Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01546/21.2BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/30/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Paulo Ferreira de Magalhães
Descritores:DECRETO-LEI N.º 117/2010, DE 25 DE OUTUBRO;
DIRECTIVA 98/34/CE;
COMBUSTÍVEIS; ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE DIREITO;
Sumário:
1 - O disposto no artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” [na acepção do artigo 1.º, ponto 11, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998] a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projecto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no artigo 8.º n.º 1 daquela Directiva.

2 – Assim não tendo sucedido, e falta de idónea base legal substantiva, os actos praticados pela Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, são inválidos e contenciosamente anuláveis por violação de lei, por erro nos seus pressupostos de direito, por promanados em desconformidade com o direito da União Europeia.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:I - RELATÓRIO



ENTIDADE NACIONAL PARA O SECTOR ENERGÉTICO, EPE (ENSE) [devidamente identificada nos autos] Ré na acção administrativa que contra si foi intentada por R [SCom01...], S.A. [também devidamente identificada nos autos] na qual foi formulado pedido no sentido de ser anulada a decisão proferida no processo n.º 13/DB/2020, nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de Outubro, pelo Presidente do Conselho de Administração da ENSE, datada de 22 de Março de 2021, e pela qual foi determinado que pagasse a quantia de €1.236.336,00, a título de compensação pelo incumprimento das metas de incorporação de biocombustíveis referente ao 1.º Trimestre de 2020, inconformada com a Sentença proferida, por via da qual foi julgada procedente a acção e anulado o acto impugnado, veio interpor recurso de Apelação.
*

No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
A. O presente Recurso vem interposto da sentença proferida nos autos em referência, que julgou a presente ação procedente e, em consequência, anulou o ato administrativo de pagamento de compensações por incumprimento das obrigações de biocombustíveis previstas no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, referente ao 1.º Trimestre de 2020, impugnado nos presentes.
B. O Tribunal a quo decidiu da invalidade do ato impugnado à luz do direito comunitário, anulando-o nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA e considerando como prejudicados os vícios assacados pela ora Recorrida ao ato impugnado.
C. Com efeito, socorrendo-se do acórdão proferido pelo TJUE proferido no processo C-604/2021, na sequência do pedido de reenvio prejudicial no âmbito do processo 860/21.1BEBRG, e dele fazendo uma incorreta interpretação, considerar, que o ato impugnado nos presentes é ilegal por o projeto legislativo referente ao Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, ao fixar, no seu n.º do artigo 11.º, a obrigação de incorporação de determinada percentagem de biocombustíveis e, nessa medida, constituir uma regra técnica, não ter sido objeto de comunicação à Comissão Europeia, sendo inoponível aos particulares e, nessa medida, entendeu que o ato impugnado padece de um vício gerador de anulabilidade, nos termos do de um vício gerador de anulabilidade, nos termos do disposto no artigo 163.°, n.° 1 .°, n.° 1 do CPA.
D. Ora, é aqui que encerra o erro de julgamento perpetrado pelo Tribunal a quo, motivado por uma incorreta interpretação e aplicação do Direito ao caso sub judice.
E. Começa-se por dizer que o Acórdão proferido pelo TJUE – na sequência de um reenvio prejudicial promovido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, no âmbito de um processo onde foi suscitada a inoponibilidade do Decreto-Lei n.° 117/2010 aos particulares, com fundamento na violação do Direito da União Europeia – não analisou o caso concreto, limitando-se a esclarecer a interpretação que deve ser dada a um conjunto de normas constantes da Diretiva 98/34/CE.
F. Assim, a pronúncia realizada pelo TJUE não aporta um novo fundamento de nulidade ou anulabilidade do ato administrativo em apreço.
G. Como referido, no seguimento de um conjunto de questões prejudiciais formuladas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, no âmbito do processo n.° 860/21.1BEBRG, foi proferido Acórdão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no passado dia 09/03/2023.
H. O referido Acórdão do TJUE veio esclarecer a interpretação que deve ser dada a um conjunto de normas consagradas na Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, conforme alterada pela Diretiva 2006/96/CE do Conselho, de 20 de novembro de 2006.


