Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00002/20.0BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/28/2020
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:PERDA DE MANDATO; PRESIDENTE DE JUNTA DE FREGUESIA;
Sumário:I- Age com culpa grave e plena consciência da ilicitude, para efeitos da declaração de perda de mandato, um Presidente de Junta de Freguesia que devendo saber estar impedido, e sabendo-o, participa em procedimento administrativo em que patentemente se afirma um claro conflito de interesses, realizando um contrato de compra e venda de um imóvel de que é comproprietário, com a Junta de Freguesia a que preside, do qual advêm vantagens patrimoniais para o próprio e para os seus irmãos.

II- Uma tal conduta viola os princípios da igualdade e da imparcialidade consagrados nos artigos 266º, n.º 2 da CRP e 31º, n.º 4 e 69º, n.º 1, alínea a) do CPA, e justifica a aplicação da sanção da perda de mandato, nos termos do art.º 8º, n.º 2 da Lei n.º 27/96. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:M.
Recorrido 1:Ministério Público
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Perda de Mandato (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:N/A
1
Decisão Texto Integral:Acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte:

I.RELATÓRIO

1.1.O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, intentou ação de PERDA DE MANDATO contra M., residente na Rua (…), (…), (…), formulando o seguinte pedido: “Nestes termos e nos demais de direito, deve a presente ação ser julgada provada e procedente, e, em consequência, ser declarada a perda do atual mandato do R., M., como Presidente da Junta de Freguesia de (...), (…).”
Alegou, para o efeito, em síntese, que o R. era dono de 1/3 indiviso do prédio urbano composto por casa de habitação de dois andares (com 89m2 de área de implantação), sito no Largo do (...), lugar de (...), (…), inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 160º, com o VPT de 15.204.70€, descrito e inscrito, em seu nome e dos restantes dois comproprietários – seus irmãos –, na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º 714;
Que na reunião de 23.05.2019 da Junta de Freguesia de (...), estando presentes o ora Réu, M., na qualidade de Presidente, e os dois Vogais, o primeiro apresentou a proposta de deliberação de compra, pela Freguesia, do imóvel em causa, pelo preço de 7.500.00€, devendo, no ato, a Junta ser representada pelo Secretário, o que foi aprovado por unanimidade;
Na sessão ordinária de 22.06.2019, sob proposta do ora Réu, Presidente da Junta, a deliberação em questão foi discutida e aprovada por unanimidade em Assembleia de Freguesia;
Por escritura-pública de 03.07.2019, a Junta de Freguesia de (...), legalmente representada pelo Secretário, adquiriu, por contrato de compra-e-venda, pelo preço declarado de 7.500.00€, o imóvel em causa ao ora Réu e restantes comproprietários;
Mais alegou que o R. sabia que não podia tomar parte no procedimento em causa, pois que nele era parte interessada, com os seus irmãos e que ao deliberar e votar favoravelmente, na reunião da Junta de Freguesia, a proposta de compra do imóvel em questão, o R. agiu deliberada e conscientemente, com o propósito de conseguir um benefício de cariz patrimonial para si e para os seus irmãos;
Tal comportamento do R – a intervenção, no exercício das funções ou por causa delas, em procedimento administrativo relativamente ao qual se verificava impedimento legal, com vista ao seu benefício e de terceiros com laços de parentesco relevantes – constitui motivo bastante para a declaração judicial da perda de mandato (cfr, arts. 266º/2 da Constituição da República, 31º/3 e 69º/1-a) e b) do CPA, 4º-b-iv) da L-29/87, de 30/06, e 8º/2 da referida L-27/96);
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1.2. Citado, o Réu contestou, defendendo-se por impugnação, sustentando em síntese que, apesar de ter estado presente na reunião de 23.05.2019 da Junta de Freguesia de (...), na qualidade de seu Presidente, juntamente com os dois vogais, M. (secretário) e A. (tesoureira), não foi quem apresentou a proposta de deliberação e compra pela referida Freguesia do imóvel em causa;
Refere que a referida aquisição foi precedida de negociações prévias que envolveram diretamente os seus irmãos, sendo que participou também em tais negociações por ser parte interessada, mas despido da função de Presidente da Junta de Freguesia;
Mais alega que não participou nem votou em tal deliberação, a qual apenas foi votada pelos vogais (dois) que aí estavam presentes e que da ata não constam, mas deviam constar, tais circunstâncias, tendo assinado a ata sem disso se aperceber;
Refere ainda que foi deliberado pela Junta de Freguesia delegar no seu secretário, M., a representação desta no ato de aquisição do imóvel e que do ato de aquisição em causa não resultou qualquer prejuízo para a Junta de Freguesia de (...) e que o R. nenhum enriquecimento obteve diretamente da venda do imóvel;
Alegou também que Junta de Freguesia de (...), por necessidade de espaço, para balneários públicos, salão de eventos, recolha de alfaias agrícolas e armazenamento de produtos e equipamentos, os quais habitualmente se encontram dispersos, em casas privadas, nomeadamente, dos membros do executivo atuais e anteriores, entendeu resolver uma necessidade de longa data, pela população em geral ansiada, adquirindo assim um espaço para construir um edifício e suprir tais necessidades;
Que para o efeito, avaliou as hipóteses existentes e percebendo que não existiam propostas alternativas viáveis entendeu que o espaço que reunia melhores condições, apesar de em parte estar em ruinas, estava dotado de infraestruturas, saneamento, água e luz e consequentemente, propôs a sua aquisição;
E que, levou ainda em consideração, o fator preço, porquanto, tal edifício estava avaliado fiscalmente pelo valor de € 15.204,70 e foi proposta a sua aquisição por, cerca de metade do preço, ou seja €7.500,00;
Termina, pugnando pela improcedência da presente ação.
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1.3.O Ministério Público replicou, invocando que a força probatória da ata só pode ser ilidida com base na sua falsidade, o que o R. não fez, pugnando pela improcedência da argumentação do R.
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1.4. Em 07.02.2020, o TAF de Mirandela proferiu despacho saneador-sentença, no qual dispensou a realização de audiência prévia, fixou o valor da ação em EUR 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), dispensou a realização da produção da prova testemunhal requerida pelo A. e pelo R., e proferiu decisão que julgou a presente ação procedente, constando a mesma do seguinte segmento decisório:
«Em face de tudo quanto antecede, julgo procedente a presente ação e, em consequência, determino a perda de mandato do R. M. como Presidente da Junta de Freguesia de (...).
Custas pelo R..
Registe e notifique»
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1.5. Interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte pelo R., da antedita decisão, foi proferido Acórdão em 03.04.2020 [fls. 129 do SITAF] que, julgando parcialmente procedente o recurso, determinou o seguinte:
«a) julgam improcedente a apelação quanto ao julgamento de facto dos pontos 1 e 2 (estes não impugnados), 7 e 8 da sentença sob sindicância;
b) ordenam o aditamento ao elenco dos factos provados na sentença da seguinte facticidade, que julgam provada:
-«O R. sabia que não podia tomar parte no procedimento em causa, pois que nele era parte interessada, com os seus irmãos.»
c) anulam o julgamento de facto que recaiu na sentença sob os pontos 3, 4, 5 e 6 da facticidade nela julgada como provada;
d) anulam a sentença recorrida;
e) determinam que se realize novo julgamento quanto à matéria:
-dos pontos 3, 4, 5 e 6 da sentença e pontos 2 a 11 da contestação;
- dos pontos 1, 2 e 3 do “A- Ponto Prévio” da contestação;
O novo julgamento não abrange a parte da decisão referentes à facticidade não viciada, sem prejuízo do disposto no art.º 662.º, nº3, al.c) do CPC.
f) declaram prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos de recurso aduzidos pelo Apelante.»
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1.6. Tendo os autos baixado à primeira instância, por despacho de 13.05.2020 foi determinada a realização de diligências de prova [fls. 156 do SITAF], as quais tiveram lugar no dia 26.05.2020, seguindo-se alegações orais de ambas as partes [cf. acta e documento de fls. 164 e 168 do SITAF].
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1.7. Em 04 de junho de 2020, o TAF de Mirandela proferiu sentença que julgou procedente a ação movida contra o Réu, constando da mesma o seguinte segmento decisório:
«Em face de tudo quanto antecede, julgo procedente a presente acção e, em consequência, determino a perda de mandato do R. M. como presidente da Junta de Freguesia de (...).
Custas pelo R..
Registe e notifique

