Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00197/18.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/15/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:INFARMED; FARMÁCIA SOCIAL PRIVATIVA; PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO EXCESSO; DECRETO-LEI N.º 307/2007
Sumário:1 – Não tem respaldo legal o entendimento de acordo com o qual, após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 307/2007 de 31 de agosto, com as sucessivas alterações, nomeadamente da redação introduzida pelo Decreto-Lei nº 171/2012, não é possível autorizar a instalação de novas farmácias sociais.

2 – Ao se impor, ainda que veladamente, que uma entidade do sector social para possa abrir uma farmácia social privativa, ter de constituir uma Sociedade Comercial, constitui uma violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito (consagrado no artigo 2.º da Constituição), conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da Constituição, em linha com o entendimento adotado no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2011.

3 - O artigo 59º-A nº 2 do DL 307/2007, ao aparentemente mitigar o acesso das Entidades de cariz social à instalação de farmácias sociais privativas, nas vestes de associação, para venda de medicamentos, exclusivamente aos seus associados, obrigando-as, caso queiram aceder a essa propriedade, a usar a forma de sociedades comerciais, tal como resulta da filosofia subjacente ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2011, de 13/12, mostrar-se-ia efetivamente violadora do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, principio consagrado no artigo 2.º da CRP, conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da mesma CRP.

4 – Mal se compreenderia que o escopo social das referidas entidades, ainda que cingido à atividade no sector social, para uso exclusivo dos seus associados, se tivesse de realizar necessariamente com recurso à intermediação de uma sociedade comercial, o que constituiria uma solução anacrónica e contra natura.

5 - Não decorre do novel artº 59º-A do DL 307/2007, de 31/8, a impossibilidade de coexistência de farmácias sociais privativas e farmácias abertas ao público, propriedade de entidades do sector social, sendo que apenas estas últimas estarão sujeitas à imposição legal de constituírem sociedades comerciais.

6 – Como reconheceu o Tribunal Constitucional no referido Acórdão nº 612/2011, nada obsta a que entidades do sector social possam, se o desejarem, prosseguir a atividade farmacêutica “no seu espaço próprio, fora do mercado, sem fins lucrativos, com puros objetivos de solidariedade social”, sendo que neste quadro “será excessivo o legislador obrigar à constituição de sociedades comerciais”.

7 - Atendendo aos fins que visa alcançar, e às exigências resultantes do n.º 5 do artigo 63.º da Constituição, a solução legislativa literalmente expressa, de obrigar os entes sociais que pretendam desenvolver a atividade farmacêutica fora do mercado, à constituição de sociedades comerciais, revelar-se-ia uma solução não consonante com as exigências de equilíbrio decorrentes do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.

8 – Impõe-se assim, desaplicar o nº 2 Artº 59º-A do DL nº 307/2007, na redação introduzida pelo DL 171/2012, interpretado no sentido de não permitir às entidades do sector social da economia poderem ser titulares de farmácias sociais privativas, sem que se constituam em sociedade comerciais, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, principio consagrado no artigo 2.º da CRP, conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da mesma CRP. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:A F. - ASSOCIAÇÃO DE SOCORROS MÚTUOS DA (...)
Recorrido 1:INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos Saúde, e Outra
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório
A F. - ASSOCIAÇÃO DE SOCORROS MÚTUOS DA (...), Contrainteressada na presente Ação, intentada por M. contra o INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos Saúde, tendente, à declaração de nulidade ou a anulação da Deliberação do Conselho Diretivo da Entidade Demandada, de 08/09/2016, que aprovou o processo de instalação de farmácia social privativa com a designação de “Farmácia (...)”, bem como o pagamento de uma quantia indemnizatória, não se conformando com a Sentença proferida no TAF do Porto, em 4 de Outubro de 2019, que decidiu, em síntese, anular o ato objeto de impugnação, que aprovou o processo de instalação de farmácia social privativa, veio em 10 de novembro de 2019 recorrer jurisdicionalmente da mesma.
Formula a aqui Recorrente/A F. nas suas alegações de recurso, as seguintes conclusões:
Pronúncia excessiva. Omissão do princípio do contraditório.
I. Na medida em que a douta decisão recorrida aplica (1) a norma do nº 2 do artigo 59º-A que manda desatender o nº 3 do artigo 14º, ambos do DL 307/2007, na redação do DL 171/2012; (2) entendimento esse vazado no douto acórdão do STA de 06.07.2018; (3) sem que o ato recorrido tenha por fundamento esse entendimento e sem que a recorrente e a recorrida tenham invocado essa factualidade ou este entendimento de direito e (4) sem que às partes fosse dada a oportunidade de se pronunciarem; ocorreu uma decisão surpresa proibida por lei.
II. Ocorreu, pois, a nulidade da parte final da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC - excesso de pronúncia e bem assim falta de prévio contraditório na dimensão do nº 3 do artigo 3º do CPC, normas aplicáveis ex vi CPTA, o que aqui se invoca.
III. Dessa nulidade, resulta nítido prejuízo para a ora recorrente, que assim viu ser-lhe retirado o meio de defesa que seria oportuno usar: alegar as inconstitucionalidades que aqui alega;
IV. Dessa nulidade e do não uso, na forma apontada, do dever de gestão processual (artigo 6º do CPC) resultou para a recorrente, ser-lhe retirado o meio de defesa que seria oportuno usar quando à decisão de revogar o ato impugnado quando à venda de MNSRM, daqui resultando notória ilegalidade assacada ao douto aresto recorrido, uma vez que tal atividade nada tem a ver com o regime do DL 307/2007 (LPF), o que aqui se invoca.
Falta de pronúncia - nulidade
V. Na medida em que o douto aresto recorrido (1) não se pronunciou quanto ao alegado nos artigos 49º a 57º da contestação (2) o próprio aresto recorrido se refere que as EES só podem aceder à propriedade de farmácias nos mesmos termos das entidades do sector lucrativo - através de sociedades comerciais e por concurso - em desacordo com o acórdão do TC 612/2011, (3) e faz de conta que ninguém trouxe para o pleito o regime de licenciamento que em concreto se reputa aplicável, para além do DL 307/2007; ocorre falta de pronúncia sobre a solução adiantada pela aqui recorrente.
VI. Daí que se verifique a nulidade da parte inicial da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, aplicável ex vi CPTA} que aqui se invoca.
Contradição entre factos provados e a decisão adotada. Ilegalidade notória da decisão recorrida
VII. A douta decisão recorrida quanto à anulação do ato recorrido na parte relativa à venda de MNSRM, constitui afronta ao regime jurídico de licenciamento de venda de MNSRM que consta dos 1) Decreto-Lei n.º 134/200S, de 16 de Agosto (2) Decreto-Lei n.º 238/2007, de 19 de Junho (3) Portaria n.º 827/2005, de 14 de Setembro e (4) Deliberação n.º 1706/2005, de 7 de Dezembro (5) Proibição da venda de tabaco em locais de venda de MNSRM ­Circular Informativa n.º 045/CD de 03/03/2008.
VIII. Pelo que deve ser substituída por outra que se conforme com a legalidade.
IX. Nessa medida, dando-se como provado no facto 3, em conjunto com o facto 6, de onde resulta que o licenciamento abrange a venda de MNSRM, que se rege por ordenamento jurídico diferente da LPF aplicável apenas à venda de MSRM e que foi a única citada no aresto ora recorrido, ocorre a nulidade da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, o que se invoca.
Da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 59ºA do DL 307/2007, na redação do DL 171/2012, na parte que desaplica às EE5 o nº 3 do artigo 142 do mesmo diploma legal
X. A matéria que se trata neste caso, tem a ver com a definição dos sectores de propriedade dos meios de produção, e por isso é uma competência exclusiva da AR, nos termos da alínea j) do nº 1 do artigo 165º da CRP.
XI. E isso resulta claro do próprio DL 307/2007, uma vez que a única lei de autorização legislativa conferida ao Governo, na matéria em causa, que foi a Lei n.º 20/2007, de 12 de Junho que "autoriza o Governo a legislar em matéria de propriedade das farmácias e a adaptar o regime geral das contraordenações às infrações cometidas no exercício da atividade farmacêutica",
XII. Mas tal autorização teve apenas a duração de 180 dias nos termos do seu artigo 4º.
XIII. Muito embora o Decreto-Lei nº 171/2012, de 01.08, refira que é emitido "nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 198º da CRP", invocando-se matéria de reserva relativa da AR, o certo é que não invoca qualquer lei de autorização legislativa no sentido de permitir ao Governo alterar a lei, visando impossibilitar ou proibir as EES de aceder a "farmácias sociais" através das suas vestes próprias de associações, como resulta da alteração da redação do artigo 59ºA-2 do DL 307/2007, que impede a aplicação à EES do nº 3 do artigo 14º do mesmo diploma legal, a disposição que consagrava o acesso das EES a farmácias sociais, na leitura do acórdão do TC nº 612/2011.
XIV. Também, entre Janeiro de 2012 e Agosto de 2012, nenhuma lei foi emitida pela AR que permitisse ao Governo semelhante opção jurídica, conforme documento da AR em anexo.
XV. Pelo que a norma do nº 2 do artigo 59ºA do DL 307/2017, na redação do DL 171/2012, padece de inconstitucionalidade orgânica na medida em que manda desaplicar às EES o nº 3 do artigo 14º da mesma lei, devendo ser desaplicada pelo Tribunal, porque o Governo não tinha competência para o efeito.
XVI. Mesmo que existisse qualquer autorização legislativa, o que não se consente, a alteração da lei não se conteve nos seus limites e por isso sempre ocorreria ilegalidade, porquanto a norma aplicada (nº 2 do artigo 59ºA do DL 307/2007, na redação do DL 171/2012, na medida em que afasta a aplicação às EES do nº 3 do artigo 14º do mesmo diploma legal), por extravasar o sentido e extensão da respetiva lei de autorização seria ilegal, o que à cautela se invoca.
XVII. O único sentido e limites em que uma autorização legislativa poderia ser balizada pela AR, são revelados pelo próprio exórdio do DL 171/2012, que fala na adequação à jurisprudência do acórdão do TC 612/2011, o que, de forma escandalosa e grosseira não é feito, fazendo-se o inverso na medida em que (1) não se fixou prazo para as farmácias que vendiam ao público em geral se adaptarem (2) veio dizer-se diz-se no nº 2 do artigo 59ºA do DL 307/2007 que o nº 3 do artigo 14º do mesmo diploma, não se aplica às farmácias das EES, ou seja, vem dizer-se, implicitamente, que as EES, se quiserem aceder à propriedade da farmácia social, vão ter que se constituir em sociedades comerciais para acederem à propriedade das farmácias socais, mas nunca nas suas vestes de associação na venda de MSRM apenas aos membros do seu substrato associativo. Ou seja, faz-se o contrário do que diz o acórdão do TC.
XVIII. Cremos que este tipo de grosserias ostensivas, que não são admissíveis no plano técnico-jurídico, pelo que deveriam ser objeto de necessária investigação pelo MP.
XIX. Para além do mais, a norma do artigo 59º-A nº 2 do DL 307/2007, na medida em que aniquila o acesso das EES à instalação de farmácias sociais, nas vestes de associação, para venda de MSRM, apenas aos membros do seu substrato associativo e as obriga, caso queiram aceder a essa propriedade, a usar a forma travestida em sociedades comerciais (forma usada pelas entidades do sector privado especulativo), viola o princípio constitucional da coexistência do sector social com o sector privado consagrado no artigo 82º da CRP, viola o princípio da proteção do sector social previsto na alínea f) do artigo 80º da CRP e não se respeita o princípio consagrado no nº 5 do artigo 63º da CRP e viola o princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição. O que se invoca
XX. Pelo que deveria e deve ser desaplicada.
XXI. Viola-se ainda, de forma acintosa, a alínea c) do artigo 10º da Lei n.º 30/2013, de 8 de Maio (Lei de Bases da Economia Social), aprovada por unanimidade na AR, na medida em que compete aos poderes públicos "remover os obstáculos que impeçam a constituição e o desenvolvimento das atividades económicas das entidades da economia social", fazendo-se exatamente o contrário do que se diz, de forma inqualificável.
XXII. Foram violadas as disposições legais que se citaram e invocaram nos lugares próprios.
Termos em que, com os melhores de direito, devem julgar-se procedentes as nulidades e devolver o processo ao Tribunal “a quo" para que as aprecie à luz do que acima se alega, devendo a final decidir-se pela procedência do pedido feito ao Infarmed, mediante a desaplicação do normativo que se julgue contra os princípios constitucionais invocados e outros que sejam aplicáveis, assim se fazendo como se espera Justiça!”

