Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00007/21.4BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/02/2021
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR; INUMAÇÃO; TRANSLADAÇÃO;
Sumário:1 – A requerida “provisoriedade” da transladação do corpo de falecida, não é questão que se possa colocar em termos meramente transitórios por via de Processo Cautelar, por não se tratar de uma decisão reversível, pois não seria admissível que em sede cautelar fossem os restos mortais transladados para Viseu, vindo depois, e após decisão da Ação principal, a ser tal decisão potencialmente revertida.
Efetivamente, mal se compreenderia que em Processo Cautelar se permitisse “provisoriamente” a requerida transladação, para que depois, no processo principal, se pudesse vir a determinar a reposição dos restos mortais da falecida, na sua sepultura originária.
Por outro lado, o facto da falecida se encontrar sepultada na atual localização desde 1978, não permite atingir a urgência da transladação agora requerida.

2 – Assim, ao contrário do recursivamente afirmado, o que determinaria “uma situação de facto consumado”, seria a procedência da Providência Cautelar com a efetivação da requerida transladação, e não o seu contrário.

3 - Os Requerentes assentam o “periculum in mora” na circunstância de, por lhe ter sido recusada a trasladação dos restos mortais da falecida, mãe e avó dos requerentes, estarem, impedidos de manter “uma relação espiritual livre e recolhida com a falecida” e privados de exercer o culto e reverência da memória da sua avó e mãe, o que desde logo colide com a circunstância da falecida se encontrar sepultada no mesmo local há mais de 40 anos, sendo que seria antes a concretização da transladação requerida que determinaria uma situação de facto consumado.

4 – A concessão de uma sepultura confere aos titulares o direito de utilização do terreno objeto de concessão para fins de inumação, mas daí não decorre necessária a automaticamente qualquer direito sobre os restos mortais que aí foram depositados, estando em causa, direitos de natureza diversa.
Efetivamente, não basta invocar a qualidade de concessionário de sepultura e muito menos a posse do correspondente alvará que titula esse direito, para que correspondentemente se possa necessária e automaticamente, dispor dos restos mortais aí sepultados, uma vez que o direito de disposição dos restos mortais não é concedido, por natureza, aos concessionários onde os mesmos se encontrem depositados, mas às pessoas indicadas no artigo 3º do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, o que não é necessariamente coincidente.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:C., e Outros
Recorrido 1:Município (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar para Adopção duma Conduta (CPTA) - Rec. Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I Relatório

C. e L., com os sinais nos autos, inconformada com a decisão proferida no TAF de Viseu, em 17 de abril de 2021, através da qual foi julgada totalmente improcedente a providência cautelar requerida contra o Município (...), tendente a “(…) Ser o Município Requerido condenado a autorizar e ordenar a abertura da sepultura onde se encontram inumados O. e C., a fim de se verificar em que estado se encontram os fenómenos de destruição da matéria orgânica deste último, ou na adoção de outra(s) providência(s) que este douto Tribunal entenda mais adequadas.
Caso estes fenómenos estejam concluídos ou a urna de zinco na qual se encontra inumado C. ainda se encontrar intacta, ser decretada a autorização provisória de trasladação de O.”, vieram apresentar Recurso para esta Instância em 5 de março de 2021, nas quais concluíram, a final:

