Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00918/08.2BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/05/2020
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Rosário Pais
Descritores:VENDA DE COISA ALHEIA; OBJETO NEGOCIAL INEXISTENTE; VENDA NULA;
Sumário:I – Por força do n.º 1 do artigo 280.º do CC é «nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável».

II – Em termos físicos, haverá tal impossibilidade quando o negócio se reporte a uma coisa inexistente ou inalcançável pelas partes.

III – Resultando dos autos que, às datas da penhora e da venda na execução fiscal, o imóvel objeto do contrato não existia fisicamente e não sendo o mesmo alcançável pelas partes, deve ser declarada a nulidade do contrato de compra e venda e condenada a AT a restituir à compradora o preço pago, acrescido de juros de mora. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Ministério Público
Recorrido 1:O.
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO

1.1. O Ministério Público interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, proferida em 03.12.2010, que julgou procedente a ação administrativa comum intentada contra o Ministério Público e a Fazenda Nacional, declarou a peticionada nulidade do contrato de compra e venda do prédio denominado “(...)”, ordenou a restituição integral do preço e condenou o réu a pagar à Autora juros, calculados à taxa legal, desde a data da escritura até integral pagamento.

1.2. O Recorrente terminou as respetivas alegações formulando as seguintes conclusões:
«I — A douta sentença ern crise, ao decretar ter ocorrido uma venda de bem alheio, interpretou erradamente a factualidade apurada na medida em que dela inevitavelmente resulta não existir o prédio em causa;

II - Infringiu pois o disposto nos artigos 659, números 2 e 3, do C. de Processo Civil e 892, do C. Civil;
III — Deve, portanto, ser revogada e substituída por outra que determine, tão só, a improcedência da demanda e a absolvição do pedido formulado contra o recorrente.
No entanto, Vossas Excelências Venerandos Desembargadores, uma vez mais, farão a melhor
JUSTIÇA!».


1.3. A Recorrida “O.” apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1. O presente recurso carece de fundamento tanto mais que o recorrente/Estado reconhece expressamente que o prédio que declarou vender à A. e cujo preço de 4.000.000$00 recebeu, não é nem nunca foi propriedade dos executados mas, pelo contrário, propriedade de J. e mulher, conforme aliás ficou provado por sentença proferida no processo nº (…), do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de (...), em que foram A. os referidos J. e mulher e RR. a Fazenda Nacional e o executado A..
2. No âmbito processo nº. (…), do 4º Juízo Cível da comarca de (...) que a A. intentou contra os executados e aquele J., o Tribunal viria a confirmar a sentença anterior, supra referida, concluindo que o prédio pretensamente vendido pelo Estado à A. era propriedade de J. e mulher, por fazer parte integrante dos seus prédios urbanos, não tendo necessariamente autonomia nem existência física.
3. Conjugadas as duas decisões judiciais, conclui-se necessariamente que não tem, nem pode ter, existência física e legal qualquer outro prédio, com aquela mesma localização e características do prédio pertencente a J. e mulher, existindo um obstáculo insuperável, que resulta da própria natureza das coisas, à existência de dois prédios exactamente situados no mesmo local, com a mesma configuração, área, tipo de cultura e demais características.
4. É materialmente impossível existir o pretenso prédio do executado no mesmo local e com as mesmas características do prédio dos referidos J. e mulher, não podendo aquele ter consequentemente, também, existência legal.
5. Verifica-se que, no caso em mérito, estamos perante uma venda de coisa alheia e simultaneamente perante uma venda de coisa legal e fisicamente impossível e mesmo inexistente, absolutamente nula por força no disposto nos arts. 892º e 280º do C.C., como aliás, a A. alega expressamente na p.i.
6. Pretende a recorrida ampliar o âmbito do recurso (nos termos do actual art. 684º-A do Código de Processo Civil) no sentido de que se mostra igualmente provada a nulidade decorrente do art. 280º do C.C., não obstante ser do conhecimento oficioso do Tribunal o conhecimento das nulidades invocadas.

Termos em que,
Deve confirmar-se a douta sentença recorrida, nos termos das
conclusões supra com que se fará
JUSTIÇA.».
1.4. Os autos foram com vista ao Ministério Público junto deste Tribunal.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta.