O aqui Recorrido/INFARMED veio apresentar contra-alegações de Recurso em 12 de dezembro de 2019, não tendo apresentado Conclusões.

Igualmente em 12 de dezembro de 2019 veio a Autora, aqui Recorrida, M., apresentar as suas contra-alegações de Recurso, nas quais concluiu:
“1- A douta sentença recorrida anulou o ato impugnado, consubstanciado na deliberação datada de 08/09/2016 do Conselho Diretivo do Infarmed, IP que aprovou, nos termos propostos pela contrainteressada e ora recorrente, o processo de instalação de farmácia social privativa na Av. (...), (...), por entender verificados os vícios de violação de lei que analisou sob as alíneas c) e f), que conduzem, ambos, à anulabilidade.
2- A entidade requerida e autora do ato anulado não interpôs recurso, tendo-se conformado com a douta sentença anulatória no seu todo.
3- Apenas a contrainteressada recorre, mas o facto é que a sentença recorrida não é merecedora de qualquer das críticas que aquela lhe tece, bem pelo contrário, como se demonstrará e resulta, aliás, da própria argumentação recursiva.
4- Desde logo, a decisão não padece de nenhuma das nulidades com que aquela a «ataca», na medida em que não só decidiu todas as questões jurídicas submetidas à sua apreciação, como não decidiu senão aquelas que tinha de apreciar, inexistindo vislumbre de uma decisão surpresa, tomada em violação do contraditório, como alega a recorrente absolutamente sem fundamento.
5- Resulta de forma clarividente dos autos que a questão jurídica abordada na sentença [interpretação dos artigos 59ºA e 14º do DL nº 307/2007 na redação dada pelo DL nº 171/2012] não é nova; tendo, ao invés, sido colocada para apreciação jurisdicional desde a apresentação a juízo da PI, portanto “ab initio”, tal como as demais e que, como esta, constituem fundamento legal da sentença. Leiam-se os artigos 99º, 107º, 108º, 110º da PI., bem como os artigos 125º a 127º da petição inicial para que fiquem arredadas todas e quaisquer dúvidas.
6- As normas aplicadas pelo douto aresto proferido, e cuja sucessão no tempo analisou, são aquelas que sempre, e só, foram chamadas à discussão nos autos, qual sejam as constantes do regime jurídico das farmácias.
7- Donde, nada impediu a recorrente de na sua defesa invocar o que quer que entendesse pertinente, quer quanto à venda de MSRM, quer quanto à inconstitucionalidade da interpretação defendida pela autora dos citados normativos, o que, está visto, não fez oportunamente, constituindo estas questões novas que não cumpre, nessa medida, ao Tribunal de recurso conhecer.
8- A recorrida está de acordo e acompanha a interpretação feita pelo Ac TCA Norte de 27/09/2019 que a recorrente juntou, no sentido de que os pedidos de farmácias sociais apresentados por entidades da economia social (EES) até 30.09/2012 (dia anterior à entrada em vigor do Decreto Lei nº 171/2012 de 1 de Agosto) têm cobertura legal, face à lei anterior e ao acórdão do TC nº 612/2011 publicado no DR I Série nº 17, de 24.01.2012 (...) Só o não terão a partir do DL 171/2012 de 1 de Agosto.
9- Ora, atendendo à data em que a recorrente apresentou o pedido de abertura de farmácia social em causa nos autos - 15/07/2015 – conforme ponto 3 dos Factos Provado, quase três anos após a publicação deste diploma, é forçoso concluir, talqualmente fez a sentença, que o mesmo não tem cobertura legal, face à lei então vigente.
10- Cai por terra a argumentação da recorrente, pois foi precisamente neste sentido que decidiu a douta sentença recorrida, a qual é absolutamente coincidente com a interpretação feita pelo douto acórdão do TCAN citado (de que, à luz do regime já em vigor à data da apresentação pela recorrente do seu requerimento, bem como da prática do ato impugnado, já não era possível o licenciamento de novas farmácias sociais privativas).
11- Salvo o devido respeito, a recorrente contradiz-se e enreda-se nos seus argumentos, esquecendo que foi ela que requereu ao Infarmed, IP. autorização para abertura de farmácia para venda de todos os produtos que uma farmácia pode vender e prestação dos inerentes serviços farmacêuticos e que enquadrou juridicamente a sua pretensão em quadro legal, já revogado, que defendia repristinado, questão essa que o tribunal «a quo» analisou, concluindo que qualquer efeito repristinatório decorrente do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2011 seria de afastar, por falta do requisito necessário à produção desse efeito, a saber, existir declaração de inconstitucionalidade da norma revogatória.
12- Acresce ser por demais evidente que não houve qualquer falha no uso do dever de gestão, nem preterição de contraditório, invocações a que a recorrente se «agarra» numa débil tentativa de conseguir abordar a questão da inconstitucionalidade da norma aplicada no douto aresto recorrido, somente agora trazida aos autos.
13- Como tal, esta questão da inconstitucionalidade, porque não invocada oportunamente em sede de defesa para ser apreciada pelo Tribunal «a quo» e, pelas partes em contraditório, constitui uma questão nova que esse Tribunal de recurso está impedido de apreciar.
14- Como é pacífico, os recursos são um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas, nem discutidas nas instâncias, o que é precisamente o caso desta invocação de uma inconstitucionalidade orgânica.
15- Sem prescindir, a recorrente invoca “inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 59ºA do Decreto-Lei nº 307/2007 de 31.08, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 171/2012, de 01.08, na leitura implicitamente adotada no aresto recorrido”. Todavia nem explica qual é essa leitura, nem demonstra ter sido adotada pela sentença recorrida, confirmando-se tratar-se de questão que não foi apreciada pela sentença recorrida, e que não pode ora ser apreciada, em sede de recurso.
16- Ainda sem prescindir, no que concerne a esta questão totalmente nova da (in) constitucionalidade, que a recorrente ora traz para apreciação, a recorrida faz sua, data venia, a douta argumentação do acórdão do STA de 05/07/2018, no P. nº 0879/17 que, por cautela de patrocínio, dá por integralmente reproduzida; Donde sempre se concluiria soçobrar a pretensão da recorrente.
17- Refira-se, por último, e ainda sem prescindir, que a anulação do ato impugnado funda-se também no vício de violação de lei, por violação das regras da livre concorrência e do princípio da prossecução do interesse público (artigo 163º nº 1 do CPA), apreciado e julgado procedente em f) da sentença.
18- A sentença recorrida não é merecedora de qualquer censura.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, devendo ser mantida a decisão recorrida, por ser de lei e de direito.

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 18 de junho de 2020, nada veio dizer, requerer ou Promover.

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, verificando, designadamente, se se mostram preenchidos os pressupostos de facto e de direito, justificativos da invocada improcedência da Ação.