“DA NULIDADE DA SENTENÇA:
I. Apesar de a sentença recorrida referir que a convicção do Tribunal se baseou na análise dos documentos constantes do PA, a verdade é que, se o PA foi junto aos autos, este não foi notificado aos aqui recorrentes, como lhe impunha o artigo 84.º n.º 7 do CPTA.
II. A falta de notificação aos requerentes da junção do PA constitui uma omissão grave do Tribunal, que impediu os requerentes de exercer o seu direito ao contraditório e que representa uma nulidade processual, que influi, necessariamente no exame e na decisão da causa, nulidade que aqui expressamente se argui para os devidos efeitos legais, ao abrigo do disposto no artigo 195.º n.º 1 do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA.
III. Sem prescindir, caso o PA não tenha sido, efetivamente, junto aos autos pelo Município Requerido (o que lhe era imposto pelo artigo 84.º n.º 1 do CPTA), a sentença padece igualmente de nulidade, que aqui expressamente se argui, já que perante a omissão do requerido, o Tribunal a quo não o notificou para proceder à junção, sob cominações legais, do PA.
IV. Independentemente da existência de contrainteressados, o Tribunal recorrido deveria ter notificado o Município para juntar aos autos o PA, já que só através dele é possível aos recorrentes provarem os seguintes factos:
- No dia 25-09-2020, o requerente C., em representação de L., apresentou requerimento junto dos serviços do Município requerido a solicitar a transladação de O.. – facto que é relevante para dar como preenchido o pressuposto do periculum in mora, pois, como se viu, a sentença considera que não foram alegadas alterações das circunstâncias em relação a 2017;
- Decorridos três anos sobre a última inumação ocorrida na sepultura em causa, e após o requerimento de transladação apresentado pelos requerentes em 25-09-2020, o Município requerido não procedeu à abertura da sepultura para verificação dos fenómenos de destruição da matéria orgânica. – facto que é relevante para dar como preenchido o pressuposto do fumus boni iuris, pois daqui decorre a violação pelo Município do disposto no artigo 21.º do DL 411/98, de 30/12;
- O coveiro J., sob ordens e direção do Município (...), apenas espetou, junto da sepultura, um ferro com cerca de dois metros de comprimento e três centímetros de diâmetro com uma das extremidades de formato pontiagudo e a outra de formatado espalmado. - facto que é relevante para dar como preenchido o pressuposto do fumus boni iuris, pois daqui decorre a violação pelo Município do disposto no artigo 21.º do DL 411/98, de 30/12.
V. A falta de notificação ao Município para juntar o PA e, consequentemente, a ausência deste no processo que aqui nos ocupa, torna a prova pelos recorrentes dos factos por si alegados impossível ou de considerável dificuldade.
VI. Ademais, a conduta omissiva do Tribunal postergou, totalmente, o direito dos aqui recorrentes à apreciação da legalidade do ato e violou o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva e plena o princípio do contraditório, o princípio de igualdade entre as partes e o princípio do inquisitório.
VII. Porque esta omissão do Tribunal recorrido influiu diretamente na decisão da causa, deverá a sentença, que daquele ato depende, ser declarada nula, nos termos do artigo 195.º n.º 1 e 2 do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA. Nulidade que aqui expressamente se argui para os devidos efeitos legais.
VIII. Para além disso, nos termos do n.º 6 do artigo 84.º do CPTA, deverão os factos alegados pelos requerentes ser dados como provados, porque a falta de junção do PA tornou impossível ou de considerável dificuldade a prova pelos requerentes dos factos por si alegados.
IX. Em primeiro lugar, não consta do elenco de factos provados que os recorrentes apresentaram um segundo requerimento de transladação, em 25-09-2020, sendo o ato do Município aqui em discussão a resposta a tal requerimento.
X. Este facto apenas é possível provar pela consulta do PA, dado que se trata de um documento entregue pelos recorrentes ao Município requerido, que se encontra arquivado no processo instrutor do ato impugnado e que, na presente data, não o conseguem obter de outra forma, nem tão pouco juntá-lo em sede de recurso, por não se tratar de documento superveniente.
XI. Como o PA não foi junto aos autos, a prova deste facto, que é essencial para a decisão da causa, desde logo, para fundamentar uma alteração de circunstâncias que justifica o periculum in mora, torna-se de considerável dificuldade pelos recorrentes.
XII. Assim, face à ausência do aludido PA, ao abrigo do disposto no artigo 84.º n.º 6 do CPTA, deve dar-se como provado que:
- No dia 25-09-2020, o requerente C., em representação de L., apresentou requerimento de transladação dos restos mortais de O. junto dos serviços do Município requerido.
XIII. Em segundo lugar, com elevado relevo para o preenchido do pressuposto do fumus boni iuris, pois deles decorre a violação pelo Município do disposto no artigo 21.º do Decreto-lei n.º 411/98, de 30/12, os requerentes alegaram que o Município requerido não procedeu à abertura da sepultura para verificação do estado em que se encontram os fenómenos de destruição da matéria orgânica do corpo de C. , tendo-se limitado a levar a cabo um procedimento que nunca permitiria ao Município retirar a conclusão de que ainda não estariam concluídos (a introdução de um ferro na terra junto da sepultura).
XIV. As ordens internas de serviço ou outros atos que determinaram aos funcionários do Município que adotassem determinado procedimento, e não outro, deverão constar do PA, pelo que, não tendo este sido junto aos autos, a prova pelos recorrentes torna-se de considerável dificuldade.
XV. Por isso, face à ausência do PA, deverão também dar-se como provados ou seguintes factos:
- Decorridos três anos sobre a última inumação ocorrida na sepultura em causa, e após o requerimento de transladação apresentado em 25-09-2020, o Município requerido não procedeu à abertura da sepultura para verificação dos fenómenos de destruição da matéria orgânica.
- O coveiro J., sob ordens e direção do Município (...), apenas espetou, junto da sepultura, um ferro com cerca de dois metros de comprimento e três centímetros de diâmetro com uma das extremidades de formato pontiagudo e a outra de formatado espalmado.
DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA
XVI. Sem prescindir, sempre se impõe uma alteração na matéria de facto dada como provada, já que foram, indevidamente, desconsiderados factos que se deverão ter por provados e que são relevantes para a decisão.
XVII. De facto, também deverá ser incluída na matéria de facto provada o facto de o Requerente C., na qualidade de procurador do seu pai L., ter apresentado junto do Município requerido, em 25-09-2020, um requerimento de transladação de O., à qual foi dada a resposta que consta do ato impugnado.
XVIII. Tal facto vinha alegado no artigo 43.º da Petição Inicial, mostra-se confessado, e consta do PA (que não foi junto), sendo que o ato do Município de 21-10-2020 (junto como doc. 6 na PI) é a resposta a tal requerimento.
XIX. Para além disso, os aqui recorrentes alegaram, nos artigos 25.º a 31.º, 46.º e 47.º da Petição Inicial, que o Município requerido não procedeu à abertura da sepultura para verificação do estado em que se encontram os fenómenos de destruição da matéria orgânica do corpo de C. , tendo-se limitado a levar a cabo um procedimento que nunca permitiria ao Município retirar a conclusão de que ainda não estariam concluídos (a introdução de um ferro na terra junto da sepultura).
XX. Tratando-se os mesmos de factos pessoais do Município requerido e não tendo este apresentado contestação, devem os factos alegados pelos requerentes (suscetíveis de confissão) ter-se por confessados, nos termos do artigo 118.º n.º 2 do CPTA e do artigo 567.º n.º 1 do CPC.
XXI. Com a alteração ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), operada pelo Decreto-lei n.º 214-G/2015, de 22 de fevereiro, passou a existir no contencioso administrativo um ónus de contestação a cargo do réu/requerido, independentemente do tipo de ação.
XXII. Assim sendo, tendo em conta o alegado pelos Recorrentes nos artigos 25.º a 31.º, 43.º, 46.º e 47.º da sua petição inicial, a não contestação por parte do Requerido Município, e ainda os documentos juntos aos autos, designadamente os documentos 5 e 6 juntos com a petição inicial, deverão ser dados como provados e aditados à matéria de facto dada como provada, os seguintes factos:
- No dia 25-09-2020, o requerente C., em representação de L., apresentou requerimento de transladação dos restos mortais de O. junto dos serviços do Município requerido.
- Decorridos três anos sobre a última inumação ocorrida na sepultura em causa, e após o requerimento de transladação apresentado pelo recorrente L. em 25-09-2020, o Município requerido não procedeu à abertura da sepultura para verificação dos fenómenos de destruição da matéria orgânica.
- O coveiro J., sob ordens e direção do Município (...), apenas espetou, junto da sepultura, um ferro com cerca de dois metros de comprimento e três centímetros de diâmetro com uma das extremidades de formato pontiagudo e a outra de formatado espalmado.
XXIII. Por outro lado, quanto ao alegado pelos aqui recorrentes nos artigos 29.º e 30.º da Petição Inicial, isto é, que o falecido C. se encontra dentro de uma urna de zinco, bem como quais as características que a sepultura apresenta, também se impõe a sua introdução no elenco de factos provados, ao abrigo do disposto no artigo 574.º n.º 3 do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA.
XXIV. Na verdade, os contrainteressados, no artigo 30.º da contestação, impugnaram aqueles artigos da petição inicial, mas por desconhecimento, alegando não serem factos pessoais seus.
XXV. Mas tal não corresponde à verdade: os contrainteressados sabem, ou têm a obrigação de saber, porque são seus herdeiros e os seus familiares mais próximos, quais as características da urna do falecido C. , bem como as características da sepultura onde este se encontra atualmente inumado, tanto mais que se arrogam cotitulares do direito de concessão sobre a sepultura em causa.
XXVI. Assim, atendendo à alegação dos recorrentes na sua petição inicial e à confissão tácita dos contrainteressados, deverão ser igualmente dados como provados os seguintes factos:
- O falecido C. foi sepultado dentro de uma urna de zinco.
- A sepultura em causa encontra-se coberta com pedra maciça de dimensões superiores ao tamanho da urna que, por sua vez assenta num aro de cimento, também revestido a granito, de dimensões superiores à pedra de cobertura, formando uma moldura a toda a volta da sepultura.
XXVII. Concluindo, pelos motivos já descritos, deverão ser dados como provados todos os factos supra mencionados, o que implica a junção/aditamento das seguintes alíneas ao elenco dos factos provados:
k) No dia 25-09-2020, o requerente C., em representação de L., apresentou requerimento de transladação dos restos mortais de O. junto dos serviços do Município requerido.
l) Decorridos três anos sobre a última inumação ocorrida na sepultura em causa, e após o requerimento de transladação apresentado pelos requerentes em 25-09-2020, o Município requerido não procedeu à abertura da sepultura para verificação dos fenómenos de destruição da matéria orgânica.