1.8. Inconformado com essa sentença, o Réu interpôs recurso da mesma pugnado pela sua revogação, para o que formulou as seguintes conclusões:
« Quanto à matéria de Facto:
1- A sentença, ora, recorrida padece de erro na apreciação da matéria de facto;
2- Ao ter desconsiderado e interpretado indevidamente, os factos dados como provados e constantes em 6 e 7 da petição inicial, e os factos de 3 a 14 da douta decisão e por não provado o facto supra-referido em A:
3- Que da leitura das atas que constituem os documentos juntos aos autos, não constam os factos materiais com relevância para a boa decisão da causa
4-Que não faz qualquer sentido o Réu, ora recorrente admitir e afirmar, que não participou das negociações e que não era parte interessada, quando na verdade, sendo comproprietário do bem em questão, qualquer decisão que sobre mesmo possa incidir, dir-lhe-á direta ou indiretamente respeito, incorreto seria sim afirmar o contrário.
5- Efetivamente apesar de demonstrado o interesse do réu, ora recorrente, na deliberação da aquisição da casa de habitação em questão por parte da Junta de Freguesia, entende-se, não ter ficado comprovado que tal aquisição lhe traria uma qualquer vantagem patrimonial a si e aos seus familiares.
6- Tal como não ficou provado, quem poderia ter ficado prejudicado com esta transação em particular, ou seja, se existiam mais pessoas disponíveis a negociar imóveis de idêntica natureza e nas mesmas condições com a Junta de Freguesia, quem são? E porque preço propuseram vender as suas casas de habitação?
7- Bem pelo contrário ficou provado em 11, 13 e 14 dos factos dados como provados, a necessidade de aquisição de tal espaço para a freguesia, a relevância do preço e das infraestruturas existentes, assim como a avaliação prévia de outras hipóteses existentes, iniciada já em mandatos anteriores, tal como foi dito e comprovado pela testemunha, A., anterior Presidente da Junta de Freguesia em questão;
8- Foi unânime a referência às necessidades da Freguesia em dispor de uma infra-estrutura destinada a arrumação, balneários públicos e salão de eventos, circunstância que vinha já de mandatos anteriores e cujo investimento foi concretizado no mandato do actual executivo, presidido pelo R..
9- E não se diga que a oportunidade do negócio surge aqui como a mais importante vantagem, porquanto, prova alguma foi feita quanto a esta questão, quer documental, quer testemunhal;
10- Tratando-se de um imóvel em ruínas no interior de uma aldeia, sem logradouro nem área de cultivo, tem o seu valor pela sua própria centralidade e espaço único junto às instalações da sede da junta de freguesia.
11- Poderá ainda o valor de aquisição de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) ser considerado ou não justo e adequado, em face da sua avaliação patrimonial, com o VPT de € 15.204.70 (quinze mil duzentos e quatro euros e setenta cêntimos), correspondendo este ao dobro do seu preço.
12- Será esta transação uma vantagem ou desvantagem patrimonial para o Réu? Ficou este beneficiado, em relação a quem? Nada consta da douta decisão que possa responder a questões desta natureza.
13- Além do mais, não resultam da motivação de facto da douta sentença ora em crise, quaisquer factos que provem a culpa e responsabilidade do Réu ora recorrente (elemento subjetivo), nomeadamente, que este, sabia que não podia tomar parte no procedimento em causa, pois que, nele era parte interessada, com os seus irmãos.
14- Tal como, que o Réu ora recorrente, ao deliberar e votar favoravelmente, na reunião da Junta de Freguesia, a proposta de compra do imóvel em questão, agiu deliberada e conscientemente, com o propósito de conseguir um benefício de cariz patrimonial para si e para os seus irmãos.
15- Não ficou demonstrada a intenção antijurídica e culposa do Réu.
16- Pelo exposto, a matéria dada como provada de 1 a 14 não deve ser interpretada nos termos em que o fez o tribunal a quo, devendo o mesmo ir mais além e nos termos sobreditos considerar que não existe fundamento para ser declarada a perda de mandato do R.;
17- Que apesar de se ter feito prova, que o Réu sabia que não podia tomar parte no procedimento em causa, pois que nele era parte interessada tal como os seus irmãos, sempre se dirá que não se fez prova de que o Réu sabia e conhecia quais os formalismos a levar em consideração em procedimentos desta natureza.
18- Que ao deliberar e votar favoravelmente, na reunião da Junta de Freguesia, a proposta de compra do imóvel em questão, o R. não agiu deliberada e conscientemente, com o propósito de conseguir um benefício de cariz patrimonial para si e para os seus irmãos.
19- Que ao abrigo do disposto no Artigo 10º da lei n.º 27/96, de 01 de Agosto, sob a epígrafe, (Causas de não aplicação da sanção), resulta do seu nº 1. “Não haverá lugar à perda de mandato ou à dissolução de órgão autárquico ou de entidade equiparada quando, nos termos gerais de direito, e sem prejuízo dos deveres a que os órgãos públicos e seus membros se encontram obrigados, se verifiquem causas que justifiquem o facto ou que excluam a culpa dos agentes”.
20- Que não se mostra minimamente comprovada a culpa legalmente exigida e a gravidade exigida à conduta merecedora da sanção de perda de mandato.
21- Que a culpa exigível é uma culpa grave e a gravidade da atuação em causa deve ser tal que evidencie uma forte reprovabilidade social.
22- A falta de cumprimento das formalidades legais, no caso em apreço, tal como assumido pelo Réu, nada mais configura do que meros lapsos (mínimos) e, portanto, a declaração de perda de mandato deve ser considerada destituída de razoabilidade.
23- Em qualquer caso, a perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito só deve ser decretada quando houver uma relação de adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção.
24- Salvo o respeito devido, é clamorosa a inconsistência desta argumentação que nada nos diz sobre a intenção do Réu, ora recorrente, sobre se ele atuou com a intenção de proporcionar a si ou aos seus familiares aquela suposta vantagem;
25- E que pressupõe que existiam outras pessoas interessadas em vender um bem imóvel de idêntica natureza à junta de freguesia em apreço, o que não está demonstrado, nem sequer foi alegado.
26- Os argumentos em referência apelam a considerações abstratas, de natureza genérica, não se tendo o Tribunal a quo preocupado em conferir da sua verificação no caso concreto.
27- Tais argumentos em que a douta sentença se baseia para arguir a culpa do Réu, na modalidade de dolo direito e específico, correspondem a um indisfarçado dolus in re ipsa, tão aberrante em termos de responsabilidade tutelar quanto todos reconhecem sê-lo no plano da responsabilidade penal, disciplinar ou contraordenacional.
28- E tanto mais aberrante quanto é certo que, reforçados pelo apelo à presunção inilidível de parcialidade, inculcam a responsabilidade objetiva do agente que a lei (ia., o art° 8.º, 2, da Lei n° 27/96) inequivocamente exorciza.
29- Dessa presunção resultaria que a intervenção dum autarca no procedimento administrativo que lhe estivesse vedado, acarretaria sem apelo nem agravo a perda do respetivo mandato, fosse qual fosse a intenção com que tivesse agido.
30- Não é esse o regime legal.
31- Assim sendo, como é, também porque não se provou que o Réu agiu com a intenção de “obter uma vantagem patrimonial para si ou para outrém, falta um requisito essencial para a declaração da perda de mandato e a douta sentença ofendeu o disposto no art° 8.º, 2, da Lei n° 27/96, de 1 de agosto.
32-. Ainda que assim não fosse, sempre teria de reconhecer-se que a sanção imposta ao Réu viola o princípio da relação de adequação proporcionalidade da sanção à falta cometida, que decorre do art° 242°, 3, CRP, que exige que a perda de mandato dos autarcas tenha “por causa ações ou omissões ilegais graves".
33- É do conhecimento geral e notório, que as decisões tomadas pelas juntas de freguesia não são preparadas por pessoal técnico superior especializado. Aliás, dos factos alegados não consta que a decisão do executivo, de comprar o bem imóvel em questão, tenha sido tomada ao arrepio de uma informação técnica no sentido da sua proscrição legal. A própria menção em ata quer da Junta de Freguesia quer da sua Assembleia da decisão de comprar que envolve o Réu ora recorrente, pela sua omissão e simplicidade de redação, são indícios da ignorância da ilegalidade.”
34- Não ficou provada, quer documentalmente quer por prova testemunhal, qualquer situação de favor (favorável) ou de primazia perante os demais, ou noutra acepção de regalia ou de privilégio a favor do R. ora recorrente;
35- Prova alguma foi feita quanto à oportunidade do negócio como a mais importante vantagem para o Réu ora recorrente;
36- Mesmo tratando-se de um imóvel em ruínas no interior de uma aldeia, sem logradouro nem área de cultivo, tem o seu valor pela sua própria centralidade, e espaço único junto às instalações da sede da junta de freguesia.
37- Não corresponde à verdade a dedução retirada pelo tribunal á quo ao afirmar que o réu se aproveitou do cargo executivo que ocupava para beneficiar de uma oportunidade de negócio por si criada e que foi o seu executivo que definiu o local, as características e o preço pelo qual pretendia adquirir tal imóvel, porquanto, tal pretensão resulta de executivos anteriores, o que se comprova pelo depoimento da testemunha A., anterior Presidente daquela Junta de Freguesia, sendo que o objetivo do Réu, tal como resulta do seu depoimento não era a aquisição daquele imóvel em particular, sendo certo que tal imóvel tem a melhor localização, mas sim a aquisição e construção de um espaço para satisfação das necessidades publicas, tal como provado em 11 dos fatos provados
38. Não se encontram verificados os requisitos de que depende a perda de mandato;”
39- Constata-se assim um erro de direito imputado à sentença recorrida, por violação do princípio da relação de adequação e proporcionalidade da sanção à falta cometida, que decorre das disposições conjugadas dos art.s 8.º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 01.08. e art. 242.º, n.º 3, da CRP.
40- O R. não violou os princípios da igualdade e da imparcialidade vertidos nos art.os 266º, n.º 2 da CRP e 31º, n.º 4 e 69º, n.º 1, alínea a) do CPA.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deverá ser revogada a presente sentença e substituída por outra, que julgue a ação improcedente, por não provada, e consequentemente ser o Réu ora recorrente absolvido da declarada perda de mandato.
É o que se pede e se espera desse Tribunal, assim se fazendo Justiça.».

