Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00700/22.4BEPNF-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:08/04/2023
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:PERICULUM IN MORA; CARÊNCIA ECÓNOMICA;
FUMUS BONI IURIS; ACUSAÇÃO GENÉRICA;
PONDERAÇÃO DE INTERESSES
Sumário:
I - Sendo a disponibilidade económica efetiva do Requerente suscetível de indiciar uma situação de grave carência económica, que põe em risco a satisfação das suas necessidades pessoais e elementares e do seu agregado familiar ou que determina um drástico abaixamento do nível de vida do requerente e seu agregado familiar, justifica-se a verificação do requisito de periculum in mora.

II- O circunstancialismo fáctico que constitui o “objecto confesso” do processo disciplinar tem que ter a concretude suficiente para poder ser contraditado e dele se poder defender o arguido.

III – Apresentando-se distintivo que não avulta da acusação a indicação com clareza do relevante circunstancialismo respeitante do (i) tempo e (ii) lugar dos eventos imputados ao arguido, deve concluir-se no sentido da violação do disposto no artigo 213.°, n.° 3, da LGTFP, padecendo, por isso, o procedimento disciplinar visado nos autos de nulidade insuprível.

IV- A eventual execução do ato suspendendo não retira o cunho e relevância da decisão disciplinar punitiva, nem envolve o perdão de quaisquer montantes a devolver ou repor por indevidamente recebidos.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
* *
I – RELATÓRIO
1. O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Requerido nos autos à margem referenciados de PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DE ATO ADMINISTRATIVO em que é Requerente «AA», vem interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada nos autos, que julgou “(…) procedente a presente ação cautelar e, em consequência, determin[ou] a suspensão da decisão que aplicou ao Requerente a sanção disciplinar de demissão (…)”.
2. Alegando, o Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)
1. O Ministério da Justiça não se conforma com a sentença recorrida que julgou procedente a ação cautelar e, em consequência, determinou a suspensão da decisão que aplicou ao Requerente a sanção disciplinar de demissão.
2. Recorre-se da sentença, por erro de julgamento, pelas razões a seguir indicadas:
Quanto ao periculum in mora
3. Não se olvida que a ausência de remuneração mensal tem efeitos na vida do Requerente e da sua família, no entanto, no tocante às dificuldades económicas alegadas pelo Requerente (perda da remuneração mensal), como fundamento do não decretamento da providência cautelar em análise, salienta-se que a condição económica não foi, nem é, erigida pela lei como condição de aplicabilidade da sanção disciplinar ou da sua exequibilidade (cf. entendimento perfilhado pelo STA no acórdão de 06.02.2014, proferido no Processo n.° 1307/13);
4. Por outro lado, uma situação de facto consumado decorrente da atuação da Administração reclamaria que se não mostrasse viável a reintegração da esfera jurídica do Requerente, com referência à situação jurídica e de facto em que aquele se encontrava no momento da respetiva lesão. Ora, uma eventual sentença anulatória do ato em crise teria como efeitos impor à Administração, neste caso, ao Requerido, a reconstituição da situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado (n.° 1 do artigo 173.° do CPTA), pelo que, nessa hipotética situação, o Requerente seria reembolsado do quantitativo correspondente às remunerações que deixou de auferir por força do ato anulado, acrescido dos respetivos juros de mora, não se perdendo, assim, o efeito útil da aludida sentença anulatória;
5. Pelo que se deveria ter considerado pela não verificação do requisito do periculum in mora;
6. Mas, ainda que se verificasse o periculum in mora, o que não se concebe, não estariam preenchidos cumulativamente os restantes pressupostos da providencia cautelar.
Quanto ao fumus boni iuris
7. Considera-se na sentença recorrida que a acusação deveria ter especificado as datas em que a prestação de serviços de segurança privada tiveram lugar.
8. No entanto, conforme se explicitou na Oposição, deveria ter-se em conta que, o processo disciplinar em causa teve como fundamento o Processo de Inquérito n.° 1254/18...., que corria termos no Juízo de Instrução Criminal de Marco de Canavezes, processo que veio a ser apensado ao também Processo de Inquérito n.° 526/17...., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este;
9. E que nos referidos processos de inquérito culminaram com a indiciação de reclusos e dos guardas prisionais visados no processo disciplinar em causa, entre eles o ora Requerente, pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado e corrupção passiva, tendo ali sido aplicadas as medidas de coação que compreenderam a prisão preventiva e a suspensão do exercício de funções e proibição de permanecer ou frequentar o EP ..., cujo conhecimento também foi público;
10. E não obstante o Requerente ter sido absolvido da prática dos crimes de que vinha indiciado no acórdão de 23 de dezembro de 2021 proferido no processo criminal n.° 526/17...., é certo que nesse processo criminal foi produzida prova de factos com contornos disciplinares e que respeita à acumulação de funções públicas com funções privadas pelo Requerente e sem para tal estar devidamente autorizado, factos pelos quais veio a ser acusado e punido disciplinarmente no processo disciplinar em análise;
11. Com recurso à extensa prova documental e testemunhal produzida nesse processo extraíram-se os indícios de violação de deveres funcionais diferenciados daqueles que estavam em causa na investigação criminal e que culminou com a elaboração da acusação no processo disciplinar;
12. Foi com base na aludida prova, posteriormente junta ao PA pelo Instrutor do processo, que na acusação, elaborada em 24 de fevereiro de 2022, se fixou o thema decidendum, imputando ao Requerente as condutas melhor descritas nos seus artigos 54.° a 63.° e que se prendem com o facto de aquele ter acumulado funções privadas com as suas funções de trabalhador público, sem autorização para o efeito, e que consistiram na prestação de serviços de segurança privada de proteção pessoal a «BB» em eventos ocorridos em datas não concretamente apuradas, mas seguramente anteriores a maio de 2014, em ... no Karting, em ... no Estádio ... e ainda noutras localidades não concretamente apuradas, assim incorrendo na prática de infração disciplinar por incumprimento do disposto no artigo 6.° do EPCGP, nos artigos 19.°, 22.° e 23.° da LTFP (estes com correspondência nos artigos 25.°, 26.°, 28.° e 29.° da Lei 12-A/2008, de 27 de fevereiro, em vigor à data da prática dos factos), e ainda por violação dos deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo, previstos nas alíneas a) e e) do n.° 2 do artigo 73.° da LTFP. Sendo que, por factos similares aos descritos já o Requerente havia sido punido disciplinarmente com a pena de 60 dias de suspensão, no processo disciplinar n.° ...4;
13. A acusação advém, portanto, do elenco probatório carreado na fase de instrução, fase que fixa o thema decidendum disciplinar, de acordo com o previsto no n.° 3 do artigo 213.° da LTFP, que estabelece que “a acusação contém a indicação dos factos integrantes da mesma, bem como das circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática da infração, bem como das que integram atenuantes e agravantes, acrescentando a referência aos preceitos legais respetivos e às sanções disciplinares aplicáveis”;