m) O coveiro J., sob ordens e direção do Município (...), apenas espetou, junto da sepultura, um ferro com cerca de dois metros de comprimento e três centímetros de diâmetro com uma das extremidades de formato pontiagudo e a outra de formatado espalmado.
n) O falecido C. foi sepultado dentro de uma urna de zinco.
o) A sepultura em causa encontra-se coberta com pedra maciça de dimensões superiores ao tamanho da urna que, por sua vez assenta num aro de cimento, também revestido a granito, de dimensões superiores à pedra de cobertura, formando uma moldura a toda a volta da sepultura.
DO PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DO PROCEDIMENTO CAUTELAR A) DO PERICULUM IN MORA
XXVIII. O tribunal recorrido fundamenta a sua decisão, no sentido de que não se encontra preenchido o pressuposto do periculum in mora, em três ideias essenciais:
1) Os requerentes não alegaram de que modo estão impedidos de manter uma relação espiritual com a falecida O., nomeadamente que estão impedidos de aceder à sepultura e, ainda, que a presença dos restos mortais do falecido C. na mesma sepultura não é de molde a impedir que os requerentes estabeleçam uma relação espiritual livre e recolhida com a falecida O.;
2) A idade do autor L. não permite, por si só, dar como demonstrado o periculum in mora, sendo necessário que os Autores tivessem alegado e demonstrado de que forma a idade do Autor o impede de exercer o culto e a reverência da memória da mãe e que só a transladação dos restos mortais o permitirá assegurar;
3) Estamos na presença de um estado de coisas que se verifica pelo menos desde setembro de 2017 e os requerentes não invocaram e provaram uma alteração das circunstâncias ou um interesse ponderoso, contemporânea à presente providência, que explique uma alteração à situação existente e que determine que, agora, se faça a transladação dos restos mortais, ainda que a título meramente provisório.
XXIX. Começando pelo primeiro ponto, nunca esteve em causa, nem tal foi alegado, a impossibilidade de acesso à dita sepultura pelos ora recorrentes, mas antes, como resulta da petição inicial, o que está em causa é, apenas e só, o impedimento dos requerentes poderem prestar o seu culto à sua falecida mãe e avó sem a presença dos restos mortais de C..
XXX. Como foi oportunamente alegado pelos Autores, designadamente em 39.º, 56.º e 63.º da Petição Inicial, pretendem os requerentes manter uma relação espiritual livre e recolhida com a sua mãe e avó, sem a presença de restos mortais de outra pessoa na sepultura desta, como era, aliás, a sua vontade, a qual, o recorrente L. pretende respeitar.
XXXI. Se o que pretendem os requerentes é exercer o seu direito de culto e reverência da memória de O. sem a presença de restos mortais de outra pessoa, encontrando-se inumado na mesma sepultura C., não se compreende como é que este facto não é de molde a impedir que os Requerentes estabeleçam uma relação espiritual livre e recolhida com a falecida O..
XXXII. Quanto ao segundo ponto, relativo à idade do requerente L., entende o Tribunal recorrido que seria necessário que os aqui recorrentes tivessem alegado e demonstrado de que forma a idade do recorrente L. o impede de exercer o culto e a reverência da memória da mãe e que só a transladação dos restos mortais o permitirá assegurar.
XXXIII. A idade do requerente L. não foi alegada como um impedimento ao exercício do culto e reverência da memória da sua mãe, mas antes como um facto que reclama uma tutela urgente como é o caso de um procedimento cautelar.
XXXIV. Além disso, no que concerne ao facto de apenas a transladação dos restos mortais permitir assegurar o seu direito de culto e reverência da memória da sua falecida mãe, resulta evidente que apenas a transladação permitirá a ausência de restos mortais de outra pessoa, permitindo, assim, um culto privado e recolhido junto da sua familiar.
XXXV. Por outro lado, salvo o devido respeito por entendimento contrário, os motivos para a transladação, que são pessoais dos requerentes, não são relevantes para estes autos, estando apenas em causa o indeferimento do Município do pedido de transladação com fundamento no estado dos fenómenos de destruição da matéria orgânica do corpo inumado em último lugar, sem que tenha procedido à abertura da sepultura em causa, como obriga a Lei.
XXXVI. Os requerentes alegaram factos mais do que suficientes para comprovar a existência de um periculum in mora – artigos 36.º a 40.º da petição inicial – e que não foram objeto de apreciação por parte do Tribunal recorrido.
XXXVII. Na verdade, se não for deferida a providência cautelar requerida, quando for proferida a decisão do processo principal já terão decorrido os dois anos determinados pelo ato do Município, o que tornará a lide principal totalmente inútil, pois, nessa data, os ora recorrentes já estarão em condições de fazer um novo pedido de transladação.
XXXVIII. Para além disso, a manutenção do ato de indeferimento na ordem jurídica causará prejuízos de difícil reparação, pois o tempo que decorrer até à reposição da legalidade da atuação do Município e em que se viram impedidos de manter uma relação espiritual livre e recolhida com a sua familiar falecida não voltará atrás e nem uma compensação monetária permitirá recuperar esse tempo.
XXXIX. Já no que concerne ao Recorrente L., se não for determinada a abertura da sepultura para simplesmente verificar o estado em que se encontra o processo de decomposição dos cadáveres, a fim de posteriormente poder ser autorizada a transladação de O. caso esteja concluído, irá ocorrer uma situação de facto consumado, porque este ver-se-á definitivamente impedido de exercer o direito de culto, inserido no elenco constitucional de direitos, liberdades e garantias (artigo 41.º da CRP), e de reverência da memória da falecida mãe, enquanto direito de personalidade deste (artigo 70.º do CC e 25º nº 1 e 26º nº 1 da CRP) e enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana, garantida constitucionalmente.
XL. Recorde-se que, tal como foi alegado, o requerente L. tem 90 anos de idade, cerca de 12 anos acima da esperança média de vida para os homens, de acordo com dados do INE (Instituto Nacional de Estatística) e, como já decidiu o Supremo Tribunal Administrativo, a idade avançada dos requerentes não pode deixar de ser ponderada no quadro da factualidade relevante para a integração do requisito do periculum in mora.
XLI. Portanto, não obstante a existência de prejuízos de difícil reparação que se encontram já demonstrados, quando o processo principal terminar, sem o decretamento de qualquer providência cautelar, verificar-se-á uma situação de facto consumado, atendendo à idade avançada do requerente L. e à duração provável do processo principal, facto que não foi atendido nem considerado pelo Tribunal recorrido.
XLII. Por fim, quanto ao terceiro ponto – de que estamos na presença de um estado de coisas que se verifica pelo menos desde Setembro de 2017 e falta de invocação e prova de uma alteração das circunstâncias contemporânea à presente providência – os requerentes alegaram a alteração das circunstâncias, contemporânea a este processo cautelar, que determina que agora se faça a transladação requerida a título provisório – vide artigos 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 11.º, 12.º, 15.º, 23.º, 43.º e 47.º da petição inicial – pelo que o Tribunal recorrido errou ao considerar que não foi alegada uma alteração de circunstâncias.
XLIII. De facto, C. foi sepultado, na sepultura em causa, no dia 25-09-2017. No dia 06-11-2017, os requerentes solicitaram a transladação dos restos mortais de A. e O.. Mas, apenas no dia 29-12-2017 é que os requerentes tiveram conhecimento da inumação de C..
XLIV. Este primeiro requerimento de transladação (datado de 06-11-2017) foi indeferido, precisamente, devido à inumação de C. ocorrida em Setembro de 2017. Como resulta da própria lei, após a data da inumação, seria necessário aguardar 3 anos para que pudesse ser autorizada a transladação de O..
XLV. A única exceção a esta regra seria uma autorização judicial. Pelo que, assim que tomaram conhecimento da inumação de C. fizeram a única coisa que estava ao seu alcance: intentaram a ação administrativa que corre termos no mesmo Tribunal Administrativo e Fiscal sob o n.º 546/18.4BEVIS, na qual ainda não foi proferida sentença.
XLVI. Porque decorreram os três anos sobre a inumação, em 25-09-2020, o requerente L. apresentou/requereu junto do Município novo pedido de transladação, o qual mereceu a resposta que consta do doc. 6 junto com a PI e que é objeto de apreciação nestes autos e nos autos principais.
XLVII. A alteração revelante das circunstâncias é precisamente o decurso dos três anos sobre a inumação de C., já que antes desta data nada mais poderiam os requerentes fazer.
XLVIII. Todos estes factos foram alegados pelos recorrentes na sua petição inicial, encontram-se confessados, e resultam comprovados pelos próprios documentos juntos com os articulados, designadamente o documento 6 junto com a petição inicial. Sendo certo que, era do conhecimento do Tribunal a existência do processo n.º 546/18.4BEVIS e dos fundamentos da sua propositura.
B) DO FUMUS BONI IURIS e LEGITIMIDADE PARA O PEDIDO DE TRANSLADAÇÃO
XLIX. O único fundamento apresentado pelo Tribunal recorrido para dar como não preenchido o pressuposto do fumus boni iuris é o facto – apontado pelos contrainteressados – de os aqui recorrentes não terem legitimidade para pedir a transladação de O. sem o consentimento destes.
L. Considerou o Tribunal a quo que “todos – Requerentes e contrainteressados – possuem igual legitimidade para a prática de atos aí elencados, sendo todos eles, em conjunto, titulares desses direitos” e, ainda, que “está em causa um direito que deve ser exercido em conjunto por todos, não podendo um deles sobrepor a sua vontade sobre os demais, nos termos que resulta do artigo 2091º do Código Civil”, já que decidiu que todos os autores e contrainteressados possuem a qualidade de herdeiros de O., “por serem seus filhos, netos e bisnetos cfr. artigo 2133.º do Código Civil”.
LI. Por isso, o Tribunal recorrido errou na interpretação do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 411/98, de 30/12 e do artigo 41.º do Regulamento do Cemitério Municipal, violando igualmente diversas normas do Código Civil em matéria sucessória, como os artigos 2030.º, 2031.º, 2032.º, 2133.º, 2134.º, 2135.º e 2157.º.
LII. Os contrainteressados (assim como o recorrente C.) não são herdeiros de O., nem esta afirmação se poderia considerar correta perante o Direito Sucessório vigente em Portugal.
LIII. Assim, não serão “herdeiros” todos os referidos no artigo 2133.º do CC como parece sugerir a sentença em apreço, o que, a ser assim, levaria à conclusão absurda de que também seria aqui herdeiro o próprio Estado, ou até de que seria necessário o consentimento de todo e qualquer familiar de O. para a transladação, já que a citada norma refere os colaterais até ao quarto grau e não tem sequer limite de grau quanto aos descendentes e ascendentes.
LIV. Tendo em conta que: os herdeiros são chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido com a abertura da sucessão, a qual ocorre no momento da morte do seu autor (artigo 2031.º do CC), que existe uma preferência de classes e, dentro de cada classe, uma preferência pelos graus de parentesco mais próximos, são herdeiros legitimários de O. (apenas) os seus dois filhos: L. e C. (porque ainda era vivo à data da abertura da sucessão).