Com efeito, o mesmo declarou que:
“1) O artigo 1.º, ponto 4, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação, conforme alterada pela Diretiva 2006/96/CE do Conselho, de 20 de novembro de 2006, deve ser interpretado no sentido de que: uma legislação nacional que fixa um objetivo relativo à incorporação de 10 % de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários introduzidos no consumo por um operador económico relativamente a um determinado ano é abrangida pelo conceito de «outra exigência» na aceção do artigo 1.°, ponto 4, da Diretiva 98/34, conforme alterada, e constitui assim uma «regra técnica» na aceção do artigo 1.°, ponto 11, da Diretiva 98/34, conforme alterada, a qual apenas é oponível aos particulares se o seu projeto tiver sido comunicado em conformidade com o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada.”
I. Concluindo, nessa medida, que o objetivo relativo à incorporação de 10 % de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários introduzidos no consumo por um operador económico relativamente a um determinado ano constituiu uma «regra técnica» na aceção do artigo 1.º, ponto 11, da Diretiva 98/34, conforme alterada, a qual apenas é oponível aos particulares se o seu projeto tiver sido comunicado à Comissão Europeia.
J. Ora, ainda que a ora Ré Recorrente não sufraga o entendimento supra do TJUE, importa que o ato administrativo em crise não é ilegal, conforme considerou o Tribunal a quo, tendo, de resto, a pronúncia do TJUE se limitado à consideração sobre a inoponibilidade aos particulares das normas de direito nacional.
K. Com efeito, o ato administrativo foi praticado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 117/2010, o qual à data de se encontrava plenamente em vigor, sendo que atualmente a sua vigência só não se mantém porquanto foi revogado pelo Decreto-Lei n.° 84/2022, 9 de dezembro, o qual estabelece metas relativas ao consumo de energia proveniente de fontes renováveis, transpondo parcialmente a Diretiva (UE) 2018/2001. Assim, a ora Ré Recorrente encontrava-se vinculada a proferir o ato administrativo impugnado nos exatos termos em que foi proferido, sob pena de violação do princípio da legalidade.
L. Razão pela qual o ato administrativo em apreço não padece (nem poderia padecer, de resto) de qualquer vício gerador de ilegalidade. Isto porque, independentemente da norma legal ser oponível ou inoponível aos particulares, a mesma era oponível à Administração Pública, i.e., à ora Ré Recorrente.
M. Pelo que, não estamos perante um problema de ilegalidade do ato administrativo em crise, conforme peticionado nos presentes, mas antes perante uma (eventual) questão de responsabilidade civil extracontratual do Estado Português por alegados danos decorrentes do exercício da função político-legislativa. Nesses termos, entendendo a Autora que a vigência do Decreto-Lei n.° 117/2010 no ordenamento jurídico português afetou a sua esfera jurídica, deve recorrer aos mecanismos processuais adequados para o efeito, o que não passa pela impugnação do ato administrativo praticado pela ora Ré Recorrente com fundamento na inoponibilidade do Decreto-Lei n.° 117/2010.
N. Por outro lado, sempre se diga que, mesmo que se admitisse que a inoponibilidade do ato administrativo impugnado, no momento em que foi praticado, fosse suscetível de gerar a sua anulabilidade, o (alegado) vício deixou de existir em função do lapso temporal no entretanto verificado, consolidando-se o ato no ordenamento jurídico. Veja-se, a propósito, o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, em 08/02/2013, no âmbito do processo n.° 00235/11.0BEPNF, nos termos do qual “ocorre caducidade do direito de ação quando o A., perante ilegalidades imputadas ao ato administrativo impugnado que são cominadas apenas com o desvalor da anulabilidade, não observa o prazo que se mostra previsto no art. 58.°, n.° 2 do CPTA”
Pelo que, por força do lapso temporal no entretanto verificado, a eventual invalidade sempre se encontraria sanada.
O. Em face do exposto, a sentença ora recorrida padece de um erro de julgamento, porquanto o ato impugnado não padece de qualquer vício gerador de mera anulabilidade, por violação do disposto na Diretiva n.° 98/34/CE aquando da elaboração e publicação do diploma legal que legitimou a sua prática, o que deve conduzir à anulação da sentença recorrida, o que invoca.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, requer-se que ao presente Recurso seja dado provimento, ordenando-se a anulação da sentença recorrida, por estarem verificados os fundamentos de anulação da sentença,
Com o que se fará a esperada Justiça.
[…].”

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A Recorrida apresentou Contra Alegações, no âmbito das quais elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
A. Em 27/06/2023, foi proferida sentença pelo TAF do Porto, nos presentes autos, através da qual se decidiu julgar procedente a ação administrativa, interposta pela Recorrida, e, em consequência, anular o ato impugnado.
B. Desta decisão, veio Recorrente interpor recurso, alegando que a sentença padece de "(...) erro de julgamento quanto à interpretação do Acórdão do TJUE de 09 de março (.. .)".
C. Pelo contrário, entende a Recorrida não assistir razão à Recorrente, devendo manter-se a decisão recorrida nos exatos termos em que foi proferida pelo Tribunal a quo.
D. Impunha-se ao TAF do Porto apreciar e decidir sobre:
a incompletude da notificação do ato impugnado, em violação do disposto nos artigos 268.º n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 114.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA);
a invalidade do ato impugnado, por violação:
a. dos artigos 8.º e 9.º , da Diretiva 98/34/CE, de 22 de junho;
b. do artigo 5.º , da Diretiva 98/70/CE, de 13 de outubro;
c. dos artigos 11.º e 24.º, do DL n.º 117/2010, de 25 de outubro; e
d. do princípio da boa-fé, previsto nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 10.º, do CPA.
E. Quanto à notificação do ato impugnado, decidiu o Tribunal a quo julgar improcedente a causa de invalidade alegada, entendendo que a Recorrida deveria ter-se socorrido do meio processual adequado ao efeito.
F. Para decidir quanto à invocada invalidade do ato impugnado, por violação dos artigos 8.º e 9.º, da Diretiva 98/34/CE, de 22 de junho, após um enquadramento das disposições legais aplicáveis à matéria em discussão, o Tribunal a quo chamou à colação o Acórdão do TJUE proferido em 09/03/2023, no processo n.0 C-604/21, no âmbito de pedido de reenvio prejudicial formulado pelo TAF de Braga, por entender relevante para a decisão da causa, uma vez que, a questão jurídica ali apreciada e interpretada pelo TJUE coincidia (e coincide) precisamente com a que cumpre decidir nos presentes autos.
G. Assim sendo, considerando o princípio do primado do direito europeu (Declaração 17 anexa ao TFUE) e o princípio da cooperação leal (artigo 4.º n.º do TUE), e atento a que “ (…) a jurisprudência em causa tem aplicação no caso concreto, mesmo que proferida no âmbito de outro processo, (.. .)", aplicou o TAF do Porto a interpretação do referido Acórdão do TJUE, com o sentido e o alcance nele plasmados, e decidiu que:
iii. a previsão do artigo 11.º n.º 1 do DL n.º 117/2010 constitui uma norma técnica, que apenas é oponível aos particulares caso o seu projeto tenha sido previamente comunicado em conformidade com o artigo 8. 0 n. 0 1, da Diretiva 98/34/CE;
iv tendo resultado provado nos autos, não ter sido cumprida a obrigação de comunicação prévia à Comissão, a regra técnica em discussão não é oponível à Recorrida; e
v. "(...) tendo por base a inoponibilidade da norma de direito nacional (in casu, do artigo 11.º, n.º 1 do DL 117/2010) tal significa que não pode ser imposto à autora o cumprimento da regra técnica, concretamente, a obrigação de incorporação de biocombustíveis, nem lhe pode ser imputado qualquer incumprimento da obrigação de incorporação de biocombustíveis".
H. Ficando o ato administrativo desprovido de fundamento legal para que pudesse ser exigido à Recorrida o pagamento da compensação em causa, devendo o mesmo ser anulado.