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo considerou a seguinte factualidade como provada:
“1) A Autora é proprietária da Farmácia (...), sita na Av. (...), freguesia e concelho de (...), distrito do Porto, sendo detentora do alvará n.º 4126 – cfr. fl. 24 do suporte físico do processo cautelar n.º 2550/17.0BEPRT, apensado a estes autos (doravante abreviadamente designado por processo cautelar).
2) A abertura da referida Farmácia (...) foi autorizada por despacho do Diretor Geral de Assuntos Farmacêuticos do Ministério da Saúde de 23 de Abril de 1985, nos termos do alvará n.º 3464, emitido em 14/01/1986 – cfr. fl. 25 do suporte físico do processo cautelar.
3) Por requerimento de 15/07/2015, a Contrainteressada requereu à Entidade Demandada que: “se pronunciasse acerca da verificação, quanto à Requerente, dos requisitos previstos no n° 4 da Base II (que não o n° 5) da Lei 2125, de 20.03.1965 e artigos 45° n° 2 e 46° ambos do Decreto-Lei 48547 de 27.08.1968, uma vez que estas disposições legais continuam substancialmente válidas e vigentes “ex vi” artigo 14° n° 3 e 59° 1 e 3 da LPF; que o Infarmed confira (...) o prazo de um ano para instalar a farmácia e ser requerida vistoria e, uma vez realizada esta, seja atribuído alvará, conforme alude o artigo 48° do Decreto-Lei 48547 de 27.08.1968; que o licenciamento tenha a seguinte amplitude: a farmácia só pode vender medicamentos ou especialidades farmacêuticas sujeitos a receita médica aos associados, beneficiários e pensionistas; que pode exercer a atividade de para-farmácia (medicamentos não sujeitos a receita médica); que pode prestar os serviços farmacêuticos previstos nas alíneas a) e h) do artigo 2.º da Portaria 1429/2007 de 02.11 a qualquer utente; que pode ter a sua designação no exterior com o logotipo; que pode ter porta aberta para o exterior (sem todavia poder atender pessoas singulares que não pertençam ao seu substrato associativo e estatutário quanto à venda de medicamentos sujeitos a receita médica) e pode colocar no exterior uma cruz verde identificativa de uma farmácia (…) ” – cfr. fls. 1 a 10 do processo administrativo.
4) Através de carta com o registo “RD647727614PT”, foi a Contrainteressada notificada, pela Entidade Demandada, além do mais, para apresentar documentos, entre os quais, a planta de localização da farmácia – cfr. fls. 64 a 67 do processo administrativo.
5) Por requerimento datado de 29/01/2016, a Contrainteressada remeteu à Entidade Demandada os documentos solicitados, dos quais constam, além do mais, a pretendida localização da farmácia: Av. (…), (...) – cfr. fls. 68 a 90 do processo administrativo.
6) Em 24/03/2016, foi elaborada, pelos serviços da Entidade Demandada, proposta com o n.º 01191/450.10.216, da qual consta, em suma o seguinte:
“(…).
ASSUNTO: Instalação de farmácia privativa, na freguesia de (...), conselho de (...), Distrito do Porto, solicitada por A F. – Associação de Socorros Mútuos da (...)
(…)
Assim, após a análise do processo em apreço, dado que a documentação entregue se encontra integralmente de acordo com artigo 13.º da Portaria n.º 352/2012, de 30 de Outubro, parece nada haver a opor ao:
- Processo de instalação de nova farmácia social na Avenida (...), freguesia de (...)m concelho de (...), distrito do Porto;
- Nada a opor à nomeação da Agathe Emrich Rodrigues, como diretora técnica;
- Nada a opor à denominação de Farmácia (...).
À consideração superior.
(…)” - cfr. fls. 63 verso a 64 do suporte físico do processo cautelar e fls. 106 a 107 do processo administrativo.
7) Sobre a informação referida no ponto anterior recaiu Deliberação do Conselho de Administração da Entidade Demandada, datada de 05/04/2016, com o seguinte teor: “Aprovado nos termos propostos” – cf. fls. 106 e 111 do processo administrativo.
8) Na sequência da Deliberação de 05/04/2016, referida no ponto antecedente, e no seguimento da receção nos serviços da Entidade Demandada, de carta subscrita pelo Presidente da União das Mutualidades Portuguesas, submeteu-se à consideração superior o processo de instalação de farmácia social privativa respeitante à Contrainteressada – cfr. fls. 106 a 111 do processo administrativo.
9) Em 08/09/2016, o Conselho Diretivo da Entidade Demandada, deliberou a aprovação nos termos propostos pela "A F. - Associação de Socorros Mútuos da (…)”, o processo de instalação de farmácia social privativa na Av. (...), freguesia e concelho de (...) – cfr. fls. 63 verso, 64 e 66 do suporte físico do processo cautelar e fls. 111 do processo administrativo.
10) Em 07/11/2017, a Autora, na qualidade de proprietária da Farmácia (...), melhor identificada em 1) deste probatório, deu entrada nos serviços da Entidade Demandada de um requerimento nos termos do qual solicitou a sua constituição como interessada, “nos termos dos artigos 67.º e 68.º do Código do Procedimento Administrativo, no processo relativo ao licenciamento e emissão de alvará de uma farmácia privativa” – cfr. fls. 608 a 611 do processo administrativo.
11) Por deliberação de 09/11/2017 foi reconhecido à ora Autora, pela Entidade Demandada, a qualidade de interessada no procedimento administrativo em causa – cfr. fls. 611 do processo administrativo. “