1.9. O Ministério Público contra-alegou, mas não apresentou conclusões.

1.10. Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n. º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n. º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem resumem-se a saber se:
a- Se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento da matéria de facto, por estarem em causa factos essenciais para decidir a questão da culpa do Recorrente nos atos e omissões em causa, ao ter desconsiderado os factos constantes em 6 e 7 da petição inicial e os factos dados como provados de 3 a 14 da douta decisão e ao ter dado por não provado o facto referido em A.;
b- se a sentença recorrida enferma do erro de julgamento de direito por ter considerado verificados os pressupostos previstos no n.º2 do art.º 8.º da Lei n.º 27/96, e declarado a perda de mandato do réu.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A. DE FACTO.
3.1. O Tribunal a quo deu como provados com relevância para a decisão a proferir, os seguintes factos:
«1. O R. M., na sequência das últimas eleições autárquicas realizadas em Outubro de 2017, foi investido como Presidente da Junta de Freguesia de (...) em 20.10.2017 (cf. documento n.º 01 junto aos autos com a petição inicial);
2. O R. era dono de 1/3 indiviso do prédio urbano, composto por casa de habitação de dois andares (com 89 m2 de área de implantação), sito no Largo do (...), lugar de (...), concelho de Mirandela, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo 160, descrito e inscrito em seu nome e dos restantes dois comproprietários (seus irmãos) na Conservatória do Registo Predial de Mirandela sob o n.º 714 (cf. documentos n.os 02 a 06 juntos aos autos com a petição inicial);
3. Na reunião de 23.05.2019 da Junta de Freguesia de (...), estando presente o R., na qualidade de presidente da Junta de Freguesia, e os dois vogais (secretário e tesoureira), aquele apresentou a proposta de deliberação de compra, pela Freguesia de (...), do imóvel identificado no ponto anterior pelo preço de EUR 7.500,00 (cf. Acta n.º 41 da Junta de Freguesia de (...) junta aos autos com a petição inicial como documento n.º 07);
4. Tal proposta foi aprovada por unanimidade (cf. Acta n.º 41 da Junta de Freguesia de (...) junta aos autos com a petição inicial como documento n.º 07);
5. Mais foi deliberado naquela reunião, sob proposta do R., que a Freguesia de (...) fosse representada na escritura de compra e venda do referido imóvel pelo vogal (secretário) M., conferindo-lhe poderes somente para assinar e outorgar a referida escritura (cf. Acta n.º 41 da Junta de Freguesia de (...) junta aos autos com a petição inicial como documento n.º 07); Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela
6. Na sessão ordinária de 22.06.2019 da Assembleia de Freguesia de (...), sob proposta do R., tais deliberações foram discutidas e aprovadas (confissão – artigos 9º e 10º da contestação; e cf. Acta n.º 11 da Assembleia de Freguesia de (...) junta aos autos com a petição inicial como documento n.º 08);
7. Em 03.07.2019 foi outorgada no Cartório Notarial de Mirandela escritura pública de compra e venda pela qual, a Freguesia de (...), representada pelo secretário da Junta de Freguesia de (...), adquiriu, pelo preço declarado de EUR 7.500,00 o imóvel identificado no ponto 2. ao R. e restantes comproprietários (cf. documento n.º 09 junto aos autos com a petição inicial);
8. A referida aquisição foi precedida de negociações prévias, que envolveram directamente os irmãos do R. e nas quais este participou por nelas ser parte interessada (confissão);
9. O R. sabia que não podia tomar parte no procedimento em causa, pois nele era parte interessada, como os seus irmãos (confissão);
10. O valor patrimonial tributário do imóvel identificado no ponto 2. era, à data da aquisição pela Freguesia de (...), de EUR 15.204,70 (cf. documento n.º 02 junto aos autos com a petição inicial);
11. A Freguesia de (...) adquiriu o referido imóvel por necessidade de espaço para balneários públicos, salão de eventos, recolha de alfaias agrícolas e armazenamento de produtos e equipamentos que habitualmente se encontram dispersos em casas particulares;
12. À data da aquisição, o referido imóvel estava, em parte, em ruínas (cf. documento oficiosamente junto aos autos e anexo à acta da audiência final de julgamento- fls. 168 do SITAF.
13. 13. Para aquela aquisição, a Junta de Freguesia de (...) teve em consideração o preço e que o imóvel estava dotado de saneamento, água e luz.
14. 14. A aquisição foi precedida de avaliação de outras hipóteses existentes.
IV.1.2 Factos Não Provados:
Com relevo para a decisão da causa, considera-se não provado o seguinte facto:
A. A proposta de compra do imóvel foi votada e deliberada apenas e só pelos dois vogais da Junta de Freguesia de (...) na reunião de 23.05.2019;»
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III.B. DE DIREITO.

b.1. Do erro de julgamento da matéria de facto.
O apelante assaca à sentença recorrida erro de julgamento da matéria de facto, por alegadamente o Tribunal a quo ter desconsiderado os factos constantes em 6 e 7 da petição inicial e os factos dados como provados de 3 a 14 e por se ter dado por não provado o facto referido em A, estando em causa «factos essenciais para decidir a questão da culpa do Recorrente nos atos e omissões em causa».
Vejamos.
Enuncie-se que da conjugação do regime jurídico estabelecido nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPTA, tendo o recurso por objeto a impugnação do julgamento da matéria de facto, o tribunal ad quem tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada pelo recorrente, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade Acs. STJ de 17/12/2019, Proc. 603/17.4T8LSB,L1.S1; de14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; e RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI..
Acresce que não foi propósito do julgador permitir recursos genéricos, sequer transformar o recurso da matéria de facto na repetição do julgamento realizado na 1ª Instância e daí que tenha imposto ao recorrente o cumprimento de determinados ónus que enuncia no art. 640º do CPC.
De acordo com esses critérios, para além do recurso da matéria de facto se restringir à matéria de facto impugnada António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 153., estando subtraída ao campo de cognição do Tribunal ad quem a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação, tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo dos princípios da auto responsabilidade, cooperação, lealdade e boa-fé processuais, mas também, com vista a conferir efetividade ao uso do contraditório que assiste ao recorrido, que apenas poderá, com propriedade, exercer esse seu direito ao contraditório quando lhe for dada a conhecer a lógica de raciocínio seguida pelo recorrente na valoração e conjugação deste ou daquele meio de prova e, assim ficar cabalmente habilitado a poder contrariá-lo, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu a 1ª Instância ao decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a concreta matéria de facto que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, reclama que tivesse sido proferida, os concretos meios de prova que ancoram esse julgamento de faco diverso que impugna, com a respetiva análise crítica, isto é, com a indicação do porquê dessa prova impor decisão diversa daquela que foi julgada provada ou não provada pelo tribunal a quo (art. 640º, n.º 1, al. a) do CPC).
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 640º do CPC).
Acresce que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial de delimitação do objeto do recurso (art. 635º, n.º 4 do CPC), fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem Acs. STJ. de 06/06/2018, Proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1; 27/10/2016, Proc. 110/08.6TTGDM.P2.S1; RG. de 2/11/2017, Proc. 212/16.5T8MNC.G1, in base de dados da DGSI., daqui deriva que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que impugna e a concreta resposta que, na sua perspetiva, deve ser dada a essa facticidade.
Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do objeto do recurso, mas se destinam a fundamentar o último, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.
Deste modo, sintetizando, sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; e e) o recorrente deixará expressa, nas conclusões, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos.
Assente nestas premissas, analisadas as alegações de recurso apresentadas pelo apelante, a primeira observação que cumpre efetuar, prende-se com o equivoco em que incorre o apelante ao imputar à decisão sob recurso erro de julgamento sobre a matéria de facto por o Tribunal a quo «ter desconsiderado os factos constantes em 6 e 7 da petição inicial e os factos dados como provados de 3 a 14…».
A eventual errada valoração e interpretação dos factos provados, constitui erro de julgamento de direito e não erro de julgamento sobre a matéria de facto.
Como bem nota o apelado nas contra-alegações « o julgador só incorre em erro na apreciação da prova (erro-de-facto) se, avaliando sobre um determinado evento do real-social, decide, na sua livre convicção – num esforço lógico-intelectual de indagação, interrogação, dedução, ilação e inferição, sindicável através do crivo da razoabilidade e dos ditames das máximas da lógica, da experiência da vida e da normalidade do acontecer –, de uma forma descriteriosa, ou seja, com desacerto, sobre a verificação ou não desse evento.
Por isso, não se pode assacar erro-de-facto ao julgador quando se pretende – como o recorrente:
O recurso a uma discordância puramente genérica da decisão-de-facto proferida;
A diversa interpretação dos factos à luz do Direito
E quanto á impugnação da matéria de facto dada por não provada sob a alínea A dos factos não provados na sentença, o Apelante não cumpriu com todos os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância que impugna e que se teve ensejo de elencar, na medida em que, pese embora indique nas conclusões do recurso, a concreta facticidade que impugna não indica a concreta decisão que deve recair sobre essa matéria, não indicando, na motivação do recurso, os meios de prova que, na sua perspetiva, impõem esse julgamento de facto diverso que propugna, não fazendo uma análise crítica desses meios de prova de molde a demonstrar o porquê de, perante eles, se impor esse julgamento diverso que propugna e, quanto à prova gravada, não indica o início e o termo dos excertos que suportarão esse julgamento de facto diverso que postula, não procedendo à respetiva transcrição.
Como bem refere o apelado nas suas contra-alegações, o apelante fez tábua rasa do art.º 640.º do CPC, limitando-se a «invocar o sentido geral dos depoimentos do Réu e de concretas testemunhas, sem, no entanto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, ou sem proceder à transcrição dos excertos considerados relevantes.»
Tal significa que, no caso, existe óbice processual que impede a reapreciação da prova produzida e, por conseguinte, que se analise a sindicância que o apelante faz em relação ao julgamento da matéria de facto efetuado pela 1ª Instância que impugna.
Termos em que improcedem os invocados fundamentos de recurso.
*
b.2. Dos erros de julgamento de direito