[Imagem que aqui se dá por reproduzida] Verificando-se impossível a renovação do ato impugnado, decidiu o Tribunal não conhecer dos demais vícios alegados.
J. A respeito do pedido de decisão prejudicial relativamente ao qual o TJUE proferiu o citado Acórdão teve "(...) por objeto a interpretação do artigo 1º, ponto 3, do artigo 8.º, n.º 1, e do artigo 10.º, n.º 1, terceiro travessão, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO 1998, L 204, p. 37), conforme alterada pela Diretiva 2006/96/CE do Conselho, de 20 de novembro de 2006 (JO 2006, L 363, p. 81) (a seguir «Diretiva 98/34»), do artigo 7.º-A, n.º 2, da Diretiva 98/70/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à qualidade da gasolina e do combustível para motores diesel e que altera a Diretiva 93/12/CEE do Conselho (JO 1998, L 350, p. 58), conforme alterada pela Diretiva 2009/30/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009 (JO 2009, L 140, p. 88) (a seguir «Diretiva 98/70»), do artigo 40, n. 0 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2009/30, e do artigo 30, n. 0 4, da Diretiva 2009/28/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis que altera e subsequentemente revoga as Diretivas 200 1/77/CE e 2003/30/CE (JO 2009, L 140, p. 16)".
K. E "(...)foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a [SCom02...], S. A., à Entidade Nacional para o Setor Energético, E.P.E. (a seguir «ENSE»), a respeito de uma decisão desta última que impõe uma compensação financeira à [SCom02...] pela não demonstração da incorporação de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários por si introduzidos no consumo com referência ao segundo trimestre de 2020”.
L. Face às questões prejudiciais que lhe foram suscitadas, o TJUE declarou que a interpretação deve ser a de que:
i. "(...) uma legislação nacional que fixa um objetivo relativo à incorporação de 10 % de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários introduzidos no consumo por um operador económico relativamente a um determinado ano é abrangida pelo conceito de «outra exigência» na aceção do artigo 1. 0, ponto 4, da Diretiva 98/34, conforme alterada, e constitui assim uma «regra técnica» na aceção do artigo 1. 0 ponto 11, da Diretiva 98/34, conforme alterada, a qual apenas é oponível aos particulares se o seu projeto tiver sido comunicado em conformidade com o artigo 8. 0, n. 0 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada";
ii. "(...)uma legislação nacional que visa transpor o artigo 7. 0A, n. 0 2, da Diretiva 98/70/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à qualidade da gasolina e do combustível para motores diesel e que altera a Diretiva 93/12/CEE do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2009/30/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, em consonância com o objetivo que figura no artigo 3. 0, n. 0 4, da Diretiva 2009/28/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis que altera e subsequentemente revoga as Diretivas 2001/77/CE e 2003/30/CE, não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma norma europeia na aceção do artigo 8. 0, n. 0 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada, e, por conseguinte, de se eximir à obrigação de comunicação prevista nesta disposição"; e
[Imagem que aqui se dá por reproduzida] "(...)esta disposição não constitui uma cláusula de salvaguarda prevista num ato vinculativo da União, na aceção do artigo 10.0, 1, terceiro travessão, da Diretiva 98/34, conforme alterada pela Diretiva 2006/96.
M. Seguindo o entendimento do TJUE, através do acórdão recentemente proferido no processo n.0 02739/17.2BEBRG-A, de 07/06/2023, veio o STA referir que "l - Do Acórdão do TJUE de 9/3/2023, '[SCom02...]' (C-604/21), proferido em reenvio prejudicial operado pelo TAF/Braga no processo 860/21. IBEBRG, resulta que o disposto no n o 1 do art. 11 0 do DL no 117/2010, de 25/10, nas suas sucessivas versões até à sua revogação pelo DL no 84/2022, de 9/12, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas "entidades incorporadoras", constituía uma "regra técnica" (na aceção do art. 1 0, ponto 11, da Diretiva 98/34) a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projeto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no art. 80 n o 1 daquela Diretiva (o que não sucedeu). Mais resulta do Acórdão do TJUE que aquela norma nacional não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma 'norma europeia', não se subsumindo, pois, à exceção prevista naquele art. 80 no 1 da citada Diretiva, nem é suscetível de integrar uma 'cláusula de salvaguarda"', pelo que, "(...) em face daquele Acórdão de 9/3/2023, resulta, por si, incontornável a procedência da impugnação contenciosa, aqui em apreciação, da ordem de pagamento fundamentada naquela legislação nacional tida como inoponível aos destinatários particulares (como a aqui Autora/Recorrente), sendo, pois, tal ato impugnado, inválido e contenciosamente anulável por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal)". (negrito nosso)
N. No que respeita às alegações da Recorrente, vieram as mesmas insistir unicamente no desacordo relativamente ao que já foi decidido em sede de sentença, pretendendo vincar pretensões já conhecidas.
O. Da posição defendida pela Recorrente, supra detalhadamente mencionada, salvo o devido respeito, transparece uma posição profundamente olvidada das características da relação entre o direito da União Europeia (UE) e o direito nacional, particularmente, quanto à questão que se prende com os princípios do primado do direito da EU e da cooperação leal face ao direito nacional, e quanto às consequências que daí advêm.
P. Pelo que, atenta a doutrina e jurisprudência invocadas, bem como a posição do douto Tribunal a quo (supra mencionada), resulta tanto do princípio do primado do direito europeu, quanto do princípio da cooperação leal que a interpretação e a aplicação do direito da UE vincula todos os órgãos jurisdicionais dos Estados-membros.