IV – Do Direito
No que aqui releva, discorreu-se no discurso fundamentador da decisão proferida em, 1ª Instância:
“a) Do vício de procedimento, por falta de audiência dos interessados
(...)
Pelo que, o ato sindicado não padece de vício de procedimento, por falta de audiência dos interessados.
b) Do vício de forma, por falta de fundamentação
(...)
Pelo exposto, entende-se que o ato impugnado não padece de vício de falta de fundamentação.
c) Do vício de violação de lei, por o ato ter na sua génese um pedido, formulado pela Contrainteressada, que assenta em normas que se encontram revogadas (n.º 4 da Base II da Lei n.º 2125 de 20/03/1965 e artigos 45.º, n.º 2 e 46.º do Decreto-Lei n.º 4857, de 27/08/1968) e por violação dos artigos 14.º e 59.º-A do Decreto Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto
Alegou a Autora que a legislação vigente, à data do pedido efetuado pela Contrainteressada, ou seja, o Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 109/2014, de 10 de Julho, não permite o licenciamento e instalação de novas farmácias privativas, não colidindo com tal entendimento o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2011. Nessa esteira, a Autora, defendeu, além do mais, que o ato em crise é anulável, por erro quanto aos pressupostos de direito, uma vez que na génese do mesmo está um pedido, formulado pela Contrainteressada, que assenta em normas que se encontram revogadas (n.º 4 da Base II da Lei n.º 2125 de 20/03/1965 e artigos 45.º, n.º 2 e 46.º do Decreto-Lei n.º 4857, de 27/08/1968) e, ainda, que o ato em crise é anulável, por vício de violação de lei, porquanto a autorização de abertura de farmácia privativa à Contrainteressada viola, de forma grosseira, o disposto nos artigos 14.º e 59.º-A do Decreto Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, uma vez que a Contrainteressada não se encontra em nenhuma das situações dos n.ºs 1 e 3 do artigo 59.º-A, não tendo farmácia privativa que tenha sido aberta, nem detendo farmácia aberta ao público, concorrendo com os operadores de mercado, únicos casos em que se referem as citadas normas, sempre e de acordo com a previsão legal, em relação a situações de pretérito.
Os vícios suscitados pela Autora, ora sintetizados, serão, de seguida, analisados conjuntamente, atenta a sua indissociabilidade.
A questão que se coloca centra-se em duas diferentes soluções interpretativas sobre a possibilidade de abertura de novas farmácias privativas por parte de entidades do sector social.
Importa, antes de mais, ter presente o quadro legal em causa neste litígio.
A Lei n.º 2125, de 20/03/1965, designada de “Lei de Bases da Propriedade da Farmácia”, definindo como de interesse público a “função de preparar, conservar e distribuir medicamentos ao público” permitia diferenciar três tipos de farmácias: as farmácias comunitárias, atribuídas a farmacêuticos ou sociedades de farmacêuticos, destinadas ao público em geral; as farmácias privativas, atribuídas a instituições de assistência social, e destinadas apenas aos respetivos associados; e as farmácias comunitárias que, pertencentes a instituições sociais, lhes haviam sido atribuídas ao abrigo da anterior legislação.
O n.º 4, da sua Base II, estipula que “Para cumprimento dos seus fins estatutários, as Misericórdias e outras instituições de assistência e previdência social poderão ser proprietárias de farmácias desde que estas se destinem aos seus serviços privativos. As farmácias que estas instituições atualmente possuem abertas ao público podem continuar no mesmo regime”,
O Decreto-Lei n.º 48.547, de 27/08/1968, sobre o “Exercício da profissão farmacêutica”, diz no seu artigo 44.º - integrado na Secção sobre a “abertura das farmácias» - que “No alvará das farmácias licenciadas nos termos do nº 4 da base II da Lei 2125 indicar-se-á expressamente que estas farmácias apenas podem fornecer medicamentos em condições especiais às pessoas que, nos termos dos estatutos ou dos regulamentos das entidades a que pertençam, tenham essa prerrogativa e nas condições ali expressamente estabelecidas”. Por sua vez, diz no seu artigo 45.º, que “Quando os pedidos [para instalação de nova farmácia] forem formulados por Misericórdias ou outras instituições de assistência e previdência social ou por organismos corporativos de atividade farmacêutica, nos termos da Base II da Lei nº2125, os documentos a que se refere as alíneas a) e c) do número anterior reportar-se-ão ao diretor técnico que for proposto e serão apresentados na altura oportuna”. E diz no seu artigo 64.º - integrado na Secção sobre o “funcionamento das farmácias” - que “1- As farmácias a que se refere o artigo 44º só podem atender as pessoas que legalmente nelas se possam abastecer, devendo pedir sempre a comprovação dessa qualidade. 2- As receitas que forem apresentadas nestas farmácias só poderão ser aviadas desde que tenham consignado o nome do doente ou a sua relação de parentesco, ou outra, com o utente legal da farmácia, justificativa do seu direito de aviar as receitas nessa farmácia. …”
(...)
Pela Lei n.º 20/2007, de 12/06, a Assembleia da República autorizou o Governo a legislar, além do mais, “em matéria de propriedade das farmácias”. Segundo o seu artigo 2º, na parte pertinente, “A presente autorização legislativa é concedida para permitir a fixação das condições de acesso à propriedade de farmácias de oficina, estabelecer limites ao número de farmácias detidas e à possibilidade de transacionar as respectivas licenças, proceder ao aumento do número de situações de incompatibilidade que determinam a proibição de pessoas singulares ou coletivas serem proprietárias de farmácias …” e quanto à “extensão” da autorização prescreve o artigo 3.º que “O decreto-lei a aprovar ao abrigo da autorização conferida por esta lei deve estabelecer a: a) Alteração da propriedade da farmácia, no sentido de permitir que todas as pessoas singulares ou sociedades comerciais possam ser proprietárias de farmácias; …; e) Revogação das normas deontológicas previstas na Lei nº2125, de 20.03.1965, e no DL nº48.547, de 27.08.1968; (…)”.
No uso desta autorização legislativa - e nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 198.º da CRP - foi publicado o Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31/08 - objeto de várias “alterações e aditamentos”: da Lei n.º 26/2011, de 16/06; do Decreto-Lei n.º 171/2012, de 01/08; da Lei n.º 16/2013, de 08/02; do Decreto-Lei n.º 128/2013, de 05/09; e do Decreto-Lei n.º 109/2014, de 10/07 - que veio estabelecer o “regime jurídico das farmácias de oficina”, destinadas a preparar, conservar e distribuir medicamentos ao público - que entrou em vigor 60 dias após a data da sua publicação - e procedeu à revogação, além do mais, da Lei n.º 2125, de 20/03/1965, e do Decreto-Lei n.º 48.547, de 27/08/1968 (artigos 60.º e 61.º).
(...)
O Acórdão n.º 612 do Tribunal Constitucional, datado de 13/12/2011, declarou a “inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 14º, nº1, 47º, nº2 alínea a), e 58º do DL nº307/2007, de 31.08, na medida em que impõem às entidades do sector social que, no desempenho de funções próprias do seu escopo, constituam sociedades comerciais para acesso à propriedade das farmácias, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito [consagrado no artigo 2.º da Constituição], conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da Constituição”.
Na sequência desta declaração de inconstitucionalidade, o Governo, através do Decreto-Lei n.º 171/2012, de 01/08, procedeu à “segunda alteração ao DL nº307/2007”, e “adequou o regime jurídico das farmácias de oficina à jurisprudência fixada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº612/2011”. Assim, revogou o artigo 58.º citado, e aditou um artigo 59º-A a estipular o seguinte: “1- O disposto no presente decreto-lei é aplicável às farmácias privativas que tenham sido abertas ao abrigo da 1ª parte do nº 4 da base II da Lei nº2125, de 20.03.1965, com as adaptações decorrentes do facto de as mesmas apenas poderem fornecer medicamentos em condições especiais às pessoas que, nos termos dos estatutos ou regulamentos das entidades a que pertençam, tenham essa prerrogativa e nas condições ali expressamente estabelecidas. 2- Não são, nomeadamente, aplicáveis às farmácias privativas as disposições do artigo 14º e da alínea a) do nº2 do artigo 48º. 3- As entidades do sector social que detenham farmácias abertas ao público, concorrendo com os operadores no mercado e em atividade ao abrigo dos termos previstos na 2ª parte do nº4 da base II da Lei 2125, de 20.03.1965, devem proceder, até 31.12.2013 às adaptações necessárias ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 14º do presente diploma”
Cerca de dois anos depois, o Decreto-Lei n.º 109/2014, de 10/07, alterou, além do mais, o n.º 3 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, e o n.º 3 do artigo 59.º-A que a este último diploma foi aditado pelo Decreto-Lei n.º 171/2012. São as seguintes, respetivamente, as novas redações: “As entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias nos termos previstos no artigo 59º-A desde que cumpram o disposto no presente decreto-lei e demais normas regulamentares que o concretizam”; e «Não é aplicável às farmácias referidas nos n.ºs anteriores o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 14º”.
No momento da formulação do pedido pela Contrainteressada ao Infarmed, I..P., a 15/07/2015, parcialmente transcrito no ponto 3) dos factos provados, para instalação de nova farmácia privativa, já estava em vigor, desde Outubro de 2007, o regime jurídico das farmácias de oficina consagrado no DL n.º 307/2007, com as alterações processadas até ao Decreto-Lei n.º 109/2014, de 10/07.
Discute-se nos autos se, em face deste novo regime jurídico, assim alterado na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional, subsiste a possibilidade de entidades do sector social promoverem a instalação de novas farmácias privativas.
A tal questão deu resposta o recente acórdão de revista do Supremo Tribunal Administrativo, de 05/07/2018, no âmbito do processo n.º 0879/17, publicado em www.dgsi.pt., aí se tendo sumariado, para o que ora interessa, o seguinte: “IV - O «regime jurídico das farmácias de oficina», instituído pelo DL nº307/2007, de 31.08, ao abrigo da autorização legislativa da Lei nº20/2007, de 12.06, e na versão dada pelo DL nº171/2012, de 01.08, publicado na sequência do acórdão nº612, de 13.12.2011, do Tribunal Constitucional, não permite o licenciamento e emissão de alvará para instalação e funcionamento de novas farmácias sociais, ou seja, farmácias privativas de instituições de assistência e previdência social (…)”
Lê-se no acórdão citado sobre a questão de saber se em face deste novo regime jurídico, assim alterado na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional, subsiste a possibilidade de entidades do sector social promoverem a instalação de novas farmácias privativas, o seguinte:
“Compulsadas as «normas legais citadas», no seu texto e no seu devir histórico, e circunstanciado, gera-se uma «primeira impressão negativa», e por duas razões fundamentais: - porque o regime de abertura dessas «farmácias privativas», do sector social, constava de dois diplomas legais que o novo regime das farmácias expressamente revogou [Lei nº2125 de 1965; DL nº48.547 de 1968; e artigo 60º do DL nº307/2007]; e porque o artigo 59º-A do DL nº307/2007, que foi aditado pelo DL 171/2012 na sequência do referido acórdão nº 612, se refere claramente ao passado.
(…)
Não há dúvida de que o DL nº307/2007 veio liberalizar o mercado farmacêutico. Antes dele, só os farmacêuticos, e, observados determinados condicionalismos, as entidades do sector social - instituições particulares de solidariedade social e outras com uma natureza semelhante - podiam ser «proprietários de farmácias», estando a mesma vedada à generalidade das pessoas [ver Lei nº2125 de 1965 e DL nº48.547 de 1968].
Considerando que a «lei de bases da propriedade da farmácia» [Lei nº2125 de 1965], bem como o «regime do exercício da profissão de farmacêutico [DL nº48.547 de 1968], estavam «descontextualizados da atual realidade nacional e europeia», esse diploma de 2007 visou «adaptá-los à nova realidade da sociedade portuguesa», o que fez, e nomeadamente, ao «afastar as regras que restringiam a propriedade das farmácias exclusivamente a farmacêuticos»; ao «reservá-la a pessoas singulares e às sociedades comerciais»; e ao intentar equilibrar o livre acesso à propriedade das farmácias, e o respetivo risco de concentração da mesma, «limitando-a a quatro farmácias».
Não impediu o acesso à propriedade das farmácias ao sector cooperativo e social da economia - ver artigo 82º da CRP - mas veio «obrigar» as respectivas entidades a constituir sociedades comerciais para poderem ser proprietárias das mesmas, e, portanto, para exercerem a atividade de farmácia - ver artigos 14º, nº1 e nº3, 47º, nº2 alínea a), e 58º do DL nº307/2007, citados anteriormente no ponto 3. Isso está claro, aliás, no preâmbulo do diploma: «… com o presente diploma impõe-se a alteração da propriedade das farmácias que atualmente são detidas, designadamente, por instituições particulares de solidariedade social. No futuro, estas terão de constituir sociedades comerciais, em ordem a garantir a igualdade fiscal com as demais farmácias».
