Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00155/17.5BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/05/2021
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACIDENTE DE VIAÇÃO/ERRO DE JULGAMENTO DE FACTO/ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO/PRESUNÇÃO DE CULPA DO RÉU MUNICÍPIO
Recorrente:DROGARIA (...), LDA.
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
DROGARIA (...), LDA., pessoa coletiva n° (...), com sede na Av. (…), intentou ação administrativa comum, com processo ordinário, contra o MUNICÍPIO DE (...), pessoa coletiva nº (…), com sede no Largo (…), reclamando o pagamento de € 92.427,20, referentes a danos patrimoniais [reparação e paralisação do veículo] para si advindos na sequência de um acidente ocorrido no dia 2 de maio de 2015, cerca das 9 horas e 45 minutos, na Estrada Municipal, em (...), na Rua Central de (...), concelho de (...), quando o veículo automóvel pesado de mercadorias, marca Scania, modelo P113H - 4*2-Z-320-50-C, com a matrícula XX-XX-XX, equipado com grua PM 12023, de sua propriedade, aí circulava/manobrava para proceder à descarga do material que transportava.
Por sentença proferida pelo TAF de Mirandela foi julgada improcedente a acção.

Desta vem interposto recurso.

Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:
1 - Ao abrigo dos artigos 629º, 631º e 644º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, de ora em diante C.P.C., vem o presente recurso interposto da douta sentença com a ref.ª 004293963, que julgou a acção integralmente improcedente.
2 -Com recurso à reapreciação da prova gravada, aos factos provados e às regras da lógica e experiência comum a Recorrente impugna a decisão da matéria de facto dos pontos 1 dos factos provados, pretendendo que sobre os mesmos seja proferida decisão de não provados e dos pontos b), c), d) e e) dos factos julgados não provados, pretendendo que sobre os mesmos seja proferida decisão de provados.
3 - Com a reapreciação da prova gravada pretendemos que a decisão sobre a matéria de facto seja nos seguintes termos:
Factos Provados:
1. A Autora é proprietária do veículo automóvel pesado de mercadorias, marca Scania, modelo P113H - 4*2-Z-320-50-C, com a matrícula XX-XX-XX, equipado com grua PM 12023, ambos com apólice n° 01345371 da companhia de seguros Companhia de Seguros - Cfr. cópia do documento único junto aos autos com a p.i., como doc. n°1 e 2, e se dão por integramente reproduzidos.
2. Em 2 de Maio de 2015, cerca das 9 horas e 45 minutos, na Estrada Municipal, em (...), concretamente na Rua Central de (...), concelho de (...), ocorreu um sinistro que teve por único interveniente o veículo referido no artigo anterior - cfr. doc. nº 4, junto aos autos com a p.i. e que aqui se dá como integralmente reproduzido;
3. Na data da ocorrência do sinistro, o veículo da Autora, sendo conduzido por um trabalhador daquela, seguia com destino à Rua Central de (...), para aí proceder à descarga do material que transportava, nomeadamente areia mistura fina (5m2), Cimento Cosmos - 25 kg (72 uni.), varão ferro 12 06m (200 uni), varão ferro A400 06 06m - eliaço (30 uni.).
4. No local da descarga, quando o condutor do veículo se encontrava a realizar a manobra de marcha atrás, pela Rua Central de (...), o lado esquerdo da via, atenta a posição do veículo pesado, cedeu numa distância de cerca 15 metros.
5. A via cedeu entre um a dois metros de profundidade.
6. Na parte da via que cedeu estavam as rodas traseiras e dianteiras do lado esquerdo do veículo da Autora identificado nos autos.
7. A cedência do piso da via provocou que o veículo propriedade da Autora se enterrasse sobre o lado esquerdo e seguidamente tombasse.
8. Ao tombar, o veículo referido, foi projetado para um campo agrícola que confina com a estrada municipal e encontra-se em patamar inferior ao da via de circulação, ficando tombado e com a cabine para o chão - cfr. doc. nº 5 e 6 juntos aos autos com a p.i. e que
aqui se dão por integralmente reproduzidos;
9. O muro de suporte da via de circulação foi intervencionado pela Ré.
10. A Ré construiu uma guia em cimento que estava assente em cima de um muro de
suporte da via.
11. No local referido no artigo anterior, a via pública é composta por uma estrada em paralelo, reta com ligeira inclinação descendente.
12. É marginada, pelo lado da cedência, por um muro de suporte.
13. A via e o muro de sustentação da via, onde circulava o veículo da Autora, cederam cerca de 15 metros de cumprimento provocando a inclinação do veículo para o lado da berma, acabando por virar por completo para o terreno contínuo, em patamar inferior à referida via.
14. A forma inesperada e repentina como a via e o muro cederam não permitiu ao condutor do veículo pesado qualquer reação.
15. A faixa de rodagem onde ocorreu o acidente é uma via aberta ao trânsito, incluindo veículos pesados, tendo o condutor do veículo feito já duas descargas anteriores naquele local.
16. O veículo sinistrado apresentava uma distância entre eixos 5,00 metro, com 8.180m de cumprimento e 2,250 m de largura.
17. Considerando as características e peso do veículo sinistrado, bem como o estado do pavimento e a inclinação do veículo após a cedência do piso, o mesmo teve que ser removido do local mediante a utilização de uma grua e uma máquina retroescavadora.
18. O custo da remoção do veículo da Autora foi orçamentado em € 1.106,69 (mil cento e seis euros e sessenta e nove cêntimos) - cfr. docs. nº 7 e 8 juntos aos autos com a p.i. e que aqui se dão como integralmente reproduzidos;
19. Como consequência direta do acidente, resultaram os seguintes danos materiais no veículo:
- Porta esquerda;
- Painel esquerdo;
- Estribo esquerdo;
- Espelho retrovisor esquerdo completo;
- Guarda - lamas esquerdo;
- Guarda-lamas direito;
- Vidro porta esquerda;
- Canto esquerdo;
- Pisca frente esquerdo;
- Pisca frende direito;
- Vidro p/brisas;
- Pala g/lamas esquerdo;
- Serviço de pintura;
- Serviço de mão-de-obra, conforme se descrimina no orçamento que se junta como doc. n° 10 Orçados num total de € 7.819,11 (sete mil oitocentos e dezanove euros e onze cêntimos), no qual já se inclui a taxa legal de IVA.
20. A A. perdeu parcialmente os materiais que transportava no veículo, nomeadamente a areia mistura fina e o cimento Cosmos tudo com o valor de € 474,34 (quatrocentos e setenta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos), com Iva incluído.
21. Em 4 de Maio de 2015, na sequência do sucedido, a Autora interpelou o Réu para proceder à reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude do referido acidente - cfr. doc. nº 9 junto aos autos com a p.i. e que aqui se dá como integralmente reproduzido;
22. O Réu, até à presente data, ainda não proferiu qualquer decisão sobre o pedido de reparação formulado pela Autora no dia 4 de Maio de 2015.
23. Face a omissão de resposta a Autora por carta de 25 de Novembro de 2015 voltou a interpelar o Réu Município.
24. O Réu recusou-se a fornecer ou a pagar à Autora o valor diário de um veículo sucedâneo de substituição.
25. O veículo da Autora encontrava-se imobilizado desde a data da ocorrência do acidente, aguardando por uma decisão do Réu para a Autora mandar proceder à sua reparação.
26. Este era o único veículo de carga que a Autora possuía que tinha grua.
27. Segundo a referida tabela o valor diário de indemnização pela paralisação de um veículo como o dos autos é o valor de € 171,75 (cento e setenta e um euros e setenta e cinco cêntimos).
28. O sinistro foi a 02 de Maio de 2015, pelo que, a Autora estava privada de utilizar o veículo, à data de entrada da presente acção, há 465 dias.
29. A Ré quando intervencionou o muro de sustentação da via de circulação não cuidou de fazer alicerces de sustentação do muro, da guia e da via.
30. A referida via e o muro de sustentação não estavam devidamente estruturados.
31. O que provocou a cedência da via e, consequentemente, o tombar do veículo da Autora.
32. O sinistro ficou a dever-se à omissão de fiscalização, por parte da Ré, do estado de conservação da rede viária municipal em causa e à intervenção realizada no referido muro que não assegurou o suporte necessário ao trânsito permitido na via municipal em questão.
Factos não provados:
a) O muro de sustentação era composto unicamente por cimento e alvenaria;