2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Uma vez que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cumpre apreciar e decidir se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de direito por errada interpretação da factualidade assente, ao considerar que existe uma venda de coisa alheia quando os autos evidenciam que o prédio em causa é inexistente.

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO

A decisão recorrida contém a seguinte fundamentação de facto:
«A)
No dia 24 de Junho de 1994, no âmbito de um processo de execução fiscal instaurado contra A., casado em comunhão de adquiridos com M., foi penhorado o prédio “(...)”, cultura e ramada, sito no lugar de (...), inscrito no artigo (…) da matriz rústica de (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...), no número …/(...) – cfr. Documento “Auto de Penhora” a fls. 95 dos autos.
B)
No dia 29 de Outubro de 1997, na sequência de negociação particular em que se fixou o preço de 4.000.000$00, que foi pago, foi celebrada uma escritura pública de compra e venda entre um representante da Fazenda Nacional e a Autora, tendo como objecto o referido prédio – cfr. certidão a fls. 11 a 15.
C)
No dia 19 de Janeiro de 2005 foi proferida sentença no Tribunal Judicial de (...) que julgou improcedente a acção que a Autora intentara contra J. e mulher M., com vista ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o referido prédio – cfr. sentença a fls. 18 a 29.
D)
Esta sentença deu como provado que o referido prédio se encontrava integrado noutros prédios rústicos propriedade de J. e mulher – cfr. sentença a fls. 18 a 29 e os artigos 6.º da petição e 10.º da contestação.».


3.2. De Direito

3.2.1. Tendo em vista apreciar o erro de julgamento de direito, vejamos, antes do mais, qual fundamentação de direito vertida na sentença recorrida.
Ali se considerou o seguinte:
«A questão dos autos é a da declaração de nulidade do contrato de compra e venda, celebrado entre um representante da Fazenda Nacional e a Autora, cujo objecto era o Campo da (...), e o pagamento de juros pelo desapossamento do preço.
Nos termos do artigo 892.º do Código Civil, é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar, não podendo o comprador doloso opor a nulidade ao vendedor de boa fé.
Não vem alegado que a Autora tenha actuado dolosamente e as partes estão de acordo – cfr. ponto D) do probatório, artigos 6.º da petição e 10.º da contestação – que o prédio vendido na execução fiscal não era propriedade do executado.
Uma vez que o prédio penhorado não era propriedade do executado o bem não podia ser vendido pela administração tributária já que esta carecia de legitimidade para o efeito.
E, assim sendo, tal venda é nula. Nos termos do artigo 894.º, n.º 1 do CC, sendo nula a venda de bens alheios, o comprador que tiver procedido de boa fé tem o direito de exigir a restituição integral do préço, ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuido de valor por qualquer causa.
Não sendo alegado que o prédio esteja deteriorado ou tenham diminuído de valor e que a compradora tenha disso tirado proveito, a Autora tem direito à restituição integral do preço de 4.000.000$00 / 19.951,92 €.
A Autora pede ainda que lhe sejam pagos juros, calculados à taxa legal de 10% ao ano, desde a data da escritura até 16 de abril de 1999, à taxa legal de 7% desde dia 17 de Abril de 1999 até 30 de d«bril de 2003 e à taxa de 4% ao ano desde 1 de Maio de 2003 até integral pagamento.
Nos termos do artigo 899.º do CC, o vendedor é obrigado a indemnizar o comprador de boa fé, a indemnização compreende apenas os danos emergentes que não resultem de despesas voluptuárias.
Nos termos do artigo 216.º do CC As benfeitorias voluptuárias são despesas que, não sendo indispensáveis para a conservação ou o aumento do valor da coisa, servem apenas para recreio do benfeitorizante.
O pedido de indemnização compreende apenas os frutos civis que a Autora deixou de auferir, que não danos resultantes de despesas com benfeitorias, pelo que o seu objecto cabe na previsão da norma constante do artigo 899.º.
Finalmente, até porque a contestação se centra, principalmente, na questão da inexistência de resposabilidade, não se mostra verificado qualquer um dos fundamentos da litigância de má fé, nos termos do artigo 456.º do Código de Proceso Civil.»