Este ónus, assim imposto às entidades do sector social que pretendam aceder à propriedade de farmácias, que lhes exige que, para esse efeito, constituam uma sociedade comercial, e as impede de fazê-lo na sua veste própria, de entidades sem carácter lucrativo, vocacionadas para fins de solidariedade social, veio, como já referimos [ponto 3], a ser declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional [Acórdão nº612/2011 - ver anterior ponto 3]. Note-se, no entanto, que não foi declarado inconstitucional por «violação da coexistência de sectores de propriedade dos meios de produção» [artigo 82º da CRP], pois o sector social «não é excluído do acesso à propriedade de farmácias» mas antes obrigado a fazê-lo sob a forma de sociedade comercial. O motivo dessa declaração foi a «violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito» [artigo 2º da CRP] conjugado com o artigo 63º, nº5, da CRP [direito à segurança social e solidariedade].
Foi sublinhado, ser uma das incumbências prioritárias do Estado a de «assegurar uma justa concorrência [ver artigo 81º alínea f) da CRP], mas também que, na definição dos mecanismos utilizados para tal, o legislador não poderá desrespeitar, para além do admissível, a «proteção devida ao sector social» que está obrigado a apoiar [ver artigo 63º, nº5, da CRP]. E concluiu-se, mediante análise do novo regime de 2007, que embora neste tenha sido salvaguardada a igualdade de concorrência, evitando que as entidades do «sector social» disputassem o mercado com as vantagens advenientes do seu estatuto de entidades que não buscam o lucro, o legislador, não obstante este fim ambicionado, acabou por se «exceder» ao impor a forma societária enquanto requisito para que as entidades do sector social possam ser «titulares da propriedade» das farmácias «mesmo quando, através delas, desejem prosseguir a atividade farmacêutica no seu espaço próprio, fora do mercado, sem fins lucrativos, com puros objetivos de solidariedade social».
Ou seja, com o intuito de proteger a «livre concorrência», o referido ónus retirou às «entidades sociais» a possibilidade de se dedicarem à atividade farmacêutica nas suas vestes próprias, sem fins lucrativos, para exclusivo benefício dos seus utentes.
Foi este ónus, aplicado às entidades sociais, enquanto atuam fora do mercado, para cumprimento dos fins estatutários que lhes estão associados, e, portanto, num plano em que o interesse público que realizam retoma a plenitude do seu peso, que foi tido como inconstitucional. Já, se o quiserem fazer no mercado, em concorrência com os demais operadores do sector de atividade farmacêutica, a imposição do ónus realiza, na plenitude, o escopo da igualdade concorrencial.
Temos, por conseguinte, que o «acórdão do Tribunal Constitucional» se limita a declarar a inconstitucionalidade deste ónus assim entendido, e com este preciso âmbito de aplicação, e não a impor ao legislador ordinário que permita, ou que continue a permitir, a possibilidade de abertura de «farmácias privativas às entidades do sector social»”.
Lê-se ainda no acórdão referido o seguinte:
“A segunda alteração feita ao DL nº307/2007 de 31.08 visou, essencialmente, adequar o regime jurídico das farmácias à jurisprudência fixada por este aresto do Tribunal Constitucional, pois que o legislador ordinário não podia, por violar a lei constitucional, impor às entidades do sector social que para o desempenho de funções próprias do seu escopo tivessem de constituir sociedades comerciais para poderem aceder à propriedade das farmácias.
Foi assim que o DL nº171/2012, de 01.08, como já deixamos dito [ver ponto 3 supra], revogou o artigo 58º do texto inicial, que obrigava as entidades do sector social que «já fossem proprietárias de farmácias» a proceder, no prazo de cinco anos, a adaptações no sentido de cumprir os requisitos do artigo 14º, entre os quais «o de constituírem sociedade comercial» [nº1], e aditou o artigo 59º-A, através do qual o legislador diz não ser aplicável, às farmácias privativas que «tenham sido abertas» ao abrigo da 1ª parte, do nº4, da base II da Lei nº2125, de 1965 - Segundo a qual «Para cumprimento dos seus fins estatutários, as Misericórdias e outras instituições de assistência e previdência social poderão ser proprietárias de farmácias desde que estas se destinem aos seus serviços privativos - nomeadamente a obrigação de criarem sociedade comercial para poder manter essa atividade de farmácia para com os seus utentes.
Mas esta obrigação é aplicável às farmácias que as entidades sociais do sector social «detenham abertas ao público, concorrendo com os operadores no mercado, e em atividade ao abrigo da 2ª parte do nº4 da base II da Lei 2125 de 1965» - «As farmácias que estas instituições atualmente possuem abertas ao público podem continuar no mesmo regime».
A interpretação destas normas legais do novo regime jurídico das farmácias, tal como aqui aplicável [último parágrafo do ponto 3 supra], impõe-nos a confirmação daquela primeira impressão negativa a que nos referimos acima. Efetivamente, mostra-se inultrapassável o texto da lei [artigo 9º, nº2 e nº3 do Código Civil], no sentido de apenas estar prevista a manutenção da propriedade das farmácias privativas, do sector social, que «já existam abertas, destinadas aos seus serviços privativos», sem a obrigação de «constituírem sociedade comercial», mas não a «possibilidade de abertura de novas farmácias nas mesmas condições».
O tempo verbal, usado, tanto no revogado artigo 58º como, claramente, no texto do artigo 59º-A, é do passado, e deveremos presumir que o legislador soube exprimir-se. E embora o nº2 desse artigo não tenha expressa referência ao passado, o advérbio que nele é intercalado remete inexoravelmente para a concretização das «adaptações» referidas no anterior nº1, que contempla apenas farmácias já existentes.
(…)
Isto significa que o artigo 60º, nº1, do DL nº307/2007, de 31.08, ao revogar na sua «totalidade» a Lei nº2125, de 20.03.1965, e o DL nº48.547, de 27.08.1968, intentou revogar também, e logicamente, as normas respeitantes ao regime de propriedade de farmácias privativas por parte das entidades do sector social, e nomeadamente a 1ª parte do nº4 da base II do primeiro diploma, e os artigos 44º e 64º do segundo”
Concorda-se inteiramente com o aresto referido, por nele se acolher, segundo este Tribunal, a interpretação mais consentânea com a letra da lei (artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil) e com o sentido do acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional e com a sua decisão de inconstitucionalidade parcial e qualitativa.
Entende-se, pois, que, à luz do regime atualmente em vigor e já em vigor à data da apresentação pela Contrainteressada do seu requerimento e bem assim à data da prática do ato impugnado, não é possível o licenciamento de novas farmácias sociais privativas.
O artigo 60.º do Decreto-Lei n.º 307/2007 não foi objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, pelo que qualquer efeito repristinatório decorrente do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2011 seria de afastar, por falta do requisito necessário à produção desse efeito: a existência da declaração de inconstitucionalidade de uma norma revogatória.
O artigo 59.º-A do Decreto-Lei n.º 307/2007, na redação posterior ao Decreto- Lei n.º 171/2012, e que se mantém na versão atualmente em vigor, permite às instituições particulares de solidariedade social serem proprietárias de farmácias privativas que tenham sido abertas ao abrigo da 1.ª parte do n.º 4 da base II da Lei 2125, de 20 de Março de 1965. Contudo, a possibilidade de instalação de novas farmácias privativas não está prevista no Decreto-Lei n.º 307/2007. O artigo 14.º, n.º 1, determina que podem ser proprietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais. No que às entidades do sector social da economia diz respeito, estas podem ser proprietárias de farmácias apenas nos limitados termos do artigo 59.º-A, n.º 1, isto é, apenas daquelas abertas ao abrigo do regime da Lei n.º 2125, e desde que cumpram o disposto no regime jurídico das farmácias de oficina.
Ou seja, à luz do direito atualmente em vigor, o Infarmed não tem habilitação legal para autorizar a instalação de novas farmácias privativas.
Acrescente-se ainda que esta opção do legislador, no sentido de não admitir a abertura de novas farmácias privativas, não põe em causa a atividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social, protegidas pelo artigo 63.º, n.º 5, da CRP, porque, sobretudo, não afasta a possibilidade de estas entidades serem proprietárias de farmácias abertas ao público.
Pelo que, o ato impugnado, ao aprovar nos termos propostos pela "A F. - Associação de Socorros Mútuos da Póvoa do Varzim”, o processo de instalação de farmácia social privativa na Av. (...), freguesia e concelho de (...), assentou em normas que se encontram revogadas (n.º 4 da Base II da Lei n.º 2125 de 20/03/1965 e artigos 45.º, n.º 2 e 46.º do Decreto-Lei n.º 4857, de 27/08/1968) e violou os artigos 14.º e 59.º-A do Decreto Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto.
Pelo exposto, entende-se que o ato impugnado padece de vício de violação de lei, por assentar em preceitos legais inexistentes (já revogados) e por violar o disposto nos artigos 14.º e 59.º-A do Decreto-lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, na sua redação atual, o que conduz à sua anulabilidade (artigo 163.º, n.º 1, do CPA).
d) Do vício de violação de lei, por falta absoluta de base legal, por o ato ter conteúdo e objeto impossível e por ser um ato nulo por natureza
(...)
Em face do supra exposto, este Tribunal entende que o ato impugnado não padece de vício de violação de lei, por vício quanto ao objeto ou conteúdo.
e) Do vício de procedimento, por preterição do procedimento legalmente exigido (do concurso público)
Pelo exposto, o ato impugnado não padece de vício de procedimento, por preterição do procedimento legalmente exigido (do concurso público).
f) Do vício de violação de lei, por violação das regras da livre concorrência e do princípio da prossecução do interesse público
Segundo a Autora, através do ato impugnado, a Entidade Demandada “habilitou a Contrainteressada a explorar uma farmácia em manifesta contravenção a todas as normas e preceitos legalmente aplicáveis à abertura e atribuição de alvará de farmácias e, bem assim, dos objetivos preconizados na alteração ao regime jurídico das farmácias levadas a cabo pelo DL n.º 307/2007 no que tange «a garantir o regular funcionamento do mercado e a acessibilidade dos cidadãos à dispensa de medicamentos»”.
Alegou a Autora que o “ato impugnado viola mesmo o interesse público, na medida em que é do interesse público que as farmácias existam no âmbito de um mercado concorrencial, sem deformações ou perversões, tal como preconizado nessa alteração legislativa”.
Vejamos, então.
Do que vem dito, já resulta que a Entidade Demandada autorizou à Contrainteressada, entidade do sector social, o processo de instalação de uma farmácia social privativa e que tal, à luz do Direito atual, não podia ter sucedido, por inexistência de pressuposto legal.
Também já se referiu que uma entidade do sector social que, hoje, pretenda abrir uma farmácia, está sujeita ao mesmo regime a que estão sujeitos os demais, devendo, mormente, sujeitar-se a concurso público e à forma de sociedade comercial, de modo a que seja garantida uma equilibrada, concorrencial, igual e transparente disputada do mercado farmacêutico. Por outro lado, só assim se prosseguirá o interesse público conexionado com a venda de medicamentos.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 307/2007 lê-se, designadamente, o seguinte: “De facto, com o presente diploma impõe-se a alteração da propriedade das farmácias que atualmente são detidas, designadamente, por instituições particulares de solidariedade social. No futuro, estas terão de constituir sociedades comerciais, em ordem a garantir a igualdade fiscal com as demais farmácias”. A necessidade de garantir a igualdade fiscal, tem também como reduto a prossecução do interesse público, através da arrecadação de tributos (mormente, impostos) para, como tais receitas, melhor servir a comunidade em geral.
O regime do Decreto-Lei n.º 307/2007 e as alterações ao mesmo que foram sucessivamente introduzidas visaram a reorganização jurídica do sector das farmácias, reformando o respetivo regime e adaptando-o à nova realidade social e económica, estabelecendo o livre acesso à propriedade de farmácias comunitárias por parte de particulares (pessoas singulares e sociedades comerciais) e entidades do sector social, mas sujeito as farmácias por estas detidas, em nome dos princípios da igualdade e da concorrência leal, às mesmas regras que as demais farmácias comunitárias, designadamente no que respeita à sua instalação, exploração e funcionamento. Por conseguinte, pôr fim à figura das farmácias privadas, salvaguardando, contudo, a existência e o funcionamento das que haviam sido abertas ao abrigo da anterior legislação.
Donde resulta que a circunstância do ato impugnado assentar em preceitos legais inexistentes (já revogados) e violar o disposto nos artigos 14.º e 59.º-A do Decreto Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, na sua redação atual, nos leva a concluir, igualmente, no sentido da violação das regras da livre concorrência e do princípio da prossecução do interesse público, ínsitos no novo regime jurídico das farmácias.
Pelo exposto, ato impugnado padece de vício de violação de lei, igualmente, por violação das regras da livre concorrência e do princípio da prossecução do interesse público. (...)”