LV. O falecimento de C., ocorrido em 2017, em nada altera o supra exposto, pois esse facto não institui os seus herdeiros na qualidade de herdeiros de O..
LVI. Tanto assim é, que o douto Tribunal a quo dá como provado – alínea f) dos factos provados – que os contrainteressados são herdeiros de C. e não de O., o que resulta da habilitação de herdeiros junta como Doc. 1 da petição inicial.
LVII. Como, aliás, também os próprios contrainteressados se assumem herdeiros de C., e não de O. – vide artigo 5.º da contestação.
LVIII. É no momento da abertura da sucessão, que se dá no momento da morte, que se imobiliza e consolida a hierarquia das designações sucessórias, que o escalonamento dos designados, até então instável e em permanente evolução, se fixa e se apuram as pessoas que em concreto vão ser chamadas à titularidade das relações jurídicas do falecido.
LIX. Pelo exposto, salvo o devido respeito, o douto tribunal a quo errou em considerar que os contrainteressados são igualmente herdeiros de O., porque não o são, bem assim que seria exigível o acordo destes para a transladação, porque, havendo ainda um herdeiro sobrevivo (L.) nada têm de autorizar, nem nada podem requerer quanto aos restos mortais de O..
LX. Não deixa de causar alguma perplexidade aos aqui recorrentes que o douto Tribunal a quo tenha centrado a sua decisão numa questão – a falta de legitimidade dos recorrentes para pedir a transladação – quando nunca esteve sequer em causa qualquer falta de legitimidade para o Município ter praticado o ato que aqui se discute.
LXI. O Município não autorizou a transladação de O. pelo simples facto de considerar (erradamente) que os fenómenos de destruição da matéria orgânica do cadáver de C. ainda não estarem terminados.
LXII. Salvo o devido respeito, ao decidir como decidiu, o douto Tribunal “fez tábua rasa” da decisão do Município e do peticionado pelos aqui recorrentes, ignorando o que está verdadeiramente em causa: a violação pelo Município do artigo 21.º n.º 2 do Decreto-lei n.º 411/98.
LXIII. Foi também ignorado o que se encontra disposto no artigo 41.º n.º 1 do Regulamento do Cemitério Municipal de (...) e o alegado pelos aqui recorrentes, designadamente no artigo 64.º da PI: “estando preenchidos os pressupostos para que seja autorizada a transladação de O.: terem decorrido mais de três anos desde a última inumação, estarem os fenómenos de destruição da matéria orgânica concluídos, haver autorização de um dos concessionários e legitimidade do herdeiro para requerer tal transladação, também não se vislumbram motivos para um indeferimento do pedido de condenação à prática do ato legalmente devido, a deduzir nos autos principais”.
LXIV. Seriam, assim, necessários dois pressupostos para a transladação: o pedido ser efetuado por qualquer herdeiro (art. 3.º do DL 411/98, de 30/12) e a autorização do concessionário na posse do alvará (art. 41.º n.º 1 e 2 do Regulamento) e como foi referido, estão ambos os pressupostos preenchidos, o que não foi sequer questionado pelo Município.
LXV. Sem prejuízo do supra exposto, o entendimento do Tribunal recorrido perante a alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 411/98, seria sempre questionável, pois que, a referida norma refere expressamente “qualquer herdeiro” e não, por exemplo, todos os herdeiros ou mediante acordo de todos os herdeiros.
LXVI. A interpretação levada a cabo pelo Tribunal viola e é literalmente contrária ao texto da aludida norma, sendo até, como se verá, inconstitucional.
C) DA PROPORCIONALIDADE
LXVII. A sentença recorrida padece de nulidade, que aqui expressamente se argui, por excesso de pronúncia e por violação do disposto no artigo 120.º n.º 2 e 5 do CPTA.
LXVIII. De facto, o Município requerido não apresentou contestação, nem a sentença referiu qualquer lesão “manifesta ou ostensiva” do interesse público.
LXIX. Na verdade, nem menciona qualquer presumível lesão, limitando-se a referir as especiais cautelas que envolvem a exumação por razões de saúde pública e de natureza ambiental. Assim, impunha-se (e continua a impor-se) a consideração de que inexiste qualquer provável lesão ao interesse público provocada pela adoção das providências requeridas.
LXX. Isto vale, mutatis mutandis, para os interesses dos contrainteressados referidos na sentença. É certo que os contrainteressados apresentaram contestação, mas em momento algum alegaram, muito menos provaram – porque não existe – qualquer possível lesão aos seus interesses decorrente da adoção das providências requeridas.
Sem prescindir, por mera cautela de patrocínio,
LXXI. Mesmo que se adote uma tese oposta à supra descrita, ainda assim, deveria ter sido dado como preenchido o pressuposto da proporcionalidade.
LXXII. O Tribunal recorrido violou o artigo 21.º n.º 2 do Decreto-lei n.º 411/98, de 30/12, conferindo-lhe uma interpretação que não é de acolher face ao texto e ao espírito da norma.
LXXIII. Os recorridos apenas pretendem que seja dado cumprimento à lei e se proceda à abertura da sepultura para verificação dos fenómenos de destruição da matéria orgânica – porque já decorreram os 3 anos exigidos – devendo, claro está, o corpo ser recoberto caso os mesmos ainda não estejam terminados.
LXXIV. Nunca os aqui recorrentes peticionaram algo que colocasse em causa interesses ambientais ou de saúde pública, o que apenas aconteceria se peticionassem (o que não fizeram) que a transladação provisória de O. fosse concretizada mesmo não estando terminados os fenómenos de destruição ou se a urna de zinco em que se encontra inumado C. não estivesse intacta.
LXXV. Ora, é a própria lei que permite a abertura da sepultura após o decurso de 3 anos sobre a data da última inumação, exigindo apenas que se recubra de novo o corpo por um período de 2 anos, até à mineralização do esqueleto, se os fenómenos de destruição não estiverem concluídos.
LXXVI. Sendo certo que é no momento da abertura que se verifica o estado daqueles fenómenos, não se compreende como pôde o douto Tribunal concluir que há razões de saúde pública e de natureza ambiental que impedem o peticionado pelos aqui recorrentes – o que se peticiona é precisamente o que a lei prevê e o Município requerido não cumpriu.
LXXVII. Assim, impunha-se que o douto Tribunal interpretasse o citado artigo 21.º no sentido de que, decorridos três anos após a inumação, é possível proceder-se à abertura da sepultura e apenas se, no momento da abertura, não estiverem concluídos os fenómenos de destruição da matéria orgânica, o corpo se deverá manter inumado por períodos sucessivos de 2 anos até à mineralização do esqueleto, não havendo qualquer prejuízo para a saúde pública ou para o meio ambiente com essa abertura.
LXXVIII. Isto sem prejuízo de se dizer que a sentença não refere, nem poderia referir, um qualquer hipotético prejuízo que poderia advir da abertura da sepultura, limitando-se a recusar a transladação provisória com fundamento nas especiais cautelas que rodeiam a exumação de cadáveres, quando o n.º 2 do artigo 120.º do CPTA pede uma ponderação de danos, para além de uma simples ponderação de interesses.
LXXIX. Para além disso, é ainda recusada a providência requerida pelos aqui recorrentes com fundamento no facto de os interesses dos recorrentes não se sobreporem aos interesses dos contrainteressados, “por estarem em causa interesses de idêntica natureza (mas de sentido oposto)”.
LXXX. Mais uma vez, a ponderação a fazer deverá ser também de danos e não apenas de interesses. E, nessa ponderação, as providências requeridas só deverão ser recusadas se os danos provocados a qualquer interesse, público ou privado, pela adoção das providências forem superiores – e não iguais – aos que possam resultar da sua recusa.
LXXXI. Pelo que, também nesta parte, o Tribunal a quo errou ao recusar as providências requeridas com fundamento no facto de os interesses dos requerentes não se sobreporem aos dos contrainteressados.
LXXXII. A sentença em apreciação remata que “a admitir-se a tese dos Requerentes – isto é, que qualquer herdeiro pode requerer a exumação e transladação de cadáver ou ossadas – nada impede que após a transladação para o cemitério de (…) como pretendido pelos Autores, os contrainteressados também pretendam exercer igual direito”. Sobre esta parte, apenas se reitera o já supra exposto: os contrainteressados não são herdeiros de O..
LXXXIII. A sentença termina referindo que “o respeito às pessoas falecidas impõe uma certa estabilidade no local em que são sepultados, tanto mais que, normalmente a escolha do local do sepultamento não é fruto do acaso e é escolhido pelo falecido ou familiar tendo em conta as especiais ligações ao local (por exemplo, por ter aí vivido), interesse que mais uma vez milita no sentido de ser recusada a providência requerida”.
LXXXIV. Com o devido respeito, não poderão os aqui recorrentes aceitar tal afirmação, quando não consta dos autos qualquer prova de que os pais do aqui recorrente L. se encontram sepultados no lugar de sua vontade ou que tenham especiais ligações àquele local.
LXXXV. Nem é essa a questão que está em causa nos autos: o requerente L. – reitera-se, único com legitimidade para tal – pretende transladar os seus pais (A. e O.) para o cemitério de (...) e tal apenas lhe está a ser recusado com fundamento no facto de os fenómenos de destruição da matéria orgânica do corpo de C. ainda não estarem concluídos, fundamento esse que não é verdadeiro, padecendo a decisão do Município de ilegalidade!
LXXXVI. Não se discute quais os motivos que levaram o recorrente L. a pedir a transladação dos seus pais para o Cemitério de (...), e, com o devido respeito por entendimento contrário, nem tal é relevante para estes autos em que apenas se discute a ilegalidade da decisão do Município de indeferimento com os fundamentos que são já conhecidos, e não o consentimento dos contrainteressados, porque, como também já referido, não é exigido.
DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO EFECTUADA PELO TRIBUNAL RECORRIDO À NORMA CONSTANTE DO ARTIGO 3.º N.º 1 AL. D) DO DECRETO-LEI N.º 411/98, DE 30/12.
LXXXVII. A norma do artigo 3.º n.º 1 da alínea d) do Decreto-lei n.º 411/98, de 30 de dezembro, na interpretação, dada pelo tribunal recorrido, de que é necessário o consentimento de todos os herdeiros, sem atender à preferência de classes e à preferência de grau de parentesco dentro de cada classe de sucessíveis, é inconstitucional por violação do direito à liberdade de culto (artigo 41.º n.º 1 da CRP), do direito à integridade moral (artigo 25.º n.º 1 da CRP) e do direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º n.º 1 da CRP) e do princípio da dignidade da pessoa humana.
LXXXVIII. Tudo dito, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 84.º, n.ºs 1, 6 e 7 do CPTA, 118.º n.º 2 do CPTA, 567.º n.º 1 do CPC, 574.º n.º 3 do CPC, 120.º n.ºs 1, 2 e 5 do CPTA, 3.º do Decreto-lei n.º 411/98, de 30/12, 41.º do Regulamento do Cemitério Municipal, 2030.º, 2031.º, 2032.º, 2133.º, 2134.º, 2135.º e 2157.º. do Código Civil.
Termos em que, deve o presente recurso proceder, revogando-se a decisão recorrida, com as demais consequências legais.
Assim decidindo, como se espera, farão V. Exas. Justiça.”