A presente ação para a declaração de perda de mandato do Presidente de Junta da Freguesia de (...), do concelho de Mirandela, foi intentada pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no art.º 8.º, n.º 2 da Lei 27/96 onde se estabelece que incorrem em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem.
Os fundamentos que o Ministério Público invocou na ação para a declaração de perda de mandato do Réu consubstanciam-se no facto do mesmo ter participado, quer nas negociações, quer nas discussões e deliberações da Junta de Freguesia e da Assembleia de Freguesia, que culminaram na aquisição por parte da Junta de Freguesia de (...) de um prédio urbano de que o Réu era comproprietário juntamente com dois irmãos, sem ter suscitado o seu impedimento legal para intervir nesse procedimento decorrente de ser comproprietário do imóvel a adquirir pela Freguesia de (...), não ignorando que tal intervenção lhe era vedada por lei, e agindo com intuito de obter, para si e para terceiros com quem mantém laços de parentesco relevantes (por serem seus irmãos), uma vantagem patrimonial, assim violando o disposto nos art.os 31º, n.º 4 e 69º, n.º 1, alínea a) do CPA..
Alega ter sido o Réu quem apresentou a proposta de deliberação nesse sentido em reunião de Junta de Freguesia e em sessão da Assembleia de Freguesia, tendo discutido tal deliberação em reunião de Junta, na qual votou aquela proposta.