Cumpre, ainda e em densificação do vertido nas alíneas C) e D) dos factos provados, transcrever aqui o seguinte excerto da sentença aludida naquelas alíneas:
«(...), duas conclusões ressaltam do exposto:
- por um lado constata-se que apesar dos esforços denodados da autora esta não conseguiu demontrar que o prédio que reivindica tenha existência física, seja minimamente autonomizável ou sequer que seja possível delimitá-lo fisicamente, atribuindo-lhe uma qualquer identidade concreta e fisicamente escrutinável;
- por outro lado, o autor não demonstra qualquer posse sobre os prédios onde integra o prédio reivindicado, demosntrando sim os 1.ºs réus, J. e mulher, essa posse pacífica e continuada no tempo.
No fundo, atingiu-se, uma vez mais, conclusão idêntica à obtida já em sentença judicial anterior cuja cópia certificada consta dos autos. Lê-se nessa decisão:
“... (...) o prédio referido em E) da matéria asente (que coresponde ao prédio que a autora ora reivindica) não tem existência real ou física, só se compreendendo a sua inscrição na matriz por as avaliações cadastrais não terem conseguido divisar a destrinça entre os dois prédios descritos em A) e C) da matéria assente (...). Ora, a área que pretensamente dá corpo e forma ao prédio referido em E) da matéria assente esteve e está na posse dos AA. (que são aqui os réus J. e mulher, 1.ºs réus) desde 1978 e 1988 (esta data de 1988 diz respeito ao (…), comprado ao réu P. e mulher em Maio de 1988) que a vêm exercendo por si e antepossuidores, há mais de 30 anos, cultivando os campos e neles semeando erva, milho de silagem e tido o mais que tem vindo a ser de seu intresse, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, sem qualquer interregno e de boa fé.”
Temos, pois, em sede de conclusão e correndo o risco de repetição, que fisicamente o prédio reivindicado não existe, existindo sim prédios que deste são distintos onde o mesmo sempre se integrou.».
Dúvidas não subsistem, portanto, em como o prédio vendido na execução fiscal referida em A) dos factos provados não existia fisicamente (pelo menos) às datas da penhora e da celebração do contrato de compra e venda cuja declaração de nulidade vem peticionada.
Ocorre venda de coisa alheia quando o objeto vendido pertença a terceiro, que não figura no título como transmitente ou como executado (em caso de venda realizada no âmbito em processo de execução fiscal, como sucede no caso vertente). Nestas circunstâncias, o vendedor carece de legitimidade para proceder à venda, a qual é nula, por determinação legal (cfr. artigo 892.º do CC). Só assim não será se as partes considerarem que a venda fica sujeita ao regime da venda de bens futuros, o que pressupõe que «o contrato de realiza na perspetiva (suposição) de que ela venha a entrar no património do alienante.» - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. II, 3.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Lda, pág. 191.
No caso em análise, nada nos autos nos permite inferir ou suspeitar que as partes no contrato tivessem tal perspetiva de o imóvel penhorado e vendido vir a integrar o património do executado – pelo contrário, tudo indicia que partiram do pressuposto de que a coisa objeto do contrato integrava já tal património. Não obstante esta convicção das partes, o certo é que o imóvel não tem existência física, porquanto se sobrepõe em parte de outros dois prédios que são pertença de terceiro à execução fiscal.
Ora, por um lado, não podemos, desde logo por razões de ordem lógica, admitir como “alheia” ou “pertencente a terceiro” uma coisa que não tem existência física, pois que o que não existe não é passível de integrar o património de quem quer que seja. Por outro lado, nada indicia que as partes tivessem perspetivado que a coisa vendida viria a entrar no património do executado.
Nesta medida, não estamos face a uma venda de coisa alheia, nem a uma venda de coisa futura, impondo-se concluir que a sentença recorrida enferma do erro de julgamento que lhe vem apontado, por errada qualificação jurídica dos factos apurados nos autos.