14. Pelo que, confrontando a citada norma legal com o teor da acusação, verifica-se que todas as exigências legais foram cumpridas: os factos encontram-se descritos nas perspetivas de tempo, modo e lugar nos artigos 54.° a 63.° daquela peça, a conduta do Requerente foi qualificada no artigo 66.°, com a consequência prevista no artigo 69.°, as circunstâncias agravantes e atenuantes constam dos artigos 78.° a 81.°, tudo devidamente suportado nas disposições legais aplicáveis, constando ainda a sanção disciplinar abstratamente aplicável (demissão) do artigo 69.°, os motivos pelos quais se optou por essa cominação sancionatória e não outra, bem como os deveres funcionais violados;
15. Ao Requerente foram concedidas todas as garantias de defesa, consubstanciadas na notificação da acusação (que, apesar de não indicar datas concretas da prática dos factos, os situa como tendo ocorrido seguramente antes de maio de 2014), no exame do processo disciplinar, na apresentação da defesa escrita e na produção de prova testemunhal por aquele requerida;
16. De referir, que o direito de audiência e defesa em processo disciplinar visa, essencialmente, garantir que o trabalhador/arguido não seja condenado sem que previamente lhe seja assegurado o direito a defender-se dos factos que lhe são imputados e pelos quais se pretende sancioná-lo disciplinarmente, o que, no caso dos autos, se mostra devidamente assegurado;
17. Consequentemente, não verifica a nulidade da acusação a que se refere o n.° 1 do artigo 203.° da LTFP, uma vez que, e como já referido atrás, não só o Requerente teve oportunidade de se pronunciar acerca de todos os artigos da acusação, como também não se vislumbra qualquer situação de omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade;
18. Também o facto de a acusação não especificar as datas em que a prestação de serviços de segurança privada ocorreu poderá originar a nulidade da mesma, dado que situa os factos como tendo ocorrido seguramente antes de maio de 2014, em ... no Karting e em ... no Estádio ..., o que o Requerente não contesta;
19. Assim sendo, os alegados vícios imputados à acusação não poderiam proceder, ao contrário do decidido na sentença em recurso.
Da Ponderação de interesses
20. Acresce que relativamente à ponderação de interesses, considerou a sentença recorrida que “a provável procedência do processo principal, como se deixou vertido na apreciação do requisito do fumus boni iuris, determina a anulabilidade da decisão, pelo que, o alegado incumprimento dos deveres funcionais pelos quais foi punido disciplinarmente não pode sobrepesar na ponderação dos interesses em presença”.
21. Ou seja, considerando a apreciação do fumus boni iuris, desvalorizou-se a ponderação de interesses sem se ter em consideração que o Requerente foi punido por factos que suscitam especiais exigências de prevenção geral, concretamente, por ter exercido funções de segurança privada em acumulação com as suas funções públicas sem a necessária autorização e por um período alongado, seguramente superior a dois anos, acrescendo o facto de aquele já ter sido punido disciplinarmente por factos similares a estes e ainda assim não se ter coibido de voltar a prestar esse tipo de funções em situação de manifesta e total incompatibilidade;
22. O Requerente bem sabia que o exercício de funções públicas em acumulação com funções privadas carecia de prévia autorização e que as funções de segurança privada eram estatutariamente incompatíveis com as suas funções públicas de guarda prisional, além de já ter sido punido anteriormente, pela mesmo tipo de infração no processo disciplinar n.° ...4 (60 dias de suspensão, que cumpriu) e que não se mostrou, de todo, suficientemente dissuasora nem alterou a sua postura profissional nem a respetiva personalidade;
23. A gravidade dos factos, pela sua reiteração, a intensidade da culpa e o reflexo na imagem da DGRSP, coloca em causa a manutenção do vínculo de emprego público do Requerente, inviabilizando-a;
24. Assim, deveria considerar-se que a suspensão da eficácia do ato sancionatório lesa gravemente o interesse público, mantendo ao serviço um trabalhador que, reiteradamente, deu provas de não ter conhecimento suficientemente sólido das normas legais pelas quais se rege, ou tendo-o, não as respeita, podendo generalizar-se a convicção de que os comportamentos ocorridos e pelos quais o Requerente foi punido seriam desculpáveis e não suficientemente graves;
25. As repercussões de tal suspensão são, por isso, não apenas uma grave causa de perturbação no funcionamento da instituição, com reflexo na imagem e no prestígio da administração penitenciária, mas também, um fator de desestabilização do próprio Corpo da Guarda Prisional pela generalização no seu interior de que tais comportamentos não são suficientemente graves;
26. A suspensão da execução do ato em crise coloca ainda em causa os valores que o poder disciplinar pretende salvaguardar, designadamente, o de punir condutas que contendam com o regular funcionamento dos serviços e a imagem da instituição, neste caso, da DGRSP;
27. O interesse público em causa afigura-se de tal forma relevante que se sobrepõe a qualquer interesse particular do Requerente e, por conseguinte, não se devia deixar de reconhecer que os danos ou prejuízos para o interesse público que resultam da concessão da providência cautelar terão de prevalecer sobre o interesse/prejuízo que advém para o Requerente com a recusa da providência cautelar (…)”.
*
3. Notificado que foi para o efeito, o Recorrido não contra-alegou.
*
4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
*
5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito vertido no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.
*
6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre apreciar e decidir.
* *
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir é a de determinar se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance explicitados no ponto I) do presente aresto, incorreu em erro[s] de julgamento de direito.
9. É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
* *
III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
10. A matéria de facto pertinente é a dada como provada na sentença «sub censura», a qual aqui damos por integralmente reproduzida, como decorre do art. 663º, n.º 6, do CPC.
*
III.2 - DO DIREITO
*
11. Vem o presente recurso jurisdicional interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel editada em 20.04.2023, que - julgando verificados os legais requisitos de que depende a concessão da presente providência cautelar -, determinou a suspensão de eficácia do ato punitivo que aplicou ao Requerente, aqui Recorrido, a pena disciplinar de demissão.
12. Realmente, o Requerente intentou a presente providência cautelar, visando a suspensão de eficácia do acto do Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, datado de 06.06.2022, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
13. Para estribar a sua pretensão suspensiva, brevitatis causae, o Requerente invocou, em matéria de fumus boni iuris, a (i) prescrição da sanção disciplinar e a (ii) nulidade da acusação, por falta de concretização da data da alegada prática das infrações.