Correspondentemente, decidiu-se em 1ª instância, designadamente:
“Nestes termos, e pelas razões aduzidas:
(...)
iv. Julgo a presente ação administrativa (...) procedente, pelo que anulo o ato administrativo impugnado, consubstanciado na deliberação, datada de 08/09/2016, do Conselho Diretivo da Entidade Demandada, Infarmed, Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., que aprovou, nos termos propostos pela Contrainteressada, "A F. - Associação de Socorros Mútuos da (…)”, o processo de instalação de farmácia social privativa na Av. (...), freguesia e concelho de (...), por o mesmo padecer de vício de violação de lei.”

Vejamos:
Refira-se desde logo que há muito que os tribunais Administrativos têm vindo a ser chamados a dirimir conflitos de natureza análoga à matéria aqui controvertida.

Para evitar equívocos e para que não seja contaminada a argumentação que se aduzirá, esclarece-se desde já que farmácias sociais, ou privativas, são farmácias que, nos termos do artigo 59.º-A/1 do DL 307/2007, “apenas podem fornecer medicamentos em condições especiais às pessoas que, nos termos dos estatutos ou regulamentos das entidades a que pertençam, tenham essa prerrogativa e nas condições ali expressamente estabelecidas”.

A título de exemplo, e como enquadramento da posição que se adotará, alude-se ao sumariado em acórdãos já proferidos neste TCAN:
- Acórdão do TCAN, proferido no Processo nº 02748/13.0BEPRT, em 15.05.2020:
“(...) Ao exigir à requerente, uma entidade do sector social, que satisfaça as condições das entidades do sector privado para aceder à propriedade de uma farmácia, o INFARMED, sem o afirmar, está a aplicar o disposto no n.º 1 do artigo 14º da Lei 307/2007, de 31.08, com as sucessivas alterações, e que a Lei 16/2013, de 08.02, deixou intacto: só podem ser proprietários de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais, norma que o acórdão Tribunal Constitucional n.º 612/2011 declarou inconstitucional por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito (consagrado no artigo 2.º da Constituição), conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da Constituição, pelo que o ato de indeferimento deve ser anulado por aplicação de norma que é inconstitucional.
A declaração de inconstitucionalidade em causa, abrangendo apenas o disposto no n.º 1 do artigo 14º da Lei 307/2007, de 31.08, não impõe repristinar todo o regime da Lei 2.125 de 20.03.1965 e do Decreto-Lei 48.547, de 27.08.1968, mas apenas o n.º 4 da Base II da Lei 2.125 e os artigos 45º, n.º2, e 46º, ambos do Decreto-Lei 48.547, e estas normas apenas na parte em que permitem a uma entidade do sector social ser proprietária de uma farmácia sem se constituir em sociedade (...).”

Acórdão do TCAN, proferido no Processo nº 153/13.8BEPRT. de 10-03-2017:
“Não tem fundamento legal a tese (...) segundo a qual após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 307/2007 de 31 de agosto, ao abrigo da legislação em vigor e da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não é possível autorizar a instalação de novas farmácias sociais.”

O que está predominantemente aqui em causa é apurar se, ao abrigo do DL 307/2007, com as alterações entretanto introduzidas, é possível abrir novas farmácias privativas por parte de entidade de natureza social.

Sigamos agora de perto o enquadramento jurídico constante do Acórdão deste TCAN nº 527/09.9BEAVR, de 27 de setembro de 2019, o qual se mostra particularmente exaustivo e elucidativo.
Foi decidido pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 612/2011, de 13/12, «…declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 14.º, n.º 1, 47.º, n.º 2, alínea a), e 58.º, do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, na medida em que impõem às entidades do sector social que, no desempenho de funções próprias do seu escopo, constituam sociedades comerciais para acesso à propriedade das farmácias, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito (consagrado no artigo 2.º da Constituição), conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da Constituição; …»
O regime jurídico ínsito na Lei nº 2125 (nº 4 da Base II) e os artigos 44º e 64º do Decreto-Lei nº 48.547 não obstante tenham sido revogados expressamente, tal não invalida que seja entendido que tais normativos se mostrarão repristinados em decorrência da assinalada declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, como já foi afirmado neste TCAN (Acórdão nº 02748/13.0BEPRT, de 15.05.2020).
Diga-se, em qualquer caso, que a Lei nº 2125, de 20-03-1965, promulgou as bases para o exercício da atividade de farmácia, considerando como de interesse público a função de preparar, conservar e distribuir medicamentos ao público, diferenciando três tipos de farmácias suscetíveis de poderem funcionar como tal:
(i) Farmácias atribuídas a farmacêuticos ou sociedades de farmacêuticos (Base II, nº 2);
(ii) Farmácias propriedade das Misericórdias e outras instituições de assistência e previdência social, destinadas aos seus serviços privativos e para cumprimento dos seus fins estatutários (Base II, nº 4, 1ª parte);
(iii) Farmácias que as Misericórdias e outras instituições de assistência e previdência social possuíssem abertas ao público à data da entrada em vigor daquele diploma legal (Base II, nº 4, 2ª parte).
Já o Decreto-Lei nº 48.547, de 27-08-1968, regulou o exercício da profissão farmacêutica.
No seu artigo 44º, integrado na Secção III, «Da abertura de farmácias», refere: «No alvará das farmácias licenciadas nos termos do nº 4 da base II da Lei n.º 2125 indicar-se-á expressamente que estas farmácias apenas podem fornecer medicamentos em condições especiais às pessoas que, nos termos dos estatutos ou dos regulamentos das entidades a que pertençam, tenham essa prerrogativa e nas condições ali expressamente estabelecidas».
No seu artigo 45º, relativo aos pedidos para instalação de nova farmácia, dispõe no seu nº 2: «Quando os pedidos forem formulados por Misericórdias ou outras instituições de assistência e previdência social ou por organismos corporativos de atividade farmacêutica, nos termos da Base II da Lei nº 2125, os documentos a que se referem as alíneas a) e c) do número anterior reportar-se-ão ao diretor técnico que for proposto e serão apresentados na altura oportuna».
O seu artigo 64º, integrado na Secção IV, «Do funcionamento das farmácias», consta: «1. As farmácias a que se refere o artigo 44º só podem atender as pessoas que legalmente nelas se possam abastecer, devendo pedir sempre a comprovação dessa qualidade. 2. As receitas que forem apresentadas nestas farmácias só poderão ser aviadas desde que tenham consignado o nome do doente ou a sua relação de parentesco, ou outra, com o utente legal da farmácia, justificativa do seu direito de aviar as receitas nessa farmácia. 3. (…)».
Este Decreto-Lei nº 48.547 foi alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 400/82, de 23 de Setembro, 194/83, de 17 de Maio, 430/83, de 13 de Dezembro, 10/88, de 15 de Janeiro, 229/88, de 29 de Junho, 214/90, de 28 de Junho, 72/91, de 8 de Fevereiro, 15/93, de 22 de Janeiro,135/95, de 09 de Junho, 184/97, de 26 de Julho e 134/2005, de 16 de Agosto.
Pela Lei nº 20/2007, de 12 de Junho, a Assembleia da República «Autoriza o Governo a legislar em matéria de propriedade das farmácias e a adaptar o regime geral das contraordenações às infrações cometidas no exercício da atividade farmacêutica» e, como tal, «É concedida ao Governo autorização para aprovar o regime jurídico das farmácias de oficina e adaptar o regime geral das contraordenações às infrações cometidas no exercício da atividade farmacêutica» (artigo 1º).
Quanto ao «Sentido», lê-se no artigo 2º: «A presente autorização legislativa é concedida para permitir a fixação das condições de acesso à propriedade de farmácias de oficina, estabelecer limites ao número de farmácias detidas e à possibilidade de transacionar as respectivas licenças, proceder ao aumento do número de situações de incompatibilidade que determinam a proibição de pessoas singulares ou coletivas serem proprietárias de farmácias, eliminar as infrações criminais contidas no anterior regime jurídico da propriedade da farmácia, assim como consagrar um montante máximo de coima aplicável às infrações cometidas no exercício da atividade farmacêutica superior ao previsto no regime geral das contraordenações.»
Relativamente à «Extensão» da autorização prescreve o artigo 3º:
«O decreto-lei a aprovar ao abrigo da autorização conferida pela presente lei deve estabelecer a:
a) Alteração da propriedade da farmácia, no sentido de permitir que todas as pessoas singulares ou sociedades comerciais possam ser proprietárias de farmácias;
b) Alteração do número máximo de farmácias por proprietário, de uma para quatro;
c) Alteração das incompatibilidades com a propriedade da farmácia, proibindo-se a detenção e o exercício, direto ou indireto, da propriedade, da exploração ou da gestão de farmácias a:
i) Profissionais de saúde prescritores de medicamentos;
ii) Associações representativas das farmácias, das empresas de distribuição grossista de medicamentos ou das empresas da indústria farmacêutica, ou dos respetivos trabalhadores;
iii) Empresas de distribuição grossista de medicamentos;
iv) Empresas da indústria farmacêutica;
v) Empresas privadas prestadoras de cuidados de saúde;
vi) Subsistemas que comparticipam no preço dos medicamentos;
d) Impossibilidade de as farmácias serem vendidas, trespassadas ou arrendadas ou a respetiva exploração ser cedida antes de decorridos cinco anos a contar do dia da respetiva abertura;
e) Revogação das normas deontológicas previstas na Lei n.º 2125, de 20 de Março de 1965, e no Decreto-Lei n.º 48547, de 27 de Agosto de 1968;
f) Eliminação dos ilícitos criminais previstos na Lei n.º 2125, de 20 de Março de 1965, e no Decreto-Lei n.º 48547, de 27 de Agosto de 1968;
g) Fixação do montante máximo das coimas correspondentes aos ilícitos de mera ordenação social, por violação das disposições legais do regime jurídico das farmácias de oficina, na quantia de (euro) 20000 no caso do infrator ser pessoa singular, e na quantia de €50000 nas situações em que o infrator seja uma pessoa coletiva.»
Assim, «No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 20/2007, de 12 de Junho, e nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição», o Governo aprovou «O regime jurídico das farmácias de oficina», publicado pelo Decreto-Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto.
O nº 1 do seu artigo 60º contém e referida norma revogatória:
«1 - São revogados os seguintes diplomas:
a) Lei n.º 2125, de 20 de Março de 1965;
b) Decreto-Lei n.º 48 547, de 27 de Agosto de 1968, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 400/82, de 23 de Setembro, 194/83, de 17 de Maio, 430/83, de 13 de Dezembro, 10/88, de 15 de Janeiro, 229/88, de 29 de Junho, 214/90, de 28 de Junho, 72/91, de 8 de Fevereiro, 15/93, de 22 de Janeiro, 135/95, de 9 de Junho, 184/97, de 26 de Julho, e 134/2005, de 16 de Agosto;
c) Portaria n.º 249/2001, de 22 de Março.».
Em simultâneo, determina no seu artigo 14º, sob a epígrafe «Proprietárias de farmácias «1 - Podem ser proprietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais.
2 - Nas sociedades comerciais em que o capital social é representado por ações, estas são obrigatoriamente nominativas.
3 - As entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias desde que cumpram o disposto no presente decreto-lei e demais normas regulamentares que o concretizam, bem como o regime fiscal aplicável às pessoas coletivas referidas no n.º 1
Assim, apesar de terem sido expressamente revogados os anteriores diplomas legais que regulavam a matéria do licenciamento de farmácias, e sem prejuízo da referida pontual repristinação, decorrente da declarada inconstitucionalidade, ainda assim, não se caiu num vazio legal quanto às entidades do sector social da economia, nem estas foram afastadas (expressa ou implicitamente) pelo novo regime jurídico, já que no regime instituído pelo Decreto-Lei nº 307/2007, as entidades do setor social da economia podem ser proprietárias de farmácias.
Em qualquer caso, entendeu o legislador condicionar aquela propriedade ao cumprimento do disposto naquele diploma legal, designadamente, o disposto no seu artigo 58º, o qual, sob a epígrafe «Entidades do sector social da economia», vertia: «As entidades do sector social da economia que sejam proprietárias de farmácias devem proceder, no prazo de cinco anos a contar da entrada em vigor do presente decreto-lei, às adaptações necessárias ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 14.º».
Tal, obrigava as entidades do sector social da economia a assumir uma forma societária que lhes permitisse cumprir com o disposto no nº 1 do artigo 14º e que determina que «Podem ser proprietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais».
Contra aquele condicionamento, proferiu o Tribunal Constitucional o já aludido acórdão nº 612/2011, de 13-12-2011, onde se decidiu:
«Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 14.º, n.º 1, 47.º, n.º 2, alínea a), e 58.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, na medida em que impõem às entidades do sector social que, no desempenho de funções próprias do seu escopo, constituam sociedades comerciais para acesso à propriedade das farmácias, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito (consagrado no artigo 2.º da Constituição), conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da Constituição (...)».
Na sequência desta declaração de inconstitucionalidade, o Governo, através do Decreto-Lei nº171/2012, de 1 de Agosto, procedeu à segunda alteração ao Decreto-Lei nº 307/2007 e adequou supostamente o regime jurídico das farmácias de oficina à jurisprudência fixada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2011, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 17, de 24 de janeiro de 2012.
Assim, entre o mais, revogou o artigo 58º, que impunha às entidades do sector social da economia que sejam proprietárias de farmácias o dever de proceder, no prazo de cinco anos a contar da entrada em vigor daquele decreto-lei, às adaptações necessárias ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 14.º.
E aditou um artigo, o 59º-A, com a epígrafe «Farmácias do sector social da economia», estipulando o seguinte:
«1 - O disposto no presente decreto-lei é aplicável às farmácias privativas que tenham sido abertas ao abrigo da 1.ª parte do n.º 4 da base ii da Lei n.º 2125, de 20 de março de 1965, com as adaptações decorrentes do facto de as mesmas apenas poderem fornecer medicamentos em condições especiais às pessoas que, nos termos dos estatutos ou regulamentos das entidades a que pertençam, tenham essa prerrogativa e nas condições ali expressamente estabelecidas.
2 - Não são, nomeadamente, aplicáveis às farmácias privativas as disposições do artigo 14.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 48.º
3 - As entidades do sector social que detenham farmácias abertas ao público, concorrendo com os operadores no mercado e em atividade ao abrigo dos termos previstos na 2.ª parte do n.º 4 da base ii da Lei n.º 2125, de 20 de março de 1965, devem proceder até 31 de dezembro de 2013 às adaptações necessárias ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 14.º do presente diploma.».
Finalmente, pelo Decreto-Lei nº 109/2014, de 10 de Julho, foram alterados os artigos 14º e 59º-A do Decreto-Lei nº 307/2007.
Assim, o nº 3 do artigo 14º passou a ter a seguinte redação:
«3 - As entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias nos termos previstos no artigo 59.º-A desde que cumpram o disposto no presente decreto-lei e demais normas regulamentares que o concretizam.».