Q. Embora, in casu, a Recorrente não refira expressamente a inaplicabilidade da decisão do TJUE, é essa a posição que resulta das suas alegações.
R. Sucede que, não corresponde à verdade que o TJUE não tenha analisado, à luz das características do caso, as pretensões que lhe foram apresentadas, pois, por diversas vezes, faz referência ao caso no âmbito do qual surgiram as questões prejudiciais, veja-se, a título de exemplo, o disposto nos pontos 16 a 39 e 35 a 59 do Acórdão do TJUE.
... disso, o TJUE analisou concretamente as pretensões à luz da decisão de imposição à [SCom02...] do pagamento de compensação financeira, em função da inexistência de demonstração de incorporação de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários por ela introduzidos no consumo durante o primeiro trimestre de 2020, tendo em consideração toda a legislação envolvente, tanto nacional, quanto europeia.
T. Mais, no presente caso, à semelhança do que sucedeu na supra citada jurisprudência do STA, ainda que não haja identidade total de partes, a verdade é que estamos, também, perante um litígio substancialmente idêntico, com a mesma Ré — Entidade Nacional para o Setor Energético, E.P.E. (ENSE EPE) — e em que a Autora também é comercializadora de produtos de petróleo, variando a quantia da compensação peticionada e o espaço temporal a que a mesma se reporta, in casu, referente ao 1 0 trimestre de 2020.
U. Por outro lado, o TJUE esclarece que interpretação deve ser (...) dada a um conjunto de normas consagradas na Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, conforme alterada pela Diretiva 2006/96/CE do Conselho, de 20 de novembro de 2006", porém, tal decisão não versou apenas ”( ) sobre a inoponibilidade aos particulares das normas de direito nacional".
V. Pelo contrário, conforme referido, veio o TJUE esclarecer:
i. que objetivo de incorporação que fixa determinada percentagem de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários constitui uma «regra técnica»;
ii. que só é oponível aos particulares se o seu projeto tiver sido comunicado à Comissão; e, ainda,
[Imagem que aqui se dá por reproduzida] a legislação nacional que visa transpor o artigo 7. 0 -A, n. 0 2 da Diretiva 98/70/CE não é suficiente para eximir o Estado-membro da obrigação de comunicação prévia.
W. Quanto ao alegado pela Recorrente relativamente à inexistência, na decisão do TJUE, de novos fundamentos "(...) de nulidade ou anulabilidade do ato administrativo em apreço", a verdade é que a Recorrida, desde sempre, pugnou pela anulação do ato, precisamente por este ser ilegal com base nos fundamentos ora confirmados na decisão do TJUE.
X. Pelo que, a novidade que aqui trouxe o entendimento do TJUE foi, precisamente, a de confirmar o teor da posição sempre defendida pela Recorrida: que o ato impugnado estava ferido de invalidade, em virtude de, entre outras razões, ser ilegal, porque havia resultado da aplicação de uma norma técnica (o artigo 11 . 0 n. 0 1, do DL n. 0 117/2020, de 25 de outubro) violadora do direito da EU, concretamente, dos artigos 8. 0 e 9. 0 [Imagem que aqui se dá por reproduzida]da Diretiva 98/34/CE, violação essa que resultou do facto da referida norma ter sido promulgada no âmbito do referido DL, sem que tenha sido cumprida a obrigação prévia da sua comunicação à Comissão Europeia e aos Estados-membros, conforme os citados artigos 8. 0 e 9. 0 .
Y. Pois, a inexistência de comunicação prévia (conforme comprovado nos autos), à Comissão, daquela regra técnica, que sempre teria de existir, configura uma causa de invalidade do ato, por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito - falta de fundamentação legal -, que sempre determinará a anulação do ato impugnado, confirmando assim a decisão do douto Tribunal a quo.
Z. Entendimento, aliás, também sufragado pelo STA: "Na verdade, não sendo a norma contida no no 1 do art. 11 0 do DL 117/2010, de 25/10, oponível aos destinatários particulares, ela não era, consequentemente, oponível à aqui Autora/Recorrente, pelo que o ato impugnado, praticado pela Ré/Recorrida "ENSE", consistindo numa ordem de pagamento fundamentada num incumprimento daquela norma, queda-se sem fundamento legal, incorrendo, pois, em vício de erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
Em face do julgamento do TJUE, (...), a já estabelecida inoponibilidade aos destinatários particulares (como a aqui Autora/Recorrente) da norma impositiva contida no n o 1 do art, 11 0 do DL 117/2010, impõe, por si, irremediavelmente, uma decisão de procedência da presente ação impugnatória, por força de vício do ato impugnado, por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal) — o que se decide". (negrito nosso)
AA. Por conseguinte, é de concluir pela ilegalidade do ato administrativo impugnado, porquanto, se sustentou no artigo 1 1 . 0 n. 0 1, do DL n. 0 117/2020, uma norma que viola, manifestamente, o direito da EU validamente estabelecido, nomeadamente, os artigos 8. 0 e 9. 0 da Diretiva 98/34/CE.
BB. Por último, a respeito da invocada consolidação do ato no ordenamento jurídico, salvo o devido respeito, tal afirmação é profundamente desprovida de sustentação legal, pois, a Recorrida apresentou a presente impugnação judicial válida e legitimamente e ao abrigo dos prazos legalmente previstos para reagir em tempo ao ato administrativo.
CC. Não assistindo razão à Recorrente em nenhuma das suas pretensões.
DD. Face ao exposto, não restam dúvidas do acerto quanto ao decidido pelo Tribunal a quo, pelo que, se deverá julgar que o acórdão recorrido não padece de qualquer erro de julgamento quanto à interpretação do Acórdão do TJUE.
[Imagem que aqui se dá por reproduzida] Pedido:
Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, requer que seja julgado improcedente, por não provado, o recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se a sentença recorrido nos exatos termos em que foi proferida pelo Tribunal a quo. Tudo com as devidas e necessárias consequências legais.
[…].”

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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos.
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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional, no sentido da sua improcedência.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que venha a declarar a sua nulidade, sempre tem de decidir [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA] “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.”, reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.
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III - FUNDAMENTOS
IIIi - DE FACTO

Face ao que é a essência da Sentença sob recurso, e a base na qual assentará a prolação da presente decisão, julgamos ser suficiente a remessa para o probatório constante da Sentença recorrida, o que assim decidimos.

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IIIii - DE DIREITO

Está em causa a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 27 de junho de 2023, que tendo apreciado a pretensão deduzida pela Autora contra a Ré, no sentido de ser anulada a decisão proferida pelo Presidente do Conselho de Administração da ENSE, que no âmbito do processo 13/DB/2020 e nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, determinou que a Autora ora Recorrida pagasse a quantia de €1.236.336,00, a título de compensações do 1.º trimestre de 2020, veio a julgar pela sua procedência e a anular o acto impugnado.

Constituindo os recursos jurisdicionais os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, por via dos quais os recorrentes pretendem alterar as sentenças recorridas, nas concretas matérias que os afectem e que sejam alvo da sua sindicância, é necessário e imprescindível que no âmbito das alegações de recurso os recorrentes prossigam de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que se apoiou a decisão recorrida, por forma a evidenciar os erros em que a mesma incorreu.

Cotejadas as Alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, delas se extrai que vem por si sustentada a ocorrência de erro de julgamento em matéria de direito.

Em sede da identificação das questões que lhe cumpria conhecer, identificou o Tribunal a quo que se lhe impunha apreciar e decidir sobre:

i) A incompletude da notificação da decisão impugnada, em violação do disposto nos artigos 268.º, n.º 4 da CRP e 114.º do CPA;
ii) A invalidade do acto impugnado, por violação:
a) dos artigos 8.º e 9.º da Directiva 98/34/CE, de 22 de Junho de 1998;
b) do artigo 5.º da Directiva 98/70/CE, de 13 de Outubro de 1998;
c) dos artigos 11º e 24º do Decreto-lei n.º 117/2010, de 25 de Outubro; e,
d) do Princípio da Boa-fé, previsto no n.º 2, do artigo 266.º, da CRP e no artigo 10.º do CPA.

Neste patamar.

Conforme assim foi apreciado e decidido pelo Tribunal a quo [no que é atinente às questões a decidir por si identificadas], o pedido a que se reporta a Petição inicial foi julgado procedente, e para alcance desse desiderato, julgou conforme para aqui se extrai parte da essencialidade da fundamentação por si aportada, como segue:

Início da transcrição
“[…] tendo por base a inoponibilidade da norma de direito nacional (in casu, do artigo 11º, nº 1 do DL 117/2010), tal significa que não pode ser imposto à autora o cumprimento da regra técnica, concretamente, a obrigação de incorporação de biocombustíveis, nem lhe pode ser imputado qualquer incumprimento da obrigação de incorporação de biocombustíveis.
Deste modo, o acto administrativo fica desprovido de sustentação legal para que possa ser exigido à autora o pagamento da compensação em causa, o que determina a sua anulação nos termos previstos no artigo 163º, nº 1 do CPA.
*
Acresce que, considerando a natureza da ilegalidade pela qual se determinará a anulação da decisão proferida, que obsta a que a mesma seja renovada, não se conhece dos demais vícios apontados à decisão impugnada.
[…]”
Fim da transcrição

Ora, em conformidade com o disposto no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, o legislador quis transpôr para a ordem jurídica interna os artigos 17.º a 19.º e os anexos III e V da Directiva n.º 2009/28/CE, do Conselho e do Parlamento Europeu, de 23 de abril, relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis, assim como transpôr o n.º 6 do artigo 1.º e o anexo IV da Directiva n.º 2009/30/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, relativa às especificações da gasolina e do gasóleo rodoviário e não rodoviário, e à introdução de um mecanismo de monitorização e de redução das emissões de gases com efeito de estufa, e entre o mais, estabelecer os critérios de sustentabilidade de produção e utilização de biocombustíveis e de biolíquidos, independentemente da sua origem, assim como definir os limites de incorporação obrigatória de biocombustíveis para os anos de 2011 a 2020.

Como assim se lê no preâmbulo do diploma “[…] a incorporação de biocombustíveis nos transportes terrestres, em substituição dos combustíveis fósseis, para além de contribuir decisivamente para alcançar o objectivo de 31 % do consumo final de energia com origem renovável, assume especial relevância para a redução das emissões de gases com efeito de estufa, para a diversificação da origem da energia primária e para a redução da dependência energética externa em relação aos produtos petrolíferos, cumprindo os objectivos subjacentes à [SCom03...] 2020. […] Deste modo, o presente decreto-lei determina os critérios para a qualificação dos biocombustíveis e biolíquidos como sustentáveis e cria um novo mecanismo de apoio à incorporação dos biocombustíveis no cabaz de combustíveis consumidos no sector dos transportes, dando continuidade aos mecanismos de promoção da utilização dos biocombustíveis, previstos nos Decretos-Leis n.ºs 62/2006, de 21 de março, e 49/2009, de 26 de fevereiro. Para verificação do cumprimento das metas de incorporação é criado um sistema de emissão de títulos de biocombustíveis (TdB), atribuindo-se uma valorização adicional aos biocombustíveis produzidos a partir de resíduos e detritos ou de matéria-prima com origem lenho-celulósica, bem como os que sejam produzidos a partir de matérias endógenas, de forma a privilegiar o valor acrescentado nacional e em concordância com a [SCom03...] 2020. Este sistema de TdB permite que os mesmos sejam transaccionáveis pelos agentes económicos, dando a cada incorporador, como forma de comprovação do cumprimento da sua meta, a opção entre obter os TdB necessários através da incorporação de biocombustíveis ou adquirir esses títulos a agentes que os tenham em excesso. O incorporador que não entregue os títulos que comprovem o cumprimento da meta de incorporação definida fica obrigado ao pagamento de uma compensação.
[…]”

Ora, é do que assim tratam os autos.