b) No momento do acidente, o veículo da Autora, encontrava-se em muito bom estado de conservação, no estado e com o aspecto de novo;
c) A Autora não mandou reparar o veículo, por não dispor de capacidade financeira para a reparação;
d) A Autora, por não dispor de outro veículo com as mesmas categorias, deixou de poder fazer venda de materiais que exigissem a utilização da grua do veículo para descarga.
4 - O Tribunal Central Administrativo tem, actualmente, o poder-dever de buscar a sua própria convicção, fazendo o seu próprio julgamento da matéria de facto (Cfr., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/03/2011, no proc. 1675/06.2TBPRD.P1.S1);
5 - Dos factos considerados provados que não foram impugnados e da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, que será analisada por V.º Ex.ªs, resulta um juízo probatório no sentido do que pugnamos e, que é parcialmente contrário ao que foi decidido na sentença ora impugnada.
6. Mas a prova produzida e identificada nas motivações permite e exige uma decisão de facto que restabeleça a verdade material.
7 - Resulta do ponto 10 dos factos provados que o muro de suporte da via de circulação foi intervencionado pelo Réu.
8 - E resulta da prova testemunhal que esse muro foi construído pelo Réu sem alicerces de sustentação.
9 - Vejamos os depoimentos das testemunhas:
a) A,, nomeadamente ás 00:12:58 horas da gravação;
b) F., nomeadamente ás 01:13:05, 01:16:33 e 01:20:23 horas da gravação;
c) J., nomeadamente às 01:36:04 horas da gravação.
10 - Pelo que deve ser considerado provado que “A Ré quando intervencionou o muro de sustentação da via de circulação não cuidou de fazer alicerces de sustentação do muro, da guia e da via.
11 - Dos mesmos depoimentos conjugados com os factos provados resulta demonstrado que “A referida via e o muro de sustentação não estavam devidamente estruturados”, “o que provocou a cedência da via e, consequentemente, o tombar do veículo da Autora.
12- Por tudo o exposto, forçoso é concluir pela conclusão de que “o sinistro ficou a dever-se à omissão de fiscalização, por parte da Ré, do estado de conservação da rede viária municipal em causa e à intervenção realizada no referido muro que não assegurou o suporte necessário ao trânsito permitido na via municipal em questão.
13 - O Tribunal a quo, ao não ter decidido nos presentes termos, incorreu em erro de julgamento da decisão de facto.
14 - Decisão que deve ser revogada e proferida outra em sua substituição que fixe a matéria de facto descrita no ponto 3 das conclusões.
15 - Não obstante o erro de julgamento em que o Tribunal a quo incorreu, ainda que o mesmo não se verificasse, a matéria de facto considerada provada é suficiente para a procedência do pedido da Autora.
16 - Ao decidir pela improcedência da acção, com base em inexistência de dois dos requisitos da responsabilidade civil (ilicitude e culpa) o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da decisão de direito.
17 - Para que o Réu seja condenado a ressarcir a Autora de todos os prejuízos sofridos com o sinistro dos autos é necessário a observância dos seguintes requisitos: O facto, a ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
18 - O Réu, como resulta dos factos provados, intervencionou o muro de suporte da via de circulação.
19 - Realizou obras de construção que incidiram sobre o muro que cedeu e ocasionou o acidente dos autos, porquanto nem sequer construiu alicerce de sustentação do muro, da guia e da via.
20 - Os termos em que essa intervenção foi realizada não asseguraram a circulação de veículos pesados, como o XT, pela via, em condições de segurança o que provocou o tombar do veículo XT quando o muro de sustentação da via e a via cederam no cumprimento de cerca de 15 metros e numa profundidade de cerca de um a dois metros.
21- Na intervenção realizada no muro de sustentação da via de circulação o Réu não cuidou de implementar na construção do muro as necessárias condições de segurança, recorde-se que a parte do muro em que o betão estava reforçado (na parte da via em alcatrão) o muro e a via não cederam.
22 - Concorrem com o facto positivo referido dois factos omissivos, a inexistência de vigilância e fiscalização da via pelo Réu e a omissão de sinalização da via onde sucedeu o sinistro como interdita à circulação de veículos pesados.
23 - Ao não fiscalizar a via e infraestruturas adjacentes e ao não proibir a circulação de veículos pesados pela via (conhecendo as características do muro de sustentação construído) o Réu, por omissão, não impediu o sinistro dos autos, o qual não teria sucedido se houvesse fiscalização adequada e a circulação pela via Rua Central de (...) estivesse interdita a veículos pesados.
24 - É atribuição da Câmara Municipal, entre outras, nos termos do disposto nos artºs 23º, art.º 33º, alíneas w), y), ee) e qq, art.º 35º, alínea h) da lei 75/2013 com a redacção em vigor à data dos factos, “criar, construir e gerir instalações, equipamentos, serviços, redes de circulação, de transporte, de energia, de distribuição (…) integrados no património do município. E “praticar os actos necessários à administração corrente do património do município e à sua conservação.
25- Face às atribuições do Réu, competências atribuídas à câmara municipal e ao presidente da câmara, a construção do muro sem condições de segurança adequadas, e a subsequente omissão do dever de vigilância e conservação da via ao que acresce a omissão da interdição da circulação de veículos pesados pela via em causa nos autos constituiu a violação de disposições legais com vista à protecção de interesses alheios.
26- Face o exposto, os factos positivos (construção do muro) e omissivos (inexistência de fiscalização e de restrição de circulação) porque violadores de normas legais destinadas a proteger interesses alheios, constituem factos ilícitos.
27 - Por outro lado, convirá referir que a verificação de uma situação de omissão de deveres de vigilância sobre coisas - no domínio das atividades materiais de fiscalização na rede viária municipal a que o Réu Município se encontra adstrito - faz despoletar o mecanismo de presunção de culpa previsto no artigo 10º, nº 3, do RRCEE.
28 - Presunção que também resulta da aplicação do disposto no art.º 493º, n.º 1 do Código Civil, na medida em que o Réu tem em seu poder coisa imóvel com o dever de a vigiar.
29 - Presunções que não foram ilididas pelo Réu.
30 - Os danos, conforme consta da decisão dos factos provados são:
a) A reparação do XT orçamentada em € 7 819,11, com iva incluído;
b) Os materiais perdidos tinham o valor de € 474,34;
c) O veículo está imobilizado desde a data da ocorrência, tendo até á entrada da acção em Tribunal decorrido 465 dias de privação do veículo, à taxa diária de € 171,75;
d) Imobilização que se mantém até à reparação efectiva, o que deverá ser liquidado em execução de sentença.
31- Se o Réu construísse o muro de suporte com as características e segurança necessária à circulação de veículos pesados, a via e o muro não tinham cedido e, consequentemente, não teria a Autora suportado os danos que suportou e está a suportar.
32 - O mesmo se diga, relativamente à omissão de fiscalização e manutenção porquanto se o Réu fiscalizasse com frequência a via e as infraestruturas adjacentes com certeza teria verificado que o muro de suporte da via não era adequado a suportar a circulação de veículos pesados, ou a omissão de sinalização da via como proibida á circulação de veículos pesados.
33 - Face à verificação de todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades publicas deveria o Tribunal a quo condenar o Réu nos termos peticionados.
34 - Ao não decidir nos termos em que se alega o Tribunal a quo violou o disposto nos art.°s 23º, art.º 33º, alíneas w), y), ee) e qq, art.º 35º, alínea h) da lei 75/2013, art.º 7º e 10º da Lei 67/2007, art.º 483º e 493º do Código Civil e art.º 607º, n.º 4 e 5 do CPC e art.º 5.º n.º 1 do Código da Estrada.
Termos em que deve a presente apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogada a sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que julgue a acção administrativa procedente, condenando-se o Réu nos termos peticionados, com as legais consequências.
Assim decidindo, farão
JUSTIÇA.