E os nºs 2 e 3 do artigo 59º-A têm agora a seguinte redação:
«2 - As entidades do sector social que detenham farmácias abertas ao público, concorrendo com os operadores no mercado e em atividade ao abrigo do preceituado na 2.ª parte do n.º 4 da base II da Lei n.º 2125, de 20 de março de 1965, mantêm-se abrangidas pelo regime legal e fiscal das pessoas coletivas de utilidade pública e de solidariedade social.
3 - Não é aplicável às farmácias referidas nos números anteriores o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 14.º».
Aqui chegados, importa referir que foi predominantemente peticionado na presente Ação a anulação da Deliberação do INFARMED de 08/09/2016, que aprovou à contrainteressada a instalação de farmácia social privativa com a designação de “Farmácia (...)”.
Como se viu já o Decreto-Lei nº 307/2007 continuou a prever, incontornavelmente no seu artigo 14º, nº 3, que as entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácia.
No âmbito do Decreto-Lei nº 307/2007 na versão originária e da respetiva lei de autorização, Lei nº 20/2007, não se vislumbra qualquer sinal de manifestação de vontade do legislador em eliminar a possibilidade de novos acessos à propriedade de farmácias pelas entidades do sector social da economia, ainda que, naquela versão, se exigisse a forma de sociedade comercial.
Na verdade, e como havia estabelecido no nº 1 daquele artigo 14º, poderiam ser proprietários de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais, impondo por essa via, que as entidades do sector social da economia, para acederem a essa propriedade, teriam de assumir essa forma societária.
E quanto às já existentes, ou seja, as «entidades do sector social da economia que sejam proprietárias de farmácias», também o legislador nelas pensou e concedeu-lhes, no artigo 58º, um prazo para que estas procedessem às adaptações necessárias.
Sendo esta a letra da lei, é certo que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, como determina o nº 2 do artigo 9º do Código Civil (CC).
Em qualquer caso, não pode ser ignorado o entendimento do próprio autor do Decreto-Lei nº 307/2007 sobre o regime legal em causa, que fornece direta e incontornavelmente o pensamento legislativo subjacente à adoção da nova solução normativa para o sector.
Com efeito, no processo que correu no Tribunal Constitucional e que desembocou no supra identificado e referido acórdão nº 612/2011, publicado no Diário da República nº 17/2012, de 24 de Janeiro, na “resposta do órgão autor das normas”, este defendeu o seguinte, na referência ao regime jurídico anterior, o decorrente da Lei nº 2125 e ao novo regime, o do Decreto-Lei nº 307/2007:
“O regime jurídico anterior tratava pois com manifesto desfavor a dispensa de medicamentos pelas entidades do sector social da economia.
O esvaziamento do papel do sector social na dispensa de medicamentos através de farmácias privativas, abertas ou não ao público, resultava evidente do regime jurídico então vigente e traduzia-se no diminuto número de farmácias em funcionamento.
Ora, ao contrário do que sugere o requerimento do Senhor Provedor de Justiça, o novo regime jurídico das farmácias de oficina veio valorizar o sector social na dispensa de medicamentos e na prestação de serviços farmacêuticos.
Em primeiro lugar, garante o acesso das entidades do sector social da economia à propriedade de farmácias, respeitado que seja o limite legal de quatro farmácias.
Em segundo lugar, consente que às farmácias privativas existentes se aplique de imediato o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 307/2007, permitindo-lhes assim vender medicamentos ao público.».
Assim, e na sequência do acórdão nº 612/2011 do Tribunal Constitucional, o Governo procedeu às adequações que entendeu convenientes e foi aqui que, revogando o artigo 58º do Decreto-Lei nº 307/2007, lhe introduziu o artigo 59º-A, sob a epígrafe “Farmácias do sector social da economia”, renovando, no entanto, veladamente, o entendimento declarado já inconstitucional, de acordo com o qual, as entidades de natureza social, para serem titulares de farmácias, terem de se constituir como sociedades.
Com efeito, o referido normativo continua a dirigir-se, na sua previsão normativa, às farmácias propriedade das entidades do sector social que tenham sido abertas ao abrigo, quer da 1ª parte, quer da 2ª parte do nº 4 da Base II da Lei nº 2125 e nele se lê:
«1 - O disposto no presente decreto-lei é aplicável às farmácias privativas que tenham sido abertas ao abrigo da 1.ª parte do n.º 4 da base ii da Lei n.º 2125, de 20 de março de 1965, com as adaptações decorrentes do facto de as mesmas apenas poderem fornecer medicamentos em condições especiais às pessoas que, nos termos dos estatutos ou regulamentos das entidades a que pertençam, tenham essa prerrogativa e nas condições ali expressamente estabelecidas.
2 - Não são, nomeadamente, aplicáveis às farmácias privativas as disposições do artigo 14.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 48.º
3 - As entidades do sector social que detenham farmácias abertas ao público, concorrendo com os operadores no mercado e em atividade ao abrigo dos termos previstos na 2.ª parte do n.º 4 da base ii da Lei n.º 2125, de 20 de março de 1965, devem proceder até 31 de dezembro de 2013 às adaptações necessárias ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 14.º do presente diploma.».
Perante este novel artigo 59º-A, importa ponderar que consequências o mesmo determinará em todo o conjunto normativo.
Já a versão originária do Decreto-Lei nº 307/2007 não distinguia as farmácias privativas daquelas que o sector social possuía abertas ao público - artigos 14º e 58º.
No entanto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 171/2012, na adequação do regime jurídico das farmácias de oficina à jurisprudência fixada pelo acórdão nº 612/2011 do TC, essa distinção passou a ser feita.
Com estas alterações, e em face, designadamente, do disposto nos artigos 14º e 59º-A, vejamos o que a lei prevê quanto às farmácias privativas:
O artigo 14º dispõe agora, quanto às proprietárias de farmácias:
«1 - Podem ser proprietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais.
2 - Nas sociedades comerciais em que o capital social é representado por ações, estas são obrigatoriamente nominativas.
3 - As entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias desde que cumpram o disposto no presente decreto-lei e demais normas regulamentares que o concretizam, bem como o regime fiscal aplicável às pessoas coletivas referidas no n.º 1.»;
Mais uma vez, o princípio constante do nº 3 é reafirmado, podendo as entidades do sector social da economia ser proprietárias de farmácias, nas condições ali vertidas.
Certo é que, no entanto, o nº 2 do artigo 59º-A refere o seguinte:
«Não são, nomeadamente, aplicáveis às farmácias privativas as disposições do artigo 14.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 48.º».
Assim sendo, às farmácias privativas não seria aplicável, designadamente, o disposto no nº 3 do artigo 14º, sendo que é esta a norma que permite às entidades do sector social da economia poderem ser proprietárias de farmácias (de qualquer tipo, pois que não distingue, entre as quais as privativas).
Assim, o Decreto-Lei nº 307/2007, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 171/2012, parece ter aparentemente mitigado a possibilidade legal de as entidades do sector social poderem ser proprietárias de farmácias privativas, o que não poderá subverter o entendimento adotado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 612/2011, de 13/12, de acordo com o qual se mostra inconstitucional impor às entidades do sector social a necessidade de se constituírem em sociedades comerciais para acesso à propriedade das farmácias socias privativas, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, principio consagrado no artigo 2.º da CRP, conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da mesma CRP.
Efetivamente, não obstante a referida exclusão, permanece vigente o nº 3 do artigo 14º do Decreto-Lei nº 307/2007, o qual, como se viu já, refere que «As entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias desde que cumpram o disposto no presente decreto-lei e demais normas regulamentares que o concretizam, bem como o regime fiscal aplicável às pessoas coletivas referidas no n.º 1.».
Assim, nada parece obstar a que possa funcionar uma farmácia social privativa, desde que a requerente cumpra os pressupostos e requisitos legal e regulamentarmente exigíveis, pois que, tal como sumariado no Acórdão do TCAN, proferido no Processo nº 153/13.8BEPRT. de 10-03-2017 “Não tem fundamento legal a tese (...) segundo a qual após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 307/2007 de 31 de agosto, ao abrigo da legislação em vigor e da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não é possível autorizar a instalação de novas farmácias sociais.”
Mostra-se pois excessiva a obrigação da constituição de sociedades comerciais para que aquelas entidades de cariz social possam aceder às Farmácias privativas.

