Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00205/16.2BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/02/2021
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:HABITAÇÃO SOCIAL; RENDA TÉCNICA; RENDAS VENCIDAS;
Sumário:1 – É recorrível o ato que determina a aplicação da renda técnica a um fogo de habitação social, uma vez que é com tal ato que é definida, em concreto, a situação jurídica do interessado.

2 - É incontornável o facto dos arrendatários não terem reagido ao facto de lhes ter sido fixada renda do seu locado habitacional, correspondente a valor significativamente superior àquele que vinham pagando (Passou de 28,18€ para 234,64€), o que determinou que o referido valor se tenha consolidado na ordem jurídica.

3 - Consistindo a alteração da renda efetuada, à luz do DL nº 166/93, um ato natureza administrativo, tal determinou que os inquilinos se tenham constituído na obrigação de pagar as novas rendas fixadas pela ocupação do locado, sem prejuízo da possibilidade que tinham de recorrer aos tribunais administrativos para impugnar ou suspender o referido ato, prerrogativa que não foi adotada, em face do que a referida obrigação se consolidou na ordem jurídica.
Assim, por força do "caso decidido" ocorreu a intangibilidade dos efeitos individuais já verificados na esfera jurídica dos seus destinatários.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:E. e Outros
Recorrido 1:Associação de Solidariedade (...)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
*

I Relatório

E. e I., no âmbito da Ação Administrativa intentada pela ASE – Associação de Solidariedade (...), tendente, em síntese, a:
“A) Serem os Réus condenados a reconhecer a Autora como dona da fração correspondente ao 3.º andar D, do Bloco 224 da Urbanização (...), inscrita na matriz predial urbana da extinta Freguesia de (...) o artigo 2582 A e descrita na Conservatória do Registo Predial (...) sob o n.º 1282 A;
B) Serem os Réus condenados a pagar à Autora as rendas vencidas entre 1 de Março de 2012 e 30 de Junho de 2014, não pagas, no valor de 6.659,92 euros, valor a que deve ser deduzidos o montante pagos pelos Réus de 986,30 euros, estando, por isso, em dívida a quantia de 5.673, euros (cinco mil seiscentos e setenta e três euros e sessenta e dois cêntimos).

Inconformados com o Acórdão proferido em 26 de outubro de 2020 que julgou a ação procedente, condenando-os, nomeadamente, no pagamento à Autora, aqui Recorrida, de 5.673,62€, vieram interpor recurso jurisdicional do referido Acórdão, proferido em primeira instância no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.

Formulam os aqui Recorrentes/E. e I. nas suas alegações de recurso, apresentadas em 2 de dezembro de 2020, as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida, ao considerar que os Réus deveriam ter entendido como um ato administrativo, emanado de um ente da Administração Pública dotado de jus imperium, a comunicação em que a Autora lhes transmite deliberar aplicar ao contrato de arrendamento o regime de renda apoiada e os termos em que determina o valor do arrendado, sendo certo que tal entendimento jamais seria percecionado por qualquer declaratário normal colocado na posição dos Réus, violou o disposto no artigo 236.º do Código Civil;
2. A aludida sentença, ao atribuir à Autora a qualidade sujeito público dotado de jus imperium, que exerceu na referida comunicação aos Réus, e não relevando que a mesma jamais lhes prestou quaisquer informações e esclarecimentos que lhes permitissem adequar o seu comportamento, desconsiderou, em especial, os princípios da boa-fé e da colaboração com os particulares a que estaria vinculada nos termos do estipulado nos artigos 10.º e 11.º, respetivamente, do Código do Procedimento Administrativo;
3. É manifesto que o comportamento da Autora, por ação - recorrendo à instância cível - e omissão - abstendo-se de elucidar cabalmente os Réus da qualidade em que atuou - induziu os Réus em erro quanto aos termos e moldes em que poderia impugnar as suas deliberações.
Assim, pelo menos, deveria a sentença recorrida ter decidido conferir aos Réus a possibilidade de impugnar o que qualificou como ato administrativo no prazo de três meses a contar do trânsito em julgado dessa decisão, conforme previsto na alínea b), do n.º 3, do artigo 58.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos.
4. Ao fixar a renda com base numa área útil do prédio muito superior à que o prédio realmente tem e com base em estado de conservação aleatório, pois não foi determinado por exame ao local, a A. inflacionou infundadamente o valor da renda que exige, procurando locupletar-se indevidamente à custa dos RR., violando os mais elementares princípios que devem ser respeitados em toda a contratação, o que constitui manifesto abuso de direito nos termos em que este conceito se mostra definido pelo artigo 334º do Código Civil.
5. Como se decidiu nos arestos do Tribunal da Relação do Porto de 3 de abril de 2001, proferido no processo 127/2001 da 29 Secção e do Supremo Tribunal de Justiça de 05/11/2001 no processo 2676/01-6.
Termos em que, e nos que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deve a sentença recorrida ser revogada, com o que se fará Justiça.”

Em 12 de fevereiro de 2021 veio a Recorrida ASE - Associação de Solidariedade (...) apresentar as suas Contra-alegações de Recurso, nas quais discorreu:

“A douta sentença recorrida não viola qualquer dispositivo legal, nem merece qualquer censura.
A Autora/Recorrida sempre atuou no estrito cumprimento da legislação, prestando todos os esclarecimentos que se impunham aos Réus/Recorrentes, atuando no cumprimento dos poderes que a lei lhe confere.
Os Réus/Recorrentes é que, por sua vez, sempre demonstraram muita dificuldade em reconhecer a Autora como proprietária do imóvel, uma vez que entendiam que, em vez do IGAPHE ter cedido a sua posição à ASE, deveria ter doado o imóvel aos arrendatários por aí residirem desde que o imóvel foi construído.
Todavia, como é consabido, ninguém pode invocar o desconhecimento da lei, para não a cumprir, expediente que, agora, os Réus/Recorrentes decidiram usar.
A Autora/Recorrida apenas propôs inicialmente a ação na instância cível, pelo facto da tramitação ser mais célere, com esperança que os Réus ficassem cientes de que não iria desistir de cobrar judicialmente a dívida e encetassem negociações com vista a um acordo.
A estratégia, obviamente, não obteve sucesso, pelo que a Autora recorreu ao disposto no artigo 99º, nº 2 do Código Processo Civil.
Pelo exposto, em nossa opinião e com o devido respeito por outra melhor, o recurso apresentado não merece provimento JUSTIÇA”

O Recurso Jurisdicional apresentado veio a ser admitido por despacho de 12 de fevereiro de 2021.

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 01/03/2021, nada veio dizer, requerer ou Promover.

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar

Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes/E. e I., sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, importando verificar, designadamente, a suscitada desconsideração dos “princípios da boa-fé e da colaboração com os particulares”.

III – Fundamentação de Facto

O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade:

A. Em 1 de Junho de 1981, foi celebrado contrato de arrendamento entre o Fundo de Fomento da Habitação e E., ora Réu, já na época casado com a Ré I., pelo qual o primeiro deu de arrendamento ao segundo o 3.º andar D, do Bloco D, do Bairro (...) 1, em (...) – cfr. doc. n.º 1 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
B. O contrato de arrendamento dos Réus foi celebrado por um prazo de um ano, com início em 1 de Junho de 1981, considerando-se sucessivamente renovado por iguais períodos se não for denunciado por qualquer dos outorgantes com a antecedência mínima de 30 dias em relação ao termo do prazo contratual – cfr. doc. n.º 1 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido (cfr cláusula II do doc. 1); facto não controvertido.
C. A Cláusula IV do referido contrato estipula que: "Quando a renda não for paga no prazo estabelecido no presente contrato, disporá o inquilino de 15 dias para efetuar o seu pagamento aumentada de 15% sobre o respetivo montante; decorrido este prazo ficará o arrendatário obrigado a pagar, além das rendas em atraso, uma indemnização igual a 50% do que for devido" – cfr. doc. n.º 1 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido (cfr cláusula II do doc. 1); facto não controvertido.
D. A cláusula III do contrato de arrendamento estabelece que "A renda mensal é de 5.650,00 escudos (cinco mil e seiscentos e cinquenta escudos), atualizável nos termos do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 49.033, de 28 de Maio de 1969 e será paga nos primeiros oito dias e de cada mês na Caixa Geral de Depósitos" – cfr. doc. n.º 1 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
E. O 3.º andar D, do Bloco 224 (antes designado por Bloco D) encontra-se inscrito na matriz predial urbana da extinta Freguesia de (...) sob o artigo 3582-A descrito na Conservatória do Registo Predial (...) sob o n.º 1282 A – Cfr. docs. 2 e 3 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
F. Em 13 de Outubro de 1988, o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), através da Direção de Gestão Habitacional do Centro, comunicou a atualização de renda social aos inquilinos ora Réus, mas manteve o mesmo valor - Cfr. doc. n.º 5 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
G. O Fundo de Fomento à Habitação, entretanto, foi extinto, tendo-lhe sucedido o IGAPHE - Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado – facto não controvertido.
H. Com fundamento e nos termos do artigo 4.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30.12, em 22 de Fevereiro de 2005, o IGAPHE celebrou com a ASE, ora Autora, instrumento escrito denominado de “transferência de património, direitos e obrigações do IGAPHE para a “ASE – ASSOCIAÇÃO DE SOLIDARIEDADE (...)” AUTO DE CESSÃO, com o teor constante no doc. n.º 4 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte que ora se transcreve na parte que releva:
“CLÁUSULA PRIMEIRA
Nos termos do artigo 4.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro, atenta a deliberação do Conselho Diretivo do IGAPHE, de 30/11/2004, que aprovou a proposta da Comissão de Avaliação nomeada nos termos e para os efeitos previstos na Resolução do Conselho de Ministros n.º 83/2004, de 21 de Maio, o IGAPHE transfere para a ASE, e esta aceita, sem quaisquer contrapartidas:
a) o direito de propriedade e os respectivos direitos e obrigações sobre as frações autónomas sitas no Bairro (...), em (...), freguesia de (...), concelho de (...), descritas no Anexo I ao presente auto de cessão que dele faz parte integrante para todos os efeitos;
b) os direitos e obrigações sobre as frações autónomas em regime de propriedade resolúvel sitas no Bairro (...), descritas no Anexo II ao presente auto de cessão que dele faz parte integrante para todos os efeitos.
(…)
CLÁUSULA SEGUNDA
1. A ASE, juntamente com a transferência dos bens referidos na cláusula primeira, aceita a partir da data da respetiva transmissão a responsabilidade pelos direitos e obrigações inerentes aos mesmos, nomeadamente:
a) os contratos de arrendamento, de comodato e de venda em propriedade resolúvel, escritos ou verbais, celebrados pelo IGAPHE ou pelas entidades que o antecederam na titularidade daquele património;
(...)
d)o direito ao recebimento das rendas e prestações de propriedade resolúvel em dívida, bem como o direito a quaisquer indemnizações devidas pelos respectivos moradores e ex-moradores.
(…)
CLÁUSULA TERCEIRA
A transferência de propriedade sobre os bens imóveis, bem como sobre os respectivos direitos e obrigações, anteriormente identificados produz efeitos a partir de um de Março de 2005.
(…)
CLÁUSULA QUINTA
O arrendamento dos fogos destinados a habitação fica sujeito ao regime de renda apoiada, nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio”. (…)
I. Através desse Auto de Cessão, o IGAPHE cedeu à Autora o direito de propriedade sobre a fração supra identificada, arrendada aos Réus – Cfr. doc. n.º 4 da p.i.; facto não controvertido.
J. Desde essa data, a Autora pratica todos os atos de quem é dono da fração, cobrando a respetiva renda, suportando as despesas das partes comuns, pagando os impostos, à vista e de toda a gente, sem interrupção, de forma pacífica, sem oposição de quem quer que seja, agindo na convicção de que a fração lhe pertence – facto não controvertido.
K. A ora Autora é dona e legítima possuidora do referido prédio, tendo sucedido na posição contratual do IGAPHE, pelo que é senhoria de várias frações da Urbanização (...) descriminadas no Auto de Cessão, entre as quais consta a fração melhor identificada na alínea e) precedente – facto não controvertido.
L. A Autora é senhoria dos Réus desde 01 de Março de 2005, data a partir da qual o referido Auto de Cessão começou a produzir os seus efeitos – facto não controvertido; doc. n.º 4 da p.i.
M. Entre 1988 e 2012, nem a renda dos Réus, nem nenhuma outra da Urbanização (...), sofreu qualquer atualização – facto não controvertido.
N. Apesar de ter tomado posse das frações constantes do Auto de Cessão em 01 de Março de 2005, a Autora decidiu não atualizar as rendas de imediato – facto não controvertido.
O. A Autora, enquanto instituição particular de solidariedade social, é uma pessoa coletiva de direito privado – facto não controvertido.
P. A Autora não tem fins lucrativos e foi fundada em Janeiro de 1979 – facto não controvertido.
Q. A Autora recebeu as frações autónomas da Urbanização (...) sujeita ao regime de renda apoiada, conforme consta no Auto de Cessão e no subsequente registo na Conservatória do Registo Predial (...) – Cfr. docs. n.ºs 3 e 4 da p.i. que se dão por integralmente reproduzidos; facto não controvertido.
R. No registo na Conservatória do Registo Predial (...), relativamente ao prédio em causa nos autos, foi inscrito o seguinte que ora se transcreve na parte que releva:
“Ap.03/200905. - AQUISIÇÃO a favor de "Ase, Associação de Solidariedade (...)", com sede em (...) - Cessão gratuita do Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE). Cláusulas: A alienação das frações terá de ser feita nos termos e condições do decreto-lei n.º 141/88, de 22 de Abril, com a redação dada pelo decreto-lei n.º 288/93, e 20 de Agosto: O arrendamento dos fogos destinados a habitação fica sujeito o regime de renda apoiada, nos termos do disposto no decreto-lei n.º 166/93 de 7 e Maio; No caso de incumprimento das obrigações previstas no auto de cessão, contrato poderá ser resolvido, revertendo o património em posse da "Ase, Associação de Solidariedade (...)", para o instituto de Gestão e alienação do património Habitacional do Estado (IGAPHE), ou para entidade que lhe suceda. Abrange 7 frações” – Cfr. docs. n.ºs 3 e 4 da p.i. que se dão por integralmente reproduzidos; facto não controvertido.
S. A Autora comunicou a sua intenção de atualizar as rendas das diversas frações aos respectivos arrendatários através de carta registada com aviso de receção, enviada aos Réus em 08 de Julho de 2011, na qual solicitava o seguinte: " ... que se digne enviar-nos, no prazo de 30 dias, a prova dos rendimentos atuais do seu agregado familiar, sendo que este é composto, nos termos do Decreto-Lei 166/93, de 07 de Maio, por V. Excia, pelo cônjuge ou por pessoa que consigo viva em união de facto, pelos parentes ou afins em linha recta ou até ao 3.º grau do linha colateral, bem como pelas pessoas relativamente às quais, por força da lei ou de negócio jurídico que não respeite diretamente à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos e ainda outras pessoas a quem o IGAPHE ou a ASE tenha autorizado a coabitação com o arrendatário. Estes elementos estão a ser solicitados de acordo com o estabelecido no contrato de arrendamento celebrado com V. Excia e no decreto-lei supra referido, na sequência da decisão de atualizar as rendas do Urbanização (...) tomada na última Assembleia Geral da ASE." – cfr. doc. n.º 6 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
T. No prazo de 30 dias, os Réus nada fizeram – facto não controvertido.
U. Então, a Autora enviou carta registada com aviso de receção, datada de 14 de Novembro de 2011 e rececionada pelo Réu marido em 16.11.2011, onde consta o seguinte:
"Tendo sido V. Excia notificada para, em trinta dias, juntar prova dos rendimentos do seu agregado familiar, por carta registada datada de 8 de Julho de 2011 e rececionada por VExcia em 12 de Julho seguinte e não tendo entregue qualquer documento dentro do prazo previsto na lei para o efeito, nem até à presente data, sem que para tal tenha apresentado qualquer justificação, informamos V. Excia que, nos termos do artigo 9.º, n.º 3 do DL 166/93 de 7 de Maio, ficará obrigada ao pagamento por inteiro do preço técnico da fração arrendado.
O preço técnico da fração arrendada a V. Excia calculado nos termos do referido diplomo legal é de 234,64 euros.
Assim, a partir de 1 de Janeiro de 2012, V. Excia deverá pagar mensalmente a quantia de 234,64 euros.
Alertamos V. Excia que, caso pretenda, poderá entregar à ASE, no prazo de dez dias, documentos comprovativos dos rendimentos e da composição do seu agregado familiar, que possam corrigir o montante mensal de renda a pagar por V. Excia." – Cfr. doc. n.º 7 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
V. Por carta datada de 22 de Novembro de 2011, os Réus enviaram à Autora, a Declaração de Rendimentos - IRS, Modelo 3 – Cfr. doc. n.º 8 que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
W. Como no IRS só constavam os rendimentos da Ré mulher e era do conhecimento da Autora que o Réu marido também dispunha dos seus próprios rendimentos, enviou carta registada, datada de 24.11.2011 rececionada pelo último em 25.11.2011, onde solicitava o comprovativo dos mesmos – Cfr. doc. n.º 9 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
X. Os Réus juntaram, então, comprovativo do recebimento do subsídio de desemprego – cfr. doc. n.º 10 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
Y. Na posse dos documentos, a Autora concluiu que o agregado familiar dos Réus é composto pelos próprios, conforme prova documental junta pelos Réus - cfr docs n.ºs 8 e 10 que se dão por integralmente reproduzidos; facto não controvertido.
Z. Os Réus auferiram em 2010 o rendimento ilíquido de 23.899,48 euros (vinte e três mil oitocentos e noventa e nove euros e quarenta e oito cêntimos) - cfr docs n.ºs 8 e 10 que se dão por integralmente reproduzidos; facto não controvertido.
AA. A Autora teve em conta apenas os rendimentos declarados pelos Réus e nenhuns outros - cfr docs n.ºs 8 e 10 que se dão por integralmente reproduzidos; facto não controvertido.
BB. Nessa sequência, em 29 de Novembro de 2011, a Autora enviou aos Réus, carta registada com aviso de receção, que estes receberam em 02.12.2011, onde consta:
"Acusamos a receção da v/ carta datada de 25 de Novembro de 2011, que contém a declaração de rendimentos de 2010, pelo qual se comprova que o agregado familiar de V. Excia e esposa auferiu rendimentos de 23.899,48 euros.
Conforme já expusemos, a atualização das rendas dos bairros de cariz social são obrigatoriamente efetuadas segundo as regras estabelecidas no DL 166/93 de 07 de Maio.
Assim, no caso de V. Excia, o cálculo do valor da habitação tem por base os seguintes critérios:
Tipo de habitação: fração autónoma; área útil: 93m2; preço habitação ml:587,22 (Portaria 1379-8/2009, de 30 de Outubro); nível de conforto:1,00; estado de conservação: 0,65; coeficiente de vetustez:0,30.
Nestes termos, o valor da habitação de V. Excia é de 35.196,40 euros.
Tendo em conta o fixado na lei, a partir de 1 de Janeiro de 2012, deverá V. Excia pagar mensalmente a quantia de 234,64 euros, que é igual ao preço técnico da fração arrendada a V. Excia, já que os rendimentos declarados por V. Excia ultrapassam o limite máximo que a lei considera como família carenciada de habitação social.
Caso V. Excia tenha qualquer dúvida, a ASE está disponível para prestar esclarecimentos" – Cfr. doc. n.º 11 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
CC. O Réu marido respondeu à carta referenciada no ponto anterior mediante ofício datado de 14.12.2011, no qual se insurge contra a aplicação do regime contido no DL n.º 166/93, de 07 de Maio – cfr. doc. n. 1 da contestação que se dá por integralmente reproduzido.
DD. Por carta registada datada de 27 de Janeiro de 2012 e rececionado pelos Réus em 31 de Janeiro de 2012, a ora Autora comunicou aos Réus que a Direção da Autora decidiu aplicar o regime da renda apoiada prevista no Decreto-Lei 166/93, de 7 de Maio, à fração autónoma da qual o Réu marido é arrendatário, e fixou a renda em 234,64 euros, a vigorar a partir de 1 de Março de 2012, na sequência do anúncio publicado, constando no ofício o seguinte que ora se transcreve na parte que releva:
“A ASE - Associação de Solidariedade (...) comunica a V. Excia que, na sequência da deliberação da Assembleia Geral de 04 de Março de 2011, a Direção decidiu, em reunião de 17 de Janeiro de 2012, aplicar o regime da renda apoiado prevista no Decreto-Lei 166/93, de 7 de Maio, à fração autónoma do qual V. Excia é arrendatário, sito no Bloco 224, 39 D (Matriz Predial freguesia de (...): 3582 A; Descrição Conservatória Registo Predial (...): 1282 A, da Urbanização (...), sito na freguesia de (...), concelho de (...), cedida pelo IGAPHE - Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado à ASE, através do Auto de Cessão celebrado em 22 de Fevereiro de 2005, cujo contrato de arrendamento para fim habitacional ainda não estava sujeito a este regime. Mais foi decidido que tal regime entra em vigor no dia 1 de Março de 2012, para o fogo de que V. Excia é arrendatário.
Para a determinação do valor do fogo foi aplicado o estabelecido no n.º 3, do artigo 4.º do citado Decreto-Lei, uma vez que as frações não são avaliadas desde que foram entregues aos inquilinos, pelo que o valor está manifestamente desadequado. Para a atualização do valor do fogo foram considerados os seguintes critérios, estabelecidos nos termos do regime da renda condicionada:
-nível de conforto (Cf): 1,00, dado que nenhum dos fogos possui garagem, nem quintal; estado de conservação (Cc): 0,65, considerando-se todos os elementos que compõe os fogos em razoável estado de conservação; coeficiente de vetustez (Vt): 0,30, dado que os fogos têm entre 26 e 30 anos; área útil (Au): a que consta na Conservatória do Registo Predial, de acordo com o artigo 1.º, n.º 6, do DL 329-A/2000, de 22 de Dezembro; Preço habitação por metro quadrado (Pc): o que corresponde à Zona III, nos termos do Portaria 1379-8/2009, de 30 Outubro).
O valor de cada habitação (V) foi calculada segundo a seguinte fórmula: V=Au x Pc x [0,85 x Cf x Cc x (1-0,35x Vt) + 0,15].
No caso da habitação de V. Excia foram tidos em conta os fatores supra descriminados, sendo que o Área útil da fração de V. Excia é 93 m2.
Assim, o valor da habitação de V. Excia, para este efeito, é de 35.196,40 euros.
O cálculo da renda apoiada tem em conto os rendimentos declarados por cada agregado familiar, sendo o Preço Técnico (Pt) calculado de acordo com a seguinte fórmula: Pt = t x V / 12, em que t corresponde à taxa das rendas condicionadas (art. 79.º, do DL 321-8/90, de 15 de Outubro). O Preço Técnico da fração arrendada a V. Excia é de 234,64 euros.
O valor da renda apoiado resulta do valor do Preço Técnico e de uma taxa de esforço e é determinado pela aplicação da taxa de esforço (T) ao rendimento mensal corrigido do agregado familiar, sendo a taxa de esforço (T), o valor, arredondado às milésimas, que resulta da aplicação da seguinte da fórmula: T=0,08 RC/Smn. Rc corresponde ao rendimento mensal corrigido do agregado familiar e Smn ao salário mínimo nacional.
Assim, tendo em conta os rendimentos apresentados por V. Excia relativos a 2010 e referentes ao seu agregado familiar, no montante anual de 23.899,48 euros, o valor da renda de V. Excia é de 234,64 euros, o que é igual ao Preço Técnico da fração, uma vez que os rendimentos ultrapassam o limite previsto para família carenciada de habitação social.
Paro o futuro, o ajustamento do valor da renda será efetuado anualmente, em função da variação do rendimento mensal corrigido do agregado familiar, cujos comprovativos serão enviados por V. Excia à senhoria ASE - Associação de Solidariedade (...), até ao primeiro dia do mês de Outubro de cada ano civil, sob pena de se aplicar o preço técnico calculado nos termos do citado diploma legal a partir de 1 de Janeiro do ano civil seguinte.
(...)” – Cfr. doc. n.º 12 da p.i. que se dá por integralmente reproduzido; facto não controvertido.
EE. O Réu Marido respondeu à comunicação referida no ponto anterior mediante ofício datado de 10.02.2012, no qual fez consignar o seguinte que ora se transcreve na parte que releva:
“(...)
Em resposta à vossa carta com a data de 27 de Janeiro de 2012, venho reafirmar o que disse na minha carta enviada à ASE, com a data de 29 de Dezembro de 2011, acrescentando o seguinte:
a) Não aceito que unilateralmente possam alterar o meu regime de arrendamento (Renda Social), para o regime de Renda Apoiada.
b) Sem prescindir, que a ser aplicável a determinação da renda pela fórmula indicada por V. Exas., o que não aceito, pois, o Coeficiente de Vetustez seria diferente do por vós considerado, pois o edifício e a respetiva fração de que sou arrendatário, tem mais de 30 anos de construção.
Quanto ao Coeficiente de Conservação, também não pode ser o por vós considerado, pois grande parte dos elementos que compõem o prédio e a fração que habito, encontram-se em mau estado de conservação.
Por último não aceito que a área útil seja a de 93 m2 por ser essa a que consta na Conservatória do Registo Predial, pois neste organismo o que consta é a área total da fração ou seja, a área bruta.
A área útil é determinada pela soma da área de cada divisão não considerando as paredes quer exteriores quer mesmo as interiores.
Por isso e por tudo o que atrás se descreve, contínuo a não aceitar a atualização da renda que pretendem impor” – cfr. doc. n.º 2 da contestação que se dá por integralmente reproduzido.
FF. Os Réus continuaram a depositar 28,18 euros a partir de 01 de Março de 2012 – facto não controvertido.
GG. Os Réus entregaram o local arrendado em 30 de Junho de 2014 – facto não controvertido.
HH. Apesar da entrega do locado, os Réus continuaram a depositar 28,18 euros até Janeiro de 2015 inclusive, tendo pago o valor total de 986,30€ – facto não controvertido.

IV – Do Direito

Analisemos então o suscitado.

Discorreu-se no discurso fundamentador da decisão recorrida:

Na presente ação, pretende a Autora a condenação dos Réus no pagamento da renda que entende ser devida, no valor mensal de 234,64€, na sequência da decisão da Direção que determinou aplicar o regime de renda apoiada prevista no Dl n.º 166/93, de 07 de Maio, à fração autónoma da qual os aqui Réus eram arrendatários, com efeitos a partir de 01.03.2012.
Efetivamente, por ofício remetido para o efeito, foram os Réus notificados que, por força da aplicação dos critérios previstos nos artigos 2.º e 4.º, do Dl n.º 166/93, de 07 de Maio, o valor da renda apoiada era fixada em 234,64€.
Notificados de tal ofício, os Réus não impugnaram judicialmente, seja nos Tribunais Judiciais, seja nos Tribunais Administrativos, a referida decisão, questão a que voltaremos infra, de modo a extirpar da ordem jurídica a referida decisão.
Já em sede judicial, e na presente ação, não colocando em causa propriamente a aplicação do regime de renda apoiada prevista no Dl n.º 166/93, de 07 de Maio, entendem os Réus que não é devido o valor mensal de 234,64€, essencialmente por a Autora ter aplicado incorretamente dois dos critérios previstos para o cálculo do valor da renda apoiada, designadamente no que respeita à área útil e ao critério do estado de conservação do locado.
(…)
Assim, defrontamo-nos com um litígio que emerge de um contrato de arrendamento outorgado, originariamente, entre o Fundo de Fomento da Habitação e o Réu Marido, tendo por objeto uma fração autónoma de um edifício integrado no parque habitacional da ora Autora, que lhe veio à sua esfera jurídica na sequência da transmissão da propriedade operada pelo auto de cessação constante no ponto H) dos factos assentes, com fundamento no artigo 4.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30.12, o qual se manteve afeto a satisfazer necessidades de pessoas mais carenciadas, isto é, para habitação social.
Com efeito, resulta da factualidade assente que, na sequência de um contrato celebrado em 1981, o Fundo de Fomento de Habitação deu de arrendamento, para habitação, a fração autónoma identificada nos presentes autos, ficando contratualmente estabelecido que a renda era paga na Caixa Geral de Depósitos à ordem do próprio Fundo de Fomento da Habitação.
Durante décadas, as partes cumpriram nesses termos o contrato celebrado.
Com fundamento e nos termos do artigo 4.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30.12, em 22 de Fevereiro de 2005, o IGAPHE celebrou com a ASE, ora Autora, instrumento escrito denominado de “transferência de património, direitos e obrigações do IGAPHE para a “ASE – ASSOCIAÇÃO DE SOLIDARIEDADE (...)” AUTO DE CESSÃO, nos termos do qual foi transferido para a Autora o direito de propriedade e os respectivos direitos e obrigações sobre as frações autónomas sitas no Bairro (...), em (...), freguesia de (...). Nos termos da cláusula VI ao auto de cessão, o arrendamento dos fogos destinados a habitação fica sujeito ao regime de renda apoiada, nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio.
Nessa sequência, e após anos sem ocorrer atualização do valor das rendas, por ofício datado de 27.01.2012 e notificado aos Réus em 31.01.2012, a aqui Autora - unilateralmente -, e com efeito a 01.03.2012, decidiu que a renda mensal devida pelos arrendatários era de 234,64€, renda essa calculada através da fórmula legalmente estabelecida no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio.
(…)
Para regulamentar esse regime de renda apoiada previsto no art. 82° R.A.U. foi publicado o Dec. Lei nº 166/93, 7 Maio, que tem por objeto "todas as habitações destinadas a arrendamento de cariz social", como se refere no respetivo preâmbulo. O regime legal previsto neste último diploma não é de direito privado, contrariamente aos regimes da renda livre e da renda condicionada que são estipulados por acordo das partes (v. art.77.°, n.ºs 1 a 3, do R.A.U.).
O Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio, veio estabelecer uma disciplina única para o regime de renda apoiada relativamente à habitação social promovida pelo Estado, pelas autarquias locais, ou por outras entidades, estabelecendo as bases em que a renda devida pela ocupação de tais habitações seria calculada, bem como o regime da respetiva atualização, essencialmente prevendo a fixação e atualização das rendas de acordo com os rendimentos do agregado familiar.
Ao abrigo deste regime, a entidade locadora, independentemente da sua natureza, encontra-se munida de prerrogativas de ius imperium, numa posição face ao arrendatário social de supra/infra ordenação, especialmente na possibilidade de poder solicitar aos inquilinos esclarecimentos e documentos que considerasse necessários, podendo aplicar sanção pecuniária se não satisfeita a solicitação (v. art.9° nºs 2 e 3 Dec. Lei nº 166/93), despejo administrativo e de transferência do agregado familiar em caso de subocupação (art. 10º, nº 2, Dec. Lei 166/93, de 7-5), mais se prevendo como consequência de determinados incumprimentos o pagamento por inteiro do respetivo preço técnico (artigo 10.º, n.º 3).
Tendo a ora Autora invocado o referido diploma legal para atualização das rendas, está em causa uma relação jurídica administrava que envolve uma entidade que, nesta medida, agiu tendo por base um contrato administrativo e pretendendo aplicar normas de direito público, cujo procedimento final culmina na prática de um ato administrativo.
Para terminar este enquadramento legislativo, realça-se também o disposto no artigo 4.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30.12, norma que habilitava o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), sem exigir qualquer contrapartida e sem sujeição às formalidades previstas no artigo 3.º, a transferir para os municípios, empresas municipais ou de capital maioritariamente municipal, para instituições particulares de solidariedade social ou para pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, desde que prossigam fins assistenciais e demonstrem capacidade para gerir os agrupamentos habitacionais ou bairros a transferir, a propriedade de prédios ou suas frações que constituem agrupamentos habitacionais ou bairros, incluindo os espaços existentes de uso público, equipamentos, arruamentos e restantes infraestruturas, bem como os direitos e obrigações a estes relativos e aos fogos em regime de propriedade resolúvel (cfr. n.º 1). A transferência do património efetivava-se por auto de cessão de bens, nos termos do n.º 2 do preceito em causa, o qual constituía título bastante de prova para todos os efeitos legais, incluindo os de registo. O artigo 4.º, n.º 4, da Lei n.º 55-/2004, de 30.12 reza que “o arrendamento dos fogos destinados a habitação fica sujeito ao regime de renda apoiada, nos termos do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio”.
Como vimos, nos presentes autos foi celebrado o auto de cessão entre a Autora e o IGAPHE e, nessa sequência foi transferida a propriedade do prédio no qual se incluía a fração autónoma arrendada aos Réus para a aqui Autora, ficando sujeito o arrendamento ao regime de renda apoiada, nos termos do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio.
Como se refere na obra “Arrendamentos Sociais”, do C.I.J.E, da Fac. de Direito da Universidade do Porto, ed. Almedina, 2005 (ainda antes da publicação da Lei nº 21/09), “a relação de arrendamento social é encabeçada pelo Estado mas também, e sobretudo, pelos organismos autónomos, pelos institutos públicos, autarquias locais e IPSS, sempre que tenham construído ou adquirido prédios com apoio financeiro do Estado. São estes os arrendamentos sujeitos a renda apoiada, de acordo com o art. 82°, n° 1, do RAU” (págs. 32 e 33). Assim, a norma especial aqui em referência – artigo 4.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30.12 – criou uma nova forma de sujeição dos arrendamentos de prédios ao regime de renda apoiada, em consequência da transferência de propriedade dos imóveis nos termos da Lei n.º 55-B/2004, de 30.12.
Em suma, no caso concreto, estamos perante um contrato de arrendamento habitacional de cariz social, submetido ao regime de renda apoiada, cuja relação de arrendamento social aqui em análise não tem, também ela, assentamento contratual, mas antes se integra na atividade administrativa.
(…)
Como resulta do disposto no art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 166/93, “o regime de renda apoiada baseia-se na determinação dos valores de um preço técnico e de uma taxa de esforço”, sendo que “da taxa de esforço resulta o valor da renda apoiada”.
O valor de renda devido pelo arrendatário, obedece a uma fórmula legalmente estabelecida no art.º 5º do diploma em análise, para cuja determinação concorre de forma direta o rendimento do agregado familiar do arrendatário, devendo este declarar periodicamente os seus rendimentos, por forma a que a renda possa ser atualizada em função da capacidade económica do agregado (art.º 6º, n.º1, do DL 166/93).
Atenta a natureza deste regime, e bem assim o quadro de atuação das Entidade Públicas ao abrigo deste regime, é possível afirmar que “a fixação da renda deriva… do exercício de competências de natureza administrativa legalmente atribuída àquelas entidades, que terão de respeitar os parâmetros de natureza geral que enquadram a atividade administrativa” (cfr. acórdão do Tribunal de Conflitos de 13-032013, proc.º n.º 016/13, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt).
(…)
Este procedimento tendente à fixação/atualização da renda culmina com a prática de um ato final definitivo, ato este que, de forma unilateral, acaba por fixar a obrigação pecuniária que será devida pelo arrendatário pelo uso e fruição do imóvel locado. Ou seja, no âmbito de uma relação contratual, permite-se ao senhorio modificar unilateralmente o conteúdo da prestação a que arrendatário estava obrigado.
Tal ato constitui um verdadeiro ato administrativo, na sua verdadeira aceção, por se tratar de ato praticado ao abrigo de normas de direito público (o Decreto-lei nº 166/93), o qual regula, de forma unilateral e autoritária, uma situação individual e concreta, pois que impõe ao particular arrendatário o dever de proceder ao pagamento de determinado montante que lhe passa a ser exigido mensalmente a título de renda.
O ato praticado ao abrigo do Dec. Lei 166/93 que culmina o procedimento, fixando a renda mensal, é qualificado como ato administrativo. Veja-se, a este propósito, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 03-11-2005, proc. n.º 0762/04. Entendeu-se neste aresto que o ato impugnado – que fixava a renda técnica em determinado quantitativo mensal - definiu uma situação concreta, aplicando o critério antes enunciado aos pressupostos de facto, consubstanciando a decisão final do procedimento.
(…)
Aliás, o facto de na presente relação jurídica encontrar-se (também) uma entidade privada – Instituição Particular de Solidariedade Social – não altera a resposta a dar ao presente litigo, nem a retira a qualificação de ato administrativo. No caso «sub judice », o que está em causa é a aplicação do regime da renda apoiada aos fogos habitados pelos Réus, regime esse que não é de direito privado, sendo o ato de fixação do valor da renda apoiada qualificado como ato administrativo, ainda que praticado por uma entidade privada.
(…)
Quanto ao peticionado, como foi posto em evidência, resultando a atualização da renda de um ato administrativo praticado pela Autora, o efeito jurídico constituiu-se por força da (auto)estatuição administrativa, daí decorrendo o dever de o inquilino proceder ao seu pagamento (sem prejuízo de este proceder recorrer aos meios de tutela que legalmente, e nesse âmbito, lhe assistem).
Como se sabe, o ato administrativo representa uma expressão da autoridade, praticado ao abrigo de normas públicas, através do qual a entidade emissora impõe ao seu destinatário uma situação jurídica nova; uma vez emitida a definição, a situação jurídica dela decorrente existe, definindo o direito no caso concreto sem necessidade de se dirigir a tribunal, nem do consentimento dos destinatários.
Decorrido o prazo de impugnação judicial (ou não tendo sido peticionada providência de suspensão de eficácia) do ato administrativo, sem que o particular interessado recorra à ação judicial tendente à impugnação do ato administrativo, os direitos e disposições por ele constituídos ou as situações definidas (deveres) tornam-se certos e incontestáveis para todos os efeitos, exceto no caso de nulidade ou de inexistência jurídica.
Decorrido o prazo de impugnação, o conteúdo desse ato impõe-se à observância dos particulares a quem respeitem, não podendo ser objeto de discussão quanto ao seu teor decisório, consolidando-se/convalidando-se ainda que inicialmente contra eles se pudessem arguir vícios geradores de mera anulabilidade.
É o que a doutrina denomina de imperatividade/obrigatoriedade/vinculatividade, ou seja, a força vinculativa ou de autoridade do ato administrativo que, ao contrário dos atos dos particulares, pode constituir terceiros em deveres (autotutela declarativa), formando caso decidido.
(…)
Como se afirmou no Ac. do STA, proferido no processo n.º 036472/, datado de 07.07.1998, “com o caso decidido fica definida a situação jurídica do administrado e, com a dele, a da Administração, nas relações jurídico-administrativas que encetem e ao caso interessem”.
Como se sumariou no Ac. do STA de 23.05.1996 – Rec. 37.959: “III – Por força do "caso decidido" ocorrerá a intangibilidade dos efeitos individuais já verificados na esfera jurídica dos seus destinatários”.
Como se viu, por ofício datado de 27 de Janeiro de 2012 e notificado aos Réus em 31 de Janeiro de 2012, foi comunicado o teor de ato administrativo praticado pela entidade em causa ao abrigo de normas de direito público, por efeito do regime legal aqui aplicável, que lhe confere poderes de modificação unilateral e autoritária do valor da renda, definindo a situação jurídica dos destinatários, aqui Réus.
Como resulta do probatório, mediante comunicação dirigida aos Réus e que por estes foi recebida, a Autora fixou, a partir de Maio de 2013, o montante da renda apoiada em 234,64 euros, que é igual ao Preço Técnico da fração, uma vez que os rendimentos ultrapassam o limite previsto para família carenciado de habitação social.
Em face de tal ato, que constitui manifestação dos poderes da autotutela declarativa legalmente conferidos à entidade aqui em causa, por força do regime legal em causa, foi fixado o montante da renda devida pelo Réu pelo uso e fruição da fração autónoma acima melhor identificada. Assim sendo, o montante da renda devida pelos Réus a partir de 01 de Março de 2012 cifra-se em 234,64 euros.
Se os Réus não se conformavam com o teor do ato administrativo em causa, por erro nos pressupostos de facto (erro na contabilização da área útil) ou/e por não se ter realizada determinada diligência que alegadamente se impunha (averiguação do estado de conservação do imóvel por recurso a técnicos ou por qualquer outro meio que os Réus entendiam ser os devidos), restava-lhes deduzir a competente ação administrativa especial de impugnação de atos administrativos, acompanhada de eventual propositura de providência cautelar de suspensão de eficácia de atos administrativos.
Como resulta dos autos – e o seu contrário não vem alegado – os Réus não mobilizaram os meios contenciosos previstos para a remoção da ordem jurídica do ato administrativo em causa, mormente, a existente, à data, ação administrativa especial.
Limitaram-se a responder por mero ofício particular (cfr. facto assente em EE), sem impugnar contenciosamente o ato administrativo praticado, ónus que lhe incumbia.
Estando em causa um ato administrativo, esgotado o prazo para a sua impugnação, sobre o mesmo forma-se caso decido, tornando-se imutável a sua regulação, designadamente a fixação do valor da renda.
Com efeito, sob o ponto DD) dos factos assentes, fica demonstrado que os Réus foram notificados, na esteira da jurisprudência supra citada, de ato jurídico individual e concreto praticado ao abrigo de normas de direito publico visando produzir efeitos jurídicos, legalmente qualificado de ato administrativo, que se consolidou na ordem jurídica sob a forma de caso decidido ou caso resolvido em virtude de os seus destinatários dele não interpor tempestivamente ação administrativa especial de impugnação de ato administrativo.
Assim, o ato administrativo em causa não deixa de constituir a declaração do direito na situação em presença, e sem que contra ele tenham deduzidos os meios legais contenciosos tempestivamente (no prazo previsto no artigo 58.º do CPTA), os Réus não podem pretender contornar o ónus de impugnação mediante a mobilização tardia de vícios ou invalidades que só contra aquele ato podiam deduzir, em ação judicial própria, dado que a regulação/estatutária tornou-se vinculativa para si e para o próprio autor do ato.
Desta feita, precludiu a possibilidade de se arguir qualquer erro na utilização ou mobilização dos critérios em causa, erro nos pressupostos de facto eventualmente imputável àquele ato administrativo, porquanto, como se viu, tornou-se imodificável a estatuição (final) autoritária de fixação da renda no valor.
Resta assim concluir que o valor da renda é de 234,64€, desde 01.03.2012, conforme ato administrativo notificado aos Réus.
Mais ficou apropriado nos autos que os Réus desde aquela data até 30.06.2014 ocuparam, gozaram e usufruíram da fração em causa, e sendo a renda devida no valor de 234,64€ apenas procederam ao pagamento, mensalmente, da quantia de 28,14€, constituindo-se, assim devedores da quantia total de 5.673,62€ (6.659,92€ - 986,30€), a cujo pagamento os Réus devem ser condenados; a esta quantia deverão acrescer juros de mora calculados à taxa legal de 4 % ao ano [artigo 559.º, n.º 1, do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril], contados desde a data da citação para os presentes autos até efetivo e integral pagamento [artigos 804.º, 805.º, e 806.º, todos do Código Civil]
A presente ação é inteiramente procedente, considerando o bem fundado da pretensão.

Independentemente da questão da competência dos TAF para julgar a presente Ação, a qual se mostra ultrapassada, pelo transito em julgado do Despacho de 19/10/2020 que a estabeleceu, e do valor significativamente superior fixado da renda devida pelos arrendatários, aqui Recorrentes (Passou de 28,18€ para 234,64€), é incontornável e inultrapassável a circunstância dos mesmos não terem reagido em tempo, designadamente face aos agora invocados erros nos pressupostos quanto à referida fixação do valor da renda, tendo deixado consolidar o valor da renda fixada.

A IPSS, ASE – Associação de Solidariedade (...), enquanto Senhoria da controvertida fração habitacional, procedeu à atualização da renda, enquanto contrapartida pela fruição do imóvel locado, o que constitui um ato administrativo, na medida em que foi proferido à luz de normativos de direito público, a saber, o Decreto-lei nº 166/93, o qual estabeleceu o regime de renda apoiada.

Como já evidenciado em 1ª Instância, o próprio STA já qualificou como atos administrativos aqueles que fixam as chamadas rendas técnicas, nos arrendamentos de natureza social, no âmbito do referido regime de renda apoiada.

Com efeito, como sumariado no acórdão do STA nº 0762/04, de 03-11-2005, “É recorrível o ato da Administração que determina a aplicação da renda técnica a um fogo municipal, uma vez que é só com tal ato que é definida, em concreto, a situação jurídica do interessado.”

Quanto à competência dos Tribunais Administrativos para dirimir as questões conexas com o DL nº 166/93, também o STA se pronunciou expressamente, em sentido afirmativo, designadamente no acórdão nº 012/11, de 25-09-2012, no qual se sumariou que “São competentes os Tribunais Administrativos para julgar um litígio onde os autores pedem que lhes não seja aplicado o regime de atualização da renda apoiada definida no Dec. Lei 166/93, de 7 de Maio – pois o mesmo envolve uma entidade que, neste âmbito, atuou com base num contrato administrativo e pretende aplicar normas de direito público.”

O facto de na controvertida relação jurídica se encontrar uma IPSS, que não obstante o seu carácter social, não deixa de ser uma entidade privada, não retira a qualificação de ato administrativo ao ato de fixação da Renda Técnica/Renda Apoiada.

Estando, como está, em causa na presente Ação, a aplicação do regime da Renda Apoiada aos fogos habitados pelos aqui Recorrentes, o qual não é manifestamente um regime jurídico de natureza privado, estamos claramente em presença de um ato administrativo.

Também já o TCAS se pronunciou nesse sentido, no acórdão nº 01642/06, de 08.06.2006, no qual se sumariou:
“(…)
Daí ser competente, em razão da matéria, o Tribunal Administrativo e Fiscal, para conhecer de mérito do pedido, já que o ato que determina a aplicação de um regime da renda apoiada , previsto no DL nº 166/93 , é um ato administrativo , pelo que sindicável , perante aquele Tribunal , nos termos do artº 51º , 2 , do CPTA , e artº 1º e 4º , nº 1 , alínea d) , do ETAF.”

Assim, consistindo a alteração da renda efetuada, à luz do DL nº 166/93, um ato natureza administrativo, praticado pela Autora, aqui Recorrida, tal determinou que os inquilinos se tenham constituído na obrigação de pagar as novas rendas fixadas pela ocupação do locado, sem prejuízo da possibilidade de terem recorrido aos tribunais administrativos para impugnar ou suspender o referido ato, prerrogativa que não foi adotada pelos aqui recorrentes em tempo, em face do que a referida obrigação se consolidou na ordem jurídica.

Como sumariado no Acórdão do STA de 23.05.1996, no Proc.º 37.959, “Por força do "caso decidido" ocorrerá a intangibilidade dos efeitos individuais já verificados na esfera jurídica dos seus destinatários”.

Assim, tendo aos inquilinos. aqui Recorrentes, sido fixada para vigorar a partir de janeiro de 2013, a chamada renda técnica, no valor de 234,64€, uma vez que os rendimentos do agregado familiar ultrapassariam o limite estabelecido para efeitos de ser considerada família carenciado de habitação social, e tendo-se os mesmos conformado com a referida renda, não tendo reagido contenciosamente à sua fixação, não resta ao tribunal outra alternativa que não seja a de reconhecer como estando em divida o diferencial mensal das rendas não pagas, situado entre o valor efetivamente pago (28,18€) e o valor devido (234,64€).

Como se referiu em 1ª Instância, e aqui supra se reiterou e ratificou, se os inquilinos não se conformavam com o novel valor da renda fixada, seja por verificação de erro nos pressupostos de facto, por erro na contabilização da área útil do locado, seja pela não verificação de que o locado carecia de conservação, seja ainda por os rendimentos do agregado familiar não ultrapassarem o valor estipulado para efeitos da sua consideração como agregado carenciado, sempre teriam de ter recorrido, em tempo, à via contenciosa, quer impugnando o ato, quer requerendo a sua suspensão, procedimento não adotado, por forma a evitar a consolidação do referido ato.
* * *
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao Recurso Jurisdicional apresentado, confirmando-se a Sentença Recorrida.
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Custas pelos Recorrentes
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Porto, 2 de junho de 2021
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Frederico de Frias Macedo Branco
Nuno Coutinho
Paulo Magalhães (Em substituição)