Nem o Município recorrido, nem os Contrainteressados vieram apresentar Contra-alegações de Recurso.

O Recurso veio a ser admitido por Despacho de 14.04.2021, no qual se procede a uma retificação de erro material suscitado da Sentença, mais se suprindo a mesma, atentas as nulidades recursivamente suscitadas.

O Magistrado do Ministério Público junto deste tribunal, notificado em 18 de maio de 2021, nada veio dizer, requerer ou Promover.

Com dispensa de vistos prévios (art.º 36º, nº 2, do CPTA), cumpre decidir.

II - Questões a apreciar

Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, o qual se consubstancia na necessidade de verificar, em síntese e designadamente, se se mostram preenchidos os pressupostos legais para o decretamento da providência cautelar requerida, constantes do art. 120º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos.

III – Fundamentação de Facto

O Tribunal a quo, considerou a seguinte matéria de facto provada, para a apreciação da questão controvertida, cujo teor infra se reproduz:
a) Por deliberação de 16.10.1978, o Município de (...) concedeu a L. e C. , o direito de uso de um terreno no Cemitério Municipal de (...), para sepultura perpétua, identificado como sepultura 12, fila 12, talhão n.º 3, devidamente titulada por alvará emitido a 8.11.1978 – cfr. doc. 2 junto com a petição inicial;
b) O Requerente L. e C., são filhos de A. e de O. – cfr. doc.3, 5 e 7 junto com a petição inicial;
c) O Requerente L. nasceu a 01.11.1930 – cfr. doc. 7 junto com a petição inicial;
d) Na sepultura 12, referida na alínea a), encontram-se depositadas as ossadas de O., mãe do requerente L. e do falecido C. e, respetivamente, avó do requerente C. e avó e bisavó dos contrainteressados – por acordo;
e) A 8.04.207 faleceu C., o qual foi inumado na sepultura referida na alínea a) dos factos provados em 25.09.2017 – cfr. doc 3 e 5 da petição inicial;
f) O referido C. deixou como herdeiros os seus filhos M., J. , e P. , seu neto, em representação de A., também filho do autor da herança, mas falecido antes dele, e que são aqui contrainteressados – cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;
g) A 06.11.2017, o Requerente C., apresentou requerimento junto dos serviços do Município Requerido com o seguinte teor:
“Pretendo efetuar a trasladação das ossadas de O. inumada que foi na sepultura 12, fila 12, talhão 13, com destino ao cemitério da cidade de Viseu, requeiro ser notificado com urgência”
– cfr. doc. 4 junto com a petição inicial;
h) Por ofício datado de 2912.2017, o Município Requerido informou o Requerente C. que:
“Em conformidade com o seu pedido mencionado em título, informa-se que o mesmo mereceu a melhor atenção por estes serviços. Que seguiu a devida tramitação, tendo sido necessário repetir algumas diligências internas de forma a inferir da situação da sepultura. Mais cumpre informar, que compulsando a informação dos serviços, foi por estes comunicado que tinha decorrido no passado dia 25 de Setembro a Inumação do corpo de C.. Segundo o nº 2 do artigo 30°, capítulo VII, do Regulamento do Cemitério Municipal - "a abertura de qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbica só é permitida decorridos três anos sobre a Inumação".
Face ao que antecede e por meu despacho datado de 28 de Dezembro, não é possível deferir o seu pedido. A presente notificação presume-se efetuada no terceiro dia útil posterior ao registo postal, nos termos do artigo 113 do Código do Procedimento Administrativo aprovado em anexo ao Decreto Lei n° 4/2015, de 7 de Janeiro”
Cfr. doc. 5 junto com a petição inicial;
i) Através do ofício datado de 21.10.2020, o Município Requerido enviou ao Requerente C. ofício com o assunto “Cemitério Municipal – pedido de trasladação - MGD 3652”, com o seguinte teor:
“Reportando-me ao seu pedido em epigrafe e em cumprimento do despacho datado de 16 do corrente, informa-se V. Ex que, a trasladação de A. Marques poderá ser efetuada pelo que deverá informar estes serviços da data que pretende para o efeito, com vista à satisfação do pretendido.
Relativamente à trasladação de O. não poderá ser efetuada, dado que fenómenos de destruição da matéria orgânica do cadáver de C., inumado na mesma sepultura em 25/09/2017, ainda não estão terminados, conforme informação técnica do serviço do cemitério. Assim e em conformidade com o artigo 21° do Decreto Lei n° 411/8 de 30/12, deverá aguardar um período de 2 anos.
A presente notificação presume-se efetuada no terceiro dia útil posterior ao registo postal, nos termos do artigo 113º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado em anexo ao Decreto-Lei 4/2015, de 7 de Janeiro.
Cfr. doc. 6 junto com a petição inicial;
j) Os contrainteressados opõe-se à trasladação das ossadas de O. para o Cemitério de (...) – cfr. oposição apresentada;