14. Relativamente ao periculum in mora, alegou, em suma, que o não decretamento da providência requerida produzirá prejuízos de difícil reparação, porquanto não tem outro local para morar, nem recursos financeiros para fazer face às despesas de alimentação, habitação, escolar e demais encargos indispensáveis ao seu agregado familiar, vivendo atualmente em solidariedade de amigos e familiares.
15. Ademais, aduziu que a concessão da presente providência não é lesiva do interesse público, nos termos do disposto no nº. 2 do artigo 120º do CPTA.
16. A decisão que a 1.ª Instância proferiu a este respeito tem, no mais essencial, o seguinte teor, que consideramos útil transcrever para a melhor compreensão da questão prévia acima elencada e que ora nos cumpre decidir: ”(…)
Subvertamos o exposto ao caso sub judice, de modo a aferir se os requisitos para a adoção da providência requerida se encontram preenchidos, na certeza de que, sendo tais requisitos cumulativos, a falta de preenchimento de um dos pressupostos obsta à sua concessão.
Quanto ao periculum in mora, o Requerente sustenta que é o único suporte financeiro da família, composta pela mulher, que se encontra desempregada, e três filhos, um deles em idade escolar, habitando em casa de função no bairro prisional de .... Refere que, por força da aplicação da pena de demissão, perdeu o seu salário, não tendo qualquer outra fonte de rendimento e recursos financeiros para fazer face às despesas de alimentação, habitação, escolar e demais encargos indispensáveis ao seu agregado familiar, vivendo atualmente em solidariedade de amigos e familiares.
O Requerido sustenta, por sua vez, que no tocante às dificuldades económicas alegadas pelo Requerente (perda de remuneração mensal), a condição económica não foi erigida pela lei como condição de aplicabilidade da sanção disciplinar ou da sua exequibilidade. Defende, ainda, que uma eventual sentença anulatória do ato em crise teria como efeito impor à Administração a reconstituição da situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado, pelo que o Requerente seria reembolsado do quantitativo correspondente às remunerações que deixou de auferir por força do ato anulado, acrescidas dos respetivos juros de mora, não se perdendo o efeito útil da sentença.
Vejamos.
O Requerente tem a categoria de guarda prisional da carreira do pessoal do Corpo da Guarda Prisional da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, tendo-lhe sido aplicada a sanção disciplinar de demissão, no âmbito do processo disciplinar n.° ... [cfr. pontos 1), 2) e 6) da matéria de facto indiciariamente provada].
Como resulta da factualidade julgada como indiciariamente provada a pontos 15) e 16), a única fonte de rendimento do Requerente é o seu salário enquanto guarda prisional, beneficiando atualmente de ajudas dos seus familiares e amigos para fazer face às despesas correntes.
O Requerente vive em união de facto com «CC» e, tem três filhos, um deles em idade escolar [ponto 12) da factualidade julgada como indiciariamente provada]. «CC» encontra-se em situação de desemprego desde 2020 [ponto 13) da factualidade indiciariamente provada].
Resultou também indiciariamente provado que o Requerente dispõe de uma casa de função que lhe foi atribuída enquanto membro do Corpo da Guarda Prisional e que, por força da demissão, tem de proceder à entrega [pontos 14) e 17) da factualidade julgada como provada].
Nos termos do art.° 182.°, n.° 4, da LGTFP, a sanção de demissão implica a perda de todos os direitos do trabalhador, salvo quanto à reforma por velhice ou à aposentação, nos termos e condições previstos na lei.
Atento o referido, resulta evidente que a sanção disciplinar de demissão, a ser executada, traduz-se, pelo menos, em prejuízos de difícil reparação, dado que o Requerente ficará privado da casa onde habita e se vê impossibilitado de fazer face às despesas correntes suas e do seu agregado familiar, dado que o seu salário é o único rendimento que assegura o sustento da sua família.
No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 15-11-2018, processo n.° 0229/17.2BELSB, quando aí se refere expressamente: «Tem-se como preenchido, no caso, o requisito do periculum in mora, na vertente dos prejuízos de difícil reparação, quando o Requerente, não dispondo de outros rendimentos para além do seu vencimento, deste se vê privado em decorrência da execução imediata da pena disciplinar suspendenda, pondo, assim, em risco, ou fazendo perigar, a satisfação de necessidades pessoais elementares, bem como a possibilidade do mesmo honrar compromissos assumidos».
Acresce que, ao contrário do que sustenta o Requerido, não é o facto de, no caso de ação principal ser julgada procedente, poder vir a ser reembolsado das remunerações que deixou de auferir por força do ato de demissão, acrescidas dos respetivos juros de mora, que conduz à não verificação de uma situação de periculum.
Isto porque, a perda do vencimento até à decisão da ação principal, impedindo o Requerente de manter o seu nível de vida, a sua habitação e de prover às necessidades básicas suas e do seu agregado familiar, não pode ser colmatada com o pagamento posterior dos vencimentos que auferiria no caso de a sanção vir a ser anulada.
Assim, a perda do rendimento mensal e da habitação é suscetível de originar prejuízos de difícil reparação, motivo pelo qual se considera verificado o requisito do periculum in mora.
Cumpre agora analisar o requisito do fumus boni iuris.
A este propósito, invoca o Requerente que a infração disciplinar se encontra prescrita, nos termos do n.° 1, do art.° 178.°, da LGTFP. Isto porque, segundo alega, os dois únicos eventos indicados na motivação da decisão de aplicação da pena disciplinar de demissão dizem respeito à «GALA AMC INVEST», que se realizou em 03-03-2013, e ao evento «...», em ..., realizado em 29-04-2013, pelo que, sendo os mesmos anteriores a 07-06-2013, data em que entrou em vigor a alteração da Lei que criminalizou a atuação de segurança privada (artigo 57.°, da Lei n.° 34/2013, de 16 de maio), o prazo de prescrição aplicável é de um ano e não de dez anos, como foi considerado na decisão final.
Refere ainda que, se os factos praticados pelo Requerente fossem passíveis de serem considerados infração penal, teriam de ter sido obrigatoriamente comunicados ao Ministério Público, nos termos do art.° 179.°, n.° 4, da LGTFP, o que não se verificou.
Por outro lado, defende que a acusação deve ser considerada nula, por violação dos artigos 161.°, n.° 2, alínea d), do CPA, 179.°, n.° 4 e 213.°, n.° 3, ambos da LGTFP, 283.°, n.° 3, alínea b), do Código de Processo Penal e 32.°, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que nesta os serviços de segurança privada são sempre referidos como praticados «em datas não concretamente apuradas, mas seguramente anteriores a maio de 2014», não estando concretizada a data da alegada prática das infrações.