Dispõe o n.º 1 do artigo 280.º do CC que é «nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável», assim definindo, segundo a sua própria epígrafe, os requisitos do objeto negocial.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela é «fisicamente impossível o objecto do negócio que envolve uma prestação impossível no domínio dos factos: entregar a lua, transportar uma pessoa de um lugar para outro a uma velocidade que os meios de transporte estejam longe de ter atingido na altura da execução do contrato» e é «legalmente impossível, por ex., o objecto da promessa de celebração de um contrato que o direito não consente, da promessa de venda de uma coisa do domínio público» - cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, 1987, Coimbra Editora, Lda, pág. 258.
Mota Pinto distinguia entre o objecto imediato ou conteúdo (efeitos jurídicos a que o negócio tende) e o objecto mediato ou stricto sensu (consistente no quid sobre que incidem os efeitos do negócio), sustentando que o artigo 280.º do CC utilizava a expressão objecto negocial num sentido complexivo, abrangendo quer o conteúdo ou efeitos jurídicos do negócio, quer o objecto propriamente dito, ou em sentido estrito – sobre inexistência de elementos essenciais dos negócios jurídicos e exigências positivas codificadas do objeto negocial, cfr. Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Lda, 3.ª edição atualizada, 1988, pp. 383-384, 547-551, 608-610. Muito sintética, todavia mais assertivamente, no que à teoria do objeto tange, cf. M. S. D. Neves Pereira, Introdução ao Direito e às Obrigações, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 2019, p. 363, não deixando, todavia, de jure condito, de atender ao direito positivo do artigo 280.º do CC, cf. op. cit. pp. 347 e 364.
Já Menezes Cordeiro, depois de especificar que o artigo 280.º do CC estatui sobre o conteúdo e o objecto, propriamente dito, do negócio, defende que «o conteúdo do negócio jurídico deve articular soluções possíveis, quer num prisma físico, quer num prisma jurídico». Em termos físicos, haverá impossibilidade quando o negócio se reporte a uma coisa inexistente ou inalcançável pelas partes: haverá, ainda, impossibilidade quando o negócio se reporte a uma actuação humana que não possa, objectiva e absolutamente ser levada a cabo. Em termos jurídicos, a impossibilidade ocorre quando o objecto se analise num efeito jurídico não permitido. A possibilidade será «física ou jurídica consoante o objecto contenda, ontologicamente, com a natureza das coisas ou com o Direito» - Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, Almedina, 2ª edição, págs. 479 e seguintes.
No caso em análise, como já referimos, resulta de duas sentenças proferidas nos Tribunais comuns (das quais já foi dada a devida nota) que o prédio objeto da penhora e venda na execução fiscal era inexistente à data de qualquer destes atos, não se tendo apurado se alguma vez terá existido. Ademais, tendo em conta que a realidade física com as configurações do imóvel penhorado não existe no território, estamos perante um objeto negocial objetivamente impossível.
Acresce que não se afigura alcançável pela vendedora (AT) o destacamento do prédio com as configurações do imóvel penhorado pois que, para esse objetivo, haveria de conseguir comprar outros dois prédios propriedade de terceiros particulares, o que não integra as suas atribuições (cfr. artigo 2.º da Lei n.º 118/2011, de 15/12). Nesta medida, temos que o objeto negocial também é subjetivamente impossível ou, no limite, legalmente impossível.
Concluímos, assim, que o contrato de compra e venda aqui em causa tem um objeto (o que afasta uma eventual inexistência do contrato por falta de um dos seus requisitos essenciais) impossível, quer no plano físico (objetiva e subjetivamente) quer no plano legal, o que determina a respetiva nulidade, por força do artigo 280.º do CC, a qual deve ser declarada.
De acordo com o estatuído no artigo 289.º, n.º 1, do CC «Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.».
Deve, pois, ser a A. restituída do preço que pagou e condenada a AT no respetivo pagamento, acrescido de juros de mora às taxas legais sucessivamente vigentes, conforme determinado na sentença recorrida.
Nesta conformidade, importa manter a sentença recorrida, embora com a presente fundamentação, e julgar improcedente este recurso.


4. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente e manter a sentença recorrida com a presente fundamentação.

Sem custas por delas estar isento o Recorrente.

Porto, 5 de março de 2020



Maria do Rosário Pais
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