IV - Do Direito

C. e L., vieram originariamente requerer providência cautelar contra o Município (...), tendente a “(…) Ser o Município Requerido condenado a autorizar e ordenar a abertura da sepultura onde se encontram inumados O. e C., a fim de se verificar em que estado se encontram os fenómenos de destruição da matéria orgânica deste último, ou na adoção de outra(s) providência(s) que este douto Tribunal entenda mais adequadas.
Caso estes fenómenos estejam concluídos ou a urna de zinco na qual se encontra inumado C. ainda se encontrar intacta, ser decretada a autorização provisória de trasladação de O..”

No que aqui releva e no que ao “direito” concerne, discorreu-se em 1ª instância:
“(...)
ii) Da verificação dos os pressupostos legais para o decretamento da providência cautelar requerida
No presente processo os requerentes pretendem a intimação do Município a autorizar a abertura da sepultura onde se encontram inumados O. e C., a fim de verificar os fenómenos de destruição da matéria orgânica deste último e, caso estes fenómenos estejam concluídos, ser decretada a autorização provisória de trasladação de O. para o Cemitério de (...).
(…)
Nestes termos, concatenando os citados normativos, uma providência cautelar será adotada quando cumulativamente que verifiquem os seguintes requisitos:
a) Haja fundamento receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal – periculum in mora:
b) Seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente – fumus boni iuris;
c) Ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam a sua concessão não se mostrem superiores aqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências – ponderação de interesses.
Vejamos se se encontram reunidos os pressupostos necessários à concessão da providência cautelar requerida.
-Do periculum in mora
O processo cautelar visa assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal, só se justificando a tutela cautelar se existir necessidade de assegurar a utilidade da sentença. Com efeito, com o processo cautelar não se visa antecipar os efeitos da ação principal, mas tão só o de assegurar a utilidade da decisão sobre o litígio, afastando assim o perigo da inutilidade da sentença resultante do mero decurso do tempo e da adoção ou da abstenção de uma conduta ou pronúncia administrativa (vide, nesse sentido, Vieira de Andrade in a “A Justiça Administrativa, 16º Edição, Coimbra, Almedina Editora, 2017).
(…)
Assim, tal como resulta do disposto da primeira parte do n.º 1 do art. 120º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, o legislador consagrou duas vertentes do “periculum in mora” - o receio de constituição de uma situação de facto consumado ou, o fundado receio da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal.
Existe fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado quando exista a impossibilidade de reintegração da esfera jurídica do requerido, isto é, caso o processo principal venha a ser julgado improcedente, será impossível proceder à reintegração, no plano dos factos, da situação conforme a legalidade. Neste caso, a providência é necessária para prevenir o risco de infrutuosidade da sentença a proferir no processo principal.
Haverá também "periculum in mora", mas na vertente do “fundado receio de prejuízos de difícil reparação” quando a reintegração no plano dos factos se mostre difícil, seja porque se produzirão prejuízos ao longo do tempo que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar ou de pelo menos reintegrar integralmente. Neste caso, a providência cautelar é necessária para afastar o risco de retardamento da tutela que deverá se assegurada no processo principal.
Para tanto, cabe ao juiz efetuar um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para se concluir, se há ou não, razões para recear que a sentença seja inútil, por se ter consumado uma situação incompatível com ela ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deva beneficiar, que obstam à plena reintegração da sua esfera jurídica ou da possibilidade de a não reparar na sua totalidade por via da reintegração da legalidade a operar pela ação principal (vide, nesse sentido, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 07.07.2017, proc. n.º 01863/16.3BEBRG).
É de notar que o está aqui em causa não é prevenir o risco geral do dano a que todos os direitos se encontram expostos, mas dos danos causados pela demora da tutela principal e que pode redundar na inutilidade prática, total ou parcial, da sentença final favorável e, consequentemente, na inefectividade da tutela pretendida para o direito lesado.
Para que o requisito do periculum in mora se possa dar por verificado deve o Requerente alegar que factos que demonstram a existência de fundado receio na verificação de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que visa acautelar no processo principal.
Ou seja, é ao requerente da providência que compete demonstrar – ónus de alegação e de prova que lhe está cometido de acordo com as regras gerais do ónus da prova –, o prejuízo derivado do facto de não lhe ser concedida a providência concedida (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22.01.2021, proc n.º 1796/20.9BELSB).
Para tanto é necessário que os requerentes aleguem factos que atestem a impossibilidade da reintegração da sua esfera jurídica ou da maior ou menor dificuldade em concretizar essa reintegração, no caso do prejuízo de difícil reparação.
Os Requerentes assentam o “periculum in mora” na circunstância de, por lhe ter sido recusada a trasladação dos restos mortais da falecida O., mãe e avó dos requerentes, estão impedidos de manter “uma relação espiritual livre e recolhida com a falecida” e privados de exercer o culto e reverência da memória da sua avó e mãe.
Os Requerentes são, respetivamente, filho e neto da falecida, O.. Embora não seja sempre assim, a verdade é a que existência deste vínculo familiar, de natureza muito próxima, faz também dar como certa a existência de um vínculo afetivo com a falecida, que os Requerentes naturalmente pretendem manter.
É este vínculo afetivo que permanece para lá da morte que explica a necessidade de manter uma relação espiritual, direito este que faz parte dos direitos de personalidade, na sua vertente moral reconhecido no n.º 1 do artigo 71º do Código Civil.
Na verdade, como explica MOTA PINTO, a tutela reconhecida aos direitos de personalidade do falecido é uma proteção dos interesses e direitos das pessoas vivas que seriam afetadas por atos ofensivos da memória (da integridade moral) do falecido (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3º Edição atualizada, 1994).
A existência de uma relação espiritual com os familiares falecidos pode concretizar-se de diversas formas, sendo de realçar que muitas dessas manifestações não deixam de ser um produto da cultura e da sociedade onde nos encontramos inseridos.
Na verdade, olhando para as manifestações mais comuns, a relação espiritual com os familiares falecidos concretiza-se, muitas vezes, pela deslocação ao local onde o falecido se encontra sepultado, para se estar junto com o familiar em “recolhimento”, prática à qual, geralmente está associada também uma dimensão religiosa (o rezar junto da sepultura).
É certo também que a relação espiritual com os familiares falecidos e o culto e a reverência passam também pela existência de sinais exteriores desse culto, como sejam a colocação de lápides, lembrando quem faleceu, ou a colocação de flores e velas como sinal de respeito e de demonstração dos laços afetivos.
Apesar dos requerentes alegarem que estão impedidos de manter uma relação espiritual com a falecida O., em momento algum alegam de que modo estão impedidos de o fazer, nomeadamente que estão impedidos de aceder à sepultura ou que sejam impedidos ou exista oposição à prática de atos normalmente associados ao culto dos falecidos por parte do requerido Município ou mesmo dos contrainteressados.
Note-se que os cemitérios estão integrados no domínio público, pelo que à partida é livre o acesso ao mesmo, razão pelo qual os Autores deveriam ter alegado de que modo estão impedidos de aceder à sepultura para aí prestarem o culto devido ao falecido.
Acresce que, na perspetiva do Tribunal, e com o natural respeito pela grande sensibilidade que a questão envolve, a presença dos restos mortais do falecido C. na mesma sepultura, não é de molde, a impedir que os Requerentes estabeleçam uma relação espiritual livre e recolhida com a falecida O., nas dimensões supra referidas.
Acresce que a idade do Autor L., por si só, também não permite dar como demonstrado o periculum em mora, sendo necessário para tanto que os Autores tivessem alegado e demonstrado de que forma a idade do Autor o impede de exercer o culto e a reverência da memória da mãe e que só a trasladação dos restos mortais o permitirá assegurar.
Acresce que, segundo se infere do requerimento cautelar, estamos na presença de um estado de coisas que se verifica pelo menos desde Setembro de 2017, por ser a data em que o irmão e tio dos requerentes foi inumado na sepultura em causa nos autos.
Dado o tempo que já decorreu sempre se impunha da parte dos requerentes a invocação e prova de uma alteração das circunstâncias ou um interesse ponderoso, contemporânea à presente providência, que explique uma alteração à situação existente e que determine que, agora, se faça a trasladação dos restos mortais, ainda que a título meramente provisório.
O ónus da prova de existência do “periculum in mora” cabe a quem requer a providência cautelar, através da alegação de factos concretos e plausíveis que permitam que concluir pela existência de situação de risco efetiva. Contudo, os Requerentes não alegaram factos suficientes para sustentar um prejuízo efetivo de difícil reparação ou a existência de uma situação de facto consumado.
Pelo que falha o primeiro dos requisitos para a adoção de providências cautelares, o que por si só é suficiente para a improcedência da presente providência cautelar, atento que os requisitos do 120.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos são de verificação cumulativa, falecendo este, deve improceder a providência cautelar requerida.
Contudo, no entender do Tribunal, também falham também os demais requisitos legais. Senão vejamos
- Do fumus boni iuris
A adoção da providência cautelar, depende da avaliação do grau de probabilidade de procedência da pretensão formulada no processo principal, isto é, pode a providência ser adotada se se considerar que é provável que essa pretensão venha a ser julgada procedente.
Contudo, este juízo de “aparência de bom direito” é um juízo meramente perfunctório, dado que o processo cautelar visa assegurar a utilidade da sentença que vier a ser proferida no processo principal, não cabendo resolver em definitivo o litígio em presença, caracterizando-se, por esse motivo, pela cognição sumária de facto e de direito.
Vejamos então.
A presente providência cautelar é intentada como preliminar de uma ação administrativa tendo em vista à condenação na prática do ato legalmente devido, consubstanciado na autorização da trasladação dos restos mortais de O..
Para além de sustentarem que não foi verificado convenientemente se estavam terminados os fenómenos de destruição da matéria orgânica, sustentam ainda que os Requerentes, por si só, têm legitimidade para requerer a exumação e trasladação dos restos mortais de O..
Para tal, alicerçam a sua pretensão no nº 1 do artigo 41º do Regulamento do Cemitério Municipal de (...) (Regulamento n.º 265/2016, constante do Diário da República n.º 51/2016, Série II de 2016-03-14), norma da qual consta que “as inumações, exumações e trasladações a efetuar em jazigos ou sepulturas perpétuas serão feitas mediante exibição do respetivo título ou alvará e de autorização expressa do concessionário ou de quem legalmente o representar, mediante a exibição do respetivo documento de identificação “ e do disposto da primeira parte do n.º 2 da mesma norma, do qual resulta que “sendo vários os concessionários, a autorização pode ser dada por aquele que estiver na posse do título ou alvará, tratando-se de familiares até ao sexto grau”.
Sustentam ainda que tal direito também lhes é reconhecido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 4º do Decreto-lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro do qual decorre que “qualquer” dos herdeiros tem legitimidade para requerer a trasladação, por não existir testamenteiro, cônjuge sobrevivo ou pessoa que vivesse com esta em condições análogas à dos cônjuges, que lhes prefiram. Em identifico sentido dispõe o artigo 4º do Regulamento do Cemitério Municipal. Vejamos.
Sobre o terreno de uma sepultura não incidem qualquer direito de propriedade privada, dado os cemitérios constituem bens de domínio público, razão pelo qual só admitem o uso privativo concedido a algumas pessoas, mediante a concessão, devidamente titulada por alvará.
A concessão confere aos titulares o direito de utilização do terreno objeto de concessão para fins de inumação, mas daí não decorre qualquer direito sobre os restos mortais que aí foram depositados, estando em causa, direitos de natureza bem diferente.
Uma coisa são os direitos de concessão da sepultura com o inerente poder de praticar atos sobre a coisa concessionada, outra coisa diferente é o direito de dispor dos restos mortais aí depositados, pelo que pode muito bem acontecer que as faculdades de dispor de um ou outro direito pertençam a pessoas diferentes.
Daí que no entender do Tribunal não é possível invocar a qualidade de concessionário da sepultura e muito menos a posse do alvará para dispor dos restos mortais, dado que o direito de dispor dos restos mortais não é concedido aos concessionários onde se encontram depositados, mas às pessoas indicadas no artigo 3º do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro.
É certo que a alínea d) do n.º 1 do artigo 3º refere que “qualquer herdeiro” pode requerer a prática dos atos regulados do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, mas tal não pode ser desligado do facto de os Autores e os contrainteressados possuírem todos a qualidade de herdeiros de O., por serem seus filhos, netos e bisnetos cfr. artigo 2133º do Código Civil).
Deste modo, todos - Requerentes e contrainteressados – possuem igual legitimidade para a prática de atos aí elencados, sendo todos eles, em conjunto, titulares desses direitos.
Deste modo, numa análise meramente perfunctória própria dos processos cautelares, está em causa um direito que deve ser exercido em conjunto por todos, não podendo um deles sobrepor a sua vontade sobre os demais, nos termos em que resulta do artigo 2091º do Código Civil.
Assim sendo, mesmo que reunidas as demais condições para o efeito, existindo oposição dos contrainteressados na exumação e trasladação dos restos mortais de O., não é provável que os Requerentes possam obter na ação principal a condenação à prática do ato que pretendem, porque para tanto afigura-se ser exigível o acordo de todos os herdeiros.
Face ao disposto, também não verificada o requisito do fumus boni iuris.
Acresce que a concessão das providências não depende da formulação apenas da existência do periculum in mora e do fumus boni iuris, mas também da verificação de um requisito negativo, tributário do princípio da proporcionalidade, no sentido que não obstante a situação do requerente ser merecedora da tutela cautelar, tal não é um valor absoluto, sendo ainda necessário que a providência não cause mais danos do que, aqueles que se pretende evitar com a sua concessão.
Deste modo, o requisito constante do n.º 2 do artigo 120º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos funciona como “válvula de escape” no sentido de impor ao julgador o dever de ponderar os interesses dos demais envolvidos, devendo recusar a sua concessão quando da sua concessão resultem danos desproporcionados para o interesse público ou dos demais interesses privados em presença face àqueles que se pretende evitar com a concessão da providência.
Para tanto haverá que, comparar os prejuízos, dado que não está em causa os valores ou interesses em si, mas, “os prejuízos reais, que numa prognose relativamente ao tempo previsível de duração da medida, e tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, resultariam da recusa ou da concessão (plena ou limitada) da providência cautelar” (vide, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 16º Edição,2017, Almedina Editora).
No caso concreto, apesar da falta de contestação da autoridade requerida, não se poderá deixar de considerar que existe um interesse público manifesto que milita no sentido de ser negada a providência cautelar.
A regulamentação jurídica dos cemitérios foi construída tendo em conta a natureza especialmente sensível que envolve não só o respeito das pessoas falecidas, o direito dos cidadãos a darem sepultura aos seus mortos em locais próprios, mas também tendo em conta especiais preocupações de saúde pública e de natureza ambiental que estão coenvolvidas.
São estas razões de saúde pública e de natureza ambiental que explicam que a exumação dos cadáveres ou restos mortais seja rodeado de especiais cautelas, e que leve a que se recuse a exumação e a trasladação a título meramente provisório, como pretendido pelo requerente.
Acresce que, do lado dos Contrainteressados também existem interesses ponderosos a ter em conta, dado que estes também são herdeiros de O., não sendo possível considerar que os interesses dos requerentes se sobrepõem aos interesses que os contrainteressados, por estarem em causa interesses de idêntica natureza (mas de sentido oposto).
Acresce que a admitir-se a tese dos Requerentes – isto é, que qualquer herdeiro pode requerer a exumação e trasladação de cadáver ou ossadas - nada impede que após a trasladação para o cemitério de (...) como pretendido pelos Autores, os contrainteressados também pretendam exercer igual direito, o que, e última análise colocaria em causa o respeito às pessoas falecidas que os Autores pretendem ver salvaguardado.
O respeito às pessoas falecidas impõe uma certa estabilidade no local em que são sepultados, tanto mais que, normalmente, a escolha do local do sepultamento não é fruto do acaso e é escolhido pelo falecido ou familiar tendo em conta as especais ligações ao local (por exemplo, por ter aí vivido), interesse que mais uma vez milita no sentido de ser recusada a providência requerida.
Estes interesses, assim enunciados e comparados com os interesses que os Requerentes pretendem acautelar, levam a concluir que a concessão da providência causa mais prejuízo do que aqueles que visa acautelar, pelo que, também por esta razão, haverá que recusar a sua concessão.”

Vejamos o suscitado:

Vêm suscitadas no Recurso em apreciação as seguintes questões, que importará verificar:
I Se a sentença padece de nulidade por falta de notificação dos requerentes da junção aos autos do processo administrativo (PA) ou por falta de notificação do Tribunal ao Município requerido para juntar aos autos o PA;
II Se o Município requerido deverá proceder à abertura da sepultura onde se encontram inumados O. e C. , a fim de verificar do estado dos fenómenos de destruição da matéria orgânica dos restos mortais deste último, para que seja provisoriamente autorizada a transladação da primeira;
III Se se mostram preenchidos os requisitos legais para o decretamento das providências cautelares requeridas: periculum in mora, fumus boni iuris e proporcionalidade;
IV Se é necessário o consentimento dos contrainteressados para se proceder à transladação de O..
V Se a norma do artigo 3.º n.º 1 da alínea d) do Decreto-lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, na interpretação efetuada pelo tribunal recorrido é inconstitucional.

Em bom rigor, requer-se na presente Providência, que o Município seja condenado, em sede cautelar “(…) a autorizar e ordenar a abertura da sepultura onde se encontram inumados O. e C., a fim de se verificar em que estado se encontram os fenómenos de destruição da matéria orgânica deste último (…)”
Acresce que, “Caso estes fenómenos estejam concluídos ou a urna de zinco na qual se encontra inumado C. ainda se encontrar intacta, ser decretada a autorização provisória de trasladação de O..”