Por seu turno, advoga o Requerido a improcedência do alegado quanto à prescrição da infração disciplinar, por a mesma ser suscetível de integrar, também, infração penal, aplicando-se o prazo de dez anos sem necessidade de participação criminal. Sustenta, ainda, que não se verifica a nulidade da acusação uma vez que o Requerente teve oportunidade de se pronunciar acerca de todos os artigos da acusação e não se vislumbra qualquer situação de omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade.
Aqui chegados, cumpre fazer uma análise perfunctória sobre a probabilidade de a pretensão formulada pelo Requerente vir a ser julgada procedente, sendo certo que, como se disse supra, o tribunal, em sede cautelar, limita-se a formular um juízo de verosimilhança, de aparência do direito.
Desde logo, e quanto aos termos em que deve ser elaborada a acusação, dispõe o art.° 213.°, n.° 3, da LGTFP, que «[a] acusação contém a indicação dos factos integrantes da mesma, bem como das circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática da infração, bem como das que integram atenuantes e agravantes, acrescentando a referência aos preceitos legais respetivos e às sanções disciplinares aplicáveis».
Assim, da acusação deve constar o núcleo de factos que são imputáveis ao trabalhador, circunstanciados no tempo, modo e lugar, bem como o conjunto de circunstâncias agravantes e atenuantes, devendo ainda proceder-se ao seu enquadramento jurídico com a indicação dos preceitos legais que legitimam a punição.
E, decorre do preceituado no art.° 203.°, n.° 1, da LGTFP, que «[é] insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do trabalhador em artigos de acusação, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade».
Ora, a garantia de audiência e defesa do trabalhador significa que o mesmo tem o direito de pronúncia sobre os factos que lhe são imputados e sobre os quais se pretende sancioná-lo em termos disciplinares.
Contudo, «o direito de pronúncia não se basta com a notificação da acusação, exigindo ainda que essa mesma acusação seja formulada em termos que permitam ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados, de forma a poder aceitar a sua veracidade ou contraditá-los, seja negando a sua ocorrência, seja dando uma outra e diferenciada versão do sucedido» (cfr. Paulo Veiga Moura e Cátia Arrimar, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.a edição, 2014, pág. 588).
Nesta senda, «a acusação deve primar pela clareza, congruência e suficiência dos factos nela descritos, pelo que também envolverá uma violação do direito fundamental de audiência, com a consequente nulidade do procedimento disciplinar, uma acusação deduzida em termos obscuros, que não permita ao acusado saber o que lhe vai ser imputado, ou em termos insuficientes, caracterizada pelo emprego de “fórmulas passe- partout”, que não compreendem os factos indispensáveis para alicerçar o juízo valorativo formulado ou que são imprescindíveis para o arguido poder tomar uma posição detalhada sobre os mesmos» (op. Cit. pág. 589).
Trata-se de proporcionar ao acusado o direito de apresentar a sua defesa, à luz das garantias previstas no art.° 32.°, n.° 10, e art.° 269.°, n.° 3, ambos da CRP, tanto no sentido da demonstração de que as infrações não se verificaram, como no da revelação de que as circunstâncias de facto apuradas não representam nenhum ilícito censurável (neste sentido, vide Manuel Leal Henriques, Procedimento Disciplinar, 3a edição, pág. 213).
Ao mesmo tempo, uma acusação clara e precisa obriga o órgão competente para a aplicação da sanção disciplinar a uma mais cuidada e ponderada análise de todo o circunstancialismo fáctico em discussão.
Por isso, a acusação tem de ser formulada através da articulação de factos concretos e precisos, sem imputações vagas, genéricas ou abstratas, devendo enunciar as circunstâncias de modo, tempo e lugar das infrações disciplinares, sob pena de nulidade insuprível do procedimento e, portanto, de anulabilidade da decisão punitiva (entre tantos, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo n.° 01048/00, de 02-06-2005).
No caso sub judice, no âmbito do processo disciplinar n.° ..., instaurado contra o Requerente, o mesmo foi acusado da violação dos deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo, previstos no art.° 3, n.° 2, als. a) e e) e n°s 3 e 7, do Estatuto Disciplinar (Lei n.° 58/2008, de 9 de setembro), com idêntica redação no art.° 73.°, n.° 2, alíneas a) e e) e n°s 3 e 7, da LGTFP deveres estes a que está vinculado por força dos artigos 5.° e 7.° do Estatuto do Pessoal do Corpo da Guarda Prisional (Decreto-lei n.° 3/2014, de 9 de janeiro).
Para sustentar a violação dos deveres mencionados, na acusação é referida a seguinte factualidade:
«(…)
54.° Desde data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 2014 que «AA» exerceu funções privadas, sem para tal estar devidamente autorizado para as acumular com funções públicas, que em regra são exercidas em regime de exclusividade.
55.° As funções públicas em acumulação com funções privadas, pois mantinha o seu exercício funcional de Guarda Prisional, consistiram em prestar serviços de segurança privada de proteção pessoal a «BB» em eventos ocorridos, também em datas não concretamente apuradas, mas seguramente anteriores a maio de 2014, em ... no Karting, em ... no Estádio ... e noutras localidades não concretamente apuradas.
56.° Ao exercício destas funções privadas de segurança e proteção pessoal que se prolongaram por um período alargado, mas seguramente superior a dois anos, assistiram os também Guardas Prisionais, «DD» e «EE» que também exerciam, em conjunto, as mesmas funções e para o mesmo beneficiário [«BB»] que veio a ser recluído em 22/05/2014, associadamente ainda com um elemento da PSP, «FF». (...)» [ponto 4) da factualidade indiciariamente provada].
Do exposto decorre que os factos imputados ao Requerente dizem respeito ao exercício de funções de «segurança privada de proteção pessoal a «BB»» em eventos ocorridos «em datas não concretamente apuradas, mas seguramente anteriores a maio de 2014, em ... no Karting, em ... no Estádio ... e noutras localidades não concretamente apuradas» [artigo 55.° da acusação].
Assim, da acusação resulta que os factos pelos quais o Requerente vem acusado dizem respeito ao exercício das funções de segurança privada a «BB» em eventos cujas datas de realização não se encontram determinadas, sendo apenas referido que tais eventos são «seguramente anteriores a maio de 2014».
Contudo, tal como resulta do art.° 213.°, n.° 3, da LGTFP, é necessário que a acusação contenha a «indicação dos factos integrantes da mesma, bem como das circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática da infração».