A Constituição da República Portuguesa prevê no artigo 242.º, n.º3 que a «dissolução de órgãos autárquicos só pode ter por causa ações ou omissões ilegais graves».
Por sua vez, dispõe o art.º 7.º da Lei n.º 27/96, de 01/08, que “a prática, por ação ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais ou no da gestão de entidades equiparadas pode determinar, nos termos previstos na presente lei, a perda do respetivo mandato, se tiverem sido praticadas individualmente por membros de órgãos, ou a dissolução do órgão, se forem o resultado da ação ou omissão deste”.
No caso concreto da sanção de perda de mandato, determina o n.º 2 do art.º 8.º da Lei em referência que «incorrem, igualmente, em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem”.
Não obstante, “não haverá lugar à perda de mandato ou à dissolução de órgão autárquico ou de entidade equiparada quando, nos termos gerais de direito, e sem prejuízo dos deveres a que os órgãos públicos e seus membros se encontram obrigados, se verifiquem causas que justifiquem o facto ou que excluam a culpa dos agentes” (cfr. art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 27/96).
Dispõem, por seu turno, as subalíneas iv) e v) da alínea b) no art.º 4.º da Lei n.º 29/87, de 30/06, respetivamente que “no exercício das suas funções, os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios: (...) b) em matéria de prossecução do interesse público: iv) não intervir em processo administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2º grau de linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum; v) não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão”.
Ora, no caso vertente, os factos alegados pelo Ministério Público como fundamento para a declaração de perda de mandato foram dados como provados na sentença recorrida e essa matéria, atenta a improcedência do erro de julgamento sobre a matéria de facto que o apelante assacou à decisão recorrida, encontra-se estabilizada.
No essencial, provou-se que o Réu, que é Presidente da Junta de Freguesia de (...), era comproprietário, juntamente com dois irmãos, de um prédio urbano composto por casa de habitação de dois andares (com 89 m2 de área de implantação), sito na Freguesia de (...) ( vide factos 1 e 2 da sentença) e que em reunião de 23.05.2019 da Junta de Freguesia de (...), estando presente o R., na qualidade de presidente da Junta de Freguesia, e os dois vogais (secretário e tesoureira), aquele apresentou a proposta de deliberação de compra, pela Freguesia de (...), do referido imóvel pelo preço de EUR 7.500,00, tendo essa proposta sido aprovada por unanimidade ( vide factos 3 e 4 da sentença), tendo ainda sido deliberado nessa mesma reunião, também sob proposta do R., que a Freguesia de (...) fosse representada na escritura de compra e venda do referido imóvel pelo vogal (secretário) M., conferindo-lhe poderes somente para assinar e outorgar a referida escritura (vide facto 5 da sentença).
Mais se provou que na sessão ordinária de 22.06.2019 da Assembleia de Freguesia de (...), sob proposta do R., tais deliberações foram discutidas e aprovadas, tendo a escritura pública de compra e venda sido outorgada no Cartório Notarial de Mirandela ( vide factos 6 e 7 da sentença).
Com manifesta relevância para a sorte da ação, resultou provado que a aquisição do antedito imóvel foi precedida de negociações prévias, que envolveram diretamente os irmãos do R. e nas quais este participou por nelas ser parte interessada ( vide facto 8 da sentença), não obstante o R. saber que não podia tomar parte no procedimento em causa, pois nele era parte interessada, como os seus irmãos ( vide facto 9 da sentença).
A aquisição do referido imóvel, que estava em ruína mas era dotado de água, saneamento e luz, foi precedida da consideração de outras possibilidades, tendo sido adquirido por preço inferior ao seu valor patrimonial tributário de 15.204,70€ e visou suprir a necessidade de espaço para balneários públicos, salão de eventos, recolha de alfaias agrícolas e armazenamento de produtos e equipamentos que habitualmente se encontram dispersos em casas particulares ( factos 11, 12, 13 e 14 da sentença).
Em face do quadro factual dado como provado na sentença e do compendio normativo á luz do qual se têm de aferir os pressupostos de que depende a verificação de uma situação determinativa da perda de mandato de um eleito local, a decisão sob sindicância afigura-se-nos irrepreensível, tendo o Senhor Juiz a quo efetuado uma proficiente análise dos pressupostos de cuja verificação depende a declaração da perda de mandato de titular de órgão autárquico e uma correta aplicação do direito aos factos apurados, de tal modo que a subscrevemos sem reservas.
A sentença recorrida, depois de elencar o quadro legal a considerar, efetuou a seguinte ponderação, cuja fundamentação consideramos útil transcrever antes de analisarmos os erros de julgamento quanto ao mérito que o Apelante lhe imputa, e que é a seguinte:
«(…)
Resulta também do probatório que o referido órgão executivo reuniu em 23.05.2019, tendo o R., nessa sessão, apresentado uma proposta de deliberação de compra de um imóvel de que era comproprietário (juntamente com seus irmãos).
Mais resulta que o R., além de ter apresentado tal proposta de deliberação na referida reunião, participou na sua discussão e votou a mesma, uma vez que foi tomada por unanimidade dos presentes (onde se incluía naturalmente o R.).
Aliás, o próprio R., como referiu no seu depoimento, prestado em juízo, no final da reunião de 23.05.2019 assinou a respectiva acta. De tal acta não consta que o R. se tenha ausentado em momento prévio à discussão da sua proposta e respectiva votação, que se tenha declarado impedido ou que se tenha, de algum modo, apartado da discussão e votação. Nem tal foi demonstrado em juízo por qualquer outra forma.
Bem pelo contrário, da prova produzida em juízo resulta que o R. não apenas apresentou a proposta de aquisição em reunião da Junta de Freguesia, como participou na sua discussão e votação, tendo esta sido tomada por unanimidade.
Importa referir que a força probatória dos documentos autênticos juntos aos autos pelo Ministério Público apenas em parte foi posta em causa pelo R., pois que este apenas alegou factos que eram susceptíveis de colocar em causa o conteúdo (e não também a autenticidade) da Acta n.º 41 da Junta de Freguesia de (...), sendo que relativamente à Acta n.º 11 da Assembleia de Freguesia nada apontou, chegando a confirmar tudo quanto dela consta – o que fez nos artigos 9º e 10º da contestação.
Acontece que, como já se referiu em sede de fundamentação da matéria de facto, no que tange àquela primeira acta, o R. não logrou abalar a sua força probatória, uma vez que não conseguiu suscitar dúvida fundada sobre o seu conteúdo.
Toda a alegação do R. quedou-se nesse aspecto, não conseguindo, pelo seu depoimento e pelo depoimento do secretário da Junta de Freguesia, ou de qualquer outra forma, suscitar a mais pequena dúvida sobre a fidelidade da acta.
Pelo que, o Tribunal ficou convencido de que a Acta n.º 41 da Junta de Freguesia de (...) efectivamente reflecte a realidade do que se passou na reunião do executivo de 23.05.2019, designadamente que o R. esteve presente na reunião e que a proposta de aquisição do imóvel de que era comproprietário dele partiu, tendo submetido a mesma a votação, na qual participou e emitiu o seu voto, por sinal em sentido favorável, pois que a mesma foi tomada por unanimidade dos presentes (presidente, secretário e tesoureira).
Deste modo, resultou provado que o R. não só esteve presente na discussão como também votou a aludida deliberação, apesar de se saber impedido – como confessa na sua contestação.
Actuou, assim, o R., em flagrante violação do princípio da imparcialidade [art.º 69º, n.º 1, alínea a) do CPA], por possuir interesse próprio no resultado da deliberação de aquisição de um imóvel de que era comproprietário, em detrimento de outros proprietários e imóveis da mesma natureza – cf. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 14.05.1996 (proc. n.º 40.061), e do Tribunal Central Administrativo Sul de 22.11.2012 (proc. n.º 09381/12).
É evidente que de tal deliberação o R. obteve, não só para si como para os seus irmãos, comproprietários do prédio a adquirir pela Freguesia de (...), uma vantagem patrimonial.
A expressão vantagem patrimonial contida no n.º 2 do art.º 8º da Lei n.º 27/96 reporta-se a uma situação de favor (favorável) ou de primazia perante os demais, ou noutra acepção de regalia ou de privilégio, que consubstanciam significados de vantagem em linguagem comum – cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 05.05.2016 (proc. n.º 13190/16).
A teleologia desta norma é evitar a obtenção pelos autarcas ou pessoas próximas de situações de favor, de primazia ou de privilégio em detrimento de terceiros que não têm à autarquia qualquer ligação funcional – cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22.11.2012 (proc. n.º 09381/12).
No caso, o próprio R. confessa que participou nas negociações prévias entre a Junta de Freguesia e os proprietários do imóvel a adquirir (entre os quais se encontrava), por ser “parte interessada” nessas negociações.
E do probatório resulta também que, após aprovação da sua proposta em reunião de Junta de Freguesia, apresentou a mesma proposta em sessão ordinária da Assembleia de Freguesia de (...), que teve lugar no dia 22.06.2019, onde a mesma veio a ser aprovada.
Quanto a este aspecto irreleva a questão de saber se para a aquisição do imóvel em causa era necessária deliberação da Assembleia de Freguesia – cf. art. os 9º, n.º 1, alínea e) e 16º, n.º 1, alínea c) do RJAL (Regime Jurídico das Autarquias Locais, aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro) – pois que, tendo levado o assunto a reunião daquela Assembleia, a deliberação desta passou a integrar o procedimento administrativo relativo à aquisição do dito imóvel. E, por conseguinte, a participação do R. naquela reunião, quando na realidade estava impedido, constituiu, uma nova intervenção no procedimento, em violação do princípio da imparcialidade.
Donde, se conclui que o R. não apenas ignorou o impedimento legal que sobre si recaía para intervir, em todo e qualquer momento, no procedimento administrativo tendente à aquisição do referido imóvel, como, bem sabendo do mesmo, o fez de ambos os lados das negociações, ora como representante da Freguesia (enquanto titular do respectivo órgão executivo) ora como comproprietário do imóvel.
Retirando, portanto, deste procedimento e do resultado do mesmo, para o qual contribuiu com a sua votação, uma inequívoca vantagem patrimonial para si e para os seus irmãos.
Como bem referiu o Ministério Público em alegações, no caso vertente, a vantagem patrimonial não reside propriamente (ou unicamente) no preço pelo qual foi transaccionado o imóvel – ainda que quanto a este aspecto não seja de atender a alegação do R. de que o facto de o imóvel ter sido transaccionado por cerca de metade do valor patrimonial tributário do mesmo é indicativo da inexistência de vantagem –, mas na oportunidade de fazer o negócio e, assim, aliená-lo. A oportunidade do negócio surge aqui como a mais importante vantagem. É a oportunidade de o R. e seus irmãos se poderem desfazer de um imóvel de que não precisavam (como o R. reconheceu no seu depoimento), cujo valor patrimonial tributário não se adequaria ao valor de mercado do mesmo, atento o seu estado de ruína, com um inerente custo tributário em sede de IMI, e numa aldeia do nordeste transmontano que, como é sabido, se encontra desertificado e onde a procura de habitações não abunda, sendo até, poder-se-á dizer, uma raridade – ainda para mais tratando-se de um imóvel em ruínas no interior de uma aldeia, sem logradouro nem área de cultivo.
Por conseguinte, o R., aproveitando-se do cargo executivo que ocupava no momento, beneficiou de uma oportunidade de negócio por si criada (pois foi o executivo a que presidia quem definiu o local, as características e o preço pelo qual pretendia adquirir um imóvel) para uma finalidade por si determinada e que não encontra justificação suficientemente credível para explicar a razão por que só aquele imóvel satisfazia as necessidades da Freguesia. Repare-se que, no seu depoimento, o próprio R. reconheceu como um objectivo seu, do seu mandato, a aquisição daquele imóvel.
Mas para que seja determinada a perda de mandato nos termos do n.º 2 do art.º 8º da Lei n.º 27/96, além do elemento objectivo, é necessário também que esteja verificado o elemento subjectivo: a intenção (de obter a vantagem patrimonial). E tal intenção tem de ser antijurídica e culposa – quanto a este aspecto existe inúmera jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de que são exemplos mais recentes os Acórdãos de 09.01.2002 (proc. n.º 048349), de 18.03.2003 (proc. n.º 0369/03) e de 22.04.2004 (proc. n.º 0248/04).
Relativamente à culpa, como muito recentemente referiu o Supremo Tribunal Administrativo, “exceptuados os casos em que o dolo é legalmente exigível na configuração da infracção, a perda do mandato só pode ser decretada quando o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal” – cf. Acórdão de 21.05.2020 (proc. n.º 069/19.4BEMDL).
E assim é, porque “a perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito só deve ser decretada quando houver uma relação de adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção visto que, se assim não for, será de questionar a constitucionalidade das normas que permitam declarações de perda de mandato fundadas em lapsos mínimos e, portanto, destituídas de razoabilidade” – cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20.12.2007 (proc. n.º 908/07).
Deste modo, e muito embora seja certo que a perda de mandato pode ser decretada sem que haja dolo na conduta do agente também o é que a aplicação dessa sanção só encontra justificação quando a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira).
No caso vertente, resulta apurado que o R. participou, na qualidade de presidente da Junta de Freguesia de (...), em deliberação em que este órgão deliberou adquirir um imóvel e noutra em que propôs à Assembleia de Freguesia essa aquisição, sendo que era comproprietário, juntamente com os seus irmãos, desse imóvel.
Perante as circunstâncias de ser comproprietário do imóvel a adquirir e de os seus irmãos serem os demais comproprietários do mesmo, o R., bem sabendo dos impedimentos legais que sobre si recaiam, por ser parte interessada, com os seus irmãos, nesse negócio – como confessou –, ainda assim, participou no procedimento, seja no âmbito do órgão executivo, a que presidia, seja do órgão deliberativo, em que participou.
Repare-se que a reunião da Junta de Freguesia de (...) de 23.05.2019 tinha apenas dois pontos na ordem de trabalhos, todos relacionados com a dita aquisição, que eram: a aquisição do imóvel de que o R. era proprietário e a representação da Freguesia na escritura de compra e venda.
Pelo que, sabendo que estava impedido de participar no procedimento, nenhuma razão existia para que estivesse presente na reunião, menos ainda que nela participasse. Acontece que esteve, e nela teve uma participação activa, apresentando a proposta e votando-a. Interferindo, assim, na tomada de decisão administrativa e condicionando-a.
Perante as suprarreferidas circunstâncias, o R. poderia ter-se declarado impedido e, dessa forma, não ter participado na reunião da Junta de Freguesia, assim como poderia ter delegado num dos vogais da Junta a participação na Assembleia de Freguesia para efeitos de apresentação da proposta de deliberação sobre a aquisição do dito prédio.
Porém, ainda assim, e estando devidamente consciente das implicações, decidiu, livre e espontaneamente, participar activamente em ambas as reuniões. Naturalmente que este comportamento visou a obtenção de uma vantagem patrimonial, evidenciando apego ao processo decisório e vontade de interferir no mesmo.
E não serve de justificação a impreparação para o cargo, o desconhecimento da lei ou a falta de experiência nas lides autárquicas, pois tais circunstâncias não impediram o R. de ser eleito presidente da Junta de Freguesia de (...) e neste órgão autárquico participar activamente e tomar decisões.
Como lapidarmente já referiu o Supremo Tribunal Administrativo, “quem exerce estas funções, não pode alegar que somente se limita a assinar papéis, sob pena de, se assim for, não estar em condições para assumir e se manter nos respectivos cargos”, porquanto “a lei não impõe em relação a nenhum deles, um limite mínimo de habilitações escolares, nem considera, quem tenha um menor índice de habilitações, impedido de participar activamente em qualquer deliberação ou decisão” – cf. Acórdão de 21.05.2020 (proc. n.º 069/19.4BEMDL).
A eventual circunstância do R. não ter enriquecido financeiramente com aquela venda sempre seria irrelevante, pois, in casu, não agiu apenas em benefício próprio, mas também em benefício directo de seus irmãos, em flagrante violação das regras da isenção e imparcialidade a que estava obrigado.
A lei basta-se com o facto de existir uma vantagem patrimonial intencional relativamente à qual se verifica um impedimento, uma vez que os princípios da isenção e imparcialidade ficam desde logo molestados – neste sentido, cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21.05.2020 (proc. n.º 069/19.4BEMDL). E é igualmente indiferente que eventualmente inexistam outros proprietários de imóveis que não tenham ficado prejudicados com a aquisição daquele imóvel e não de outro.
Resulta assim do exposto que, no caso ora sub specie, não se vislumbram quaisquer causas que justifiquem o facto ou que excluam a culpa do R., como previsto no art.º 10º, n.º 1 da Lei n.º 27/96.
Ao invés, o que se verifica é que o R., enquanto eleito local, participou nas deliberações em causa de forma livre e esclarecida, com consciência plena que estava a obter para si e a atribuir para os seus irmãos uma vantagem patrimonial, não se descortinando neste processo de participação e votação qualquer causa de exclusão de uma actuação ilícita.
Isto posto, não se suscitam dúvidas de que o R. violou os princípios da igualdade e da imparcialidade vertidos nos art.os 266º, n.º 2 da CRP e 31º, n.º 4 e 69º, n.º 1, alínea a) do CPA, com plena consciência da ilicitude da sua conduta e agindo com culpa grave, pelo que, em termos de proporcionalidade, a sanção a aplicar deve ser, nos termos do art.º 8º, n.º 2 da Lei n.º 27/96, a perda de mandato, como vem peticionado.
É, portanto, de concluir pela procedência da presente ação.»