Ou seja, a Ré praticou um acto administrativo nesse domínio, impondo à Autora o pagamento de uma compensação, e a Autora, por seu turno, invocou a ilegalidade/invalidade desse acto, peticionando a final da Petição inicial a sua anulação.

O Tribunal a quo, em conformidade com o decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no reenvio prejudicial efectuado no âmbito do processo n.º 860/21.1BEBRG, e que correu termos sob o n.º C-604/2021, apreciou e decidiu que em torno da questão de saber “[…] se a previsão do artigo 11º, nº 1 do DL 117/2010 constitui regra técnica, o TJUE respondeu afirmativamente, mais determinando que, como tal, apenas é oponível aos particulares se o seu projecto tiver sido comunicado em conformidade com o artigo 8º, nº 1 da Directiva 98/34/CE.
Ora, resultou provado nos autos que, sendo obrigatória, a comunicação da norma em
causa, em cumprimento da Directiva, não sucedeu.
Decorre, assim, do decidido pelo TJUE que as metas de incorporação de biocombustíveis e respectivos pagamentos exigidos à autora, como previstas no artigo 11º, nº 1 do DL 117/2010, correspondem a regras técnicas e que, por não terem sido cumpridas as obrigações de comunicação prévia à Comissão, não lhe são oponíveis.
Ora, a jurisprudência em causa tem aplicação no caso concreto, mesmo que proferida no âmbito de outro processo, considerando que as questões colocadas nestes autos são exactamente as mesmas.
[…]”

Assenta a pretensão recursiva da Recorrente, em sede do imputado erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito, no pressuposto, em suma, que o acto administrativo é legal porque emitido ao abrigo do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, que então estava em vigor, e que a mesma estava vinculada na sua prolação em obediência ao princípio da legalidade, e que a pretensão da Autora ora Recorrida é ilegal, por se tratar de uma incorporadora que tinha a obrigação de cumprir o disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro. Nada refere a Recorrente de substancial em torno do julgamento efectuado pelo Tribunal a quo, visando a interpretação e aplicação dos artigos 8.º e 9.º da Diretiva 98/34/CE, mormente, em torno da observância, pelo legislador nacional, do primado do direito comunitário, originário e derivado, e da sua vinculatividade para as instâncias jurisdicionais nacionais, o que julgamos ser assaz relevante.

Efectivamente, em torno da interpretação e aplicação dos artigos 8.º e 9.º da Directiva 98/34/CE, e que reputamos ser nuclear para efeitos do que a final era a pretensão anulatória da Autora, e em que também vêm a radicar as Contra alegações por si dirigidas à pretensão recursiva da Recorrente, este TCA Norte veio já a prolatar, de forma unânime e reiterada, jurisprudência com a qual a Sentença recorrida tem o devido alinhamento, de que destacamos o Acórdão proferido no Processo n.º 856/21.3BEBRG, datado de 04 de outubro de 2023, o Acórdão proferido no Processo n.º 2639/17.6BEBRG, e o Acórdão proferido no Processo n.º 1584/21.5BEPRT, ambos datados de 30 de novembro de 2023, decisões judiciais essas em que interviemos na qualidade de Adjunto.

Esses Acórdãos deste TCA Norte foram proferidos com amparo em jurisprudência do TJUE, de que destacamos o mesmo Acórdão tomada pelo Tribunal recorrido [datado de 09 de março de 2023, proferido no Processo “[SCom02...]” (C-604/21, EU:C:2023:175), acessível em [acessível no link: https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=271072&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2407524, que aqui damos por integralmente enunciado], e de onde resultou que a interpretação tirada pelo TJUE é no sentido, entre o mais, de que o vertido no artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 117/2020, de 25 de outubro, constitui uma regra técnica e que o aí determinado não é oponível aos seus potenciais destinatários, por não terem sido cumpridas pelo Governo Português/Estado Português as obrigações que deviam ser insertas em procedimento prévio de comunicação à Comissão Europeia, em conformidade com o disposto no artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 98/34/CE.

Atento o teor deste Acórdão do TJUE, e com base no que aí foi apreciado e decidido, o STA veio a proferir Acórdão no Processo 02739/17.2BEBRG-A, datado de 06 de julho de 2023, em que a relação jurídica controvertida de base era similar à que ora está em apreço nestes autos, de onde para aqui extraímos, por facilidade e dado o seu interesse para a decisão a proferir, o seu sumário, como segue:

Início da transcrição
“[…]
I - Do Acórdão do TJUE de 9/3/2023, “[SCom02...]” (C-604/21), proferido em reenvio prejudicial operado pelo TAF/Braga no processo 860/21.1BEBRG, resulta que o disposto no nº 1 do art. 11º do DL nº 117/2010, de 25/10, nas suas sucessivas versões até à sua revogação pelo DL nº 84/2022, de 9/12, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” (na aceção do art. 1º, ponto 11, da Diretiva 98/34) a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projeto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no art. 8º nº 1 daquela Diretiva (o que não sucedeu). Mais resulta do Acórdão do TJUE que aquela norma nacional não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma “norma europeia”, não se subsumindo, pois, à exceção prevista naquele art. 8º nº 1 da citada Diretiva, nem é suscetível de integrar uma “cláusula de salvaguarda”.
II - Esta jurisprudência interpretativa do TJUE impõe-se também no âmbito do presente processo, onde se discute questão idêntica, tornando inútil a manutenção do reenvio prejudicial aqui também operado (“Vapo Atlantic II”, C-413/22), em que foram colocadas ao TJUE questões suplementares, pois que, em face daquele seu Acórdão de 9/3/2023, resulta, por si, incontornável a procedência da impugnação contenciosa, aqui em apreciação, da ordem de pagamento fundamentada naquela legislação nacional tida como inoponível aos destinatários particulares (como a aqui Autora/Recorrente), sendo, pois, tal ato impugnado, inválido e contenciosamente anulável por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
[…]”
Fim da transcrição

E neste conspecto, tendo presente aqueles identificados Acórdãos deste TCA Norte [onde o ora Relator interveio como Adjunto] e onde foi conhecida e apreciada, em torno das questões aí suscitadas, na sua essência, matéria de igual natureza e mérito àquelas que aqui ora vêm colocadas, aderindo à jurisprudência por eles firmada [sem reservas, embora com as adaptações que mostrem necessárias, designadamente em sede da matéria de facto], aqui damos por enunciada parte da fundamentação aportada no Acórdão proferido no Processo n.º 2639/17.6BEBRG, datado de 30 de novembro de 2023 [de que será junta cópia aos autos] tendo em vista alcançar uma interpretação e aplicação uniformes do direito [cfr. artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil], como segue:

Início da transcrição
“[…]
No caso vertente, o ato administrativo impugnado determinou à A. o pagamento de compensações no valor de €142.000,00 (cento e quarenta e dois mil euros) pelo incumprimento das obrigações de incorporação de biocombustíveis relativas ao 1.º Trimestre de 2020.
Essas metas de incorporação resultam do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010 que, de acordo com o acórdão do TJUE supracitado, constituem normas técnicas.
Ora, se tais metas de incorporação constituem normas técnicas, deveriam ter sido comunicadas à Comissão Europeia, sob pena de serem inoponíveis e inaplicáveis aos particulares.
A comunicação prévia das regras técnicas encontra-se prevista no artigo 8.º da sobredita Diretiva, nos seguintes termos:
1. Sob reserva do disposto no artigo 10º, os Estados membros comunicarão imediatamente à Comissão qualquer projeto de regra técnica, exceto se se tratar da mera transposição integral de uma norma internacional ou europeia, bastando neste caso uma simples informação relativa a essa norma. Enviarão igualmente à Comissão uma notificação referindo as razões da necessidade do estabelecimento dessa regra técnica, salvo se as mesmas já transparecerem do projeto.
Não tendo sido efetuada tal comunicação, como resulta da matéria de facto provada nos presentes autos, concluímos que o referido ato administrativo, já que fundamentado no Decreto-Lei n.º 117/2010, padece de invalidade, devendo ser anulado, como, efetivamente, o foi pela sentença recorrida.
Acresce que, com relevância para os presentes autos, no âmbito do processo n.º 2739/17.2BEBRG-A, que tramitou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, e cujo objeto é idêntico ao dos presentes autos, designadamente, a impugnação de um ato administrativo praticado pela ora recorrente traduzido na aplicação de compensações à ora recorrida, o Supremo Tribunal Administrativo proferiu Acórdão em 06 de julho de 2023, o qual julgou procedente, por provada, a ação administrativa da recorrente, determinando a anulação de tal ato [...]
[...]
Importa, transcrever, ainda, parte do teor deste acórdão do STA de 6/07/2023, que infirma totalmente as conclusões da recorrente:
“21. Deste Acórdão do TJUE, de 9/3/2023, resulta, pois, em conclusão, que o disposto no nº 1 do art. 11º do DL nº 117/2010, de 25/10, nas suas sucessivas versões até à sua revogação operada pelo DL nº 84/2022, de 9/12, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” (na aceção do art. 1º, ponto 11, da diretiva 98/34), a qual só seria oponível aos destinatários particulares (como a aqui Autora) se o respetivo projeto tivesse sido comunicado à Comissão nos termos previstos no art. 8º nº 1 da Diretiva 98/34. Mais declarou o TJUE que tal norma nacional não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma “norma europeia” (não se subsumindo, pois, à exceção prevista no art. 8º nº 1 da Diretiva 98/34), nem é suscetível de se integrar numa cláusula de salvaguarda.
Ora, este julgamento do TJUE, proferido em 9/3/2023 no âmbito daquele mecanismo de reenvio prejudicial (C-604/21) operado pelo TAF/Braga no âmbito do processo 860/21.1BEBRG, é decisivo, por si, para determinar a sorte deste nosso presente processo.
Na verdade, não sendo a norma contida no nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, de 25/10, oponível aos destinatários particulares, ela não era, consequentemente, oponível à aqui Autora/Recorrente, pelo que o ato impugnado, praticado pela Ré/Recorrida “ENSE”, consistindo numa ordem de pagamento fundamentada num incumprimento daquela norma, queda-se sem fundamento legal, incorrendo, pois, em vício de erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
Dúvidas não pode haver que aquele julgamento do TJUE é plenamente aplicável no caso do presente processo, uma vez que a jurisprudência daquele tribunal europeu, quanto à interpretação fixada do direito da UE, designadamente em processo de reenvio prejudicial, torna-se obrigatório quer no âmbito da causa em que o reenvio foi operado quer em quaisquer outros processos em que seja pertinente a aplicação das mesmas normas interpretadas. Efetivamente, além de o tribunal nacional destinatário ficar vinculado pela interpretação dada, o Acórdão do TJUE vincula também os outros órgãos jurisdicionais a quem seja submetida uma questão idêntica.
Ora, no presente processo, estamos perante um litígio substancialmente idêntico, apenas variando a quantia da compensação a dever ser, alegadamente, paga pela Autora/Recorrente e o espaço temporal a que tal compensação se reporta (no nosso caso, o ano de 2016, a que, nos termos do aludido nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, correspondia uma obrigação de incorporação de biocombustíveis na percentagem de 7,5% - cfr. alínea c). Sendo irrelevantes, quanto à manutenção dessa inoponibilidade, a variação das várias versões do DL 117/2010 até á sua revogação pelo DL 84/2022, de 9/12 (nomeadamente, as versões introduzidas pelos DLs. 6/2012, de 17/1, 69/2016, de 3/11 – em que se baseou o ato aqui impugnado, 152-C/2017, de 11/12 e 8/2021, de 20/1).
Em face do julgamento do TJUE, tornam-se, pois, inúteis as eventuais respostas às questões prejudiciais colocadas suplementarmente ao TJUE pelo reenvio prejudicial operado, à cautela, no âmbito deste nosso processo, uma vez que, independentemente dessas respostas, a já estabelecida inoponibilidade aos destinatários particulares (como a aqui Autora/Recorrente) da norma impositiva contida no nº 1 do art, 11º do DL 117/2010, impõe, por si, irremediavelmente, uma decisão de procedência da presente ação impugnatória, por força de vício do ato impugnado, por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal) – o que se decide.”
Pelo exposto, temos que, não sendo a norma inserta no nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, de 25/10, oponível aos destinatários particulares, ela não era, consequentemente, oponível à aqui Autora/Recorrente, pelo que o ato impugnado, praticado pela Ré/Recorrente “ENSE”, consistindo numa ordem de pagamento fundamentada num incumprimento daquela norma, fica sem fundamento legal, incorrendo em vício de erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
[...]
Note-se, ademais, que o citado Acórdão do TJUE, de 9/3/2023, ao declarar a inoponibilidade, aos destinatários/particulares, da legislação portuguesa em causa, já pressupõe preenchida uma das condições para que essa consequência seja possível: o “efeito direto” do relevante direito da UE. Isto é, a possibilidade de os particulares poderem invocar este direito europeu em ordem a salvaguardarem os seus direitos e interesses, eventualmente contra legislação nacional que o contrarie (cfr. Acórdão fundamental “Van Gend en Loos”, 26/62).
E, nos termos do Acórdão fundamental “CIA Security Service (C-194/94), aliás citado pelo TJUE no Acórdão interpretativo de 9/3/2023, «há que concluir que a Diretiva 83/189 deve ser interpretada no sentido de que a inobservância da obrigação de notificação acarreta a inaplicabilidade das “regras técnicas” em questão, de modo que não podem ser opostas aos particulares», sendo que ao juiz nacional «compete recusar a aplicação de uma “regra técnica” nacional que não tenha sido notificada em conformidade com a Diretiva”.
Não tendo sido assim considerado pelo Tribunal a quo, independentemente de qualquer outra invalidade, a sentença padece de erro de julgamento, no que, em concreto respeita à interpretação do artigo.° 11, do Decreto-Lei n.° 117/2010, conjugado com os artigos 1.°, 8.° e 9.°, da Directiva 98/34/CE, o que determina a revogação da sentença recorrida, com as demais consequências legais.
[...]“
Fim da transcrição

