”.

Mais uma vez, e como afirmado já relativamente à análise do Recurso do Estado, os montantes indemnizatórios atribuídos à criança sinistrada, fixados em 1ª instância mostram-se adequados, proporcionais e equilibrados, pois que resultaram da amputação da extremidade distal do terceiro dedo da mão direita, que causou um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 1 ponto, causando dor e um dano estético permanente, sendo o quantum doloris de 3 em 7 pontos e o dano estético permanente de 3 em sete pontos.
Assim, reitera-se não merecer censura a fixação pelo Tribunal a quo da compensação indemnizatória de 4.000€ a titulo de danos patrimoniais (dano biológico), e de 10.000€ a título de danos não patrimoniais.
* * *
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento aos Recursos, confirmando-se a Sentença Recorrida.

Custas pelas Recorrentes

Porto, 17 de dezembro de 2021

Frederico de Frias Macedo Branco
Alexandra Alendouro
Paulo Ferreira de Magalhães