A Autora juntou contra-alegações, concluindo:

a) A sentença recorrida não merece qualquer reparo;
b) Nem a prova gravada tem força probatória bastante para alterar os factos provados e não provados;
c) Não é suficiente a alegação do Recorrente de que os seus factos devem ser dados como provados, uma vez que para tal era necessário haver prova, o que não foi feito pela Recorrente;
d) Não havendo que fazer alteração à matéria de facto dada como provada ou não provada;
e) Compete à Recorrente fazer prova das alegações que fez em sede da petição inicial, o que não logrou fazer;
f) A Recorrente fez tábua rasa do relatório pericial junto aos autos, que demonstra claramente que o muro de suporte era adequado ao fim a que se destinava, bem como que as terras que se movimentaram foram as superiores, o que demonstra a adequabilidade do muro;
g) O muro só caiu pela imperícia do condutor, funcionário da Recorrente;
h) A Recorrente acabou por escavar mais o terreno para tirar o seu veículo impedindo assim uma análise perfeita à dinâmica do acidente;
i) Acresce que a Recorrente usou meios pesados para retirar o seu veículo sem que tal tenha causado qualquer outro aluimento de terras ou queda de muro, em parte alguma da via em causa;
j) O que prova a capacidade do muro, a sua boa construção e que o Recorrido não teve qualquer responsabilidade no acidente;
l) Ao não provar, como lhe competia, que o acidente se deu por culpa exclusiva do Recorrido, a Recorrente não logrou provar que aquele era o responsável pela reparação dos danos sofridos na viatura acidentada;
m) Pois, competia à Recorrente provar, em primeiro lugar, o mau estado da via e do muro, factos que não foram provados;
n) E só depois de invocar as falhas de fiscalização por parte do Recorrido, o que também não foi demonstrado, poderia ter reclamados os danos ao Recorrido.
Nestes termos e nos melhores de direito, que são objecto do suprimento, deve ser negado provimento ao recurso e manter-se a decisão proferida nos autos.
Com o que se fará Justiça

O MP, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:

1. O local apontado como palco do acidente, configura-se como uma recta, com cerca de 6 metros de largura, seguida de uma curva à direita, e apresenta uma descida com inclinação acentuada, atento o sentido de marcha do veículo - “TO”.
2. A Autora é proprietária do veículo automóvel pesado de mercadorias, marca Scania, modelo P113H - 4*2-Z-320-50-C, com a matrícula XX-XX-XX, equipado com grua PM 12023, ambos com apólice n° 01345371 da companhia de seguros CA - Seguros - Cfr. cópia do documento único junto aos autos com a p.i., como doc. n° 1 e 2, e se dão por integramente reproduzidos.
3. Em 2 de Maio de 2015, cerca das 9 horas e 45 minutos, na Estrada Municipal, em (...), concretamente na Rua Central de (...), concelho de (...), ocorreu um sinistro que teve por único interveniente o veiculo referido no artigo anterior - cfr. doc. nº 4, junto aos autos com a p.i. e que aqui se dá como integralmente reproduzido;
4. Na data da ocorrência do sinistro, o veículo da Autora, sendo conduzido por um trabalhador daquela, seguia com destino à Rua Central de (...), para aí proceder à descarga do material que transportava, nomeadamente areia mistura fina (5m2), Cimento Cosmos - 25 kg (72 uni.), varão ferro 12 06m (200 uni), varão ferro A400 06 06m - eliaço (30 uni.).
5. No local da descarga, quando o condutor do veículo se encontrava a realizar a manobra de marcha atrás, pela Rua Central de (...), o lado esquerdo da via, atenta a posição do veículo pesado, cedeu numa distância de cerca 15 metros.
6. A via cedeu entre um a dois metros de profundidade.
7. Na parte da via que cedeu estavam as rodas traseiras e dianteiras do lado esquerdo do veículo da Autora identificado nos autos.
8. A cedência do piso da via provocou que o veículo propriedade da Autora se enterrasse sobre o lado esquerdo e seguidamente tombasse.
9. Ao tombar, o veículo referido, foi projetado para um campo agrícola que confina com a estrada municipal e encontra-se em patamar inferior ao da via de circulação, ficando tombado e com a cabine para o chão - cfr. doc. nº 5 e 6 juntos aos autos com a p.i. e que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
10. O muro de suporte da via de circulação foi intervencionado pela Ré.
11. A Ré construiu uma guia em cimento que estava assente em cima de um muro de suporte da via.
12. No local referido no artigo anterior, a via publica é composta por uma estrada em paralelo, reta com ligeira inclinação descendente.
13. É marginada, pelo lado da cedência, por um muro de suporte.
14. A via e o muro de sustentação da via, onde circulava o veículo da Autora, cederam cerca de 15 metros de cumprimento provocando a inclinação do veículo para o lado da berma, acabando por virar por completo para o terreno contínuo, em patamar inferior à referida via.
15. A forma inesperada e repentina como a via e o muro cederam não permitiu ao condutor do veículo pesado qualquer reação.
16. A faixa de rodagem onde ocorreu o acidente é uma via aberta ao trânsito, incluindo veículos pesados, tendo o condutor do veículo feito já duas descargas anteriores naquele local.
17. O veículo sinistrado apresentava uma distância entre eixos 5,00 metro, com 8.180m de cumprimento e 2,250 m de largura.
18. Considerando as características e peso do veículo sinistrado, bem como o estado do pavimento e a inclinação do veículo após a cedência do piso, o mesmo teve que ser removido do local mediante a utilização de uma grua e uma máquina retroescavadora.
19. O custo da remoção do veículo da Autora foi orçamentado em € 1.106,69 (mil cento e seis euros e sessenta e nove cêntimos) - cfr. docs. nº 7 e 8 juntos aos autos com a p.i. e que aqui se dão como integralmente reproduzidos;
20. Como consequência direta do acidente, resultaram os seguintes danos materiais no veículo:
- Porta esquerda;
- Painel esquerdo;
- Estribo esquerdo;
- Espelho retrovisor esquerdo completo;
- Guarda-lamas esquerdo;
- Guarda-lamas direito;
- Vidro porta esquerda;
- Canto esquerdo;
- Pisca frente esquerdo;
- Pisca frende direito;
- Vidro p/brisas;
- Pala g/lamas esquerdo;
- Serviço de pintura;
- Serviço de mão-de-obra, conforme se descrimina no orçamento que se junta como doc. n° 10 orçados num total de € 7.819,11 (sete mil oitocentos e dezanove euros e onze cêntimos), no qual já se inclui a taxa legal de IVA.
21. A A. perdeu parcialmente os materiais que transportava no veículo, nomeadamente a areia mistura fina e o cimento Cosmos tudo com o valor de € 474,34 (quatrocentos e setenta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos), com Iva incluído.
22. Em 4 de Maio de 2015, na sequência do sucedido, a Autora interpelou a Ré para proceder à reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude do referido acidente - cfr. doc. nº 9 junto aos autos com a p.i. e que aqui se dá como integralmente reproduzido;
23. O Réu, até à presente data, ainda não proferiu qualquer decisão sobre o pedido de reparação formulado pela Autora no dia 4 de Maio de 2015.
24. Face à omissão de resposta, a Autora, por carta de 25 de Novembro de 2015, voltou a interpelar o Réu Município.
25. O Réu recusou-se a fornecer ou a pagar à Autora o valor diário de um veículo sucedâneo de substituição.
26. O veículo da Autora encontrava-se imobilizado desde a data da ocorrência do acidente, aguardando por uma decisão da Ré para a Autora mandar proceder à sua reparação.
27. Este era o único veículo de carga que a Autora possuía que tinha grua.
28. Segundo a referida tabela o valor diário de indemnização pela paralisação de um veículo como o dos autos é o valor de € 171,75 (cento e setenta e um euros e setenta e cinco cêntimos).
29. O sinistro foi a 02 de Maio de 2015, pelo que a Autora estava privada de utilizar o veículo, à data de entrada da presente acção, há 465 dias.
X