Ora, na acusação não é concretizado o momento temporal em que terão ocorrido cada um dos eventos em relação aos quais o Requerente vem acusado de exercer funções privadas de proteção pessoal a «BB» e que fundamentaram a aplicação da sanção disciplinar de demissão.
Ademais, na acusação, além do instrutor do processo disciplinar se referir aos eventos realizados «em ... no Karting, em ... no Estádio ...», sustenta que o exercício de funções privadas de proteção pessoal a «BB» ocorreu «noutras localidades não concretamente apuradas», localidades estas que não surgem identificadas nem são referidas as circunstâncias de tempo em que as funções terão sido exercidas.
Acresce que, ao referir-se que os eventos em relação aos quais foi exercida a segurança privada ocorreram em datas não concretamente apuradas, «mas seguramente anteriores a maio de 2014» e que o «exercício destas funções privadas de segurança e proteção pessoal que se prolongaram por um período alargado, mas seguramente superior a dois anos» [artigo 56.° da acusação], constata-se que o lapso temporal referido é muito abrangente, podendo os eventos ter ocorrido, por hipótese, há mais de vinte anos, sendo impossível concluir em que momento os mesmos sucederam, designadamente aqueles que se realizaram em «localidades não concretamente apuradas».
Importa salientar que, uma vez que a prestação de serviços de segurança privada de proteção pessoal a «BB» foi, segundo a acusação, prestada em eventos, torna-se necessário que a acusação especifique em que datas os mesmos tiveram lugar, sendo que a referência ao momento em que «BB» foi recluído torna-se insuficiente à luz das exigências legais que resultam da LGTFP.
Assim, uma vez que a imputação que é feita ao Requerente diz respeito a eventos em que o mesmo prestou as funções de segurança privada, à luz do que decorre do art.° 213.°, n.° 3, da LGTFP, era necessário que os mesmos estivessem circunstanciados no tempo, de modo a que fosse possível ao Requerente defender-se cabalmente, demonstrando-se insuficiente a referência a «(...) datas não concretamente apuradas, mas seguramente anteriores a maio de 2014» por não dizer respeito à data dos eventos em concreto.
Como reiteradamente se procurou demonstrar, o trabalhador, enquanto tal, tem de saber, de forma clara e concreta, os factos de que é acusado de molde a poder apresentar defesa pertinente a esses mesmos factos, quer provando que os não praticou, quer demonstrando que não se justifica a aplicação de sanções por não constituírem infrações disciplinares.
Assim, a referência ao momento em que os eventos tiveram lugar torna-se determinante para o exercício do direito de defesa do Requerente, razão pela qual, não estando estes eventos devidamente circunstanciados, com a clareza que se impunha, numa análise perfunctória, conclui-se que se mostra violado o disposto no art.° 213.°, n.° 3, da LGTFP.
Assim, estando em causa o direito de defesa do trabalhador, o procedimento disciplinar padece de nulidade insuprível, nos termos da primeira parte do n.° 1.°, do art.° 203.°, da LGTFP, pelo que é provável a procedência da ação principal.
Deste modo, atento o invocado pelo Requerente no requerimento inicial, está verificado o requisito do fumus boni iuris.
Verificados os requisitos do periculum in mora e do fumus boni iuris, importa proceder à ponderação dos interesses em presença, à luz do que dispõe o art.° 120.°, n.° 2, do CPTA.
O Requerente sustenta que a suspensão da execução do ato em crise não lesa o interesse público, não causa perturbação, não coloca em risco a ordem e segurança no estabelecimento prisional, nem afeta a boa imagem da instituição.
A este propósito, o Requerido, na oposição e resolução fundamentada, sustenta especiais razões de interesse público, uma vez que «o requerente foi punido por factos que suscitam especiais exigências de prevenção geral, concretamente, por ter exercido funções de segurança privada em acumulação com as suas funções públicas sem a necessária autorização e por um período prolongado, (...), acrescendo o facto de aquele já ter sido punido disciplinarmente por factos similares a estes e ainda assim não se ter coibido de voltar a prestar esse tipo de funções (...)».
Refere ainda que o «requerente não revelou possuir conhecimento suficientemente perfeito dos seus deveres funcionais, nomeadamente dos deveres de prossecução do interesse público e de zelo (...)» e que a «gravidade dos factos, pela sua reiteração, a intensidade da culpa e o reflexo na imagem da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), coloca em causa a manutenção do vínculo de emprego público do Requerente, inviabilizando-a», pelo que a «suspensão da eficácia do ato sancionatório lesaria gravemente o interesse público, mantendo ao serviço um trabalhador que, reiteradamente, deu provas de não ter conhecimento suficientemente sólido das normas legais pelas quais se rege, ou tendo-o, não as respeita».
Advoga, também, que a suspensão da eficácia do ato «causaria perturbação no funcionamento da instituição, podendo generaliza-se a convicção de que os comportamentos ocorridos e pelos quais o Requerente foi punido seriam desculpáveis e não suficientemente graves», constituindo ainda «um fator de desestabilização do próprio Corpo da Guarda Prisional pela generalização no seu interior de que tais comportamentos não são suficientemente graves».
Vejamos.
Na ponderação dos interesses em presença, como supra se procurou demonstrar, o Tribunal procede à ponderação equilibrada dos referidos interesses, balanceando os danos/prejuízos que a atribuição ou a recusa da providência possa envolver para os interesses contrapostos.
Assim, só quando as circunstâncias do caso concreto revelarem a existência de uma lesão do interesse público que justifique a qualificação de grave e se considere que essa qualificação deve prevalecer sobre os prováveis prejuízos causados ao Requerente é que se impõe o indeferimento do pedido de suspensão do ato.
Não cremos que a alegação do Requerido justifique o não decretamento da providência.
Não se descortinam, mormente, em termos de exigências de prevenção geral e de prestígio e imagem da administração penitenciária que ocorra, em concreto, uma necessidade que imponha a execução imediata da decisão disciplinar punitiva de demissão ainda antes de estabilizada e decidida, com trânsito em julgado, a legalidade ou não da mesma.
É certo que os factos que são imputados ao Requerente revestem, caso se afirmem na ordem jurídica, de relevância na imagem e no prestígio da Administração penitenciária, não podendo aceitar-se atitudes que se revelem contrárias às exigências e padrões de comportamento que devem nortear todos aqueles que desempenham funções de serviço público, mais concretamente, como guardas prisionais.