Assim, requerer-se, a final, a trasladação do corpo de O., sepultada em (...) em 1978, para o cemitério de (...).

Da Nulidade

Já o tribunal de 1ª instância se pronunciou relativamente à suposta nulidade “por falta de notificação da junção do PA”, e quanto a detetado erro de escrita, em termos adequados e que aqui se ratificam e reproduzem:
“De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 614º do Código de Processo Civil, aplicável, ex vi, artigo 1º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, se a sentença contiver erros materiais, erros de cálculo ou inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
Na sentença proferida nos presentes autos, na parte relativa à motivação da matéria de facto, consta que: “A convicção perfunctória do Tribunal baseou-se na análise dos documentos juntos aos autos, bem como dos documentos constantes do PA, os quais não foram impugnados e são especificados em cada um dos pontos”.
Por mera leitura da sentença é patente que a referência “aos documentos constantes do PA” constitui um lapso manifesto, que se revela no próprio contexto da sentença, de acordo com o disposto no artigo 249º do Código Civil. De facto, decorre do probatório que os factos considerados provados com recurso a prova documental resultaram apenas e tão só dos documentos que foram juntos aos autos com a petição inicial, conforme especificação constante em cada um dos factos.
Deste modo, no uso dos poderes conferidos no artigo 614º do Código de Processo Civil, procede-se à correção da sentença, na parte relativa à motivação da matéria de facto, na parte onde se lê:
“A convicção perfunctória do Tribunal baseou-se na análise dos documentos juntos aos autos, bem como dos documentos constantes do PA, os quais não foram impugnados e são especificados em cada um dos pontos.”,
Deve passar-se a ler:
“A convicção perfunctória do Tribunal baseou-se na análise dos documentos juntos aos autos, os quais não foram impugnados e são especificados em cada um dos pontos.”
A presente correção considera-se complemento e parte integrante da sentença, mediante aplicação analógica do disposto no n.º 2 do artigo 617º do Código de Processo Civil.
(…)
*
Nas suas alegações de recurso, os Requerentes invocam a nulidade da sentença assente em dois pontos:
- Apesar da sentença recorrida referir que a convicção do Tribunal se baseou na análise dos documentos constante do PA, não foram notificados da sua junção, pelo que ficaram impedidos de exercer o direito ao contraditório, o que influi, no exame e na decisão em causa;
- Caso o PA não tenha sido, efetivamente, junto aos autos pelo Município Requerido, a sentença padece igualmente de nulidade, por entender que o Tribunal estava obrigado a notificar o Município Requerido para proceder à sua junção.
As causas de nulidade da sentença estão expressamente taxativamente previstas no art. 615.º do CPC:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Como sintetizou o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 22.01.2019, (proc. 19/14.4T8VVD.G1.S1):
“Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade), quer pelo uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
As nulidades invocadas pelos Recorrente não se reconduzem às causas de nulidade da sentença previstas no artigo 615.º do CPC. Antes, tratar-se-á de uma nulidade processual, a qual consiste na “prática de um ato que a lei não admita,” ou “a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva … quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 195º do CPC.
Assim, é nosso entender que a decisão recorrida não padece de qualquer nulidade.”

Da matéria de facto

Vem a Recorrente suscitar a “alteração na matéria de facto dada como provada, já que foram, indevidamente, desconsiderados factos que se deverão ter por provados e que são relevantes para a decisão.”

Como sumariado no acórdão deste TCAN nº 676/15.4BEVIS, de 19-02-2021, “(…) Em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.
A alteração da matéria de facto por instância superior, sempre deverá ser considerada uma intervenção excecional.”

Diga-se ainda, tal como sumariado, entre muitos outros no Acórdão deste TCAN nº 1828/06.3BEPRT de 27-11-2020, que “Em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.”

A alteração da matéria de facto por instância superior, sempre deverá ser considerada uma intervenção excecional.

Como se sumariou igualmente no acórdão deste TCAN nº 01466/10.6BEPRT, de 04.11.2016, “À instância recursiva apenas caberá sindicar e modificar o decidido quanto à factualidade dada como provada e não provada, caso verifique a ocorrência de erro de apreciação, suscetível de determinar a viciação da decisão final, mormente enquanto erro de julgamento, patente, ostensivo palmar ou manifesto.”

Efetivamente, em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.

Em qualquer caso, sem prejuízo do referido, o recorrente não demonstra que os factos que pretende alterar e/ou incluir na matéria dada como provada, influenciariam a decisão final a proferir, em face do que, só por si, sempre improcederia o pretendido.

Não se vislumbra pois que mereça censura a decisão adotada relativamente à factualidade dada como provada, inverificando-se pois os suscitados vícios conexos com a matéria dada como provada.

Do preenchimento dos pressupostos decretamento das providências cautelares requeridas
Com efeito, e desde logo, a questão suscitada, de acordo com a qual, importaria verificar “Se o Município requerido deverá proceder à abertura da sepultura onde se encontram inumados O. e C. , a fim de verificar do estado dos fenómenos de destruição da matéria orgânica dos restos mortais deste último, para que seja provisoriamente autorizada a transladação da primeira”, é algo que aqui apenas deverá ser apreciado na perspetiva do preenchimento dos pressupostos da Providência Cautelar.

Na realidade, a requerida suposta “provisoriedade” da transladação do corpo de O., não é questão que se possa colocar em termos meramente transitórios por via de Processo Cautelar, por não se tratar de uma decisão reversível, pois não seria admissível que em sede cautelar fossem os restos mortais de O. transladados para (…), vindo depois, e após decisão da Ação principal, a ser tal decisão potencialmente revertida.

Efetivamente, mal se compreenderia que em Processo Cautelar se permitisse “provisoriamente” a requerida transladação, para que depois, no processo principal, se pudesse vir a determinar a reposição dos restos mortais da falecida, na sua sepultura originária.

Importa, pois, singelamente revisitar os pressupostos da aplicação das Providências Cautelares, a fim de se concluir se o cautelarmente requerido, se mostra suscetível de ser viabilizado por esta via.

Há desde logo uma questão que não pode ser perdida de vista, e que resulta do facto da falecida O. se encontrar sepultada na atual localização desde 1978, em face do que a atual urgência da transladação requerida gera desde logo algumas perplexidades.

Resulta do n.º 1 do art. 120º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos que “as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”

Mais se refere no nº 2 que “Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências”.

Assim e correspondentemente, a providência cautelar será adotada quando cumulativamente que verifiquem os seguintes requisitos:
a) Haja fundamento receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal – periculum in mora:
b) Seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente – fumus boni iuris;
c) Ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam a sua concessão não se mostrem superiores aqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências – ponderação de interesses.

Resulta do afirmado, ao contrário do recursivamente afirmado, que o que determinaria “uma situação de facto consumado”, seria a procedência da Providência Cautelar com a efetivação da requerida transladação, e não o seu contrário.

Mas recentrando a análise na redação atual dada ao CPTA pelo Decreto-Lei n° 214-G/2015, de 2 de Outubro de 2015, refira-se que o fumus boni iuris se apresenta sempre sob a formulação positiva, idêntica àquela que anteriormente constava da alínea c) do n° 1 do art.º 120° do CPTA.

Ponderada a tutela cautelar em função dos critérios agora estatuídos no artigo 120° n.º 1 do CPTA, a análise da verificação da aparência do bom direito poderá assumir relevância, por forma a verificar uma efetiva probabilidade de procedência da pretensão principal, sendo que os requisitos aplicáveis são de preenchimento cumulativo.
A formulação positiva do fumus boni iuris é-nos dada pela introdução na redação do n.º 1 do artigo 120.° do CPTA do substantivo "provável", que imprime uma menor flexibilidade à análise a fazer.

Como refere Isabel Celeste Fonseca, o requisito do fumus boni iuris na formulação positiva, obriga a um juízo positivo de probabilidade através da "intensificação da cognição cautelar", ou seja, duma "apreciação mais profunda e intensa da causa". (Cfr. Isabel Celeste M. Fonseca, dos novos processo urgentes no Contencioso Administrativo (função e estrutura), págs. 66 a 68).

No mesmo sentido aponta Mário Aroso de Almeida, no seu Manual de Processo Administrativo, 2016, p. 452, onde refere que com a reforma do CPTA de 2015 se consagrou "um regime homogéneo quanto a este ponto para os dois tipos de providências, estabelecendo que, tanto umas, como outras, só podem ser adotadas quando seja provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente, veio introduzir uma novidade sem precedentes no nosso ordenamento jurídico, com o evidente alcance de limitar o acesso dos cidadãos à tutela cautelar em processo administrativo: a de submeter ao critério do fumus boni iuris, com a configuração que, em processo civil, lhe atribui o n° 1 do artigo 368° do CPC, a adoção das providências cautelares conservatórias e, em particular, da providência da suspensão da eficácia de atos administrativos -- providência cuja atribuição, importa recordá-lo, nunca, até à entrada em vigor do CPTA, tinha estado dependente da formulação de qualquer juízo sobre o bem fundado da pretensão impugnatória do requerente".

A ponderação por parte do tribunal sobre a probabilidade da procedência da pretensão formulada no processo principal deve assim ser feita em moldes perfunctórios, materializados num juízo de verosimilhança ou mera previsibilidade e razoabilidade dos indícios, que permita assentar na probabilidade do êxito da pretensão principal.

Sem prejuízo do já afirmado, vejamos agora em concreto:

Do periculum in mora
Em bom rigor, as providências cautelares visam impedir que, durante a pendência da correspondente ação principal, a situação de facto se altere de modo a que a decisão nela proferida, sendo favorável ao requerente, perca toda a sua eficácia (facto consumado) ou parte dela (prejuízos de difícil reparação).

Na situação controvertida não está em causa a necessidade de prevenir o risco geral do dano a que todos os direitos se encontram expostos, mas dos danos causados pela demora da tutela principal e que pode redundar na inutilidade prática, total ou parcial, da sentença final favorável e, consequentemente, na inefectividade da tutela pretendida para o direito lesado.

Os Requerentes assentam o “periculum in mora” na circunstância de, por lhe ter sido recusada a trasladação dos restos mortais da falecida O. Barbosa, mãe e avó dos requerentes, estarem, alegadamente impedidos de manter uma relação espiritual livre e recolhida com a falecida” e privados de exercer o culto e reverência da memória da sua avó e mãe, o que desde logo colide com a circunstância da falecida se encontrar sepultada no mesmo local há mais de 40 anos, sendo que seria antes a concretização da transladação requerida que determinaria uma situação de facto consumado.

Como se afirmou em 1ª Instância, citando-se MOTA PINTO, a tutela reconhecida aos direitos de personalidade do falecido é uma proteção dos interesses e direitos das pessoas vivas que seriam afetadas por atos ofensivos da memória (da integridade moral) do falecido (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3º Edição atualizada, 1994).

Se é certo que os Requerentes afirmam que estão impedidos de manter uma relação espiritual com a falecida O., e tendo em conta o já reiteradamente afirmado, de que O. se encontra sepultada há mais de 40 anos em (...), não se atinge, nem as Requerentes o concretizam ou demonstram, em que medida surge a urgência da requerida transladação, e por que razão passaram agora a estar impedidos de manter a invocada relação espiritual.

O facto de se encontrar desde 2017 igualmente sepultado no local, C. , que se não trata de “um estranho”, mas exatamente filho de O., que se pretende exumar, não parece constituir obstáculo que importe urgentemente corrigir, de modo a que os Requerentes, aqui Recorrentes, possam retomar uma relação espiritual livre e recolhida com a falecida O..

Reitera-se que se é certo que O. foi sepultada no Local em 1978, fica por explicar a urgência da exumação agora requerida.

O ónus da prova de existência do “periculum in mora” cabe a quem requer a providência cautelar, através da alegação de factos concretos e plausíveis que permitam que concluir pela existência de situação de risco efetiva, sendo que os Requerentes, aqui Recorrentes, não alegaram, e menos ainda provaram, factos suficientes para sustentar um prejuízo efetivo de difícil reparação ou a existência de uma situação de facto consumado, que justificasse o deferimento do requerido.
Assim, tal como discorrido em 1ª Instância, não se reconhece o preenchimento do primeiro dos requisitos para a adoção de providências cautelares, o que por si só seria suficiente para declarar a improcedência da presente providência cautelar, atento o estatuído no Artº 120º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, cujos pressupostos são de verificação cumulativa.

Em qualquer caso, atento o Recorrido, verifique-se o demais suscitado.

Do fumus boni iuris
A presente providência cautelar foi intentada como preliminar de ação administrativa tendo em vista à condenação na prática do ato legalmente devido, consubstanciado na autorização da trasladação dos restos mortais de O. de (...) para (…).

Os requerentes suportam a sua pretensão no nº 1 do artigo 41º do Regulamento do Cemitério Municipal de (...) (Regulamento n.º 265/2016, constante do Diário da República n.º 51/2016, Série II de 2016-03-14), no qual se refere que “as inumações, exumações e trasladações a efetuar em jazigos ou sepulturas perpétuas serão feitas mediante exibição do respetivo título ou alvará e de autorização expressa do concessionário ou de quem legalmente o representar, mediante a exibição do respetivo documento de identificação” e do disposto da primeira parte do n.º 2 da mesma norma, o qual refere que “sendo vários os concessionários, a autorização pode ser dada por aquele que estiver na posse do título ou alvará, tratando-se de familiares até ao sexto grau”.

Mais referem que tal direito lhes é assegurado pela alínea a) do n.º 1 do artigo 4º do Decreto-lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro o qual expressa que “qualquerdos herdeiros tem legitimidade para requerer a trasladação, por não existir testamenteiro, cônjuge sobrevivo ou pessoa que vivesse com esta em condições análogas à dos cônjuges, que lhes prefiram. Em identifico sentido dispõe o artigo 4º do Regulamento do Cemitério Municipal.

Como já afirmado em 1ª Instância, a concessão confere aos titulares o direito de utilização do terreno objeto de concessão para fins de inumação, mas daí não decorre necessária a automaticamente qualquer direito sobre os restos mortais que aí foram depositados, estando em causa, direitos de natureza diversa.

Uma coisa são os direitos de concessão da sepultura com o inerente poder de praticar atos sobre a coisa concessionada, outra coisa é o direito de dispor dos restos mortais aí depositados, pelo que pode muito bem acontecer que as faculdades de dispor possam pertencer a pessoas ou entidades diversas.

Efetivamente, não basta invocar a qualidade de concessionário de sepultura e muito menos a posse do correspondente alvará que titula esse direito, para que correspondentemente se possa necessária e automaticamente, dispor dos restos mortais aí sepultados, uma vez que o direito de disposição dos restos mortais não é concedido, por natureza, aos concessionários onde os mesmos se encontrem depositados, mas às pessoas indicadas no artigo 3º do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, o que não é necessariamente coincidente.

Se é verdade que a alínea d) do n.º 1 do artigo 3º refere que “qualquer herdeiro” pode requerer a prática dos atos regulados do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, o que é facto é que tal norma não pode ser objeto de uma leitura interpretativa meramente literal, sob pena de se gerar potencialmente uma situação ingerível entre herdeiros.

Não nos podemos, pois, esquecer que estamos em sede de processo Cautelar, no âmbito do qual as questões controvertidas terão de ser resolvidas por via de uma análise necessariamente perfunctória.

A questão está, pois, em saber quais os Herdeiros que terão legitimidade para requerer a exumação em questão, de modo a que possa ser verificado se essa pretensão terá ou deverá ser exercida por todos os herdeiros, ou por algum ou alguns em particular, questão insuscetível de ser dirimida definitiva e perfunctoriamente em sede cautelar.

Em face do que precede, tal como decidido em 1ª Instância, não se reconhece igualmente que possa ser dado como assente o preenchimento do fumus boni iuris, por não ser possível afirmar que será “provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo (principal) venha a ser julgada procedente”.

Inverificados os pressupostos do “periculum in mora” e do “fumuus boni iuris”, fica, por natureza, prejudicada a análise da “Ponderação de interesses”.

Mesmo no que concerne à invocada inconstitucionalidade decorrente da interpretação adotado do artigo 3.º n.º 1 da alínea d) do Decreto-lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, não se reconhece que tal ocorra.

Com efeito, refere-se no Recurso que o facto da Sentença ter entendido “(…) que é necessário o consentimento de todos os herdeiros, sem atender à preferência de classes e à preferência de grau de parentesco dentro de cada classe de sucessíveis, é inconstitucional por violação do direito à liberdade de culto (artigo 41.º n.º 1 da CRP), do direito à integridade moral (artigo 25.º n.º 1 da CRP) e do direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º n.º 1 da CRP) e do princípio da dignidade da pessoa humana.”

A referida interpretação teria assim violado “(…) o disposto nos artigos 84.º, n.ºs 1, 6 e 7 do CPTA, 118.º n.º 2 do CPTA, 567.º n.º 1 do CPC, 574.º n.º 3 do CPC, 120.º n.ºs 1, 2 e 5 do CPTA, 3.º do Decreto-lei n.º 411/98, de 30/12, 41.º do Regulamento do Cemitério Municipal, 2030.º, 2031.º, 2032.º, 2133.º, 2134.º, 2135.º e 2157.º. do Código Civil.”

Sublinha-se que a referida imputação é desde logo meramente conclusiva, sendo que, independentemente da interpretação adotada, o que é facto é que, como se demonstrou, se não mostraram preenchidos os cumulativos pressupostos que poderiam determinar a procedência da Providência Cautelar.

Acresce que, se é certo que se não vislumbra a violação de qualquer dos princípios enunciados, ainda assim teriam os Recorrentes que densificar do modo mais eficaz, em que se consubstanciariam tais violações, que em bom rigor constituiriam a violação de princípios, designadamente de cariz Constitucional.

Com efeito, não basta invocar conclusivamente a verificação em abstrato de qualquer violação de princípio ínsito em lei ordinária ou inconstitucionalidade, importando que a sua verificação seja densificada e demonstrada, o que não ocorreu.

Como tem vindo a ser reconhecido pela generalidade da Jurisprudência (Vg. o Acórdão do TCA - Sul nº 02758/99 19/02/2004) “não é de conhecer por omissão de substanciação no corpo de alegação, a violação dos princípios Constitucionais, designadamente por interpretação desconforme mormente à Lei Fundamental, se o Recorrente se limita a afirmar a referida desconformidade de interpretação e de aplicação, sem apresentar, do seu ponto de vista, as razões de facto e de direito do discurso jurídico fundamentador nem, sequer, a modalidade a que reverte o vício afirmado.”

No mesmo sentido aponta, igualmente, o Acórdão do Colendo STA nº 00211/03 de 29/04/2003, onde se refere que “por omissão de substanciação no articulado inicial e nas alegações de recurso, não é de conhecer da questão da inconstitucionalidade e/ou interpretação desconforme à CRP de normas de direito substantivo …, na medida em que a Recorrente se limita a afirmar, conclusivamente, a referida desconformidade sem que apresente, do seu ponto de vista, as razões de facto e de direito do discurso jurídico fundamentador nem, sequer, a que modalidade reverte o vício afirmado”.

Assim, até por falta de concretização e densificação do alegado, não se vislumbra que se verifique qualquer violação de princípios, mormente constitucionais.

Em face do que precede, negar-se-á necessariamente provimento ao Recurso interposto.

V - DECISÃO

Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, negar provimento ao Recurso, confirmando-se o sentido da Sentença Recorrida.
*
Custas pelos Recorrentes
*
Porto, 2 de junho de 2021

Frederico de Frias Macedo Branco
Nuno Coutinho
Paulo Magalhães (Em substituição)