O apelante discorda do assim decidido, começando por se insurgir contra o entendimento sufragado na sentença de que ao intervir nas negociações, no procedimento e nas deliberações que conduziram á aquisição pela Junta de Freguesia de (...) do prédio que lhe pertencia em regime de compropriedade e aos seus irmãos, tivesse pretendido obter uma vantagem patrimonial para si ou para outrem.
Para o efeito, sustenta que apesar de demonstrado o seu interesse na deliberação da aquisição da casa de habitação em questão por parte da Junta de Freguesia, não ficou comprovado que tal aquisição lhe traria uma qualquer vantagem patrimonial a si e aos seus familiares, tal como não ficou provado, quem poderia ter ficado prejudicado com esta transação em particular, ou seja, se existiam mais pessoas disponíveis a negociar imóveis de idêntica natureza e nas mesmas condições com a Junta de Freguesia, tendo, pelo contrário, ficado provada a necessidade de aquisição de tal espaço para a freguesia, a relevância do preço e das infraestruturas existentes, assim como a avaliação prévia de outras hipóteses existentes, iniciada já em mandatos anteriores, tal como foi dito e comprovado pela testemunha, A., anterior Presidente da Junta de Freguesia em questão.
Por outro lado, discorda do entendimento sufragado pela sentença nos termos do qual a oportunidade do negócio surge aqui como a mais importante vantagem, porquanto, prova alguma foi feita quanto a esta questão, quer documental, quer testemunhal, tanto mais que se tratava de um imóvel em ruínas no interior de uma aldeia, sem logradouro nem área de cultivo, tem o seu valor pela sua própria centralidade e espaço único junto às instalações da sede da junta de freguesia, tendo o mesmo sido alienado por € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) quando a sua avaliação patrimonial lhe atribuiu um VPT de € 15.204.70 (quinze mil duzentos e quatro euros e setenta cêntimos), correspondendo este ao dobro do seu preço- vide conclusões 5.ª a 12.ª .
Mas sem razão.
Como bem elucida ERNESTO VAZ PEREIRA In “DA PERDA DE MANDATO AUTARQUICO, DA DISSOLUÇÃO DE ÓRGÃO AUTÁRQUICO”, Almedina; , em anotação ao artigo 8º da Lei nº 27/96, “O número 2, como previsão típica de perda de mandato, comporta um elemento objetivo, a intervenção, no exercício das funções ou por causa delas, em procedimento administrativo, ato ou contrato de direito publico ou privado, relativamente ao qual se verifique impedimento legal, e um elemento subjetivo, a intenção de obter vantagem patrimonial para si ou para outrem. A teleologia desta norma é a evitação de obtenção pelos autarcas ou pessoas próximas de situações de favor, de primazia ou de privilégio em detrimento de terceiros que não têm à autarquia qualquer ligação funcional”.
A intenção de obter vantagem patrimonial para si ou para outrem, constitui condição sem a qual não há lugar à declaração de perda de mandato.
E conforme se adverte no aresto do STA, de 18.03.2003, prolatado no processo n.º 0369/03 “Quando a lei fala da obtenção de vantagem patrimonial, com uma conotação ou valoração negativa em termos de poder desencadear a grave sanção de perda de mandato, apenas pode querer significar que o eleito local, por via de atuação decorrente do exercício das suas funções ou por causa delas, vise obter uma situação de favor, de primazia ou de privilégio geradora de desigualdade em relação outros concretos ou eventuais concorrentes que pudessem prestar o mesmo serviço em condições iguais ou mais favoráveis. Ou ainda quando intervenha em qualquer ato ou contrato favorecendo, em termos patrimoniais, a sua própria posição ou a de terceiro.”
No caso em análise, é incontroverso que o apelante interveio no procedimento que conduziu à aquisição de prédio de que era comproprietário juntamente com os seus irmãos a favor da Junta de Freguesia de que era Presidente, pelo que, consequentemente, participou em procedimento administrativo relativamente ao qual estava impedido.
Sobre o que deva considerar-se como “intenção de obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem” nos termos do n.º 2 do art.º 8.º da Lei 27/96, há imensa jurisprudência.
Nesse sentido veja-se o recente Acórdão do STA, de 21.05.2020, proferido no processo n.º 069/19.4BEMDL no qual se escreve o seguinte: «Quanto ao preenchimento deste requisito, há jurisprudência bastante, produzida por este Supremo Tribunal Administrativo, no sentido de que a intenção tem de ser antijurídica e culposa.
Como resulta do acórdão do STA de 22/04/2004 (Proc. nº 0248/04 in «www.dgsi.pt/jsta»), que reitera jurisprudência anterior de outras decisões deste Tribunal (cfr. Acs. de 18/05/1995 - Proc. n.º 37472, de 12/05/1995 - Proc. nº 36434, de 18/03/2003 - Proc. nº 0369/03) “… a perda de mandato tem carácter sancionatório o que implica a necessidade de ter em conta os princípios do direito Disciplinar e Penal (cfr. art. 10º da Lei 27/96). Ou, como se entendeu … “dada a gravidade da sanção de perda de mandato que a lei comina para determinados comportamentos, importa não só determinar se esses comportamentos estão objectivamente tipificados na lei, mas ainda se se verifica o elemento subjetivo que justifique um juízo de censura proporcional à medida sancionatória que só será de aplicar quando, ponderados os factores objectivos e subjetivos relevantes, se conclua pela indignidade do requerido para a permanência no exercício das suas funções (…)”.
Também no Ac. deste STA de 09/01/2002 (Proc. nº 048349 in «www.dgsi.pt/jsta») se diz que “… só um grau de culpa relativamente elevado sustentarão a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo.
E como se disse no Ac. de 21.3.96, rec. 39.678, a aplicação de tal medida (perda de mandato) só se justifica relativamente a quem, “tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções não observou as regras de isenção e desinteresse (a imparcialidade) e de independência exigíveis a quem deve estar ao serviço do bem comum”, a quem “violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso” (Ac. TC 25/92) …”.
Noutro acórdão deste STA de 18/03/2003 (Proc. nº 0369/03 in «www.dgsi.pt/jsta») e no mesmo sentido, consignou-se “… a lei fala da obtenção de vantagem patrimonial, com uma conotação ou valoração negativa em termos de poder desencadear a grave sanção de perda de mandato, apenas pode querer significar que o eleito local, por via de atuação decorrente do exercício das suas funções ou por causa delas, vise obter uma situação de favor, de primazia ou de privilégio geradora de desigualdade em relação outros concretos ou eventuais concorrentes que pudessem prestar o mesmo serviço em condições iguais ou mais favoráveis. Ou ainda quando intervenha em qualquer ato ou contrato favorecendo, em termos patrimoniais, a sua própria posição ou a de terceiro.
Vale isto dizer (na linha, aliás, do decidido nos Acs. de 03.04.97, rec. 41784 e de 21.03.96, rec. 39678) que só relevam, no âmbito do tipo legal do art. 8º, nº 2 do Lei 27/96, os proveitos económicos que o autarca vise obter ilicitamente, exercendo as suas funções para fins que a lei proíbe ou diversos dos legalmente previstos.

A preterição dos princípios consignados no artº 4º, nº 2, designadamente, nas alíneas d) e e), da Lei 29/87, de 30.06, apenas determina a perda de mandato se os comportamentos ali referidos puderem ser subsumidos àquela norma sancionadora do art. 8º, nº 2 da Lei 27/96 …” ».( fim de citação).