DE DIREITO
Está posta em causa a sentença que julgou improcedente a acção.
Atente-se no seu discurso fundamentador:
Conforme já se adiantou acima, no caso em apreço nos autos, a Autora reclama da Ré uma indemnização no valor global de € 92.427,20, referentes a danos patrimoniais [reparação e paralisação do veículo] e para si advindos na sequência de um acidente ocorrido no dia 2 de Maio de 2015, cerca das 9 horas e 45 minutos, na Estrada Municipal, em (...), na Rua Central de (...), concelho de (...), quando o veículo automóvel pesado de mercadorias, marca Scania, modelo P113H - 4*2-Z-320-50-C, com a matrícula XX-XX-XX, equipado com grua PM 12023, de sua propriedade aí circulava/manobrava para proceder à descarga do material que transportava.
A Autora alega que quando o condutor do veículo se encontrava a realizar a manobra de marcha atrás, pela Rua Central de (...), o lado esquerdo da via, atenta a posição do veículo pesado, cedeu numa distância de cerca 15 metros, entre um a dois metros de profundidade, o que provocou que o veículo se enterrasse sobre o lado esquerdo e seguidamente tombasse, projectando-se para um campo agrícola que confina com a estrada municipal e encontra-se em patamar inferior ao da via de circulação.
Segundo a Autora, foi a fragilidade do muro de sustentação da via de circulação que provocou a cedência da via e, consequentemente, o tombar do veículo Com a remoção do veículo a Autora despenderá a quantia total de € 1.106,69 (mil cento e seis euros e sessenta e nove cêntimos), a quantia de € 7 819,11 (sete mil oitocentos e dezanove euros e onze cêntimos), no qual já se inclui a taxa legal de IVA, pela reparação do veículo e ainda € 474,34 (quatrocentos e setenta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos), com Iva incluído relativos aos materiais que transportava no veículo (a areia mistura fina e o cimento Cosmos). Peticiona, ainda, a Autora, a quantia de 79.863,75€ (setenta e nove mil oitocentos e sessenta e três euros e setenta e cinco cêntimos), referente ao valor diário de indemnização pela paralisação de um veículo como o dos autos, que contabiliza em € 171,75 (cento e setenta e um euros e setenta e cinco cêntimos).
A Ré será responsável, na medida em que é responsável pela manutenção da via em que ocorreu o acidente, motivo pelo qual sobre ela impendem especiais deveres de manutenção, vigilância e fiscalização, entre outros, por forma a garantir a segurança dos que nela circulam.
Ora:
Para que se possa arbitrar uma indemnização como a que é pedida, a título de responsabilidade civil extracontratual, ter-se-á de verificar se estão cumulativamente reunidos os pressupostos legais da sua verificação, convocando o disposto no Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEEP), aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, por se tratar do regime legal aplicável.
O artigo 1.º, n.º 5 desse diploma estabelece que: “(…) [a]s disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.(…)”
Mais refere o artigo 7º desse mesmo diploma, sob a epígrafe “Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”, que:
“1 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.
(...)
3 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são ainda responsáveis quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço.
4 - Existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões
médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos. (...)”
Já antes da entrada em vigor desta Lei, no âmbito do regime do DL nº 48051, o Supremo Tribunal Administrativo entendia Cfr. Acórdão do Pleno do STA, de 29/04/1998 e de 27/04/1999, no âmbito dos recs. 34463 e 41712 e Acórdão do STA, de 30/01/2003, proferido no âmbito do rec. 47471, e esse entendimento mantém-se no âmbito do diploma aplicável, que a responsabilidade civil da Administração por atos de gestão pública assentava em pressupostos idênticos aos enunciados no artigo 483.º do Código Civil, ou seja:
O facto
A ilicitude
A culpa
O dano
O nexo de causalidade entre o facto e dano
Antes de nos alongarmos mais na explicitação de cada um dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas coletivas públicas, cumpre apurar se, no caso concreto, se verificam estes pressupostos.
i) Do facto ilícito
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por atos ilícitos e culposos, pressupõe a existência de um facto ilícito, imputável a um órgão ou agente e a existência de danos que tenham resultado como consequência direta e necessária daquele.
Atualmente, a respeito do primeiro pressuposto, acima enunciado, precisa o artigo 9.º da Lei nº 67/2007, de 31/12, o que se entende por “ilicitude”:
“1 - Consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
2 - Também existe ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 7.º” (negrito, itálico e sublinhado é sempre nosso)
Assim sendo, o ato ilícito pode integrar quer um ato jurídico quer um ato material, podendo consistir num comportamento ativo ou omissivo, sendo que, neste último caso, a ilicitude apenas se verifica quando exista, por parte da Administração, a obrigação, o dever de praticar o ato que foi omitido.
De qualquer forma, conforme se dispõe na parte final o nº 1 do artigo 9.º, acima transcrito, a verificação de um facto ilícito pressupõe sempre uma ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
Da factualidade dada como provada não decorre uma qualquer atuação ilícita de qualquer da R., por força da aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 9.º, na medida em que não foi feita prova que permita imputar o facto sucedido à concreta atuação de um trabalhador ao seu serviço.
Se é certo que a via cedeu, a forma como tal sucedeu não se compadece com a simples circulação do veículo num plano longitudinal, tanto mais que, conforme foi reportado nos autos, foram várias as deslocações/passagens ao/no local. A perícia que foi elaborada pela seguradora do Município, extrajudicialmente, atribui a culpa pelo sinistro ao condutor da viatura. A Autora pretende que a etiologia do sucedido radica na ausência de suporte estável ao nível do muro que está na base da via. No entanto, com base nos elementos fotográficos existentes e no relatório pericial junto aos autos, o tribunal não pode senão deixar de secundar a versão segundo a qual a culpa pelo sucedido reside na imperícia do condutor do veículo. Tanto mais que o mesmo, no momento do sucedido, conduzia o mesmo em marcha atrás, sendo perfeitamente idónea a explicação de que a roda traseira esquerda terá saído da via e exercido pressão sobre a borda do muro de contenção que cedeu e ao ceder fez colapsar parte da via.
Outra explicação não se mostra possível, em boa verdade. Só o aumento de pressão exercida unilateral/desigualmente, descompensando o equilíbrio de forças pendente sobre o pavimento e obrigando a uma deslocação gravitacional súbita para baixo e à esquerda (resvalar da roda traseira esquerda na borda do passeio/muro de contenção aquando da realização da manobra de marcha-atrás), poderia originar a cedência da via nos moldes ocorridos e o capotamento que se seguiu.
Soçobra, pois, uma alegada necessidade de sinalização da via no sentido de proibição de circulação de veículos pesados e/ou uma alegada ausência de dotação do muro de suporte da via da espessura e/ou dimensão que lhe permitisse o suporte da via (partindo do princípio que, na sequência da colocação da hipotética sinalização, se mantinha a possibilidade de circularem viaturas pesadas).
Assim sendo, inexiste, neste caso, qualquer conduta ilícita da parte do Réu (a quem competia diligenciar pela conservação e manutenção da via), por omissão do respetivo dever de vigilância sobre a via que se encontrava obrigada a manter e cujo regular funcionamento lhe incumbia assegurar.
ii) Da culpa
Quanto à culpa dispõe o artigo 10.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12, que:
“(…)
Culpa
1 - A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e
aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.
2 - Sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos.
3 - Para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.
4 - Quando haja pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497.º do Código Civil. (…)”
Por sua vez, segundo o artigo 497.º do Código Civil:
“(…) 1. Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade.
2. O direito de regresso entre os responsáveis existe na medida das respectivas culpas e das consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis. (…)”
No entanto, neste caso, o réu (a quem compete a obrigação de conservação e manutenção da via aqui sob discussão) estará excluído do âmbito de aplicação dos preceitos acima.
Conforme se referiu acima, decorre dos autos uma ausência de ilicitude da conduta do Réu que determina, por si só, a inexistência da presunção de culpa sobre o mesmo, por força do disposto nos n.ºs 2 e 3 do referido artigo 10.º da Lei n.º 67/2007 de 31/12.
Veja-se o entendimento sufragado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/04/2007, proferido no processo na 0952/06 [disponível em www.dgsi.pt], que se subscreve: «(...) era indispensável que o recorrido tivesse alegado, e provado, de que forma, em concreto, procediam os serviços para evitar acidentes como aquele que ocorreu, enunciando as específicas providências adoptadas, indicando, por exemplo, com que periodicidade a fiscalização das vias era efectuada, de que forma se desenvolvia (apeada ou motorizada), se existiam contactos telefónicos publicitados que permitissem aos munícipes comunicar aos serviços camarários a ocorrência de incidentes nas vias e, ainda, toda a panóplia de outros procedimentos capazes de demonstrar que só as particulares circunstâncias do caso, por fortuitas e absolutamente imprevisíveis, permitiam explicar a falta de sinalização».
Temos assim que ficou por demonstrar nos autos a omissão culposa dos deveres de fiscalização que incumbia ao réu.
Por força da natureza cumulativa da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, nos termos acima alinhavados, aqui chegados, atendendo ao que acima foi dito (inexistência de ilícito e culpa), escusar-nos-emos de tecer quaisquer outras considerações sobre os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, mormente quanto ao nexo de causalidade entre os factos e danos, expresso no artigo 563.º do Código Civil.
Assim sendo, cumpre julgar improcedente a presente acção e, consequentemente, absolver o Réu dos pedidos formulados.
X