Tal solução mostrar-se-ia desequilibrada e excessivamente desproporcionada, tanto mais que não está em causa uma direta concorrência com as entidades privadas instaladas na atividade farmacêutica.

O artigo 59º-A nº 2 do DL 307/2007, ao aparentemente mitigar o acesso das Entidades de cariz social à instalação de farmácias sociais privativas, nas vestes de associação, para venda de medicamentos, exclusivamente aos seus associados, obrigando-as, caso queiram aceder a essa propriedade, a usar a forma de sociedades comerciais, tal como resulta da filosofia subjacente ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2011, de 13/12, mostrar-se-ia igualmente violadora do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, principio consagrado no artigo 2.º da CRP, conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da mesma CRP.
Na perspetiva do respeito pela proibição do excesso, importa ponderar, verificar e reconhecer que a obrigação de constituição de Sociedades comerciais por parte de entidades de cariz social, atendendo aos fins em causa, se mostra desproporcionado, mormente quando apenas esteja em causa o exercício de atividade farmacêutica em espaço próprio, fora do mercado, sem fins lucrativos, sem o objetivo de subverter a livre concorrência comercial das entidades privadas farmacêuticas instaladas

Obrigar as entidades de cariz social a constituir sociedades comerciais para que possam funcionar “em circuito fechado”, isso sim poderá comprometer a livre concorrência.

Mal se compreende que o escopo social das referidas entidades, ainda que cingido à atividade no sector social, se realizasse para uso exclusivo dos seus associados, com recurso necessário à intermediação de uma sociedade comercial, o que constituiria uma solução anacrónica e contra natura.
Tal solução mostrar-se-ia pois desequilibrada, desde logo porque, quando a titularidade da farmácia e o correspondente exercício da atividade farmacêutica tenha lugar a favor dos beneficiários da entidade social, não concorre com os operadores no mercado, em face do que o objetivo de garantia da igualdade de concorrência perderia desde logo razão justificativa.
O encargo de descaracterização imposto aos entes sociais quando atuem fora do mercado - resultante da obrigatoriedade da criação de sociedade comercial - não encontra justificação consistente nos pretendidos objetivos de equilíbrio da concorrência.
Se os entes sociais atuam fora do mercado, para cumprimento dos fins estatutários que lhes estão associados, faz como que inexistam razões ponderosas que justifiquem a intermediação do formato societário.
Em síntese, atendendo aos fins que visa alcançar - e às exigências resultantes do n.º 5 do artigo 63.º da Constituição -, a solução legislativa adotada, ao obrigar os entes sociais que pretendam desenvolver a atividade farmacêutica fora do mercado, à constituição de sociedades comerciais, revela-se uma solução que não observa as exigências de equilíbrio decorrentes do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Sublinha-se, para evitar equívocos, que o que está aqui em causa é singelamente a abertura de farmácias sociais privativas (não abertas ao público) por parte de entidades de cariz social.

Não decorre do artº 59º-A do DL 307/2007, de 31/8, a impossibilidade de coexistência de farmácias privativas e farmácias abertas ao público, propriedade de entidades do sector social, sendo que apenas estas últimas estarão sujeitas à imposição legal de serem constituídas sociedades comerciais para serem titulares de farmácias.

O atual regime constante do DL nº 307/2007, de 31 de Agosto, com as diversas alterações entretanto introduzidas, não deixou de contemplar a possibilidade de instalação de novas farmácias sociais.

Entendimento diferente colidiria desde logo com a filosofia subjacente ao aludido acórdão do Tribunal Constitucional, o qual deixa claro que a garantia da coexistência dos três sectores - público, privado e social - constitui uma garantia central no quadro da organização económica consagrada no artº 82º da CRP, sendo certo que o DL nº 307/2007, como melhor consta do referido Acórdão “(…) veio liberalizar o mercado farmacêutico. Antes dele, nos termos da Lei n.º 2125, só os farmacêuticos e, dentro de certos condicionalismos, as entidades do sector social, podiam ser proprietários de farmácias. A generalidade das pessoas não tinha acesso à propriedade das farmácias. Ela estava reservada a farmacêuticos e a entidades do sector social. Agora, pelo contrário, admite-se que, para além dos farmacêuticos e das entidades do sector social (artigo 14.º, n.º 3, primeira parte), toda e qualquer pessoa singular ou sociedade comercial possa ser proprietária de uma farmácia (artigo 14.º, n.º 1)”, mais esclarecendo que “o sector social não é excluído do acesso à propriedade das farmácias, podendo a ela aceder, desde que por intermédio dessa forma comum que é a forma de sociedade comercial. As entidades do sector social não foram objeto duma exclusão e podem aceder, ainda que apenas indiretamente, à titularidade de farmácias. Nenhum sector é excluído do acesso à propriedade das farmácias, não sendo a atividade farmacêutica reservada ao sector privado, pelo que não é posta em causa a coexistência dos sectores. Pelo contrário, a solução permite a coexistência do sector privado e do sector social no mercado farmacêutico. A questão não é, pois, de acesso à titularidade das farmácias, visto que o sector social não é dele excluído, mas a da justificação objetiva da imposição do ónus de constituição de sociedades comerciais, a entidades do sector social que o legislador está obrigado a apoiar”.

No âmbito dessa análise, reconheceu insofismável e incontornavelmente o TC no acórdão nº 612/2011 que as entidades do sector social podem, se o desejarem, prosseguir a atividade farmacêutica “no seu espaço próprio, fora do mercado, sem fins lucrativos, com puros objetivos de solidariedade social”, e que, neste quadro “já será excessivo o legislador obrigar à constituição de sociedades comerciais”.

E mais adiante, reforçando a mesma ideia, diz o TC no mesmo acórdão, que «Por outro lado, devendo a garantia institucional da coexistência dos sectores de produção (privado, público e social) ser vista como assegurando que cada um deles, com as suas características identitárias específicas, possa atuar nos diversos âmbitos de atividade que lhe são próprios, será excessivo impor ao sector social que atue no seu espaço normal, fora do mercado, sem que se possa apresentar com a sua natural identidade.
Em suma, atendendo aos fins que visa alcançar - e às exigências resultantes do n.º 5 do artigo 63.º da Constituição -, a solução legislativa adotada, ao obrigar os entes sociais que pretendam desenvolver a atividade farmacêutica fora do mercado, à constituição de sociedades comerciais, revela-se uma solução que não observa as exigências de equilíbrio decorrentes do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.»

Em face do que supra ficou expendido, e sem necessidade de mais aprofundamentos ou desenvolvimentos, julgar-se-á procedente o Recurso interposto, desaplicando-se o nº 2 Artº 59º-A do DL nº 307/2007, na redação introduzida pelo DL 171/2012, interpretado no sentido de não permitir às entidades do sector social da economia poderem ser titulares de farmácias sociais privativas, sem que se constituam em sociedade comerciais, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, principio consagrado no artigo 2.º da CRP, conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da mesma CRP.

Efetivamente, o afastamento pelo nº 2 do Artº 59º-A do DL nº 307/2007, da aplicação, nomeadamente, do nº 3 do artigo 14º do mesmo diploma, relativamente às Entidades do Setor Social, determinaria que as referidas entidades só pudessem aceder à propriedade de farmácias sociais privativas através da constituição de Sociedades Comerciais, o que redundaria na violação e subversão, designadamente, do entendimento constante do acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2011 que aqui se acolheu, mutatis mutandis.

Atento tudo quanto de discorreu e decidirá, mostra-se prejudicada a análise dos restantes vícios e nulidades suscitadas, o que se mostraria inútil e redundante.
* * *
Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao Recurso Jurisdicional apresentado, revogando-se o segmento IV da Sentença Recorrida, mantendo-se assim na ordem jurídica o ato objeto de impugnação.

Custas pelos Recorridos

Porto, 15 de julho de 2020

Frederico de Frias Macedo Branco
Nuno Coutinho
Rogério Martins- (Em substituição)