A perda de mandato de um titular de órgão autárquico é inquestionavelmente uma sanção de enorme gravidade e melindre, que exige rigor e certeza na verificação dos pressupostos que o legislador erige como condição para a sua declaração judicial.
Trata-se de uma decisão que contende com a destituição de um eleito pelo voto popular para o exercício democrático de funções autárquicas, que interfere com a organização democrática do Poder Local, que muito diz às populações, dada a proximidade dos eleitos locais às mesmas. E daí que, tratando-se, como se trata, de um processo de natureza sancionatória, perante dúvidas na verificação dos pressupostos previstos na lei, não seja de declarar a perda de mandato.
No caso, será que se pode afirmar que perante os factos provados na sentença e o entendimento jurisprudencial sobre o que deve considerar-se como “intenção de obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem”, que o Réu tivesse pretendido obter uma vantagem patrimonial para si ou para outrem?
Conforme se provou, na situação em apreciação, o próprio réu confessou que sabia não poder participar nesse procedimento administrativo, o que, aliás, bem se compreende, uma vez que o mesmo não podia ignorar a situação de conflito de interesses em que estava envolvido.
Mas não obstante esse seu conhecimento, a verdade é que interveio, tendo sido o próprio quem apresentou ao órgão colegial Junta de Freguesia a proposta para a aquisição do aludido prédio, que também lhe pertencia em compropriedade com os seus irmãos, quando podia ter-se excluído desse processo, declarando-se impedido. E ao não ter procedido conforme lhe era legalmente exigido, arriscando intervir num negócio em que estava perante uma situação de claro conflito de interesses, só pode concluir-se que o fez porque visava obter a atribuição de uma vantagem patrimonial a si e aos seus irmãos, aproveitando essa oportunidade de negócio, ou seja, juntando o útil ao agradável. Se por um lado, é dado assente que a Junta de Freguesia necessitava de adquirir um espaço para guardar utensílios e equipamentos, por outro lado, convinha ao réu e aos seus irmãos vender o referido imóvel, como resulta do facto de o terem alineado onerosamente à Junta de Freguesia de (...).
E a vantagem patrimonial obtida, aqui traduzida na oportunidade do negócio celebrado com a Junta de Freguesia de (...) pelo qual foi alineado o referido imóvel pelo valor de € 7.500,00 não é afastada pelo facto de o valor patrimonial tributário do mesmo imóvel ser superior, desde logo, porque daí não decorre que o valor de mercado do imóvel fosse o correspondente ao seu valor patrimonial.
Por outro prisma, é bom frisar-se que o dito imóvel, pertencente em compropriedade ao réu e a dois irmãos do mesmo, foi vendido, ou seja, onerosamente transmitida a sua propriedade à Junta de Freguesia. Não foi doado, nem se provou que com a sua transmissão o réu e os demais comproprietários o tivessem feito numa atitude filantrópica a favor da autarquia ou suportando prejuízo nessa alienação, quiçá, por terem aberto mão do mesmo a preço inferior ao devido.
Citando novamente o recente aresto do STA de 20.05.20202 «a lei basta-se com o facto de existir uma vantagem patrimonial intencional relativamente à qual se verifica um impedimento, uma vez que os princípios da isenção e imparcialidade ficam desde logo molestados».
A vantagem patrimonial a que se alude no n.º 2 do art.º 8.º da Lei 27/96, não tem de ser « per se, ilícita, no sentido de a sua concessão encerrar, em si, um concreto desvalor jurídico objetivo, por lhe faltar uma justa causa de atribuição.».
No caso, como bem se refere na sentença recorrida, a oportunidade do negócio surge aqui como a mais importante vantagem. « É a oportunidade de o R. e seus irmãos se poderem desfazer de um imóvel de que não precisavam (como o R. reconheceu no seu depoimento), cujo valor patrimonial tributário não se adequaria ao valor de mercado do mesmo, atento o seu estado de ruína, com um inerente custo tributário em sede de IMI, e numa aldeia do nordeste transmontano que, como é sabido, se encontra desertificado e onde a procura de habitações não abunda, sendo até, poder-se-á dizer, uma raridade – ainda para mais tratando-se de um imóvel em ruínas no interior de uma aldeia, sem logradouro nem área de cultivo.
Por conseguinte, o R., aproveitando-se do cargo executivo que ocupava no momento, beneficiou de uma oportunidade de negócio por si criada (pois foi o executivo a que presidia quem definiu o local, as características e o preço pelo qual pretendia adquirir um imóvel) para uma finalidade por si determinada e que não encontra justificação suficientemente credível para explicar a razão por que só aquele imóvel satisfazia as necessidades da Freguesia. Repare-se que, no seu depoimento, o próprio R. reconheceu como um objectivo seu, do seu mandato, a aquisição daquele imóvel. »
Não podemos estar mais de acordo.

O apelante sustenta também que pese embora se tenha feito prova, que sabia que não podia tomar parte no procedimento (relativo à aquisição pela Junta de Freguesia de (...) do prédio que lhe pertencia em compropriedade com os seus irmãos), pois que nele era parte interessada tal como os seus irmãos, sempre se tem de considerar que não se fez prova de que sabia e conhecia quais os formalismos a levar em consideração em procedimentos desta natureza (vide conclusão 17.ª).
Sem razão.
A questão de saber se era do conhecimento do apelante quais os formalismos a observar em procedimentos desta natureza, ante a prova de que o mesmo sabia que não podia tomar parte no procedimento em causa, por nele ser parte interessada, não tem qualquer relevo na economia dos presentes autos, uma vez que, sabendo confessadamente que não podia tomar parte no procedimento de aquisição do referido imóvel por não ignorar que era comproprietário do mesmo e simultaneamente Presidente da Junta de Freguesia de (...), ou seja, legal representante da Freguesia de (...), entidade a quem o imóvel se destinava a ser alienado, e consequentemente, que agia numa situação de manifesto conflito de interesses, não vemos que formalismos ignorava que caso conhecesse teriam obstado a que incorresse na situação de perda de mandato.
Se sabia que não podia tomar parte no procedimento, então não devia participado no procedimento. Se não tivesse tomado parte no procedimento, não teria apresentado a proposta de aquisição do referido imóvel, não teria participado na discussão da proposta e não teria votado a deliberação da Junta de Freguesia que decidiu adquirir o dito imóvel.
Sempre se dirá que a melhor precaução contra situações destas é não intervir nelas, posto que, de contrário, poderá sempre ocorrer uma situação em que quem de direito participe essas ilegalidades a quem tem o dever de velar pela legalidade do Estado de direito democrático ou uma situação de “gato escondido com rabo de fora”.
Acresce que sempre se dirá que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém e que no caso, o apelante não era um cidadão comum, mas um autarca, sobre quem impende o ónus legal de se informar sobre toda a legislação que regula essa sua atividade autárquica e os impedimentos dela decorrentes, posto que quem assume um cargo de representação política tem o dever de se inteirar de toda a legislação que regula, limita ou baliza a sua atividade e que quem pretende assumir semelhantes funções, sem esse encargo, sujeita-se às consequências daí advenientes.
Bastava-lhe que não tivesse participado nas decisões que foram tomadas para a concretização do contrato de compra e venda do imóvel em questão, para que não se visse incurso na situação de perda de mandato, não sendo aceitável que no caso não o tivesse feito dada a situação de conflito de interesses que o envolvia.
Como bem argui o Ministério Público, saber se se fez prova de que o Réu sabia e conhecia quais os formalismos a levar em consideração em procedimentos desta natureza, é, nesta fase, além de questão ultrapassada, expressão de uma discursividade supérflua e estéril, tanto mais que é do senso comum, de acordo com parâmetros do homem médio – e, especialmente de alguém com experiência autárquica de dezenas de anos –, que constituiria uma falsidade fazer constar de documento público (autêntico, no sentido de praticado ou percepcionado por quem o atesta) um facto diverso do ocorrido, ou não ocorrido.

O apelante discorre ainda que a decisão enferma de erro de julgamento por considerar que o mesmo agiu com culpa, entendendo ainda que a sentença violou a proporcionalidade.
Para o efeito, alega, que a culpa exigível é uma culpa grave e a gravidade da atuação em causa deve ser tal que evidencie uma forte reprovabilidade social (vide conclusão 21), o que não se verifica in casu, uma vez que a falta de cumprimento das formalidades legais, no caso em apreço, tal como assumido pelo Réu, nada mais configura do que meros lapsos (mínimos) e, portanto, a declaração de perda de mandato deve ser considerada destituída de razoabilidade (vide conclusão 22.º). E que a perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito só deve ser decretada quando houver uma relação de adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção.
Mas, novamente, sem razão, dando-se aqui, desde já, como reproduzidas as considerações que supra efetuamos.
Chamando novamente à colação o aresto do STA de 20.05.2020 nele adverte-se que «…tendo em conta a gravidade da sanção e das suas consequências… a jurisprudência tem afirmado que, exceptuados os casos em que o dolo é legalmente exigível na configuração da infracção, a perda do mandato só pode ser decretada quando o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal.
Tudo, porque, como já se referiu, a perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito só deve ser decretada quando houver uma relação de adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção visto que, se assim não for, será de questionar a constitucionalidade das normas que permitam declarações de perda de mandato fundadas em lapsos mínimos e, portanto, destituídas de razoabilidade (Acórdão de 20/12/2007 (rec. 908/07).