Vejamos,

Do erro de julgamento de facto –

A garantia de duplo grau de jurisdição no que concerne ao julgamento da matéria de facto deve harmonizar-se com o artigo 607º, n.º 5, 1ª parte do CPC, que atribui ao juiz o poder de apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

Atribuindo o n.º 1 do artigo 662º do CPC ao Tribunal de recurso o poder-dever de alterar aquela decisão, nos casos em que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem uma decisão diversa.

Assim, o julgador, no uso dos seus poderes de direcção e de julgamento do processo, deve nortear a selecção dos factos provados pela essencialidade dos mesmos para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis de direito. Factos e não matéria conclusiva e/ou de direito. O que realizará de acordo com a sua íntima, prudente e fundada convicção acerca de cada facto, face às alegações das partes, provas constantes dos autos e requeridas, no contexto da questão jurídica que lhe cabe decidir,
especificando os fundamentos que foram decisivos à tomada de posição sobre a materialidade controvertida relevante para a decisão a proferir, de acordo com o direito a aplicar ao caso concreto - artigos 655.º, 607, n.º 4 e 662.º do CPC.

O tribunal ad quem procede à alteração da decisão da matéria de facto se, apurando a razoabilidade da convicção probatória do tribunal a quo, face aos elementos e alegações que agora lhe são apresentados nos autos, verificar que a mesma padece de claras deficiências susceptíveis de influenciarem a decisão final a proferir. Dito de outro modo, o Tribunal ad quem não vai à procura duma nova convicção, não lhe sendo pedido que formule novo juízo fáctico e sua respectiva fundamentação.

O que se visa determinar, em sede de recurso, é se a motivação expressa pelo Tribunal a quo encontra suporte razoável naquilo que resulta dos depoimentos testemunhais, em conjugação com os demais elementos probatórios produzidos nos autos.
É que, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas, já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto - cfr., entre outros, Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.


A Recorrente ancora-se no Acórdão do STJ de 02/3/2011, proc. 1675/06.2TBPRD.P1.S1, de cujo sumário se extrai:
(…)
III - O legislador ao afirmar que a Relação “reaprecia as provas”, acrescentando que na reapreciação se poderá atender a “quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão” (cf. art. 712.º, n.º 2, do CPC), pretendeu que o tribunal de 2.ª instância fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto.
IV - A Relação ao referir-se, sem qualquer especificação, aos depoimentos das testemunhas, de uma e outra parte, concluindo de forma vaga que “a decisão recorrida ponderou toda a prova produzida, não resultando na sua apreciação manifesto erro, nem flagrante desconformidade entre os elementos probatórios”, furta-se a formar a sua própria convicção, não reapreciando, como devia, as provas apresentadas em que assentou a parte impugnada da decisão “tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido” (cf. art. 712.º, n.º 2, do CPC).

V - Não é compatível com a exigência da lei, em termos de reapreciação da matéria de facto, o exercício (apenas formal) por parte da Relação de um poder que se fique por afirmações genéricas de não modificação da matéria de facto, por não se evidenciarem erros de julgamento ou se contenha numa simples adesão aos fundamentos da decisão, ou numa pura aceitação acrítica das provas, abstendo-se de tomar parte activa na avaliação dos elementos probatórios indicados pelas partes ou adquiridos oficiosamente pelo tribunal.
VI - (…)
Ora, sem prejuízo deste valioso contributo, certo é que tem sido sistematicamente entendido, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, no que respeita à modificação da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, que o Tribunal de recurso só deve intervir quando a convicção desse julgador não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se, assim, a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, bem como à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto - Acórdão do STA, de 19/10/2005, proc. 0394/05. Aí se refere, no que aqui releva, que “o art. 690º-A do CPC impõe ao recorrente o ónus de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida. Este artigo deve ser conjugado com o 655° do CPC que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Daí que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deva resultar claramente uma decisão diversa. É por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”. Esta exigência decorre da circunstância de o tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos. (É pacífico o entendimento dos Tribunais da Relação, neste ponto. Só deve ser alterada a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando assim prevalência ao princípio da oralidade, da prova livre e da imediação - cfr. Abrantes Geraldes em “Temas da Reforma do processo Civil, II vol., 4ª edição, 2004, págs. 266 e 267.

Este entendimento tem sido seguido pela generalidade da jurisprudência (...): “A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e fatores que não são racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal da 2.ª instância deverá circunscrever-se a “apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1.° grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” - Acórdão de 13/10/2001, em Acórdãos do T. C. vol. 51°, pág. 206 e ss..
Na verdade, decorre do regime legal vertido nos artºs 140º e 149º do CPTA que o Tribunal ad quem conhece de facto e de direito sendo que na apreciação do objeto de recurso jurisdicional que se prende com a impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido se aplica ou deve reger-se, na ausência de regime legal especial, pelo regime que se mostra fixado em sede da legislação processual civil nesta sede.

É certo que com a revisão do CPC operada pelo DL 329-A/95, de 12/12, e pelo DL 180/96, de 25/09, foi instituído, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto. Importa, porém, ter presente que o poder de cognição deste Tribunal sobre a matéria de facto ou controlo sobre a decisão de facto prolatada pelo tribunal a quo não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto, sendo certo que da situação elencada (impugnação jurisdicional da decisão de facto - artº 690º-A do CPC) se distinguem os poderes previstos no n.º 2 do artº 149º do CPTA que consagram solução diversa e de maior amplitude da que se mostra consagrada nos artº 712º e 715º do CPC. Assim, pese embora tal regime e situações diversas, temos, todavia, que referir que os poderes conferidos no artº 149º/2 do CPTA não afastam os poderes de modificação da decisão de facto por parte deste Tribunal ao abrigo do artº 712º do CPC por força da remissão operada pelos artºs 1º e 140º do CPTA, porquanto o TCA mantém os poderes que assistem ao tribunal de apelação no âmbito da fixação da matéria de facto quando esta constitui objeto ou fundamento de recurso jurisdicional. Daí que sobre o Recorrente impenda um especial ónus de alegação quando pretenda efetuar impugnação com aquele âmbito mais vasto, impondo-se-lhe, por conseguinte, dar plena satisfação às regras previstas no artº 690º-A do CPC. É que, repete-se, ao TCA assiste o poder de alterar a decisão de facto fixada pelo tribunal a quo desde que ocorram os pressupostos vertidos no artº 712º/1 do CPC, incumbindo-lhe, nessa medida, reapreciar as provas em que assentou a decisão impugnada objecto de controvérsia, bem como apreciar oficiosamente outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre aqueles pontos da factualidade controvertidos.

A este propósito e tal como ensinam o Prof. Mário Aroso e o Cons. Fernandes Cadilha é entendimento pacífico que o tribunal de apelação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica. Por analogia de situação, o tribunal de recurso pode igualmente sindicar as presunções judiciais tiradas pela primeira instância pelo que respeita a saber se tais ilações alteram ou não os factos provados e se são ou não consequência lógica dos factos apurados - v. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pág. 743.

Retomando estas balizas sobre a amplitude dos poderes de cognição do tribunal de recurso sobre a matéria de facto temos que os mesmos não implicam um novo julgamento de facto, porquanto, por um lado, tal possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o Recorrente considere incorretamente julgados e desde que cumpra os pressupostos fixados no artº 690º-A n.ºs 1 e 2 do CPC, e, por outro, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.

Os poderes de modificabilidade da decisão de facto que o artigo 712º do CPC atribui ao tribunal superior envolvem apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento e não uma reapreciação sistemática e global de toda a matéria de facto. Para que seja alterada a matéria de facto dada como assente é necessário que, de acordo com critérios de razoabilidade, apreciando a prova produzida, “salte à vista” do Tribunal de recurso um erro grosseiro da decisão recorrida, aparecendo a convicção formada em 1ª instância como manifestamente infundada.

Como ressalta do sumário do proc. nº 00242/05.2BEMDL, de 22/02/2013, acolhido por este TCAN em 22/05/2015 no âmbito do proc. 840/05.4BEVIS I. “Como tem sido jurisprudencialmente aceite, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas (art. 655º, n.º 1 do CPC) já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que na formação dessa convicção não intervêm apenas fatores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para o registo escrito, para a gravação vídeo ou áudio.
II. Será, portanto, um problema de aferição da razoabilidade, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência da convicção probatória do julgador no tribunal “a quo”, aquele que, no essencial, se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento de facto pelo tribunal “ad quem”.

Voltando ao caso concreto, discorda a Autora/Recorrente da apreciação do julgador, esquecendo-se que no decurso do julgamento se tem de obedecer ao basilar princípio da livre apreciação da prova.
Acresce, como já se disse, que, por força dos princípios da oralidade e da imediação, o julgador de 1ª instância dispõe de uma posição privilegiada para aquilatar da seriedade, credibilidade e fidedignidade dos depoimentos, juízo que o tribunal ad quem pode sindicar, sempre que ocorra manifesto erro na sua apreciação, que contamine e inquine a decisão final.

O Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 21 de novembro de 2001, proferido no âmbito do proc. n° 961/2001, sumariou:
“I - O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto, tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formulação lógico-dedutiva. (...)
III - A convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos relacionalmente não explicáveis - como a intuição. (...)

E como já defendia J. Alberto dos Reis é “... já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o que o depoente diz vale o modo por que o diz, é que se as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim a atitude e a conduta do declarante no ato do depoimento ...” (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, pág. 137).

Daí que a convicção do tribunal se forme de um modo dialético, pois, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas nos autos, importa atender também à análise conjugada das declarações produzidas e dos depoimentos das testemunhas, em função das razões de ciência, da imparcialidade ou falta dela, das certezas e ainda das lacunas, das contradições, das hesitações, das inflexões de voz, da serenidade, dos “olhares de suplica” para alguns dos presentes, da “linguagem silenciosa e do comportamento”, da própria coerência de raciocínio e de atitude demonstrados, da seriedade e do sentido de responsabilidade evidenciados, das coincidências e inverosimilhanças que transpareçam no decurso da audiência de julgamento entre depoimentos e demais elementos probatórios.

Voltando ao presente, não se ignoram os poderes conferidos ao tribunal ad quem pelo artigo 662º, nº 1, do CPC; a procura da verdade material assim o exige; assim, este tribunal de apelação, não só pode, como deve reapreciar o julgamento de facto realizado pelo tribunal recorrido, ou seja, deve reapreciar todos os elementos de prova que foram produzidos nos autos. Não aceitar isto equivaleria a esvaziar ou mesmo privar de sentido o direito de acesso à justiça e aos tribunais, constitucionalmente consagrado no artigo 20º da CRP.
Certo é também que estes poderes devem ser articulados com o disposto no artigo 607º/5º do CPC, que refere que “o juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”.

Logo, o tribunal ad quem procederá à alteração da decisão de facto ou determinará a sua anulação apenas se, apurando a razoabilidade da convicção probatória do tribunal a quo, face aos elementos e alegações que agora lhe são apresentados em recurso, verificar que a mesma padece de claras deficiências de apreciação ou se mostra insuficiente, considerando indispensável a sua ampliação/alteração - artºs 660º e 642º do CPC e, entre outros, o Acórdão do STA, de 25/09/2012 no proc. 0990/12, onde se sintetizou:

I- Os poderes conferidos ao tribunal ad quem pelo artº 712º, nº 1 do CPC devem ser articulados com o disposto no artº 655º, nº 1 do CPC, segundo o qual “O tribunal colectivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.

II-O que significa que o tribunal ad quem deve ser especialmente cuidadoso na reapreciação do julgamento da matéria de facto, só devendo proceder à alteração dessa matéria se a mesma padecer de erro notório ou manifesto.

No caso posto, a produção de prova não nos merece reparo; a livre apreciação da mesma levada a cabo pelo Senhor Juiz mostra-se em estrito cumprimento dos ditames da lei, fundamentando exaustivamente a sua convicção, razão pela qual não nos atrevemos a bulir nos factos.

Deste modo, repete-se, não haverá alteração à matéria de facto.

Há, porém, um ponto em que a Recorrente tem razão.

Relativamente ao facto levado ao probatório sob o nº 1, certamente por lapso, a descrição realizada pelo Tribunal a quo distancia-se da localização do sinistro dos autos e o veículo sinistrado é o XT e não o TO.
Assim, uma vez que tal facto está, além do mais, em contradição com o facto provado sob o nº 12 e com o auto de participação da Guarda Nacional Republicana donde consta que a via tinha 3,60 metros de largura, tal facto nº 1 passará a ter a seguinte redacção:

1.O local apontado como palco do acidente, configura-se como uma recta, com cerca de 3,60 metros de largura, seguida de uma curva à direita, e apresenta uma descida com ligeira inclinação, atento o sentido de marcha do veículo “XT”.

Em suma:

-Os poderes dados à Relação sobre a alteração da matéria de facto provada em 1ª instância têm que se cingir a casos de flagrante desconformidade entre o que foi produzido em termos de prova e aquilo que foi dado como assente;

-Só em casos extremos é que a Relação poderá alterar a matéria de facto dada como provada pelo julgador da 1ª instância e apenas quando se verifique que as respostas dadas não têm qualquer fundamento face aos elementos de prova trazidos ao processo ou que estão totalmente desapoiadas do que se produziu em audiência de julgamento;

-Decidiu-se no Acórdão do STJ, de 10 de março de 2005, que a plenitude do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto sofre naturalmente a limitação que a inexistência de imediação necessariamente acarreta, não sendo, por isso, de esperar do tribunal superior mais do que a sindicância de erro manifesto na livre apreciação das provas.

Na verdade, não basta ao recorrente discordar quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer “um segundo julgamento”, com base na gravação da prova: o poder de cognição deste tribunal, em matéria de facto, constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância, sem assumir a amplitude de um novo julgamento que faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação daquela mesma instância.

-É que “Na impugnação da decisão da matéria de facto do tribunal de 1ª instância, o objecto precípuo da cognição do Tribunal da Relação não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes uma apreciação e valoração autónoma da prova produzida, labor que, contudo, se orienta para a detecção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto. Por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento” - Acórdão da RC de 28/06/2011, proc. 185/07.5TBANS-B.C1.

Do erro de julgamento de direito –

A Recorrente alicerça a sua fundamentação jurídica na presunção de culpa por omissão do Réu.

Na sua óptica a responsabilidade desta entidade afirma-se na medida em que é responsável pela manutenção da via em que ocorreu o acidente, motivo pelo qual sobre ela impendem especiais deveres de manutenção, vigilância e fiscalização, entre outros, por forma a garantir a segurança dos que nela circulam.

Advoga a presença de todos os pressupostos da referida responsabilidade civil.

Cremos que lhe assiste razão.

Está em causa, como se viu, a verificação dos requisitos da invocada obrigação de indemnizar do Réu Município relativamente à Autora, em virtude do sinistro dos autos.
Ora, mesmo dos factos considerados provados pelo Tribunal a quo infere-se que se verificavam reunidos todos os pressupostos para a pretendida responsabilidade civil extracontratual.

Para que o Réu Município seja condenado a ressarcir a Autora de todos os prejuízos sofridos pelo sinistro é necessária a observância dos seguintes requisitos: o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo causal entre o facto e o dano.
O facto, como sabemos, consiste num comportamento voluntário, traduzido numa acção ou omissão.

Retomando o caso dos autos constatamos a concorrência de vários factos positivos (acção) e negativos (omissão).

O Réu, como resulta dos factos provados, intervencionou o muro de suporte da via de circulação. Realizou obras de construção que incidiram sobre o muro que cedeu e ocasionou o acidente em apreço.
Ora, resulta do probatório que o Réu executou de forma irregular as obras de construção do muro de suporte da via de circulação.

Os termos em que essa intervenção foi realizada não asseguraram a circulação de veículos pesados, como o XT, pela via, em condições de segurança. Facto que provocou o tombar do veículo XT quando o muro de sustentação da via e a via cederam no cumprimento de cerca de 15 metros e numa profundidade de cerca de um a dois metros.

Na intervenção realizada no muro de sustentação da via de circulação o Réu não cuidou de implementar na construção do muro as necessárias condições de segurança, nomeadamente a construção de alicerces e reforço da parte de betão. Recorde-se que a parte do muro em que o betão estava reforçado (na parte de alcatrão) o muro e a via não cederam. Concorrem com o facto positivo referido dois factos omissivos.

A inexistência de vigilância da via pelo Réu e a omissão de sinalização da via onde sucedeu o sinistro como interdita à circulação de veículos pesados.

Após a intervenção realizada pelo Réu, não mais foram implementadas acções de fiscalização da via e suas infraestruturas, nomeadamente o muro de sustentação.

O Réu, como entidade executante da obra de construção civil correspondente ao muro de suporte da via de circulação que cedeu, deveria, face às características do muro que construiu, restringir a circulação de veículos pesados na via em causa nos autos, o que não fez.

Ao não fiscalizar a via e infraestruturas adjacentes e ao não proibir a circulação de veículos pesados pela via (conhecendo as características do muro de sustentação construído) o Réu, por omissão, não impediu o sinistro dos autos, o qual não teria sucedido se houvesse fiscalização adequada e a circulação pela via Rua Central de (...) estivesse interdita a veículos pesados.

Daí a presença do primeiro dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual.

E o que dizer da ilicitude?

Que a própria factualidade que o Tribunal a quo deu como provada encerra em si factos, que, por acção e por omissão, provocaram o sinistro dos autos.

A construção do muro sem a segurança necessária à circulação de todos os veículos admitidos a circular pela via e a omissão da restrição de circulação a veículos pesados.

Qualquer destes factos foram praticados pelos responsáveis e trabalhadores do Réu.

Serão tais factos ilícitos?

Temos, para nós, que sim.

Como alegado, a ilicitude de um facto materializa-se pela ofensa de direitos de terceiros, de um direito subjectivo de outrem ou de disposições legais com vista à protecção de interesses alheios.

É atribuição da Câmara Municipal, entre outras, nos termos do disposto nos artigos 23º, 33º, alíneas w), y), ee) e qq, 35º, alínea h) da Lei 75/2013, de 12 de setembro, com a redacção em vigor à data dos factos, “criar, construir e gerir instalações, equipamentos, serviços, redes de circulação, de transporte, de energia, de distribuição (…) integrados no património do município. E “praticar os actos necessários à administração corrente do património do município e à sua conservação”.

Ora, face às atribuições do Réu, competências atribuídas à Câmara Municipal e ao Presidente da Câmara, a construção do muro sem condições de segurança adequadas e a subsequente omissão do dever de vigilância e conservação da via e a omissão da interdição da circulação de veículos pesados pela via em causa constituiu a violação de disposições legais com vista à protecção de interesses alheios.

São atribuições das câmaras municipais a conservação, reparação, gestão e vigilância das ruas, arruamentos e vias municipais, incluindo não só as faixas de rodagem, mas também as demais infraestruturas.

Neste pressuposto, compete-lhes tomar todas as medidas necessárias e adequadas à segurança e comodidade do trânsito de peões e veículos nelas efectuado. O que pressupõe a continuada e sistemática gestão e fiscalização do seu estado de conservação, arborização, sinalização (incluindo a temporária) e demarcação, em ordem a evitar eventos danosos, garantindo aos seus utilizadores o mínimo de segurança.

Face ao exposto, os factos positivos (construção do muro) e omissivos (inexistência de fiscalização e de restrição de circulação) porque violadores de normas legais destinadas a proteger interesses alheios, são factos ilícitos.

Pelo que também o requisito da ilicitude se mostra presente.

Com efeito, o Réu ao intervir no muro de suporte e ao não restringir a circulação aos veículos pesados criou nos utentes, entre os quais a Autora, a confiança de que podia circular pela via e que o podia fazer em segurança. O que efectivamente não sucedeu, uma vez que a via e o muro cederam obrigando o XT a capotar.

Em face da factualidade provada temos que foi a via e o muro que cederam.
Não se trata de qualquer despiste do veículo. Atente-se no probatório:

5. No local da descarga, quando o condutor do veículo se encontrava a realizar a manobra de marcha atrás, pela Rua Central de (...), o lado esquerdo da via, atenta a posição do veículo pesado, cedeu numa distância de cerca 15 metros.
6. A via cedeu entre um a dois metros de profundidade.
7. Na parte da via que cedeu estavam as rodas traseiras e dianteiras do lado esquerdo do veículo da Autora identificado nos autos.
8. A cedência do piso da via provocou que o veículo propriedade da Autora se enterrasse sobre o lado esquerdo e seguidamente tombasse.
9. Ao tombar, o veículo referido, foi projetado para um campo agrícola que confina com a estrada municipal e encontra-se em patamar inferior ao da via de circulação, ficando tombado e com a cabine para o chão - cfr. doc. nº 5 e 6 juntos aos autos com a p.i. e que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
10. O muro de suporte da via de circulação foi intervencionado pela Ré.
11. A Ré construiu uma guia em cimento que estava assente em cima de um muro de suporte da via.
12. No local referido no artigo anterior, a via publica é composta por uma estrada em paralelo, reta com ligeira inclinação descendente.
13. É marginada, pelo lado da cedência, por um muro de suporte.
14. A via e o muro de sustentação da via, onde circulava o veículo da Autora, cederam cerca de 15 metros de cumprimento provocando a inclinação do veículo para o lado da berma, acabando por virar por completo para o terreno contínuo, em patamar inferior à referida via.
15. A forma inesperada e repentina como a via e o muro cederam não permitiu ao condutor do veículo pesado qualquer reação.
16. A faixa de rodagem onde ocorreu o acidente é uma via aberta ao trânsito, incluindo veículos pesados, tendo o condutor do veículo feito já duas descargas anteriores naquele local.
17. O veículo sinistrado apresentava uma distância entre eixos 5,00 metro, com 8.180m de cumprimento e 2,250 m de largura.
18. Considerando as características e peso do veículo sinistrado, bem como o estado do pavimento e a inclinação do veículo após a cedência do piso, o mesmo teve que ser removido do local mediante a utilização de uma grua e uma máquina retroescavadora.

A factualidade descrita revela, assim, uma notória fragilidade da estrada.

E então, das duas, uma: ou deveria estar bem construída de modo a permitir a circulação daquele tipo de veículos ou deveria ter sido limitada a tonelagem na circulação naquela via. Nem uma coisa, nem outra, existia, pelo que a ilicitude e a culpa recaem sobre o responsável pela via.

Urge, assim, enfrentar a culpa.
Como é sabido, a culpa exprime uma ligação reprovável ou censurável entre o facto e a pessoa. Impõe-se saber se o agente, em concreto, podia e devia agir de forma diferente.

Segundo a doutrina e a jurisprudência, a culpa traduzir-se-á, fundamentalmente, num juízo de censura sobre o comportamento (acção ou omissão) do titular de órgão ou de agente, por tal conduta não corresponder à que é exigível e esperada de um funcionário típico, normal, zeloso e cumpridor, nas circunstâncias do caso concreto. Trata-se, essencialmente, de apreciar a culpa num plano funcional, no plano de exercício de funções, ou seja, no plano de um comportamento que se traduza numa normal, diligente e zelosa aplicação de regras (ou, numa anormal e negligente aplicação dessas mesmas normas). Ante o exposto, a ilicitude e a culpa são conceitos preenchidos pela omissão ou deficiente cumprimento de deveres funcionais, já que os funcionários e agentes administrativos encontram-se sujeitos a normas que os obrigam a possuir os conhecimentos jurídicos, técnicos ou outros, necessários ao exercício da sua profissão.

A fronteira entre o ilícito e a culpa é de tal forma ténue, que a nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que uma vez provada a omissão do dever funcional, sem que o Estado e demais entes públicos tenham provado qualquer facto justificativo dessa omissão (ou que esta não se verificou), provada se deve ter a culpa da entidade lesante - v., por todos, o Acórdão do STA de 25/3/1999, proferido no âmbito do proc. 041297.

No caso posto, a situação de responsabilidade civil extracontratual resulta de danos emergentes de omissão de conduta por parte de uma pessoa coletiva de direito público, pelo que a aferição dos respetivos pressupostos de responsabilidade rege-se pelo Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Publicas (RRCEE), aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de dezembro, conforme resulta do disposto no artigo 1º/1 e 2, deste diploma.

Por outro lado, a verificação de uma situação de omissão de deveres de vigilância sobre coisas - no domínio das actividades materiais de fiscalização na rede viária municipal a que o Réu Município se encontra adstrito - desencadeia o mecanismo de presunção de culpa previsto no artigo 10º/3, do RRCEE. Presunção que também resulta da aplicação do disposto no artigo 493º/1 do Código Civil, na medida em que o Réu tem em seu poder coisa imóvel com o dever de a vigiar.
In casu essa presunção não foi ilidida pelo Réu.

Logo, não tendo este requisito sido ilidido pelo Réu, como lhe competia, tem-se por verificado.

Do Dano -
No que respeita ao dano, é sabido que o dano ou prejuízo pode ser definido como a diminuição ou extinção de uma vantagem que é objecto de tutela jurídica.
Trata-se de um conceito polissémico que envolve toda uma pluralidade de situações, a saber: (i) danos emergentes ou imediatos que respeitam à privação de vantagens que já existiam na esfera jurídica do lesado no momento da lesão; (ii) lucros cessantes que se reportam aos benefícios que o lesado deixou de auferir por causa da lesão (mas devendo ser certos e não apenas meramente possíveis) (artº 564º/1 do CC); (iii) danos presentes são aqueles que já ocorreram no momento da fixação da indemnização; (iv) danos futuros são aqueles que ainda não ocorreram no momento da fixação da indemnização (artº 564º/2 do CC); (v) danos patrimoniais denominam-se todos os danos susceptíveis de avaliação pecuniária; e, (vi) danos morais ou não patrimoniais designam-se todos os outros danos que são insusceptíveis de uma tal avaliação - v. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, em Direito Administrativo Geral, Tomo III (Actividade administrativa), Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2009, 2ª ed. págs. 495/496.

Traduzido no prejuízo sofrido pelo lesado, o dano, pode, assim, ser de natureza patrimonial ou não patrimonial. É medido pela diferença entre a situação real actual do lesado e a situação hipotética em que ele se encontraria se não sucedesse o sinistro.

Dos factos provados resultam os danos suportados pela Autora, bem como os que ainda continua a suportar.

A reparação do XT está orçamentada em € 7 819,11, com IVA incluído. Os materiais perdidos tinham o valor de € 474,34.
O veículo está imobilizado desde a data da ocorrência, tendo, até à entrada da acção em juízo, decorrido 465 dias de privação do veículo, à taxa diária de € 171,75.

Imobilização que se mantém até à reparação efectiva, o que terá de ser liquidado em execução de sentença.

Atente-se na factualidade tida por provada:

19. O custo da remoção do veículo da Autora foi orçamentado em € 1.106,69 (mil cento e seis euros e sessenta e nove cêntimos) - cfr. docs. nº 7 e 8 juntos aos autos com a p.i. e que aqui se dão como integralmente reproduzidos;
20. Como consequência direta do acidente, resultaram os seguintes danos materiais no veículo:
- Porta esquerda;
- Painel esquerdo;
- Estribo esquerdo;
- Espelho retrovisor esquerdo completo;
- Guarda - lamas esquerdo;
- Guarda-lamas direito;
- Vidro porta esquerda;
- Canto esquerdo;
- Pisca frente esquerdo;
- Pisca frende direito;
- Vidro p/brisas;
- Pala g/lamas esquerdo;
- Serviço de pintura;
- Serviço de mão-de-obra, conforme se descrimina no orçamento que se junta como doc. n° 10 orçados num total de € 7.819,11 (sete mil oitocentos e dezanove euros e onze cêntimos), no qual já se inclui a taxa legal de IVA.
21. A A. perdeu parcialmente os materiais que transportava no veículo, nomeadamente a areia mistura fina e o cimento Cosmos tudo com o valor de € 474,34 (quatrocentos e setenta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos), com Iva incluído.
22. Em 4 de Maio de 2015, na sequência do sucedido, a Autora interpelou a Ré para proceder à reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude do referido acidente - cfr. doc. nº 9 junto aos autos com a p.i. e que aqui se dá como integralmente reproduzido;
23. O Réu, até à presente data, ainda não proferiu qualquer decisão sobre o pedido de reparação formulado pela Autora no dia 4 de Maio de 2015.
24. Face à omissão de resposta, a Autora, por carta de 25 de Novembro de 2015, voltou a interpelar o Réu Município.
25. O Réu recusou-se a fornecer ou a pagar à Autora o valor diário de um veículo sucedâneo de substituição.
26. O veículo da Autora encontrava-se imobilizado desde a data da ocorrência do acidente, aguardando por uma decisão da Ré para a Autora mandar proceder à sua reparação.
27. Este era o único veículo de carga que a Autora possuía que tinha grua.
28. Segundo a referida tabela o valor diário de indemnização pela paralisação de um veículo como o dos autos é o valor de € 171,75 (cento e setenta e um euros e setenta e cinco cêntimos).
29. O sinistro foi a 02 de Maio de 2015, pelo que a Autora estava privada de utilizar o veículo, à data de entrada da presente acção, há 465 dias.

E o que dizer do nexo de causalidade?
Quando a acção ou omissão em causa seja susceptível de se mostrar, à face da experiência comum, como adequada à produção do dano, havendo fortes probabilidades de o originar, devem os danos apresentar-se como uma consequência normal, típica e provável do facto ilícito.

No caso dos autos também este requisito se mostra preenchido.

Na verdade, se o Réu construísse o muro de suporte com as características e segurança necessária à circulação de veículos pesados, a via e o muro não tinham cedido e, consequentemente, não teria a Autora suportado os danos que suportou e está a suportar.

O mesmo se diga, relativamente à omissão de fiscalização e manutenção, porquanto se o Réu fiscalizasse com frequência a via e as infraestruturas adjacentes, com certeza teria verificado que o muro de suporte da via não era adequado a suportar a circulação de veículos pesados.

Enquanto entidade executante da obra de construção do muro de suporte da via, o Réu, face às características com que o mesmo foi construído, deveria ter sinalizado a via como interdita à circulação de veículos pesados.

Como alegado, se não tivesse violado essa obrigação legal (artº 5º/2 do Código da Estrada), a de sinalização, o veículo XT não teria circulado pela via e consequentemente não teria sucedido o sinistro. Como não sinalizou criou nos utilizadores da via a confiança de circulação e o XT, ao circular pela mesma, sem que a via e o muro suportassem, cederam e o veículo tombou.

Temos, assim, verificados todos os pressupostos de que depende a obrigação de indemnização do Réu.

Procedem as conclusões da alegação.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso
, revoga-se a sentença e julga-se procedente a acção, condenando-se o Réu Município nos termos formulados na petição inicial.
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Custas pelo Réu/Recorrido.
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Notifique e DN.
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Porto, 05/02/2021


Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Helena Canelas