Como assim deflui do extraído supra, a solução jurídica que aí foi alcançada, e que teve presente, na sua base fundamental, o julgamento de que está em causa uma “regra técnica” que não foi notificada à Comissão Europeia em conformidade com a Directiva n.º 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998, e que as normas em causa a que se reporta o Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro [em particular o seu artigo 11.º, n.º 1], não sendo oponíveis aos previstos destinatários, in casu, à Autora ora Recorrida, e tendo-o sido porque a Ré ora Recorrente emitiu acto administrativo que lhe dirigiu e que a final consubstancia uma ordem para pagamento, não incorreu o Tribunal a quo, na realidade, no invocado erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito, julgando antes com acerto, por estar subjacente ao acto impugnado uma actuação contrária à lei, fundada em erro nos pressupostos da sua aplicação, desde logo, em desconformidade com o direito da União Europeia.

Neste conspecto, dada a manifesta improcedência do recurso jurisdicional, julgamos ser desnecessária, por inútil para os termos dos autos, a apreciação e decisão em torno de outros erros de julgamento imputados pela Recorrente à Sentença recorrida.
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E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:

Descritores: Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro; Directiva 98/34/CE; Combustíveis; Erro nos pressupostos de direito.

1 - O disposto no artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” [na acepção do artigo 1.º, ponto 11, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998] a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projecto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no artigo 8.º n.º 1 daquela Directiva.

2 – Assim não tendo sucedido, e falta de idónea base legal substantiva, os actos praticados pela Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, são inválidos e contenciosamente anuláveis por violação de lei, por erro nos seus pressupostos de direito, por promanados em desconformidade com o direito da União Europeia.
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IV – DECISÃO

Face ao que deixamos expendido supra, e tendo subjacente o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 94.º, n.º 5, ambos do CPTA e artigo 656.º do CPC, julgamos em NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pela Recorrente Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, confirmando assim a Sentença recorrida.

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Custas a cargo da Recorrente – Cfr. artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Notifique.
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Junte aos autos cópia do Acórdão proferido no Processo n.º 2639/17.6BEBRG

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Notifique, também com remessa de cópia do Acórdão referido antecedentemente.



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Porto, 30 de janeiro de 2024.
Paulo Ferreira de Magalhães, relator