Deste modo, e muito embora seja certo que a perda de mandato pode ser decretada sem que haja dolo na conduta do agente também o é que a aplicação dessa sanção só encontra justificação quando "a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira). Na verdade, atendendo: (i) à natureza sancionatória da medida da perda de mandato, (ii) à intrínseca gravidade desta medida, equivalente às penas disciplinares expulsivas, com potencialidade destrutiva de uma carreira politica, iii) a que a conduta dos titulares de cargos políticos electivos é periodicamente apreciada pelo universo dos respectivos eleitores, há que concluir que a aplicação de tal medida só se justifica a quem tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções «violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso» (cfr. Acórdão STA de 21/03/96).
Violaria o princípio da proporcionalidade das medidas sancionatórias que restrinjam direitos políticos aplicar uma tal sanção a incumprimentos veniais» (Acórdão de 11/03/99, rec. 44.576).
E, porque assim é, entende-se que, nos casos de violação da norma que proíbe ao autarca de intervir em procedimento onde possa obter vantagem patrimonial, essa violação só é determinante da perda do mandato quando se mostre que ele tinha interesse directo, pessoal e relevante nessa intervenção e que esse interesse o impedia de actuar de forma rigorosa, isenta e imparcial na defesa do interesse público posto a seu cargo, acrescentando-se que essa intervenção tem de estar associada a culpa grave visto que “só um grau de culpa relativamente elevado sustentará a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo” - (Acórdão de 9/01/2002, rec. 48.349).»

Está assente na sentença que o Réu participou nas deliberações ali mencionadas no pleno exercício das suas funções, o que significa que interveio em procedimento administrativo em relação ao qual estava impedido de participar.
Com efeito, no tocante à formação da vontade dos “órgãos colegiais” estatui o artigo 31.º, n.º 4 do CPA que “ Não podem estar presentes no momento da discussão nem da votação os membros do órgão que se encontrem ou considerem impedidos”. E no artigo 69.º, n.º1 do CPA, sob a epígrafe “Casos de impedimento”, preceitua-se que “ os titulares de órgãos da Administração Publica e os respetivos agentes , bem entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo, ou em ato ou contrato de direito publico ou privado da Administração Publica, nos seguintes casos:
a) Quando nele tenham interesse, por si, como representantes ou como gestores de negócios de outra pessoa”
De igual modo, o artigo 4º da Lei nº 29/87, de 30 de Junho (Estatuto dos Eleitos Locais) na redação resultante da republicação operada pelo artigo 11º da Lei nº 52-A/2005, de 10 de Outubro, determina, recorde-se que «No exercício das suas funções, os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios:
(…)
2) Em matéria de prossecução do interesse público:

a) Salvaguardar e defender os interesses públicos do Estado e da respectiva autarquia;
b). Respeitar o fim público dos poderes em que se encontram investidos;
c) Não patrocinar interesses particulares, próprios ou de terceiros, de qualquer natureza, quer no exercício das suas funções, quer invocando a qualidade de membro de órgão autárquico;
d) Não intervir em processo administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado, nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;
e) Não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão»
Por fim, olhe-se ainda para o art. 266º nº 2 da CRP no qual se prevê o dever de os órgãos e agentes administrativos atuarem, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade da justiça e da imparcialidade, com a inerente subordinação à Constituição e à Lei.
A garantia da imparcialidade consagrada no artigo 266º nº 2 citado, implica, entre outras coisas, o estabelecimento de impedimentos dos titulares de órgãos e agentes administrativos para intervirem em assuntos em que tenham interesse pessoal, direto ou indireto. Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed. pag 925.

Age com culpa grave, quem devendo saber estar impedido, e sabendo-o, participa em procedimento administrativo em que patentemente se afirma um claro conflito de interesses, como sucedeu inequivocamente com o réu.
Como bem sintetiza o Ministério Público a «culpa – como elo ético de ligação entre o acto e o ser-que-age – basta-se, no caso, com a comprovação (realizada) da consciência de que com tal atuação é conferido um benefício ao património de terceiro.
Impõe, pois, a razoabilidade, que se estriba na experiência da vida e da normalidade do acontecer – que as circunstâncias do caso não infirmam –, que quem discute e delibera a realização de uma compra está a conceder benefício:
A oportunidade da venda e o seu produto.
Por outro lado, não se trata de meros lapsos (mínimos).
Trata-se de um desvio decisivo, essencial, perante um imperativo de legalidade procedimental no âmbito da condução da “coisa pública”, que, pela sua natureza e significação ético-social, é susceptível de fazer perigar a justa expectativa de probidade do sentir-comunitário».
E quanto á proporcionalidade a mesma «… está lógica e ontologicamente ligada ao Direito, sendo-lhe transversal.
Mas tal categoria conceitual é, por essência, dialéctica e relacional:
O juízo de proporção (em sentido amplo), constrói-se, no caso, por um lado, a partir da consideração do direito ao livre exercício dos cargos políticos eleitos democraticamente, e, por outro lado, do imperativo de, para preservação da vivência e da cultura democráticas, deverem, no desempenho do princípio da “concordância prática”, ser sancionados os actos que, de forma gravosa, ponham em crise os ditames da transparência, da probidade e da imparcialidade naquele exercício.
Ou seja, o Estado, através dos Tribunais:
Não tem o direito de sancionar;
Não tem o dever de sancionar;
Tem o poder-dever de sancionar.
Este poder-dever – pedra basilar do Estado-de-Direito-Democrático – é um dos garantes da vigência do Contrato-Social, um pressuposto essencial da sua vigência, enquanto criação/produto da comunidade, tal como é o refrear da tendência (inata) da tentativa de subjugação (ou eliminação) do interesse colectivo perante o individual.
Até aqui, não há desacordo.
Onde começam os desencontros, é, precisamente, no acordar onde se inicia onde acaba o concreto poder-dever de sancionar.
Nesta medida, só pela busca da concepção ético-cultural-ideológica dominante da sociedade – a “consciência axiológica geral”, precipitado histórico da “consciência axiológico-jurídica” – é que poderá ser encontrado o (precário) equilíbrio entre o direito à liberdade individual e o interesse comunitário, expresso pelo sopesar dos valores pessoais e dos interesses colectivos.
Donde:
Só numa postura de racionalidade, razoabilidade, necessidade, adequação e proporcionalidade é que poderá lograr-se atingir aquele equilíbrio entre dois valores que tendem para a maximização conflituante.
Ora, procurando sopesar os termos da equação em jogo à luz do “espírito do tempo” (zeitgeist), cremos, com todo o respeito por opinião em contrário, que as representações ético-sociais-culturais dominantes na nossa sociedade legitimam a conclusão de que à concreta violação do impedimento legal deve corresponder a decretada medida de perda de mandato.
Pela intensidade da vontade;
Pela notória fragilidade financeira da Freguesia (interior e desertificada);
Pelas exigências de prevenção.
Ou seja:
Numa “concepção de vida” incompatível com a prática, pelos titulares de cargos públicos – cada vez mais herméticos e opacos, face ao porventura inevitável agigantamento do Estado e ao acrescido distanciamento decorrente do primado da representatividade –, de actos que, com algum gravame, põem em causa os ditames da transparência, da probidade e da imparcialidade na gestão da coisa pública, em violação dos impedimentos legais;
Impõe-se decretar a perda de mandato, que na sua raiz ontológica tem, precisamente, a tutela de bens-jurídico-administrativos de cariz essencial, verdadeiramente matricial.

É, pois, a defesa dessa concreta “concepção de vida” – porque cara à comunidade – que legitima a aplicação da sanção no caso concreto.
E está, assim, segundo cremos, garantido o respeito pelos princípios da racionalidade, razoabilidade, necessidade, adequação e da proporcionalidade.
Dizer mais seria puro exercício do supérfluo.
Não vamos, pois, repetir, ou procurar glosar, as motivações dos restantes Acórdãos citados na douta decisão recorrida (cfr, Ac. do STA de 14.05.1994, P- 040061, e do TCAS de 22.11.2012 e 05.05.2016, P-09381/12 e 13190/16,
respectivamente).
Por fim:
A legitimidade democrática não assenta apenas directamente no voto popular.
Daí que qualquer cidadão a quem seja confiada a condução de uma parcela da coisa pública – seja na Administração Pública ou na Justiça, seja no exercício de um Cargo Político –, precisamente por ser titular de uma legitimidade condicionada à clara prossecução daquele interesse, deva estar sujeito ao seu afastamento da função por falta grave.»
Não podemos estar mais de acordo.
Resulta de tudo quanto se expendeu que, no caso dos autos, não se vislumbram as causas que justifiquem o facto ou que excluam a culpa do réu, como previsto no artº 10º, nº 1 da Lei nº 27/96 de 01.08., mantendo-se a previsão do artº 8º, nº 2 da Lei da Tutela Administrativa.
Ao invés, o que se verifica é que o apelante participou nas deliberações em causa de forma voluntária e não ignorando que estava impedido de intervir, bem sabendo que estava perante uma clara e inequívoca situação de conflito de interesses, realizando um contrato de compra e venda com a intenção de atribuir a si e aos seus irmãos uma vantagem patrimonial, viabilizando uma oportunidade de negócio para a alineação do imóvel que lhes pertencia em regime de compropriedade.

Termos em que se impõe confirmar a sentença recorrida, por estarem verificados todos os pressupostos exigidos para nos termos do preceituado no nº 2 do artº 8º da Lei nº 27/96 de 01 de agosto, ser confirmada a decidida perda de mandato do réu, concluindo-se pela improcedência do recurso interposto.
**
IV- DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento á presente apelação e em confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelo apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Porto, 28 de julho de 2020

Helena Ribeiro
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre