Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00413/22.7BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/14/2023
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA; DESPEJO ADMINISTRATIVO;
FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS; AUTO-TUTELA EXECUTIVA;
FALTA DE INTERESSE EM AGIR;
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, com sede na Av. ..., ... ..., instaurou acção administrativa contra «AA», com última residência conhecida no Conjunto Habitacional da ... Bloco A 2 ..., ... ..., peticionando que seja:
- decretada a cessação do contrato de arrendamento, por resolução, e a entrega do imóvel livre (que identifica na petição inicial) e devoluto de pessoas e bens;
- condenada a Ré no pagamento das rendas vencidas no valor de €1 236,95 e vincendas, acrescida dos respectivos juros de mora calculados à taxa supletiva legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento e entrega efectiva do indicado imóvel;
Subsidiariamente:
- caso a Ré até ao fim do prazo para a contestação venha a pagar o depósito liberatório nos termos do artigo 1041.º do Código Civil acrescido da indemnização de 30%, mas só relativamente às últimas 12 rendas, fazendo assim caducar o direito de resolução por falta de pagamento das rendas nos termos do artigo 1048.º do Código Civil, deve ainda ser a Ré não só condenada no pagamento das rendas em atraso, mas também em 30% do valor em dívida.
Por decisão proferida pelo TAF de Aveiro foi julgada verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir e absolvida a Ré da instância.
Desta vem interposto recurso.

Alegando, o Autor formulou as seguintes conclusões:
A) Ainda que se considerasse ter existido a sustentada autotutela administrativa, a mesma deixou de ter consagração legal, por força da alteração do artigo 28º da Lei n.º 81/2014, operada pela Lei n.º 32/2016 de 24/8, cuja atual redação do nº 1 do artigo 28º determina que cabe ao aqui recorrente “levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei.”, afastando expressamente o despejo administrativo, até por falta de meios humanos e materiais para que as entidades administrativas levem a cabo tais procedimentos de despejo;

B) O nº 2 do artigo 28º, ao determinar que “são da competência exercida pelos dirigentes máximos, dos concelhos de administração ou dos órgãos executivos das entidades referidas no n.9 1 do art.29, consoante for o caso, as decisões relativas ao despejo, sem prejuízo de delegação”, apenas expressa que, qualquer despejo que seja instaurado, carece de autorização superior, no caso, do Conselho Diretivo do Autor, nada se extraindo no que respeita à propugnada autotutela declarativa e / ou executiva administrativa;

C) Também o nº 4 do citado artigo 28º que dispunha “4 - Quando o senhorio for uma entidade diversa das referidas no n.9 1 do artigo 2.9, o despejo é efetuado através da ação ou do procedimento especial de despejo previstos no NRAU, e na respetiva regulamentação.”, foi revogado pela Lei nº 32/2016 de 24 de agosto, donde, todas as entidades aí referidas podem levar a cabos os procedimentos subsequentes, nos termos da lei, artigo 28º/1 (in fine).

D) Também os números 7 e 8 do artigo 34º da Lei 81/2014 d e19 de dezembro foram revogados pela Lei nº 32/2016 de 24 de agosto. Ao serem revogadas tais comunicações, deixou o senhorio de poder obter título bastante para desocupação de habitação e proceder ao despejo administrativo.


E) A única forma que presentemente a Lei admite como despejo administrativo é a prevista no artigo 26º da citada Lei “Cessação do contrato por renúncia” e elencando aí os procedimentos que as entidades administrativas devem tomar para concretizar a posse do imóvel, sendo as demais por via judicial prevista no nº 1 do artigo 28º da citada Lei.

Mas ainda que não se concorde inteiramente com o alegado, sempre se terá como claro e inequívoco que:

F) Os Acórdãos citados pelo Tribunal assentam numa premissa que não se verifica, qual seja, a de que o recurso à autotutela/ via extrajudicial para resolução dos contratos de arrendamento apoiado é imperativa;

G) Na verdade, o diploma em causa – Lei nº 81/2014 de 19/12 – salvo melhor opinião, veio apenas criar um mecanismo para, em determinadas situações, o senhorio poder resolver o contrato por comunicação ao arrendatário após a sua audição, isto é, veio acrescentar mais um mecanismo de resolução do contrato de arrendamento e despejo e não proibir o acesso à via judicial, dentro de uma lógica de celeridade de procedimentos.

H) Assim sendo, o princípio geral estatuído na referida lei apenas poderá ser o seguinte: o senhorio pode resolver o contrato nos termos gerais de direito, lançando mão da ação judicial e pode, ainda, utilizar em alternativa a resolução extrajudicial prevista na lei se verificar que essa possibilidade é mais expedita.

I) Existindo situações em que só através da via judicial se obtém a resolução contratual (e,
mais do que isso o despejo coercivo, atentas as limitações constitucionais), não é possível sustentar, com coerência, a exclusividade e imperatividade da via extrajudicial prevista no artigo 25º a 28º do citado diploma legal, sendo certo que conclusão contrária implicaria uma limitação injustificada do direito de ação do aqui Recorrente previsto no artigo 20º da CRP.


J) Ademais, como bem refere a Doutrina mais avisada, para que haja interesse em agir exige-se apenas uma necessidade de recorrer aos tribunais justificada, razoável e fundada. Não tem de se traduzir numa necessidade absoluta e/ou única para a realização da pretensão deduzida pelo senhorio (vide A. Varela in Manual de Processo Civil, pg. 179).

K) Está-se assim perante uma errada aplicação do pressuposto processual inominado do interesse em agir, e, consequentemente, preterido o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, vertido no artigo 20º da C.R.P.

Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, ordenando-se o prosseguimento da ação instaurada para decretamento da resolução do contrato de arrendamento e pagamento da dívida.

Não foram juntas contra-alegações.
O Senhor Procurador Geral Adjunto, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
A) Em 01.02.2009, o Autor celebrou com a Ré um contrato de arrendamento para fim habitacional em regime de renda apoiada, nos termos da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, tendo como objecto o prédio urbano sito no conjunto habitacional da Ponte ... ... ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...97 e inscrito na matriz sob o artigo ...83, freguesia ... e ..., correspondente à fracção designada pela letra “F” (cfr. documento n.º ..., junto com a petição inicial);
B) Em 12.08.2020, o Autor enviou uma carta à Ré, da qual se extrai o seguinte:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(cfr. documento n.º ..., junto com a petição inicial).
DE DIREITO
Atente-se no discurso fundamentador da sentença:
O Tribunal, à luz dos fundamentos invocados e dos pedidos deduzidos, assim como do disposto na Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, e dos mecanismos aí previstos, suscitou a falta de interesse em agir do Autor, pois nos termos do quadro legal aplicável encontra-se dotado dos poderes jurídico-administrativos necessários para obter esses efeitos, sem necessidade de recorrer à interposição da presente acção judicial.
O Autor veio responder, alegando, em súmula, que as alterações introduzidas pela Lei n.º 32/2016, de 24 de Agosto, à Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, vieram afastar o despejo administrativo, até por falta de meios humanos e materiais para que as entidades administrativas levem a cabo tais procedimentos de despejo, sendo que a interpretação a dar ao artigo 28.º, n.º 2, é a de que qualquer despejo que seja instaurado, carece de autorização superior, no caso, do Conselho Directivo do Autor; que, da mesma forma, os artigos 28.º, n.º 4 e os n.ºs 7 e 8 do artigo 34.º da Lei n.º 81/2014, foram revogados, deixando o senhorio de poder obter título bastante para a desocupação da habitação e proceder ao despejo administrativo; que, de todo o modo, o recurso à autotutela não é imperativa, não estando proibido o acesso à via judicial, dentro de uma lógica de celeridade de procedimentos; que, a não ser assim, está a ser preterido o principio constitucional do acesso ao direito e à justiça, vertido no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Entende, porém, o Tribunal que os argumentos do Autor não procedem, verificando-se a suscitada falta de interesse em agir.
Como resulta da factualidade assente que, em 01.02.2009, o Autor celebrou com a Ré um contrato de arrendamento para fim habitacional em regime de renda apoiada, nos termos da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, tendo como objecto o prédio urbano sito no conjunto habitacional da Ponte ... ... ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...97 e inscrito na matriz sob o artigo ...83, freguesia ... e ..., correspondente à fracção designada pela letra “F” (facto assente na alínea a)).
Assim, porque decorre do aludido probatório que o contrato de arrendamento foi celebrado ao abrigo da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, é ao abrigo do disposto nesta lei que o Tribunal apreciará a falta de interesse em agir por parte do Autor.
Nos termos do artigo 25.º, n.º 2, da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, na redacção conferida pela Lei n.º 32/2016, de 24 de Agosto, no caso previsto no n.º 2 do artigo 1804.º do Código Civil, a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio opera por comunicação deste ao arrendatário, onde fundamentadamente invoque a respectiva causa, após audição do interessado. Por sua vez, o n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil refere-se, precisamente, à mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda.
Dispõe, por sua vez, o artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, nos seus n.ºs 1, 2 e 3, o seguinte:
“1 - Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação a uma das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, cabe a essas entidades levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei.
2 - São da competência dos dirigentes máximos, dos conselhos de administração ou dos órgãos executivos das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, consoante for o caso, as decisões relativas ao despejo, sem prejuízo da possibilidade de delegação.
3 - Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo. (...)”
Determina, por sua vez, o artigo 35.º, o seguinte:
“1- São consideradas sem título as situações de ocupação, total ou parcial, de habitações de que sejam proprietárias as entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º por quem não detém contrato ou documento de atribuição ou de autorização que a fundamente.
2 - No caso previsto no número anterior o ocupante está obrigado a desocupar a habitação e a entregá-la, livre de pessoas e bens, até ao termo do prazo que lhe for fixado, não inferior a três dias úteis, na comunicação feita para o efeito, pelo senhorio ou proprietário, da qual deve constar ainda o fundamento da obrigação de entrega da habitação.
3 - Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação nos termos do número anterior não há lugar a despejo nos termos do artigo 28.º (...)”.
De acordo com o 28.º-A, “As entidades locadoras podem recorrer à utilização de meios de resolução alternativa de conflitos para resolução de quaisquer litígios relativos à aplicação da presente lei, sem prejuízo do recurso ao tribunal sempre que não haja acordo entre as partes.”
Ou seja, no caso em apreço, estando em causa a falta de pagamento de rendas devidas, a resolução do contrato opera por mera comunicação pelo Autor à Ré. Assim como cabe ao Autor ordenar o despejo e executá-lo, devendo promover a execução das dividas resultantes da falta de pagamento das rendas devidas aquando da decisão de despejo. É a própria lei que utiliza os termos «cabe» e «deve», demonstrando que, neste âmbito, foi conferida ao Autor uma competência que lhe cabe, a si, exercer em casos como aquele a que se reporta os autos.
Assim, o Autor não carece da tutela jurisdicional requerida, pois, desde logo, a resolução do contrato opera por comunicação do Autor à Ré, cabendo-lhe, por isso, proceder a essa comunicação – o que não foi sequer alegado que foi realizado, tendo vindo apenas alegado (e provado) que em 12.08.2020, remeteu à Ré uma carta a solicitar o pagamento das rendas em divida até à data, sob pena de recorrer à via judicial, se o pagamento não fosse efectuado (facto assente na alínea b)). E caso a desocupação do locado não seja realizada voluntariamente pela Ré, cabe, então, ao Autor ordenar e mandar executar o despejo e, havendo rendas por pagar, caber-lhe-á promover a execução das mesmas (cfr. artigos 25.º, n.ºs 2 e 3; 28.º, n.ºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 81/2014).
Daqui resulta que foi conferida pelo legislador à Administração a competência para decidir e executar o despejo e para exigir o pagamento das rendas em atraso, excluindo-se, assim, a competência jurisdicional neste âmbito, enquanto esta competência administrativa não é exercida e não surge, de facto, um litigio. É que a via jurisdicional apenas se abre caso exista um conflito entre o Autor e a Ré, nomeadamente, de estes se oporem à decisão administrativa de despejo.
Acresce dizer que ao contrário do que parece concluir o Autor, o Tribunal não entende que se encontra impedido de recorrer à via judicial, simplesmente, a fazê-lo, não é este o momento, pois não existe ainda uma efectiva necessidade de tutela jurisdicional. Com efeito, a Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, conferiu ao Autor a competência de resolver o contrato e ordenar o despejo, mandando executar essa ordem e promovendo a execução das rendas em divida. Sucede que não tendo ainda o Autor exercido as mesmas e não tendo surgido um conflito/litigio nos termos acima expostos não se verifica neste momento um interesse real e actual em recorrer ao Tribunal. Ou seja, o Autor não tem, neste momento, necessidade de recorrer ao Tribunal, pelo que lhe falta interesse em agir.
E neste sentido tem-se pronunciado a jurisprudência dos nossos Tribunais, podendo ler-se, a título de exemplo, além do acórdão já citado no despacho que suscitou a questão que agora se decide, os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, proferidos em 11.11.2022, no processo n.º 906/19.3BEPRT; em 14.10.2022, nos processos n.ºs 1216/19.1BEPRT e 18/22.2BEBRG; em 30.09.2022, no processo n.º 02181/21.0BEPRT; e em 23.06.2022, no processo n.º 2143/21.8BEPRT, bem como, e ainda, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08.09.2022, proferido no processo n.º 689/18.4BESNT (que, em situação semelhante, não admitiu o recurso de revista por entender que o juízo vertido na decisão recorrida contém “uma interpretação coerente e razoável do quadro normativo em crise e em linha com a jurisprudência produzida”).
A falta de interesse em agir é uma excepção dilatória inominada, que determina a absolvição da Ré da instância, prejudicando o conhecimento sobre o mérito da acção (cfr. artigo 89.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
X
O presente recurso é interposto desta sentença cujo objeto é a interpretação, validade ou execução de contratos; através da acção o ora Apelante peticionou que seja:
- decretada a cessação do contrato de arrendamento, por resolução, e a entrega do imóvel livre (que identifica na petição inicial) e devoluto de pessoas e bens;
- condenada a Ré no pagamento das rendas vencidas no valor de €1 236,95 e vincendas, acrescida dos respectivos juros de mora calculados à taxa supletiva legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento e entrega efectiva do indicado imóvel;
Subsidiariamente:
- caso a Ré até ao fim do prazo para a contestação venha a pagar o depósito liberatório nos termos do artigo 1041.º do Código Civil acrescido da indemnização de 30%, mas só relativamente às últimas 12 rendas, fazendo assim caducar o direito de resolução por falta de pagamento das rendas nos termos do artigo 1048.º do Código Civil, deve ainda ser a Ré não só condenada no pagamento das rendas em atraso, mas também em 30% do valor em dívida.
Como vimos, alicerçou-se a sentença no facto de considerar a falta de interesse em agir do Autor, ora recorrente.
Atendendo, à alegada falta de interesse agir, sendo esta uma exceção dilatória inominada insuprível, cuja verificação obsta ao prosseguimento dos autos e determina a absolvição da instância ou o indeferimento, da petição inicial, no caso de não ter ocorrido ainda a citação do Réu, estribou-se o Tribunal a quo, no entendimento de que o Apelante tem mecanismos que lhe permitem assegurar a tutela requerida nos presentes autos, por força do DL 81/2014, de 19 de dezembro, alterado com a Lei 32/2016 de 24 de agosto.

Na óptica do Apelante tal vício - de falta de interesse em agir do Autor -, não se verifica de todo e assim, ao decidir como decidiu, incorreu o Tribunal em erro de julgamento, ao declarar-se como não competente para decidir sobre o mérito da ação, desde logo pela falta de necessidade de tutela jurisdicional por parte do A. a que corresponde a falta de interesse processual em agir e absolvendo a Ré da instância.
Cremos carece de razão o Apelante.
Vejamos,

A decisão recorrida concluiu pela falta de interesse em agir do Autor.

Alicerçou-se, e bem, na Jurisprudência que citou.

Como salientado pelo TCA Sul em 18/6/2020 no âmbito do processo nº 644/18.4BESNT, sem que seja possível extrair uma solução expressa e inequívoca da letra da lei, a mesma há de decorrer da interpretação conjugada de um conjunto de preceitos da Lei n.º 81/2014, de 19/12, na redação conferida pela Lei n.º 32/2016, de 24/08, a saber, os artigos 17.º, n.º 3, 28.º, 28.º-A e 35.º, n.º 3.

Com relevo, transcrevem-se as citadas disposições legais pertinentes para o caso:

Artigo 17.º, n.º 3: “Compete aos tribunais administrativos conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento apoiado.”.

“Artigo 28.º

Despejo

1 – Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação a uma das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, cabe a essas entidades levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei.

2 – São da competência dos dirigentes máximos, dos conselhos de administração ou dos órgãos executivos das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, consoante for o caso, as decisões relativas ao despejo, sem prejuízo da possibilidade de delegação.

3 – Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo.

4 – (Revogado.)

5 – Salvo acordo em sentido diferente, quaisquer bens móveis deixados na habitação, após qualquer forma de cessação do contrato e tomada de posse pelo senhorio, são considerados abandonados a favor deste, caso não sejam reclamados no prazo de 60 dias, podendo o senhorio deles dispor de forma onerosa ou gratuita, sem direito a qualquer compensação por parte do arrendatário.

6 – (…).

Artigo 28.º-A

Resolução alternativa de conflitos

As entidades locadoras podem recorrer à utilização de meios de resolução alternativa de conflitos para resolução de quaisquer litígios relativos à interpretação, execução, incumprimento e invalidade de procedimentos na aplicação da presente lei, sem prejuízo do recurso ao tribunal sempre que não haja acordo entre as partes.”.

A que acresce ainda o artigo 35.º, n.º 3: “Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação nos termos do número anterior há lugar a despejo nos termos do artigo 28.º.”.

Do quadro legal descrito extrai-se a competência dos tribunais administrativos para conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento apoiado, mas sem que se preveja a competência judicial em matéria de despejo.

O legislador elencou as matérias a que cabe a competência aos tribunais administrativos, especificando-as como sendo apenas a matéria da invalidade e da cessação do contrato, pois no demais, a competência é atribuída aos órgãos administrativos, nos exatos termos em que a lei o definir.

No que respeita ao despejo, estabelece o artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, na redação conferida pela Lei n.º 32/2016, de 24/08, que caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação, cabe ao ora Autor levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei, atribuindo a competência da decisão do despejo aos dirigentes máximos, dos conselhos de administração ou dos órgãos executivos das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, consoante for o caso, sem prejuízo da possibilidade de delegação de competências.

O que implica que a lei consagrou o exercício do poder administrativo de autotutela declarativa, excluindo a competência jurisdicional dos tribunais administrativos.

A Administração dispõe do poder de determinar a resolução do contrato de arrendamento.

Por isso, se prevê no citado artigo 28.º, n.º 5 que quaisquer bens móveis deixados na habitação, após qualquer forma de cessação do contrato e tomada de posse pelo senhorio, são considerados abandonados a favor deste, caso não sejam reclamados, podendo o senhorio deles dispor de forma onerosa ou gratuita, sem direito a qualquer compensação por parte do arrendatário.

O senhorio tem a competência legal para decretar o despejo, assim como de fazer seus os bens móveis deixados na habitação, o que implica o reconhecimento legal não apenas da propriedade do imóvel, mas da posse do arrendado e, ainda, da propriedade dos bens móveis na mesma deixados que não sejam reclamados pelo inquilino.

Tal pressupõe que caiba à Administração o poder de determinar o despejo administrativo.

Acresce ainda em auxílio da interpretação expendida que, segundo o artigo 28.º-A do diploma em análise, o inquilino pode recorrer à utilização de meios de resolução alternativa de conflitos para resolução de quaisquer litígios relativos à interpretação, execução, incumprimento e invalidade de procedimentos na aplicação da lei, sem prejuízo do recurso ao tribunal, sempre que não haja acordo entre as partes.

Tal disposição traduz que apenas quando o inquilino se oponha à decisão administrativa de resolução do contrato e do despejo ou da sua execução e a pretenda contestar, pode recorrer à via judicial ou recorrer aos meios de resolução alternativa de conflitos.

Deste modo, apenas quando não haja o acordo entre as partes existirá um litígio carente de resolução, a qual, por isso, não se atribui a sua resolução ao próprio órgão administrativo.

Neste caso, apenas sendo contestada a decisão administrativa de resolução do contrato de arrendamento e do despejo administrativo pelo inquilino, se atribui a uma entidade terceira imparcial e independente a resolução do litígio, isto é, os tribunais administrativos, mediante a instauração de uma ação administrativa ou as vias de resolução alternativa de conflitos.

Não sendo impugnada a decisão administrativa, não existe litígio que careça de ser judicialmente dirimido.

Como sentenciado, no caso em apreço, estando em causa a falta de pagamento de rendas devidas, a resolução do contrato opera por mera comunicação pelo Autor à Ré. Assim como cabe ao Autor ordenar o despejo e executá-lo, devendo promover a execução das dívidas resultantes da falta de pagamento das rendas devidas aquando da decisão de despejo. É a própria lei que utiliza os termos «cabe» e «deve», demonstrando que, neste âmbito, foi conferida ao Autor uma competência que lhe cabe, a si, exercer em casos como aquele a que se reporta os autos.
Assim, o Autor não carece da tutela jurisdicional requerida, pois, desde logo, a resolução do contrato opera por comunicação do Autor à Ré, cabendo-lhe, por isso, proceder a essa comunicação – o que não foi sequer alegado que foi realizado, tendo vindo apenas alegado (e provado) que em 12.08.2020, remeteu à Ré uma carta a solicitar o pagamento das rendas em dívida até à data, sob pena de recorrer à via judicial, se o pagamento não fosse efectuado (facto assente na alínea b)). E caso a desocupação do locado não seja realizada voluntariamente pela Ré, cabe, então, ao Autor ordenar e mandar executar o despejo e, havendo rendas por pagar, caber-lhe-á promover a execução das mesmas (cfr. artigos 25.º, n.ºs 2 e 3; 28.º, n.ºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 81/2014).
Daqui resulta que foi conferida pelo legislador à Administração a competência para decidir e executar o despejo e para exigir o pagamento das rendas em atraso, excluindo-se, assim, a competência jurisdicional neste âmbito, enquanto esta competência administrativa não é exercida e não surge, de facto, um litígio. É que a via jurisdicional apenas se abre caso exista um conflito entre o Autor e a Ré, nomeadamente, de estes se oporem à decisão administrativa de despejo.
Acresce dizer que ao contrário do que parece concluir o Autor, o Tribunal não entende que se encontra impedido de recorrer à via judicial, simplesmente, a fazê-lo, não é este o momento, pois não existe ainda uma efectiva necessidade de tutela jurisdicional. Com efeito, a Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, conferiu ao Autor a competência de resolver o contrato e ordenar o despejo, mandando executar essa ordem e promovendo a execução das rendas em divida. Sucede que não tendo ainda o Autor exercido as mesmas e não tendo surgido um conflito/litígio nos termos acima expostos não se verifica neste momento um interesse real e actual em recorrer ao Tribunal. Ou seja, o Autor não tem, neste momento, necessidade de recorrer ao Tribunal, pelo que lhe falta interesse em agir.

Portanto, o Autor dispõe de meios de autotutela - declarativa e executiva - que lhe permitem alcançar os fins visados com a propositura da presente ação, designadamente no que respeita à determinação e execução do despejo/desocupação do fogo ocupado, nos termos da disciplina prevista no artigo 28.º da Lei n.º 32/2016 de 24.08.

À falta de necessidade de tutela jurisdicional por parte do Autor, corresponde a falta de interesse processual ou interesse em agir.

O interesse processual ou interesse em agir (...) consiste, de acordo com a maioria da doutrina, na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação para, dessa forma, obter um benefício direto, com repercussão positiva imediata na esfera jurídica do autor, aferindo-se, assim, tal interesse pela alegação de uma situação concreta necessitada de tutela jurisdicional.

“O interesse processual não pode ser afirmado ou negado em abstracto: apenas comparando a situação em que a parte (activa ou passiva) se encontra antes da propositura da acção com aquela que existirá se a tutela for concedida, se pode saber se isso representa um benefício para o autor e uma desvantagem para o réu. Se a situação relativa entre as partes não se alterar com a concessão dessa tutela judiciária, então falta o interesse processual.” - cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in “O Interesse Processual na Acção Declarativa”, 1989, pág. 6.

Sobre o interesse em agir pronuncia-se Vieira de Andrade como sendo um pressuposto que exige a verificação objetiva de um interesse real e atual, isto é, da utilidade na procedência do pedido - em “A Justiça Administrativa”, 2017, 16ª ed., pág. 292 e seguintes.

O interesse em agir apresenta-se como uma concretização da ideia de que a utilidade ou vantagem em causa há de ser “digna de tutela jurisdicional”.

Como se sumariou no Acórdão da RL de 19/01/2017, proc. 3583/16.0T8SNT.L1-2 “I - O interesse em agir é também apelidado de “interesse de agir”, “interesse processual”, “causa legítima da acção”, “motivo justificativo dela”, “necessidade de agir, ou necessidade de tutela jurídica.
“Como resulta de todas estas designações, consiste na necessidade de recorrer ao processo” (…).

Com efeito, o interesse em agir é um pressuposto processual positivo para aferir da necessidade da tutela judicial efectiva consagrada no artigo 20º da CRP e bem assim da adequação do meio processual utilizado; o interesse em agir afere-se no momento da propositura da acção onde se manifesta a pretensão.

Segundo o STJ - Acórdão de 09/5/2018, proc. 673/13.4TTLSB.L1.S1 -
“…..II) O interesse processual, apesar de a lei não lhe fazer referência, de forma direta, porque o Código de Processo Civil não o contempla como exceção dilatória nominada, continua a constituir um pressuposto processual relativo às partes;
III) Só se pode afirmar que há interesse processual quando a situação de incerteza, ou de dúvida, acerca da existência, ou não, de um direito ou de um facto, contra as quais o autor pretende reagir através da ação de simples apreciação, reunir objetividade e gravidade;

(…).

Na situação vertente, reitera-se, à falta de necessidade de tutela jurisdicional por parte do Autor, corresponde a falta de interesse processual ou interesse em agir.

Efectivamente não se evidencia qualquer meio contencioso pelo qual o inquilino haja impugnado qualquer acto, administrativo ou contratual.

A intervenção do Tribunal, em lugar do Ente Público tomar as decisões administrativas que lhe compete, no âmbito das suas atribuições e competência dos seus órgãos, e nos termos da lei, redundaria numa clara violação do princípio da separação de poderes.

Acresce dizer que ao contrário do que parece concluir o Autor, o Tribunal não entende que se encontra impedido de recorrer à via judicial, simplesmente, a fazê-lo, não é este o momento, pois não existe ainda uma efectiva necessidade de tutela jurisdicional. Com efeito, a Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, conferiu ao Autor a competência de resolver o contrato e ordenar o despejo, mandando executar essa ordem e promovendo a execução das rendas em dívida. Sucede que não tendo ainda o Autor exercido as mesmas e não tendo surgido um conflito/litígio nos termos acima expostos não se verifica neste momento um interesse real e actual em recorrer ao Tribunal. Ou seja, o Autor não tem, neste momento, necessidade de recorrer ao Tribunal, pelo que lhe falta interesse em agir.

Tal não contende minimamente com o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, vertido no artigo 20º da CRP - v. Conclusão K).
Improcedem, desta feita, as Conclusões da alegação.
DECISÃO

Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente.

Notifique e DN.
Porto, 14/7/2023
Fernanda Brandão
Nuno Coutinho
Conceição Silvestre