Contudo, não é a suspensão da execução da decisão disciplinar de demissão que lhe retira tal importância, tanto mais que é do conhecimento geral, designadamente, do Corpo de Guarda Prisional, que uma vez proferida a decisão final na ação principal e transitada em julgado, caso seja julgada improcedente, proceder-se-á à imediata reposição da legalidade em toda a sua plenitude, designadamente, com a privação do exercício de funções, assegurando-se que a sanção em causa cumpre as exigências de prevenção geral.
Ou seja, se a ação principal improceder, a suspensão de eficácia apenas determinará um retardamento na execução da sanção disciplinar.
Assim, o juízo de reprovação inerente à decisão disciplinar de demissão constitui um claro sinal para os demais funcionários e todos que tenham conhecimento da referida sanção das consequências disciplinares de comportamentos como os que alegadamente terão ocorrido.
Como se refere no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo n.° 00265/11.2BEVIS, de 20-01-2012, «Muitas vezes os desejados efeitos de prevenção estão tão ou mais dependentes da publicidade dada à sanção do que do momento do seu cumprimento».
Importa ainda notar que os factos pelos quais o Requerente foi punido no processo disciplinar n.° ...4, remontam a 2003, e a sanção foi aplicada em 2006, tendo já decorrido quase 20 anos desde a prática dos factos referidos, pelo que não se pode afirmar uma reiteração dos factos gravemente atentatória do interesse público.
Saliente-se ainda que, a provável procedência do processo principal, como se deixou vertido na apreciação do requisito do fumus boni iuris, determina a anulabilidade da decisão, pelo que, o alegado incumprimento dos deveres funcionais pelos quais foi punido disciplinarmente não pode sobrepesar na ponderação dos interesses em presença.
Já a imediata execução do ato determinará que o Requerente fique privado dos vencimentos e da casa que lhe foi afeta por pertencer ao Corpo da Guarda Prisional, pelo que, não dispondo de outros rendimentos além daquele que é o seu vencimento, fica impedido de assegurar o seu sustento e do seu agregado familiar.
Ou seja, no caso concreto, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, é de concluir com segurança que a suspensão de eficácia do ato não causa ao interesse público um dano superior ao que resulta da sua recusa, pelo que o n.° 2 do art.° 120.°, do CPTA, não obsta a que seja decretada a providência.
Nesta medida, considera-se estarem verificados os pressupostos necessários de que depende o decretamento da providência.
17. Sintetizando a motivação de direito que se vem de transcrever, dir-se-á que foi a ponderação de que (i) a perda do rendimento mensal e habitação determinadas pela execução do ato suspendendo era susceptível de originar prejuízos de difícil reparação; de que (ii) a acusação disciplinar não concretizava o momento temporal em que terão ocorrido os eventos imputados ao arguido, aqui Recorrido, nessa medida, mostrando-se violado o direito de defesa do trabalhador; (iii) e que se impunha uma majoração acrescida do interesse particular face ao interesse público, que justificou a verificação dos legais pressupostos de que depende a concessão da tutela cautelar requerida.
18. Vem agora o Recorrente, por intermédio do recurso sub juditio, colocar em crise a decisão judicial assim promanada.
19. Realmente, patenteiam as conclusões alegatórias que o Recorrente vem afrontar a posição sustentada pelo Tribunal a quo quanto à decidida verificação do requisitos de (i) periculum in mora, de (ii) fumus boni iuris e da (iii) ponderação de interesses, impetrando-lhe erro[s] de julgamento de direito.
20. Mas, adiante-se, desde já, sem razão.
21. Efetivamente, cotejando a constelação argumentativa da sentença recorrida com a natureza do alegado pelo Recorrente no âmbito do presente recurso jurisdicional, entendemos ser a conclusão de que a decisão judicial recorrida não merece o menor reparo, encontrando-se certeiramente justificada.
22. Na verdade, e no tocante ao periculum in mora, impera salientar que é jurisprudência assente que, apesar de facilmente quantificável o prejuízo pecuniário resultante da privação de vencimentos, o mesmo é de reputar irreparável ou de difícil reparação, se essa privação puser em risco a satisfação de necessidades pessoais elementares, ou mesmo se determinar um drástico abaixamento do nível de vida do requerente e seu agregado familiar [cfr. Ac. STA de 27.02.02, rec. 174/02, de 13.01.05, rec. 1273/04, de 6/02/97, rec. 41.453, de ac. de 30/10/96, rec. 40.915, de 11.7.02, rec. 955/02-11, de 16.5.95, rec. 37542, de 1.6.95, 37630, de 12.10.95, rec. 38552A e 6.2.97, rec. 41453].
23. Para averiguar se no caso concreto a privação do vencimento durante a pendência da acção principal constitui um dano irreversível, por colocar em risco a satisfação de necessidades pessoais elementares ou mesmo despesas que não se afastem significativamente do padrão de vida médio de famílias da mesma condição social, não é sequer necessário atender às despesas mensais para alimentação, vestuário e transportes.
24. O fundamental é que a execução do acto suspendendo não afete o direito a uma existência condigna, concretizado através da existência de um salário mínimo capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e da sua família [cfr. art. 1º e 59º do CRP].
25. E se o direito à existência condigna pode ser aferido em função de um mínimo de salário, julga-se adequado ter por ponto de referência o salário mínimo nacional, reconhecendo-se nele o «standard mínimo de vida» que confere segurança contra o perigo de mora processual.
26. Volvendo ao caso em análise, verifica-se que o Recorrido e respectivo agregado familiar - composto por «GG» e por três filhos - têm disponível mensalmente exclusivamente o vencimento daquele, habitando em casa de função lhe foi atribuída enquanto membro do Corpo da Guarda Prisional [cfr. pontos 12), 13) 14), 15) e 16) do probatório].
27. Numa situação destas, é de manifesta evidência que, se o Recorrido deixar de percecionar o seu vencimento mensal, o mesmo e o seu agregado familiar deixarão de ter qualquer forma de subsistir, visto que, para além de não disporem onde morar, não têm outras formas de rendimento que lhe possibilitem a sua sobrevivência económica.
28. Assim, caso não seja decretada a providência requerida, o Recorrido e respetivo agregado familiar sofrerão prejuízos de difícil reparação, pois que, sendo privados do rendimento que aquele aufere, ficarão numa situação de grande e grave carência económica que põe em risco a satisfação de necessidades pessoais elementares ou que determina um drástico abaixamento do nível de vida do Recorrido e seu agregado familiar, o que justifica a verificação do requisito de periculum in mora.
29. O que conduz à constatação que, neste particular conspecto, o julgamento operado pelo Tribunal a quo mostra-se bem realizado, nada havendo a objetar.
30. Idêntica conclusão é atingível no domínio do requisito do fumus boni iuris.
31. Na verdade, dispõe o artigo 203º, nº.1 da LGTFP que constitui nulidade insuprível a falta de audiência do arguido em artigos de acusação, bem como a que resulte da omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade.
32. Por sua vez, o artigo 213.°, n.° 3, da LGTFP estatui que a acusação contém a indicação dos factos integrantes da mesma, bem como as circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática da infração e das que integram atenuantes e agravantes, acrescentando sempre a referência aos preceitos legais respetivos e às sanções disciplinares aplicáveis.
33. A este propósito, a título ilustrativo, cita-se o expendido por este Tribunal Central Administrativo do Norte, no aresto proferido em 14.12.2012, no processo 00493/06.2BECBR, que apesar de respeitar ao Estatuto Disciplinar de 1984, tem plena aplicação no Estatuto Disciplinar aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 09/09: “(…)
XIII. Dispõe o art. 42.º do ED que é “… insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do arguido em artigos da acusação nos quais as infrações sejam suficientemente individualizadas e referidas aos correspondentes preceitos legais, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade ...” (n.º 1) e que as “… restantes nulidades consideram-se supridas se não forem reclamadas pelo arguido até à decisão final …” (n.º 2), sendo que resulta do n.º 4 do art. 59.º daquele mesmo Estatuto que a “… acusação deverá conter a indicação dos factos integrantes da mesma, bem como das circunstâncias de tempo, modo e lugar da infração e das que integram atenuantes e agravantes, acrescentando sempre a referência aos preceitos legais respetivos e às penas aplicáveis …”.
XIV. Deriva, clara e inequivocamente, do quadro legal acabado de reproduzir a afirmação de que em matéria de direito sancionatório importa respeitar ou observar o princípio de que ninguém pode ser condenado/sancionado sem que previamente lhe tenha sido facultado todas as garantias ou meios de defesa de molde a que esta se faça sem debilidades ou constrangimentos.
XV. Nas palavras de Marcello Caetano a "... acusação deduz-se por artigos para tornar mais fácil a defesa. Cada artigo deve conter um facto imputado ao arguido, indicado «precisa e concretamente, com todas as circunstâncias de modo, lugar e tempo (...). (…) A acusação deve ser tal que o acusado inocente a possa cabalmente destruir: sem imputações vagas, sem factos imprecisos, sem arguições genéricas. (...). (…) A redação dos artigos da acusação corresponde ao ato mais delicado do processo disciplinar, visto que neles se fixa a matéria de facto sobre a qual, daí por diante, versará a discussão processual e que pode servir de base à decisão final. (…) Factos não articulados não poderão mais ser invocados contra o arguido ou fundamentar a sua condenação. E têm-se por não articulados os factos apenas insinuados ou obscura, vaga ou confusamente apresentados. (...) A «audiência do arguido» (...) compreende várias formalidades essenciais, a saber: a) Formulação clara e precisa de artigos de acusação ..." (in: "Manual de Direito Administrativo", vol. II, 10.ª edição, págs. 845, 846 e 854).
XVI. O mesmo Professor refere ainda neste âmbito que para que o mesmo "... se efetive nos termos em que a lei a concede e é de direito natural garantir, torna-se necessário que a nota de culpa contenha 'toda a individuação', isto é, discriminados um por um e acompanhados de todas as circunstâncias de modo, lugar e tempo, os factos delituosos de que o empregado é arguido …" (in: "Do Poder Disciplinar", págs. 181 e 182).
XVII. Também a jurisprudência constante é no sentido de exigir que a acusação tem de ser formulada através da articulação de factos concretos e precisos, sem imputações vagas, genéricas, ou abstratas, devendo enunciar as circunstâncias conhecidas de modo, tempo e lugar e as infrações disciplinares que deles derivem, correspondendo a generalidade da acusação à falta de audiência do arguido geradora de nulidade insuprível [cfr. neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 22.05.2003 - Proc. n.º 038548, de 20.10.2004 - Proc. n.º 01012/02, de 25.01.2005 - Proc. n.º 729/04, de 31.10.2006 - Proc. n.º 01276/05, de 19.06.2007 - Proc. n.º 01058/06, de 13.02.2008 - Proc. n.º 0167/07 in: «www.dgsi.pt/jsta»] [vide ainda, neste sentido, Leal Henriques in: “Procedimento Disciplinar”, 1997, pág. 213; Acs. deste TCAN de 17.03.2005 - Proc. n.º 00071/04, de 02.06.2005 - Proc. n.º 01048/00-PORTO, de 22.06.2006 - Proc. n.º 00748/03-Porto, de 17.09.2009 - Proc. n.º 00233/00-Porto, de 23.09.2010 - Proc. n.º 01599/07.6BEPRT, in: «www.dgsi.pt/jtcn»].
XVIII. Com efeito, o arguido tem de saber de forma clara e concreta, os factos de que é acusado de molde a poder apresentar defesa pertinente a esses mesmos factos, quer no sentido de provar que os não praticou e como tal que é inocente, quer com o objetivo de demonstrar que não se justifica a aplicação de sanções por não constituírem infrações disciplinares.
XIX. Para além disso só uma enumeração precisa e concreta dos factos imputados ao arguido, bem como das circunstâncias atenuantes e das agravantes, permite o seu adequado enquadramento jurídico-disciplinar, com a correspondente qualificação.
XX. Como se pode ler no Ac. do STA de 20.03.2003 (Proc. n.º 369/02 in: «www.dgsi.pt/jsta») ao “… mesmo tempo, uma acusação assim lavrada, clara e precisa, acode à garantia de audiência e defesa prevista no art. 269.º, n.º 3, da CRP, enquanto, por outro lado, obriga o órgão competente para a censura a uma mais cuidada e ponderada análise de todo o circunstancialismo dos factos em discussão, de maneira a não bulir com direitos de personalidade e de imagem de seriedade e de dignidade que todo o indivíduo tem de si mesmo e pretende salvaguardar . (…) É preciso não esquecer que por vezes a simples dedução do libelo é suficiente para a destruição do sentimento de honradez e de nobreza de caráter que o outro até então via no acusado: mesmo inocentado, mesmo que o procedimento disciplinar termine em nada, mesmo que não seja feita censura no final do processo, a circunstância de alguém até esse momento ter sido tocado pela lâmina de uma acusação disciplinar pode não mais apagar os vestígios de algo que o seu ego ferido sempre considerará achincalhamento e labéu vergonhoso. (…) Daí, o extremo cuidado na elaboração dessa peça procedimental. (…) Por isso, a acusação deve expor os factos um a um, circunstanciados, precisos, concretizados pelo modus operandi, pela indicação cabal das circunstâncias de modo, lugar e tempo em que tenham ocorrido, sob pena de nulidade insuprível e, portanto, de anulabilidade da decisão punitiva (…). (…) Só não terá que ser assim se, independentemente da insuficiência factual e da generalidade com que a matéria de facto tiver sido narrada, tal não tiver impedido, frustrado ou limitado o acusado na compreensão, sentido e alcance da acusação. Em hipóteses assim, tendo ele podido defender-se, e defendendo-se, mostrando ter percebido as infrações imputadas, deixa de vingar a tese da nulidade procedimental daí resultante …”.
34. Debruçando-nos sobre o caso sujeito, cabe notar que a “Acusação” descreve em cada artigo os factos praticados pelo arguido, aqui recorrido, que se mostraram relevantes para apreciação e contextualização da sua conduta, sempre com a indicação do relevante circunstancialismo respeitante ao modo de (i) ocorrência da mesma.
35. Contudo, não avulta com clareza a indicação do relevante circunstancialismo respeitante do (ii) tempo e (iii) lugar dos eventos imputados ao arguido.
36. Realmente, e com reporte ao momento temporal, verifica-se que o arguido vem acusado de “(…) desde data não determinada, mas seguramente anterior a 2014, exerce[r] funções privadas, sem para tal estar devidamente autorizado para as acumular com funções públicas, que em regra são exercidas em regime de exclusividade (…)”.
37. Por sua vez, e já com referência ao lugar, vem invocado que as infrações tiveram lugar “(…) em ... no Karting, em ... no Estádio ... e noutras localidades não concretamente apuradas (…)”.
38. Esta descrição, como está bom de ver, não permite concretizar o momento temporal em que ocorreram as infrações imputadas, chegando a referir o “período anterior ao ano de 2014” como única “circunstância de tempo” caracterizadora do início das ditas infrações.
39. De igual modo, e pese embora a indicação das cidades de ... e ..., não procede à identificação das “demais localidades” onde ocorreu o exercício das funções privadas, o que é, manifestamente, insuficiente para efeito de caracterização do lugar da ocorrência dos factos.
40. Ora, o circunstancialismo fáctico que constitui o “objecto confesso” do processo disciplinar tem que ter a concretude suficiente para poder ser contraditado e dele se poder defender o arguido.
41. No caso versado, é nosso entendimento que as meras referências ao (i) “período anterior ao ano de 2014” e a (ii) “outras localidades não concretamente apuradas” não se afigura suficiente para situar no (i) tempo e (ii) lugar os factos ocorridos de modo a permitir não só uma adequada defesa por parte da então arguido, mas também para que o Tribunal a quo pudesse sindicar a decisão punitiva.
42. O que nos transporta, numa análise perfunctória, para evidência da violação do disposto no artigo 213.°, n.° 3, da LGTFP, padecendo, por isso, o procedimento disciplinar visado nos autos de nulidade insuprível.
43. Daí nada haja a objetar no que tange ao juízo decisório firmado pelo Tribunal a quo no domínio em análise.
44. Resta-nos, pois, a questão de saber se a ponderação de interesses efetuada na sentença recorrida é [ou não] susceptível de reparo por este Tribunal Superior.
45. A resposta é, manifestamente, desfavorável às pretensões do Recorrente.
46. Na situação trazida a juízo, os autos dão-nos conta que a pena disciplinar de demissão aplicada ao arguido visou sancionar, basicamente, o facto deste exercer concomitantemente funções de segurança privada, atividade incompatível com suas funções de membro do Corpo da Guarda Prisional sujeitas ao regime de exclusividade.
47. É evidente que este comportamento é propiciador de reflexos negativos para a credibilidade e boa imagem pública do serviço.
48. Todavia, na avaliação e ponderação do interesse público não pode deixar de se considerar que (i) já decorreram presumidamente mais de cinco anos sobre os factos praticados e (ii) que os presentes autos não dão nota da necessidade do Recorrente de suspender preventivamente o arguido na pendência do inquérito disciplinar.
49. Neste contexto, pese embora a gravidade da infração, temos, para nós, que a manutenção ao serviço do Recorrido pelo tempo em que durar a acção principal já não constitui uma lesão desmesurada do interesse público.
50. Acresce que, como se decidiu no aresto deste T.C.A.N., de 28.10.2010, tirado no processo nº. 1441/10.0BEPRT, “(…) a suspensão da execução em termos cautelares daquela decisão não retira o cunho e relevância da decisão disciplinar punitiva, tanto mais que os funcionários sabem que uma vez proferida decisão final transitada em julgado que confirme a legalidade da pena disciplinar imposta, proceder-se-á à imediata execução com a reposição da legalidade em toda a sua integralidade e plenitude e o funcionário visado verá sobre si recaírem as consequências do seu comportamento ilícito. No particular quadro circunstancial apurado a manutenção da requerente ao serviço ao abrigo de decisão cautelar não envolverá qualquer complacência, tolerância e/ou permissividade dos titulares do poder disciplinar perante condutas daquele género e para as quais não pode haver qualquer cedência ou concessão uma vez detetadas e sancionadas com decisão disciplinar firmada na ordem jurídica. Questão é que tal decisão punitiva se mostre consolidada juridicamente, na certeza de que as retribuições pagas ao Recorrido enquanto durar a suspensão cautelar da pena serão o correspetivo das funções que a mesma desempenhou nesse período no serviço, não envolvendo, pois, qualquer vivência a “expensas do erário público”, nem a suspensão cautelar envolve perdão de quaisquer montantes a devolver ou repor por indevidamente recebidos. Nessa medida, no caso vertente não se vê que exista grave prejuízo para o interesse público que imponha ou aconselhe o imediato cumprimento da pena, com o afastamento definitivo da requerente do exercício de funções ainda antes da decisão final do processo principal (…)”
51. Reiterando esta linha jurisprudencial, deve dar-se prevalência ao interesse do Recorrido sobre o interesse público, assim determinando a concessão da providência.
52. Deste modo, tendo também sido este o caminho trilhado no despacho recorrido, impera concluir que este fez correta subsunção do tecido fáctico apurado nos autos ao bloco legal e jurisprudencial aplicável, não sendo, por isso, merecedora da censura que o Recorrente lhe dirige.
53. E assim fenecem todas as conclusões deste recurso.
54. Consequentemente, deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, e mantida a decisão judicial recorrida.
55. Ao que se provirá no dispositivo.
* *
IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso, e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe e Notifique-se.
* *
Porto, 04 de agosto 2023,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Alexandra Alendouro
Celeste Oliveira